23 de fevereiro de 2022

ONLINE PODE SER BOM, MAS NÃO SUBSTITUI PRESENCIAL!

(Simon Schwartzman, sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciência – O Estado de S. Paulo, 19) Pela 1.ª vez, o total de ingressantes na educação a distância superou o de ingressantes nos presenciais, por causa, sobretudo, da alta de matrículas a distância no setor público, que antes praticamente não existiam. Claro que isso foi acentuado pela pandemia, mas é uma tendência que já ocorria. O aluno típico do presencial é jovem, recém-saído do ensino médio, não precisa trabalhar. Com recursos da família, cursou uma boa escola de ensino médio que permitiu que entrasse em uma instituição pública pelo Enem ou Fuvest, ou paga curso presencial em boa instituição privada. O aluno da educação a distância terminou o médio anos atrás, precisa trabalhar, e possivelmente não teve boa qualificação no Enem ou na Fuvest, se é que tentou.

Até a crise de 2015, os mais velhos normalmente entravam em cursos noturnos privados, com bolsa do Prouni (uma pequena parte), e sobretudo com o financiamento estudantil, que acabava muitas vezes não pagando. O Fies encolheu e grandes empresas do setor privado transferiram alunos dos noturnos para o EAD.

Com a educação a distância, o custo por aluno cai, porque poucos professores atendem a muitos alunos com aulas padronizadas, distribuídas por meios eletrônicos, o que dispensa manter muitas instalações. Para o aluno, o baixo custo torna o curso acessível; se bem dado, pode ser melhor do que os antigos noturnos.

O EAD existe há décadas e não é necessariamente de má qualidade. A economia de escala permite materiais de qualidade, sistemas sofisticados de distribuição, acompanhamento e avaliação, fora do alcance de instituições menores e dos noturnos tradicionais. Um problema é a grande taxa de evasão – que ocorre também no presencial (na ordem de 50%).

Mas o EAD não substitui o presencial. Proximidade com colegas, professores, biblioteca e áreas de convivência, o conhecimento tácito que não está em livros e computadores e se adquire no contato pessoal, as redes criadas: isso não se reproduz a distância. Para jovens, o presencial, enriquecido com recursos das novas tecnologias, é indispensável. Aos mais velhos, o EAD de qualidade, se mais orientado para cursos mais curtos e práticos, e não bacharelados e licenciaturas tradicionais, pode ser a melhor opção.

21 de fevereiro de 2022

EM 2022, MAIS MULHERES PELA DEMOCRACIA!

(Marina Zonis e Monica Rosenberg – O Estado de S. Paulo, 16) Você já deve ter se deparado com a frase “o futuro é feminino” ao menos uma centena de vezes nos últimos anos. Mas já parou para pensar no que isso realmente significa? Faz algum tempo que pesquisadores estudam a relação entre democracia e direitos das mulheres.

Diversas instituições independentes já mencionam os direitos das mulheres como componente importante de uma sociedade livre. De acordo com a Freedom House, instituição internacional de defesa de direitos humanos, líderes autoritários têm oprimido mulheres, perseguindo instituições da sociedade civil que lutam por seus direitos e estimulando a violência física e verbal contra elas, como forma de demonstração de poder e força.

A professora Sonia Corrêa, pesquisadora da London School of Economics and Political Science (LSE), diz que onde a democracia se expande os direitos das mulheres se expandem junto; e o oposto também é verdade, quando a democracia é ameaçada, os direitos das mulheres também o são.

Sendo assim, a frase “o futuro é feminino” é mais literal do que se pensa: um futuro mais igualitário para homens e mulheres é essencial para uma democracia real. A questão é: como atingir esse futuro?

Com certeza, não é minimizando o problema e reduzindo investimentos em boas políticas públicas. Parece óbvio, mas não é. O exemplo está mais próximo de nós do que se pode imaginar. A Prefeitura de São Paulo acaba de reduzir em 37,5% os recursos para enfrentar a violência doméstica na cidade. Redução de impostos é um ponto positivo? Sim, quando a redução é em despesas acessórias, que inflam a máquina pública desnecessariamente. Com os números avassaladores de agressão e ameaça contra mulheres, ainda mais agravados durante a pandemia, obviamente esse corte não é justificável.

Para que o futuro seja feminino e justo para todas as pessoas, é necessário que algumas discussões parem de ser ignoradas: não dá mais para negar que meninas de baixa renda precisam de ajuda para enfrentar a pobreza menstrual, certo? Não dá mais para negar que precisamos de mais políticas públicas que combatam seriamente a violência doméstica. Muito menos dá para negar que precisamos de um setor privado mais consciente que combata desigualdades salariais baseadas em gênero.

Todos os pontos acima são responsáveis pela diminuição de dinheiro, de recursos. Ou seja, impactam no curto prazo o feminino, e todos os demais no longo prazo. Não precisa concordar conosco sobre justiça social. Só precisa concordar sobre economia. Ou negar os dados globais e nacionais elaborados no tema. É uma escolha.

A forma de mudar este cenário, de acabar com o negacionismo sobre direitos das mulheres, é nos dar a oportunidade de participar dos debates que versam sobre o ambiente público. Isso significa avançar em mais uma pauta, a mais delicada e mais atrasada de todas: a participação feminina na política.

Estudos mostram que, quanto maior a presença feminina nas instituições de um país, menores são as oportunidades de corrupção. Um estudo publicado no Journal of Economic Behavior & Organization, de Chandan Cuma Jha e Sudipta Sarangi, do Departamento de Economia da Universidade Virginia Tech, apontou que a corrupção é menor onde mulheres participam em maior número no governo. A análise foi feita em mais de 150 países, entre eles o Brasil.

Além disso, pesquisadores do Departamento de Economia da Williams College demonstraram (*), numa pesquisa em que foram analisados bancos de dados com informações sobre 43 países nas décadas de 1980 e 1990, que as mulheres estão menos envolvidas em casos de suborno e menos propensas a aceitar este comportamento. Assim como países que têm mais mulheres como membros do Legislativo e do Executivo também tiveram menor incidência no índice de corrupção. O estudo ainda menciona que, a partir da defesa de que com mais mulheres a corrupção seria reduzida, países como França,

México e Peru tomaram medidas para aumentar a participação feminina em cargos políticos.

A quem interessam a diminuta participação feminina na política e a violência direcionada a elas? Ao status quo. Interessa àqueles deputados que você odeia, de quem você reclama todo fim de semana na mesa de bar. A melhor forma de manter a política como está é continuar não apoiando que pessoas diferentes ocupem os espaços de poder.

Informar-se e votar diferente é uma escolha. Em 2022, você vai só reclamar com os amigos na mesa do bar de novo? Ou entrar no nosso time?

(*) Questionamentos sobre a frase “alguém que aceita suborno no exercício de suas funções” tiveram como resultado 77,3% das mulheres classificando como comportamento que nunca se justifica, enquanto o resultado masculino foi de apenas 72%)

18 de fevereiro

FUGA EM MASSA PARA OS EUA TRANSFORMA A VENEZUELA EM UM PAÍS SEM JOVENS!

(Fernanda Simas – O Estado de S. Paulo, 13) Quando Diego (nome fictício, por razões de segurança) trocou a Venezuela pelos Estados Unidos sabia que tinha pouco tempo até que o cerco apertasse. Ele chegou à fronteira americana no dia 20 de novembro, quando o número de venezuelanos tentando cruzar o Rio Grande batia recordes. Atrás dessa onda de migração em massa sobrou um país devastado pela crise e com uma demografia muito diferente da que existia há pelo menos seis anos.

Os imigrantes venezuelanos passaram a enfrentar um cerco na América Latina, já que muitos governos – incluindo o México – agora exigem visto de entrada. Além disso, a crise econômica, agravada pela pandemia, acelerou o processo de migração. Em dezembro, 24.961 venezuelanos apareceram na fronteira – um ano antes, foram apenas 371.

PANDEMIA. “O medo era que, se demorássemos, não conseguiríamos mais por conta do visto. A dificuldade foi sair da Venezuela, porque estávamos eu, minha cunhada e minha sobrinha de 3 anos. Pagamos US$ 2,4 mil para sair com a menina, porque não havia documentação para retirá-la do país”, conta o jovem de 30 anos, formado em Manutenção Aeronáutica, que vive em Miami, no Estado da Flórida.

Em 2021, mais de 40 mil venezuelanos entraram no México com o visto de turista, muitos em Cancún. Aos poucos, eles começaram a cruzar para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor.

“Eu não passava necessidade na Venezuela, mas não tinha progresso econômico para ter minhas coisas, uma casa, um carro ou mesmo crescimento profissional. Tive a chance de vir e viver com meu irmão, que me emprestou o dinheiro. Saímos da Venezuela em um voo com escala no Panamá e chegamos ao México”, disse Diego.

Ao contrário dele, muitos venezuelanos não pegaram um voo para os Estados Unidos. “Muitas famílias que chegam agora estão deslocadas há anos. Eles decidiram partir, como ocorreu com os haitianos. Mas a diferença é que, entre os venezuelanos, apenas entre 20% e 25% dos pedidos de asilo são negados”, explica a professora da Faculdade de Educação de Harvard Gabrielle Oliveira, que realiza pesquisas com famílias de imigrantes.

BOMBA DEMOGRÁFICA. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 6 milhões de venezuelanos deixaram o país desde 2015 e 4 milhões vivem na América Latina. Com a pandemia e o agravamento da crise econômica em países da região, eles resolveram novamente se arriscar e partir rumo aos EUA.

A chegada massiva de venezuelanos deixou o presidente Joe Biden diante de um desafio. Entre setembro e dezembro, 69.972 venezuelanos chegaram aos Estados Unidos de forma ilegal. Hoje, autoridades americanas estimam que existam 323 mil venezuelanos clandestinos, que são elegíveis para receber o TPS – status de proteção provisória concedido pelo governo dos Estados Unidos.

No entanto, Biden acionou o Título 42, que permite a deportação por questões sanitárias – o argumento é que os imigrantes ampliam o risco de disseminação da covid. Assim, os Estados Unidos passaram a expulsar os venezuelanos, que foram enviados para a Colômbia, onde residiam antes.

A política causou forte atrito com o presidente colombiano, Iván Duque.

IMPACTO. O impacto do êxodo é enorme na Venezuela. O país começa a ser conhecido como “uma terra de idosos e crianças”. Segundo pesquisa recente, no país existem hoje 65 pessoas dependentes – menores de 15 anos ou maiores de 60 – para cada 100 pessoas em idade economicamente ativa. “Os jovens sumiram da Venezuela. Eu mesmo tinha poucos conhecidos ainda lá, a maioria foi embora do país”, conta Diego.

Projeção do Instituto Nacional de Estatística da Venezuela (INE), de 2015, estimava que, em 2020, o país teria 32,5 milhões de habitantes. No entanto, segundo o Banco Mundial, a Venezuela tem hoje 28 milhões. A diminuição é resultado da baixa natalidade e alta mortalidade, além do fluxo migratório. Segundo a Universidade Católica Andrés Bello, de Caracas, 60% dos migrantes venezuelanos têm idades entre 15 anos e 50 anos. 

16 de fevereiro de 2022

HORA DE FAROL ALTO, MEU BRASIL!

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 12) O leitor certamente conhece o instituto de pesquisas inglês Economist Intelligence Unit (EIU), ligado à revista The Economist, que compila anualmente um “índice de democracia” para mais de 60 países. Baseando-se em diversos indicadores, o EIU classifica tais países com base em diversos indicadores e situação conjuntural de cada um.

Em seu relatório de 2020 – o mais recente divulgado –, a instituição traçou um quadro sombrio, indicando um enorme retrocesso em todos os continentes. O título do relatório, In sickness and in health? (Na doença e na saúde?), já sugere o fator posto em relevo: a pandemia de covid-19, que forçou a maioria dos governos a tomar medidas que provavelmente seriam rejeitadas pelos cidadãos caso fossem submetidas a algum tipo de plebiscito. Esse trágico painel reforça numerosas análises que vêm há anos prognosticando o iminente fim da democracia liberal-representativa.

O EIU classifica os países estudados em quatro categorias. A “nata” da democracia, designada como “democracias plenas”, compreende apenas 23 países, nos quais vivem 8,4% da população mundial. Os países nórdicos da Europa e o Canadá ocupam as posições mais altas. Na América Latina, só três países – Uruguai, Chile e Costa Rica – podem gabar-se de ser “plenamente” democráticos.

O grupo seguinte, denominado “democracias defeituosas”, compreende 52 países e 41% da população mundial. Esses países podem orgulhar-se de alguns traços democráticos importantes, desde logo o fato de que o acesso ao poder se dá mediante eleições periódicas, limpas e livres, mas não conseguem manter um padrão elevado em outros aspectos, como a liberdade de imprensa e a proteção dos direitos humanos. Uma parte expressiva dos cidadãos se opõe aos valores básicos da democracia. Para ter uma ideia da qualidade exigida para um país ser considerado “plenamente” democrático, basta lembrar que França, Portugal e Estados Unidos foram recentemente rebaixados para o grupo “defeituoso”, fato perceptível no caso norte-americano, tendo em vista a virulenta polarização iniciada na eleição presidencial de 2016, que deu a vitória a Donald Trump, e a recidiva racista, grotescamente ilustrada pelo assassinato de um negro quando um policial o manteve sufocado sob sua bota durante 8 minutos.

O terceiro grupo, designado como “regimes híbridos”, é uma mistura desconexa, na qual alguns países até mantêm uma contrafação de processo eleitoral, mas que, a meu ver, não passam de ditaduras, abertas ou veladas.

Abaixo dos “regimes híbridos” temos os países inequivocamente ditatoriais, como a China, o Irã e a Coreia do Norte. Alguns desses países exemplificam bem o que acima designei como contrafação de processo eleitoral. Na Bielorrússia, por exemplo, o presidente Alexander Lukashenko, possuidor de sólidas credenciais fascistas, pleiteou em 2020 o seu sétimo mandato. Ao se dar conta de que seu adversário, Siarhei Tsikhanouski, poderia dar-lhe algumas dores de cabeça, mandou-o para a cadeia. Não se importou com a mulher dele, Sviatlana Tsikhanouskaya, uma simples dona de casa que se ocupava tão somente de cuidar de seus dois filhos, um deles nascido surdo. Mas o implausível aconteceu. Ela se candidatou à presidência, o inconformismo latente veio à tona e ele, Lukashenko, achou melhor mandá-la para o exílio na Lituânia.

O caso da Bielorrússia contém uma lição importante: o fascinante painel que a pesquisa do EIU nos proporciona requer certos cuidados na interpretação. O sucesso eleitoral da sra. Sviatlana e a evidência de que a Bielorrússia não passa de uma ditadura nada tiveram que ver com a conduta do governo em relação à pandemia. No sentido oposto, a estrela do relatório de 2020 é Taiwan, que subiu 11 posições, alçando-se ao seleto grupo das democracias plenas.

O Brasil é outro caso que precisa ser interpretado com cautela. Ocupando a 49.ª posição, estamos um pouco acima da Índia e um pouco abaixo da África do Sul. Os relatórios bianuais divulgados desde 2006 mostram uma acentuada redução na qualidade de nossa democracia (que nunca foi grande coisa). Importa ressaltar que estou me referindo à série iniciada em 2006, portanto a pandemia, por maior que venha a ser seu efeito, não é a explicação. Se queremos de fato entender o que vem acontecendo, melhor será começarmos pela ressurreição do populismo a partir de 2002; o conluio entre a deslavada corrupção implantada na Petrobras com a malta dos empreiteiros; a liquefação da estrutura partidária; a recessão engendrada pelos desatinos econômicos da sra. Dilma Rousseff; a estúpida polarização política entre Bolsonaro e o PT, iniciada na eleição de 2018; a liturgia presidencial, espezinhada pelo sr. Jair Bolsonaro, tudo isso servindo como pano de fundo para o fato de nos havermos igualado aos Estados Unidos numa grotesca manifestação de racismo, o assassinato do congolês Moïse no Rio de Janeiro. Haveria mais o que dizer, claro, mas, a oito meses da eleição, basta lembrar que o farol baixo aponta para a Bielorrússia, o alto, para Taiwan. 

15 de fevereiro de 2022

ATOMIZAR, POLARIZAR!

(Cesar Maia – Folha de SP, 03/10/2009) A pedagogia dos historiadores quase sempre busca uma data para marcar a fronteira entre períodos. O 9/11/1989, a queda do Muro de Berlim, é a data escolhida para o fim da Guerra Fria.

Assim, a política foi se desideologizando e todos caminharam para o centro. A esquerda ficou social-democrata, e a direita, social-liberal, ambas como faces do mesmo centro. O que não impede que se passe de um lado para o outro sem nenhuma cerimônia. Programas de renda mínima (Bolsa Família…), tão caros aos governos à esquerda, são tipicamente social-liberais: buscam igualar o ponto de partida para as iniciativas individuais.

Essa indiferenciação crescente, entre partidos e entre governos, terminou por estimular a atomização partidária. Os EUA são uma exceção, porque, nas primárias, permitem que forças que poderiam ser novos partidos aceitem disputar eleições pré-presidenciais e concordar com seus resultados.

O Uruguai é outra exceção, e pela mesma razão. Até a Alemanha, com um sistema eleitoral feito para eliminar os extremos, hoje é parte dessa atomização, com o crescimento dos pequenos partidos e a criação de mais um, à esquerda.

Com isso, os governos são e serão de coalizão. O Reino Unido conta hoje com três partidos competitivos e um -nacionalista- em ascensão. Isso para não falar da nossa América Latina, onde a atomização é a regra. O Chile adotou um sistema de grandes coalizões, transformando seis partidos em dois blocos, mas está às vésperas de desmontar o seu inteligente sistema binário.

Junto à atomização vem a tecnologia eleitoral, que permite a antipolíticos serem transformados em estrelas a golpes de ilhas de edição.

A performance dos presidentes-estrelas se descola da avaliação de seus governos. Na América Latina é assim em geral, e só há convergência, no inverso, quando o presidente desmancha. Com isso, a oposição só é eficaz personalizando a crítica.

O presidente-estrela, com a atomização, joga todos para dentro do governo, fazendo sua maioria parlamentar. E tanto faz, pois seu governo não afeta sua popularidade. Consolidada a maioria, governa de forma autocrática e provoca a oposição de forma a estimular a máxima polarização. Um dos polos é ele, e nunca seu governo.

Essa é a fórmula. Nas democracias mais avançadas, suavemente. Nas democracias pela metade, de forma descarada, onde, depois da eleição, e já no exercício do poder, o regime se torna autoritário, aberto ou disfarçado. Eliminam-se assim os direitos políticos dos cidadãos.

Em economias mais fortes, como o Brasil, os excessos vêm disfarçados pelos riscos: a resistência é maior.

Mas, sublinhe-se: apenas disfarçados.

14 de fevereiro de 2022

DESTRA, SINISTRA E AS FEDERAÇÕES PARTIDÁRIAS!

(Maurício Costa Romão) A partir de questionários aplicados a 519 cientistas políticos residentes no país e no exterior, no ano de 2018, professores da Universidade Federal do Paraná classificaram os partidos políticos brasileiros, segundo sua posição ideológica, numa escala de zero a dez, em que zero representava posição mais à esquerda e dez, mais à direita.

Longe de enveredar pelas infindáveis discussões acadêmicas que envolvem os conceitos de direita e esquerda, e muito menos pretender cotejar metodologias de classificação partidária de posições ideológicas, o presente texto se vale do relevante estudo da UFPR como referência empírica para melhor compreender as dificuldades que envolvem a celebração de federação de partidos para as eleições de 2022.

Registre-se, ab initio, que no pleito de 2018, em todos os estados brasileiros, à exceção do Rio de Janeiro, os partidos classificados no estudo como de esquerda (PCdoB e PT) e centro esquerda (PDT e PSB) celebraram alianças com um ou mais partidos de espectros à direita para eleição de governadores.

Mais recentemente, na disputa de 2020, o mesmo fenômeno ocorreu na eleição municipal: as mesmas siglas à esquerda estiveram juntas com outras à direita em coligações para prefeito em todas as capitais do país (menos em Florianópolis e Rio de Janeiro).

Não é de todo ousado inferir que o mesmo tenha acontecido na larga maioria dos 5.568 municípios brasileiros na eleição de 2020. Há fortes indícios indicativos dessa possibilidade, conforme aponta trabalho do cientista político Humberto Dantas, que catalogou dados junto ao TSE sobre as alianças partidárias que se formaram em 2012 na eleição para prefeito nos municípios brasileiros.

Dos 10 maiores partidos à época, cada um do “campo” da esquerda (PT, PSB, PDT) esteve junto em aliança em torno de uma mesma candidatura a prefeito com partidos do “campo” oposto, nunca menos que em 1.000 municípios. Por exemplo, o PT com o PP (aliados em 1.531 municípios), com o DEM (1.041), com o PR (1.402), com o PSDB (1104), etc. A mesma coisa com as alianças do PSB e PDT. É de se imaginar que nas eleições de 2016 e de 2020 o mesmo diapasão se haja mantido, com incidências numéricas aproximadas.

Esse breve mosaico de letras misturadas ressalta a natureza incoerente e inorgânica dos partidos brasileiros e sua descarada sustentação pragmática em conveniências eleitorais. Não é à toa que as federações partidárias, agora definitivamente legitimadas pela decisão colegiada do STF na quarta-feira (9/02), estão tendo tantas dificuldades de se formarem.

Com efeito, para se apresentarem como não sendo meras replicações das coligações proporcionais, as federações incluíram na sua lei de criação dois dispositivos de disfarce: (1) a abrangência nacional da aliança (verticalidade) e (2) a exigência de um mínimo de 4 anos de união federada.

Estava assim ancorada para seus idealizadores a narrativa que distinguia o novel mecanismo das antigas coligações: a federação não era composta diversamente em cada localidade e nem tampouco efêmera, que se desfazia assim que terminavam os pleitos. A narrativa foi convincente, conforme se depreende da decisão do STF.

Os dois dispositivos que dão base discursiva de “união programática” aos defensores da novidade eleitoral são ao mesmo tempo os obstáculos à concretização dessa mesma união por conta da complexidade dos arranjos políticos locais e da negociação que perpassa duas eleições, uma geral e outra municipal.

Definitivamente, é muito difícil conciliar os dois requerimentos da federação diante de painel partidário tão descaracterizado programática e ideologicamente.

11 de fevereiro de 2022

O BRASIL NO ÚLTIMO PELOTÃO DOS LATINOS!

(O Estado de S. Paulo, 10) Superado com vigor o primeiro impacto da pandemia, a economia latino-americana perde impulso, volta ao ritmo anterior ao surto de covid-19 e se defronta com três desafios simultâneos: garantir contas públicas sustentáveis, elevar o potencial de crescimento econômico e promover importantes ganhos sociais, favorecendo a coesão e combatendo as desigualdades. Formulados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o diagnóstico e a receita são dificilmente contestáveis por qualquer político responsável, informado e disposto a trabalhar pelo desenvolvimento de seu país e da região. Nesse quadro, as perspectivas de expansão do Brasil são inferiores, sem surpresa, às de outras grandes economias da América Latina e do Caribe – uma desvantagem visível já no período petista e mantida, e até agravada, nos três anos de mandato já completados pela presente administração.

A forte reação econômica foi suficiente, no ano passado, para a maior parte da região voltar aos níveis de atividade anteriores à pandemia, normais para os latino-americanos e geralmente inferiores aos de outros emergentes, principalmente da Ásia. O Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina e do Caribe encolheu 6,9% em 2020, cresceu 6,8% em 2021 e deve expandir-se 2,4% neste ano e 2,6% no próximo, segundo informe do Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI, desde janeiro chefiado pelo brasileiro Ilan Goldfajn, ex-presidente do Banco Central do Brasil. Na América do Sul, o PIB deve aumentar 1,8% em 2022 e 2,2% em 2023. O ganho estimado para 2021, de 7,1%, compensou com folga a perda de 6,5% na onda inicial da pandemia. Nessas contas, a economia brasileira se distingue duplamente das demais.

A primeira diferença aparece no balanço de 2020. Nesse ano o PIB do Brasil diminuiu 3,9%, num recuo bem menor que o observado em outros países da América Latina e de grande parte do mundo capitalista – uma vantagem proclamada mais de uma vez pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. A segunda, bem visível quando se volta ao cenário mais comum, confirma o menor vigor da economia brasileira, já evidente em anos anteriores ao choque inicial da pandemia.

O crescimento projetado para o Brasil – de 0,3% em 2022 e de 1,6% em 2023 – é bem inferior ao estimado para outras economias da região. Exemplo: depois de uma perda de 5,9% em 2020, a produção chilena cresceu 12% em 2021 e deve aumentar 1,9% neste ano e também no próximo. As taxas estimadas para a Colômbia são de 4,5% em 2022 e de 3,7% em 2023. O salto do ano passado, de 10,2%, superou amplamente a queda de 2020, estimada em 6,8%.

Houve avanços inegáveis na maior parte da América Latina, no último quarto de século. As economias ficaram menos frágeis, houve menos crises graves e os países tornaram-se menos dependentes do socorro do FMI. Acordos de financiamento ainda foram assinados, mas em situações menos dramáticas e acompanhados de condições mais suaves.

No Brasil, o cenário favorável durou cerca de dez anos, neste século. Os padrões de governo começaram a ser afrouxados no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e entraram em colapso nos primeiros anos da presidente Dilma Rousseff. Muitos bilhões foram queimados em políticas erradas, como a dos “campeões nacionais”, enquanto se deteriorava a infraestrutura, a ineficiência era favorecida pelo protecionismo, a Petrobras era pilhada e a indústria de transformação perdia competitividade e relevância. A recuperação econômica nunca se completou, depois da recessão de 2015-2016, e as noções de planos e programas federais praticamente sumiram a partir de 2019.

O Brasil tem recuado duplamente – em relação à própria história de modernização econômica e em relação aos padrões mundiais e regionais. Embora menos industrializados, outros países latino-americanos têm mostrado dinamismo bem maior que o brasileiro, condições fiscais mais saudáveis e menor propensão a surtos inflacionários. As novas projeções do FMI confirmam a evidente desvantagem brasileira, mas quem, no Ministério da Economia, ainda leva a sério o FMI?

09 de fevereiro de 2022

LIBERDADE ECONÔMICA NÃO É IGUAL À LIBERALIDADE URBANÍSTICA!

(Sonia Rabello, 04) Está aberto à consulta pública, até a próxima segunda-feira, dia 7 de fevereiro, no site do Ministério da Economia, um espaço para sugestões para uma nova Resolução daquela pasta que, com base na Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), visa interferir no licenciamento de alvarás urbanísticos municipais. E como? Aplicando, de cima para baixo – do federal para o municipal – uma classificação de atividades urbanísticas de “baixo risco” que não mais necessitariam, em princípio, de prévia aquiescência (alvará) das Prefeituras.

O site da consulta mostra que, até o momento, o número de contribuições recebidas é igual a zero ! Deve ser porque o assunto não teve qualquer divulgação, pois a resolução anterior (Resolução CGSIM nº 64/2020) foi revogada após levantar enorme polêmica e oposição dos órgãos profissionais e acadêmicos de arquitetura e urbanismo.

Neste mesmo mês, enquanto circula novamente a proposta de liberar do controle prévio dos municípios de “construções unifamiliares de um pavimento, finalizada há mais de cinco anos, e localizada em área predominantemente ocupada por população de baixa renda”, viu-se o despencar de habitações em várias cidades brasileiras, construídas exatamente com essas características.

Fica a pergunta: o que precisamos é mais liberação ou, ao contrário, mais controle e assistência técnica para essa tipologia de habitação?

O surpreendente e pretensioso

O Ministério da Economia, completamente alienado quanto ao drama das condições habitacionais das cidades brasileiras, ainda insiste em resolver, de cima para baixo, um suposto entrave econômico no licenciamento habitacional, área na qual ele não tem qualquer jurisdição de competência funcional. Tenta fazê-lo travestindo o tema das regras urbanísticas, e das formas de seu controle, em assunto de liberdade econômica!

Normatizar regras de controle urbanismo como tema econômico – de liberdade econômica – é de um contorcionismo jurídico maquiavélico. Pois, ao fim e ao cabo, está reduzindo todas as atividades humanas ao tema econômico e, assim, usurpando a competência de qualquer outro ministério: o tema agricultura é econômico, o tema ambiental (e seu licenciamento) é econômico, o tema trabalho é econômico, o tema cultura e tecnologia é econômico, o tema saúde e a vigilância de atividades é também econômico.

Todos esses temas dizem respeito à restrição da liberdade do indivíduo e de suas atividades econômicas em função de interesses públicos. E, nem por isso, um comitê do Ministério da Economia pode arvorar-se como detentor e senhor das normas a serem ditadas e obedecidas por Estados e Municípios, e pelos outros ministérios sobre todas essas matérias. Senão, bastaria haver somente um enorme e soberano Ministério da Economia, reduzindo todo e qualquer outro interesse público ao suposto bom desempenho de setores da Economia.

O mais surpreendente é que este assunto volta à baila justo quando as mortes por desabamentos nas cidades acontecem do Nordeste ao Sudeste brasileiro. E o Ministério da Economia não apresenta nenhuma proposta de repasses para projetos de ordenação territorial, investimentos em infraestrutura de serviços urbanos ou em programas de habitação social.

E Franco da Rocha pode liberar o licenciamento prévio?

Só na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) há 5.211 áreas de risco mapeadas, – leia-se, perigosas para se habitar. E os Municípios campeões são São Bernardo do Campo, com 616 áreas, Santo André, com 510 áreas, e São Paulo (Capital) com 490 áreas mapeadas (vejam a excelente reportagem a respeito aqui).

Franco da Rocha é o quarto município dentro da enorme Região Metropolitana de São Paulo, com 39 municípios, que tem mais habitações em áreas de risco. São trezentas e oitenta e duas áreas de risco neste Município com 156,4 mil habitantes! Comparando com a favela da Rocinha, no Rio, teríamos números de habitantes em áreas não urbanizadas bastante semelhantes. Segundo os registros da Light, a Rocinha teria cerca de 120 mil habitantes e 150 mil pelo censo dos moradores. Então, Franco da Rocha caberia numa Rocinha? Ou a Rocinha caberia em Franco da Rocha? Tudo em risco? Um risco habitacional colossal, no Brasil, especialmente em suas capitais metropolitanas.

E aí, é inacreditável que autoridades do Ministério da Economia do Brasil pensem e insistam que, além da economia brasileira, eles tenham também competência para meter o bedelho no assunto de urbanismo, como se este tema-problema tivesse algo a ver com liberdade econômica! Sonham, talvez, como o retorno ao “laissez-faire” para salvar a economia brasileira do buraco negro? Tudo isto implantando o regime de liberalidade no já rudimentar planejamento urbano brasileiro?

Lamentável pelo nível de ignorância que a pretensão do saber traz aos gestores brasileiros!

08 de fevereiro de 2022

O QUE SINALIZA A ‘GRANDE RENÚNCIA’!

(O Estado de S. Paulo, 07) Se no Brasil milhões de trabalhadores buscam empregos que sumiram do mercado, é quase surreal imaginar o inverso: excesso de ofertas de trabalho e escassez de candidatos. Mas isso está acontecendo nas duas maiores economias do mundo, EUA e China, entre outras. A onda de demissões voluntárias conhecida como a Grande Renúncia (Great Resignation) chama a atenção por sinalizar uma potencial mudança existencial no mercado de trabalho.

Altas taxas de demissão voluntária indicam a confiança dos trabalhadores em sua capacidade de conseguir empregos mais satisfatórios e, tipicamente, coincidem com momentos de prosperidade. Inversamente, em períodos de incerteza, as demissões voluntárias e contratações se contraem. Foi o que aconteceu, por exemplo, na Grande Recessão e no início da pandemia.

Em 2021, à medida que a imunização e a recuperação avançavam, as ofertas cresceram, mas, paradoxalmente, massas de trabalhadores, especialmente nos EUA, pediram demissão sem se recolocarem.

Como especulou o Financial Times, em editorial, parte do fenômeno pode estar relacionada ao modo como os EUA lidaram com a pandemia: “Enquanto os europeus protegeram empregos, os EUA protegeram o crescimento”. Nos EUA as empresas demitiram à sua conveniência e o governo distribuiu auxílios aos desempregados. Com a retomada, as empresas precisaram rapidamente preencher vagas. “Essa rotatividade, combinada ao auxílio para desempregados, deu a milhões de trabalhadores o tipo de alavancagem que nunca tiveram antes.”

O fenômeno não é só americano. Um protesto similar na China – “ficar deitadão” (tang ping) – sugere uma rejeição à sobrecarga de trabalho. Segundo pesquisa da Microsoft, 40% da força de trabalho mundial considera abandonar seu emprego.

O êxodo vem sendo puxado pelos Millennials e a Geração Z. Isso sugere que respostas tradicionais – melhores salários e benefícios – talvez não sejam suficientes. Muitos encontraram ganhos no trabalho remoto, como a flexibilidade de agenda, aos quais não estão dispostos a renunciar, e parecem buscar um melhor equilíbrio entre vida e trabalho.

Para os governos, isso pode implicar o desafio de reconfigurar suas redes de proteção social para combinar segurança e flexibilidade. O desafio é similar para as empresas. Regimes híbridos tendem a ser favorecidos. Elas também precisarão elaborar planos de carreira flexíveis, estratégias de identificação e retenção de talentos e recalcular custos e benefícios entre a rotatividade e a retenção.

Por ora, essas escolhas são um desafio (ou um luxo) restrito às economias desenvolvidas. Mas elas podem sinalizar uma reconfiguração global das relações entre capital e trabalho. Se será uma em que todos ganham – ou todos perdem –, dependerá da capacidade de cada parte de discernir prioridades genuínas e negociar condições razoáveis. Em uma economia cada vez mais descentralizada, governos e organizações da sociedade civil, mais do que impor condições gerais de parte a parte, têm o desafio de compensar disparidades e intermediar acordos concretos entre elas.

07 de fevereiro de 2022

FORMADORES DE OPINIÃO!

(Cesar Maia – Folha de SP, 07/11/2009) Lukacs, em “Cinco Dias em Londres” (Zahar), analisando a designação de Churchill para primeiro-ministro, em maio de 1940, e a queda de Chamberlain (e sua política de apaziguamento com a Alemanha), avalia a dinâmica da percepção dos ingleses.

A impopularidade de Churchill vai até a ocupação de Praga, em março de 1939. Os fatos legitimaram sua radicalidade. Lukacs fala de um binômio -opinião pública/ sentimento popular-, válido até os dias de hoje. “Opinião pública” seria um processo de convergência entre as pessoas a partir da informação sistematizada, difundida pela imprensa e por líderes de opinião.

“Sentimento popular” seria a reação das pessoas aos fatos, produzindo uma sensação mais ou menos difusa. Essa reação pode ser uma onda que vai chegando à emoção das pessoas.

Como tomar decisões que requerem apoio de massa num quadro de transição desses? A decisão, em si, poderá ser mobilizadora? Churchill vai ao Parlamento e às rádios e propõe um jogo da verdade: “Sangue, suor e lágrimas”. Mas como acompanhar o processo e saber com que velocidade vai cristalizando consciência na população?

As pesquisas de opinião, da forma como as conhecemos, eram um instrumento embrionário (EUA, Universidade Colúmbia, início dos anos 30). Mas não eram suficientes, porque captariam, no início, uma reação ainda superficial.

Lukacs usa os arquivos da Universidade de Sussex (GB) sobre “mass observation” (MO). Em 1937, dois ingleses (Madge e Harrison) criam um sistema de observações diretas nas ruas. “Em 1938, estenderam suas atividades aos campos da política e da guerra”, diz Lukacs. Não são pesquisas de opinião, mas “relatos de primeira mão por observadores de senso comum”.

“Não há um ponto de vista que se possa rotular como opinião pública, ela varia muito e não está ainda formada; a única coisa que resta é a crença de que a Inglaterra no fim acabará triunfando”, anota um observador.

Não é simples separar, numa pesquisa de opinião, “opinião pública” de “sentimento popular”. A TV estimula o “sentimento popular”, que, depois, aparece em pesquisas como “opinião pública”. O que muitas vezes não é ainda -ou nunca. A TV, na lógica da audiência, é muito mais indutora de sentimentos ou sua aceleradora do que formadora de opinião. Os líderes de opinião, intelectuais e políticos, ainda são formadores de opinião, mas não como antes.

O processo, hoje, se dá horizontalmente, por fluxos de “opinamento”, onde os líderes de opinião estão no meio da massa, e não “por cima” dela. Mas não são menos importantes. Os fluxos em que intervêm podem ser filtros formadores de opinião, o que exige suor. Não falam mais desde um “altar”.

04 de fevereiro de 2022

FOME ‘MADE IN BRAZIL’!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 02) O Brasil voltou ao mapa da fome. O alerta foi cada vez mais repetido ao longo da pandemia e deve ser ainda mais. Mas seria ruim se ele servisse para disfarçar, sob o manto da excepcionalidade, uma degradação que, malgrado ter sido agravada pela crise sanitária, começou bem antes dela. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que, entre 2013 e 2018, a população urbana em insegurança alimentar aumentou de cerca de 20% para 35%, e a rural, de 35% para 47%. A insegurança alimentar grave nas cidades cresceu de 2,8% para 4,1%, e no campo, de 5,5% para 7,1%.

O escândalo é ainda maior porque a fome é amargada em pleno “celeiro do mundo”. Os focos mais graves de insegurança alimentar no planeta são países com escassez de recursos naturais ou atingidos por guerras, conflitos civis e catástrofes naturais, tudo aquilo de que o Brasil sempre foi poupado.

Ao contrário, nos últimos 40 anos, a revolução agrícola catapultou espetacularmente a produção de alimentos. A oferta no mercado internacional também cresceu, e o preço dos alimentos caiu. Ou seja, a causa da fome no País nunca foi, e hoje é menos ainda, a escassez de alimentos, mas sim de renda. Entre 2013 e 2018, a insegurança alimentar grave cresceu 8% ao ano. Em 2013, o brasileiro consumia em média 96,7 quilos de carne por ano, e hoje consome pouco mais de 25 quilos. A fome nacional não foi construída do dia para a noite nem é uma condição extraordinária causada pelo vírus, mas é resultado do fracasso retumbante das políticas sociais.

O governo lançou recentemente o programa Brasil Fraterno, para mobilizar doações de alimentos de empresas em troca de isenções fiscais. Também tramitam no Congresso propostas de incentivos para restaurantes e supermercados doarem alimentos excedentes ou com prazo de validade próximo. Evidentemente, são estímulos bem-vindos. Tanto mais se considerando estimativas que apontam que o Brasil desperdiça cerca de 30% de seus alimentos. Segundo o Programa da ONU para o Meio Ambiente, o Brasil ocupa a 10.ª posição entre os países que mais jogam comida fora. Mas restringir as ações de combate à fome à redução do desperdício é só uma folha de figueira para disfarçar a única coisa no Brasil tão abundante quanto a comida: a incompetência.

A causa principal do desperdício, por exemplo, não está no varejo e muito menos nos hábitos familiares, mas na infraestrutura precária e sistemas de transporte atrasados, que progressivamente drenam alimentos entre a colheita e a comercialização.

A inflação dos gêneros alimentícios básicos, muito maior que a inflação média, tem entre suas causas principais o aumento do dólar, a instabilidade política e o aumento do desemprego, fatores made in Brazil, especialmente pelos atos e palavras irresponsáveis do atual presidente da República.

Tampouco o crescimento da extrema pobreza ou o desmonte das políticas públicas de segurança alimentar na última década são fruto de alguma conjuntura internacional e muito menos de reveses naturais. Políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, o Programa de Alimentação Escolar, o Programa de Cisternas ou o Programa de Restaurantes Populares foram depauperados a olhos vistos para acomodar verbas clientelistas e eleitorais no Orçamento público.

Mesmo com o agravamento da crise na pandemia, além de programas de incentivo a doações, o máximo que Brasília produziu foram propostas natimortas de tabelamento de preços. De investimentos robustos em programas de distribuição de cestas básicas, medidas para reforçar o abastecimento, uso de estoques públicos, modelos de operações bem conduzidas de importação ou incentivos à agricultura familiar não se viu praticamente nada.

O combate à fome é do tipo que pode ser classificado como uma “guerra total”. Cada indivíduo, cada empresa, deve empunhar suas armas e fazer o que estiver ao seu alcance. Cada centavo doado, cada iniciativa social, por mais improvisada que seja, são valiosos. Mas somente o Estado pode evitar uma catástrofe maior.

03 de janeiro de 2022

ELEIÇÃO LEVA PORTUGAL MAIS À ESQUERDA E EXPÕE CRISE DA DIREITA DEMOCRÁTICA!

(Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC – Folha de SP, 30) Muitos portugueses foram votar neste domingo atravessados pela mesma pergunta que tira o sono de muitos brasileiros: como assegurar a aliança das forças democráticas contra a extrema direita?

A tão esperada ascensão do Chega seria suficiente para colocar o PSD, tradicional partido da centro-direita, face ao dilema que tem devorado a alma dos conservadores ao redor do mundo? Isto é: aliar-se à nova direita, xenófoba, negacionista e antirrepublicana, ou buscar a preservação do pacto democrático por meio de uma aliança com a centro-esquerda? A angústia dos conservadores era hoje visível no rosto de Rui Rio, o apático líder do PSD, que passou a campanha prometendo tudo e o seu contrário.

Do outro lado, o socialista António Costa parecia não ter vontade nem condições de reeditar a geringonça, como é conhecida a aliança das esquerdas que governou Portugal aliando disciplina fiscal e inserção internacional entre 2015 e 2019.

Apesar do sucesso da empreitada, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda romperam com o Partido Socialista em 2019 e, no final do ano passado, ajudaram a derrubar o seu governo minoritário, pressionado por novos líderes do seu partido e fragilizado pelo desmonte de um projeto de poder que ele havia desenhado de cabo a rabo.

Nesse contexto moroso, ninguém esperava a vitória triunfal dos socialistas deste domingo e o melhor resultado de Costa em três eleições. Mesmo se os socialistas não conquistassem a maioria absoluta na Assembleia da República, Costa só precisa, em princípio, de acordos pontuais com aliados para seguir no comando de Portugal num momento decisivo da sua história: caberá ao próximo governo administrar a chamada “Bazuca”, os volumosos fundos europeus destinados à retomada da economia.

O resultado em Portugal também reforça algumas impressões gerais sobre a dinâmica da política na era pós-pandemia. Primeiro, experiência da crise sanitária e a tomada de consciência da crise climática estão reaproximando os eleitores dos partidos comprometidos com o Estado social.

Segundo, o que todos se acostumaram a chamar de crise da democracia pode ser, na realidade, uma crise da direita. Com a confirmação do Chega como terceira força política, fica impossível para a direita democrática portuguesa competir eleitoralmente contra a centro-esquerda. Uma situação subjacente nos Estados Unidos no meio do Partido Republicano, escancarada na França, onde o racha das direitas é ainda mais profundo e, em certa medida, no Brasil, onde o surgimento de Sergio Moro e Jair Bolsonaro colocou a direita democrática em minoria dentro do campo conservador.

Por último, é impossível não destacar a atuação de Rui Tavares, candidato a deputado pelo Livre. Conhecido no Brasil pelo seu podcast “Agora, agora e mais agora”, ele mostrou que a melhor forma de combater a baixaria verbal de candidatos mais acostumados às redes sociais do que aos debates eleitorais é a retidão republicana, as propostas inovadoras e o otimismo com o futuro. Uma inspiração para todos os progressistas brasileiros.

02 de fevereiro de 2022

CARTAS REVELAM CAOS FINANCEIRO DE JAMES JOYCE E PERCALÇOS DE ‘ULISSES’, QUE FAZ 100 ANOS!

(Dirce Waltrick do Amarante, tradutora e professora da UFSC – Folha de SP, 29) Em 29 de abril de 1927, a norte-americana Sylvia Beach (1887-1962), dona da famosa livraria parisiense Shakespeare and Company e responsável pela publicação do agora centenário romance “Ulisses”, do escritor irlandês James Joyce, escreveu a seguinte carta a ele:

“Tenho refletido sobre a questão das suas finanças. Estava impossibilitada de pensar nelas claramente na sua presença por conta do feitiço lançado por seu gênio e da morosidade da minha aritmética.

Você disse que tinha apenas 9.000 francos por mês para viver e então eu lhe lembrei que Ulisses lhe rendera 125.000 desde o último agosto. Isso dá cerca de 12.000 francos por mês, não é, que somados aos 9.000 totalizam cerca de 21.000 francos por mês. Você não considerou os direitos autorais de Ulisses importantes o bastante para mencionar. Mas teria sido mais correto de sua parte confessar que vem gastando esse montante de dinheiro considerável do que contar um monte de histórias da carochinha para mim que sou sua amiga, se algum dia você teve uma. Você é o maior escritor vivo, mas até Pound tem mais juízo. Ir a um agiota. Os Brandleys não podem ter uma falsa noção de suas circunstâncias maior do que você mesmo tem. Mas o que isso importa? Com os mais sinceros cumprimentos,

Atenciosamente,

Sylvia Beach”.

Dessa carta vem o título do livro, publicado no final de 2021 pela Brill/Rodopi e organizado por Ruth Frehner e Ursula Zeller, “Your Friend If Ever You Had one: The Letters of Sylvia Beach to James Joyce” (sua amiga, se um dia você teve uma: as cartas de Sylvia Beach para James Joyce), ainda sem tradução para o português.

O volume traz as cartas da editora para o seu autor e um extenso aparato bibliográfico e crítico, entre textos e notas, de autoria das organizadoras, o qual lança luz não só sobre a relação entre eles, mas também sobre a relação entre Joyce e outros amigos que igualmente foram fundamentais para a sua carreira.

Entre esses amigos, cabe citar Adrienne Monnier (companheira de Beach), Paul Léon, Ezra Pound e Harriet Shaw Weaver, responsável pela publicação de “Um Retrato do Artista quando Jovem” e considerada a grande mecenas do escritor. Weaver deu a Joyce as condições financeiras de que ele precisava para seguir escrevendo. Muitas vezes, ela forjava direitos autorais de vendas de livro para lhe depositar quantias que garantissem o sustento da família dele.

A vida financeira de Joyce é tema de muitas cartas. O escritor era perdulário: viajava de primeira classe (enquanto Beach e Monnier iam na terceira classe), ficava em hotéis de luxo, gastava em bons restaurantes, dava presentes caros aos amigos etc. Portanto, não foram raras as vezes que o romancista escrevia a Beach pedindo-lhe mais dinheiro.

Em uma das cartas, a editora o acalma, dizendo-lhe que ele não precisaria se estressar nas suas férias, pois a srta. Weaver, com quem ela estava sempre em contato, havia aparecido novamente com “47 mil francos! Que mulher extraordinária”, mas Beach não fica atrás.

Joyce e sua futura editora se conheceram no verão de 1920 em uma festa. Na época, sua livraria, Shakespeare and Company, estava de portas abertas havia um ano e Beach já era conhecida entre os escritores locais e estrangeiros, muitos norte-americanos que haviam se mudado para Paris, tal como Gertrude Stein, Ernest Hemingway e Ezra Pound.

Foi em 1921, contudo, ao saber das dificuldades com a publicação de “Ulisses” que Beach resolveu lhe perguntar: “Você permitiria que a Shakespeare and Company tivesse a honra de publicar seu Ulisses?”. Ela conta em suas memórias, “Shakespeare and Company: uma Livraria na Paris do Entre-guerras”, publicado pela Casa da Palavra em tradução de Cristina Serra, que Joyce “aceitou a oferta sem titubear e em júbilo. Achei temerário de sua parte confiar seu grande Ulisses a uma editora tão pequena e inusitada. Ele parecia, entretanto, encantado, e eu também”.

Desde sua publicação, em 2 de fevereiro de 1922 até maio de 1930, o romance chegou a sua 11ª edição com 28 mil cópias impressas. A partir daí, Beach não cuidou mais da venda do livro, mas seguiu ajudando Joyce, agora também com seu novo título, “Finnegans Wake”.

Vale lembrar que, em 2 de fevereiro de 1922, Joyce completaria 40 anos de idade e Beach queria lhe dar de presente a publicação de “Ulisses”. Ela conseguiu que Maurice Darantière, responsável pela impressão do livro, lhe enviasse dois exemplares: um ela entregou a Joyce, e o outro ela colocou na vitrine da sua livraria —logo muitos leitores e curiosos estavam lá para ver o tal livro que já causava um rebuliço na literatura.

Joyce celebrou a chegada de “Ulisses” com um poeminha jocoso para a sua editora, que pode ser lido no livro “Shakespeare and Company”. O poema ganha agora uma nova tradução, assinada por Vitor Alevato do Amaral.

Alguns versos, na tradução dele, dizem: “A multidão vinha animada/ E pré-comprava o tal Ulisses,/ Mas ia embora ensimesmada./ À Sylvia cante toda a gente,/ Pois o seu tino é inclemente;/ Com sua lábia, de repente,/ Fez livro chato ter cliente./ Que a clientela só aumente”. Esse e outros poemas do escritor irlandês serão publicados no livro “Outra Poesia” (Syrinx), organizado e traduzido por Amaral.

Nos dez anos em que Beach esteve à frente da publicação de “Ulisses”, ela não foi apenas a editora de Joyce —foi também sua secretária, confidente, corretora, contadora, entre muitas outras funções que assumiu, como se pode verificar nas cartas que ela lhe enviou e que constam desse volume.

Em 26 de junho de 1923, Beach descreve detalhadamente a Joyce, que estava em Londres, o interior de um apartamento que ela encontrou, a pedido do escritor, em Paris, para a família dele: “primeiro andar acima do mezanino! Um apartamento soberbo, magnífico, 5.500 francos por ano. Sala de estar grande –
sala de jantar – pequena sala de estar – cozinha na frente – quarto grande e dois outros quartos quase tão grandes nos fundos […]. Lareiras amplas e janelas bem grandes. Você poderia usar um quarto grande nos fundos como um escritório”.

Mas, em outra carta alguns dias depois, Beach conta que Giorgio, filho de Joyce, foi ver o apartamento e achou que talvez os pais não fossem gostar muito por “não ser muito moderno”. Além disso, ele estava “se sentindo bastante enojado com essa cidade justo agora depois das experiências desagradáveis dele no banco e ele diz que vocês todos podem muito bem se mudar para a África se ele não encontrar um apartamento perfeito aqui”.

Em uma correspondência de 16 de julho de 1924, Beach relata a Joyce uma discussão que teve com um dos tradutores de “Ulisses” para o francês, um jovem chamado Jacques Benoist-Méchin, que traduzia em colaboração com Léon-Paul Fargue.

Para ela, “seed cake” (bolo de sementes, literalmente), que aparece duas vezes no romance, deveria ser traduzido como “gâteau aux amants”, mas Fargue, segundo Beach, não havia gostado da ideia.

Prossegue: Adrienne acha que “’brioche’ tenha a ver com isso se você concordar. Fargue fez uma ótima visita a um amigo cuja mulher é confeiteira, mas ele não achou nada no repertório dela que correspondesse a um ‘seed cake’”.

As cartas revelam sempre o quão importante Beach foi na vida dos Joyce, pois, afinal, acabou, como outros amigos do escritor, se preocupando também com o bem-estar de toda a sua família.

Não bastassem todas essas funções, Beach teve que lidar com as inúmeras “revisões” do livro feitas por Joyce. Na verdade, o escritor fazia mais que revisões, segundo seus estudiosos: “ele era um inventivo reescritor do mesmo material” e isso atrasava o trabalho e implicava custos extras, pagos por Beach. Além disso, a editora ainda teve que enfrentar as constantes censuras sofridas pelo livro, as quais começaram antes mesmo da publicação integral da obra sob a sua responsabilidade.

Beach estava consciente do problema que “Ulisses” criou para as editoras da revista Little Review nos Estados Unidos, Margaret Anderson e Jane Heap, que estavam publicando fragmentos do romance em sua revista. Ambas foram processadas e condenadas a pagamento de uma multa de 50 dólares cada por publicarem “obscenidades”. Este foi só o começo de uma publicação e de uma distribuição confusas que, se não fossem em grande parte o apoio e a dedicação de Sylvia Beach, poderiam fracassar.

A história editorial tumultuada de “Ulisses” rendeu alguns livros. Talvez o mais conhecido seja “The Scandal of Ulysses” (o escândalo de Ulisses), de Bruce Arnold, também sem tradução para o português. As correspondências entre Joyce e Beach foram trocadas durante as férias de verão dele ou dela. Por isso, não são muitas, mas são intensas.

Em suas memórias, Beach lembra que “a maioria das cartas que recebi de Joyce foi, claro, escrita durante as minhas férias de verão ou durante suas próprias viagens. Evidentemente, ele sempre exigiu respostas ‘até amanhã’, ‘expressas’, ‘no retorno do correio’. Geralmente, estava precisando de dinheiro e, quando eu não estava, em geral conseguia algum por meio de Myrsine”, funcionária da livraria.

Aliás, Joyce não gostava muito quando Beach e Monnier se afastavam, e como ela lembra, “à medida que se aproximava o momento da nossa partida, ele ia mergulhando em um estado de pânico até que, no último minuto, saía-se com o que chamava de sua ‘lista de compras’ — em que arrolava tudo o que eu devia fazer antes de deixar a cidade”.

Beach não o decepcionava e só decidiu se afastar da publicação de “Ulisses” porque sua intermediação estava travando a negociação de Joyce com outras editoras. A partir daí, Paul León, um judeu russo “fascinado pelo processo criativo de Joyce”, assumiu essa função.

Em “Your Friend If Ever You Had one”, há também cartas enviadas por Beach a Paul Léon. Nelas, a editora o coloca a par da história editorial de “Ulisses” e de outros livros com os quais estava trabalhando. Ela envia-lhe também as cartas para Joyce que ainda eram endereçadas para a sua livraria.

Uma delas é uma carta de Yeats, que Beach encaminha a León, comentando que Joyce tinha razões em não aceitar o convite de Yeats para fazer parte da Academia Irlandesa de Letras, o qual ele recusou declarando: “Não vejo nenhuma razão por que o meu nome deveria ser trazido à tona em conexão com tal academia”. Mas, para Beach, como diz na carta, “não iria fazer mal algum aceitar, e isso poderia ser o primeiro passo no sentido de suspender a censura a Ulisses”.

Beach acompanhava atenta a carreira de Joyce, e o escritor tinha consciência disso. Mesmo depois de romper com a editora, ele sabia que “tudo o que ela fez foi me dar de presente os melhores dez anos da sua vida”.

As cartas que compõem o presente volume, juntamente com outros documentos, foram doadas à Fundação James Joyce de Zurique por Hans Jahnke, filho de Asta Osterwalder Joyce, segunda mulher de Giorgio Joyce, filho do escritor.

01 de fevereiro de 2022

NOVO ACORDO DE LIVRE COMÉRCIO BRASIL-CHILE!

(Paulo R. Soares Pacheco, embaixador do Brasil no Chile e Samo S. Gonçalves, chefe do setor econômico e comercial da embaixada do Brasil no Chile – O Estado de SP, 29) Assinado em novembro de 2018, o Acordo de Livre Comércio (ALC) entre Brasil e Chile entrou em vigor no último dia 27 de janeiro. Este acordo eleva o relacionamento econômico e comercial entre os dois países a um novo patamar e representa um “divisor de águas” da política externa comercial do Brasil, na medida em que contém compromissos inéditos e inovadores, que poderão servir de referência para processos negociadores futuros. Vale lembrar que, desde 2014, já existe livre trânsito de bens entre Brasil e Chile, alcançado no âmbito do Acordo de Complementação Econômica (ACE) n.º 35. O ALC que entrou em vigor agora (27/1), formalmente conhecido como Protocolo Adicional ao ACE-35, irá complementar e dinamizar o livre comércio de bens existente entre Brasil e Chile.

Entre as medidas previstas no ALC, vale destacar a abertura do mercado de compras públicas chileno para as empresas brasileiras, estimado em cerca de US$ 10 bilhões. O ALC também consolida a abertura do mercado de serviços, responsável por 58% do Produto Interno Bruto (PIB) do país andino, fornecendo mais segurança jurídica para investimentos brasileiros no setor. O acordo prevê, ademais, o estabelecimento de mecanismo para aprovação célere dos estabelecimentos exportadores de produtos de origem animal (pre-listing), ampliando o potencial de exportações na medida em que reduz tempo e custo com a habilitação de estabelecimentos frigoríficos. O ALC conta, igualmente, com acordo sobre produtos orgânicos, mediante o qual as partes reconhecem mutuamente seus sistemas de certificação orgânica, normalmente um dos principais entraves às exportações do setor. O capítulo sobre propriedade intelectual também inova ao prever o reconhecimento da cachaça brasileira e do pisco chileno como indicações geográficas, elevando o valor agregado das vendas desses produtos. No capítulo sobre telecomunicações, Brasil e Chile comprometem-se, por sua vez, a eliminar a cobrança de roaming internacional para dados e telefonia móvel entre os dois países, o que trará evidentes benefícios para os fluxos de turismo e de negócios bilaterais.

Importante realçar, ademais, que será a primeira vez que o Brasil assume, em acordo bilateral de comércio, compromissos nos temas de comércio eletrônico, anticorrupção, gênero, meio ambiente, assuntos trabalhistas, boas práticas regulatórias, cadeias regionais e globais de valor. O capítulo sobre comércio eletrônico busca estimular as atividades nesse setor e proteger os direitos e dados pessoais dos consumidores nas compras online. Estima-se que a implementação do certificado de origem digital reduziria em 35% os custos de tramitação do certificado de origem e diminuiria de 3 dias para 30 minutos a emissão do referido documento. O dispositivo relativo à Anticorrupção prevê, por exemplo, medidas de combate ao suborno no comércio internacional, bem como a troca de informações e cooperação internacional nas investigações de combate à corrupção. Já os respectivos capítulos sobre Gênero, Assuntos Trabalhistas e Meio Ambiente oferecem, por sua vez, marco para o diálogo e a cooperação bilateral nessas matérias em seus aspectos relacionados com o comércio. A disciplina sobre Boas Práticas Regulatórias incentiva transparência na elaboração de regulamentos, realização de análises de impacto regulatório e melhoria do acesso público à informação sobre os regulamentos já em vigor. Em relação às Cadeias Regionais e Globais de Valor, o capítulo oferece marco para o melhor aproveitamento das complementaridades entre as economias dos dois países, incentivando parcerias público-privado, com atenção à inserção das pequenas e médias empresas nessas cadeias.

Além de possível referencial para negociações comerciais futuras do Brasil, as disciplinas de natureza não tarifária, previstas nos 24 capítulos do ALC, trarão ganhos econômicos concretos para Brasil e Chile na medida em que contribuirão para ampliar os fluxos comerciais e de investimentos mediante maior acesso a mercado e mais segurança jurídica para as empresas dos dois países. Com o novo acordo, o incremento sobre o PIB real de US$ 2 bilhões (0,09% do PIB) e sobre o total exportado de US$ 3,3 bilhões (1,27% do PIB), obtidos com o livre trânsito de bens em 2014, seriam ampliados para US$ 3,2 bilhões (0,13% do PIB) e US$ 4,8 bilhões (1,82% do PIB), respectivamente. Os setores ligados à indústria de transformação, automobilístico, petrolífero e de carnes (bovina, suína e aves) seriam os mais beneficiados. Com o ALC, a relação econômica bilateral, que já é robusta (em 2021 o Chile foi o quinto principal mercado para as exportações brasileiras, atrás apenas da China, dos EUA, da Argentina e dos Países Baixos), irá consolidar-se em patamar ainda mais elevado. 

31 de janeiro de 2022

MARKETING VIRAL?!

(Cesar Maia – Folha de SP, 26/12/2009) Entrou na moda o marketing viral. Jovens agências vendem a ideia de que, por meio de ações na internet, pode-se produzir um efeito virótico, promovendo ou desmontando virtudes.

Num artigo recente, Jonah Peretti e Duncan Watts criticam como ingênua essa ideia. E ironizam: “É o almoço grátis perfeito. Pegue um pequeno grupo e semeie sua ideia. Faça-a virótica e a assista se espalhar, sem esforço, alcançando milhões”. Para eles, “criar mensagens que contenham propriedades virais é muito difícil”.

Peretti e Watts usam uma equação simples, lembrando que, para serem viróticas, a taxa de reprodução -R- terá que ser maior que um para a maioria das pessoas que a recebem: como as “pirâmides”.

É fácil entender os problemas dessa solução mágica. A internet, em seus diversos vetores, tem mais audiência que os meios de comunicação. Mas imagine um público qualquer a ser alcançado. Os meios de comunicação são alguns para atingir esse público. Pense num cone com a base para cima. A mídia é o vértice de baixo. Agora pense num paralelepípedo em que a base é igual à parte de cima. Essa é a internet -o número de emissores é igual ao de receptores. Penetrar não é tão simples. Mais que na mídia, aqui a força é dos receptores.

Num artigo sobre as redes complexas de influências sociais, no Mais! (26/7), Alexandre Abdo, doutor pela USP-Universidade Columbia, resenha a história das teorias sobre formação de opinião pública. E mostra que, na internet, os ditos influenciadores são menos importantes que os receptores, pois aqueles não são repassadores como estes. Assim, chegar ao ponto de potencial virótico não é simples.

Abdo cita Jonah Peretti, veterano de campanhas pela internet, que oferece uma alternativa à dualidade mídia-internet. Peretti chama de “big seed marketing”, ou marketing de grande semeadura: “foca pessoas comuns, ignorando os influenciadores”. Consiste em utilizar a mídia de massa para lançar o processo. E a internet capilariza, o que torna maior o multiplicador, e mais barato.

Essa estratégia, segundo Peretti gerou retornos de duas a quatro vezes maiores que as inserções iniciais, pelas quais se pagou.

Peretti e Duncan dizem que o marketing de grande semeadura gera sinergia entre mídia de massa e internet. Com taxa de reprodução -R- menor que um -por exemplo, 0,5-, um grupo inicial dobra seu alcance. Duplica uma campanha tradicional pela TV.

Não tem a imprevisibilidade do marketing viral. Exemplifica com diversas campanhas que, com R menor que um, produziram enorme impacto pela combinação de mídia de massa e internet. Muito mais eficaz que a viral e muito mais barato que só TV.

28 de janeiro de 2022

MERCADOS DE CARBONO!

(Rubens Barbosa presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras – O Estado de S. Paulo, 25) Fala-se muito em mercado de carbono e do potencial de recursos que poderão tornar o Brasil no maior ator mundial nessa área. Na prática, o assunto continua difícil de ser entendido e implementado.

O Brasil, desde a formulação da Política Nacional sobre Mudança do Clima, em 2009, está prometendo a regulamentação de um mercado de carbono sem, na prática, qualquer avanço no âmbito do Ministério da Economia. Em fins de 2020, o governo brasileiro recebeu estudo do Banco Mundial (BM) com a recomendação da criação de um instrumento de precificação de carbono como mercado regulado ou um imposto sobre emissões. Como essa matéria não progrediu, o Brasil ficou sem o apoio estratégico do BM para a preparação do mercado e para a fase de implementação, ao contrário de 15 outros países, entre os quais Chile, Colômbia e México. Em paralelo, a questão continua em exame pelo Congresso, por meio do Projeto de Lei 528 proposto pelo deputado Marcelo Ramos. Não se prevê uma decisão no curto prazo dessa matéria. Na reunião da COP-26 em Glasgow, avançouse na regulamentação global do mercado internacional de crédito de carbono entre países, o que coloca pressão sobre as autoridades brasileiras.

Mais importante para a indústria e para o agronegócio nacionais é o mercado voluntário de carbono. Não só pela crescente necessidade de apresentar resultados para cumprir suas responsabilidades dentro da expectativa do ESG (sigla em inglês para princípios ambiental, social e de governança), como pela perspectiva de criação de uma taxa alfandegária para desestimular a exportação para a União Europeia de produtos que no processo produtivo emitem gás de efeito estufa. Existem duas possibilidades que podem ser exploradas voluntariamente pelas empresas: mercado de dívida relacionado com investimentos em projetos ambientais, no contexto das práticas ESG do mercado financeiro e de capitais; e o mercado de serviços ecossistêmicos, que tem a ver com o carbono estocado ou sequestrado usado para compensação ambiental. O mercado voluntário, assim, é formado a partir de projetos que comercializam créditos de carbono originários de conservação de floresta, reflorestamento, carbono em solo agrícola ou regeneração de áreas. Nesse seguimento, o mercado deverá ter a sua consolidação e um crescimento exponencial, pois as exigências de descarbonização serão cada vez maiores e em prazos cada vez mais exíguos, a exigir a compensação ambiental via aquisição de títulos de descarbonização. Os certificados de floresta serão os maiores atores, pois a manutenção de áreas florestais preservadas será indispensável. Vários títulos podem ser emitidos como representativos do carbono estocado. O título, criado em 1989, atualizado em 2020 e recentemente regulamentado (Decreto 10.828/21), é a Cédula de Produto Rural (CPR) para pagamento de “serviços ambientais” referentes à redução de gases de efeito estufa, manutenção ou aumento do estoque de carbono, redução de desmatamento e degradação, conservação da biodiversidade, conservação dos recursos hídricos, conservação do solo e outros benefícios ecossistêmicos. Esse título tem sido chamado de “CPR Verde” e poderá ser custodiado na Cetip e listado na B3, portanto, ser comercializado. Com ele, surge o produtor rural que oferece o serviço intangível da preservação ambiental e com ele o comprador compensa sua emissão.

Em suma, o que existe hoje é um mercado voluntário, com títulos comercializados pelos quais empresas nacionais e estrangeiras assumem metas ambientais por conta própria, como forma de demonstrar suas práticas ESG para investidores, parceiros comerciais e consumidores. Setores que necessitam comprovar a neutralidade nas emissões, como o da mineração, deverão apresentar contrapartidas como a CPR Verde. No comércio exterior, empresas exportadoras de produtos como fertilizantes, aço e alumínio ficarão afetadas, caso a taxa de carbono seja aplicada pela União Europeia. Nesse caso, as empresas desses setores deverão buscar formas de neutralizar e compensar as emissões que forem geradas na produção desses produtos, pois existe a possibilidade concreta de virem a ser afetadas. Com isso, deverá surgir um mercado para certificações verdes para o comércio exterior com a garantia de que os referidos produtos não foram produzidos em áreas de desmatamento da floresta. Outra área que começa a ser examinada no mercado de carbono são projetos de energia renovável (PCH e fotovoltaica), que poderão beneficiar-se de novas receitas para viabilizá-los.

Em todos esses casos, o modelo de negócio é simples e transparente. As reservas florestais são auditadas e certificadas por empresas internacionais e nacionais especializadas e uma porção significativa dos recursos captados vai para o produtor rural que se compromete a preservar a floresta, tanto a Amazônica como a Mata Atlântica.

Há diversas iniciativas de empresas que oferecem esses títulos ao mercado nacional e a oferta tende a aumentar. Há empresas (poucas) que estão se organizando para oferecer esses títulos não só para o mercado doméstico, mas também internacional, na China, na Europa e nos EUA. As empresas industriais e do agronegócio terão de examinar com cuidado as ofertas para terem certeza de que a operação é segura

27 de janeiro de 2022

QUEM FOI MARIA QUITÉRIA, MULHER QUE SE VESTIU DE HOMEM PARA LUTAR NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL!

(BBC News Brasil, 22) A Independência do Brasil completa 200 anos em 2022. A data que marca o bicentenário em torno do 7 de Setembro, quando país deixou de ser colônia portuguesa, é cercada de discordâncias em torno de sua real importância para a nação que começava a se formar, assim como personagens ainda pouco explorados nos livros didáticos.

Esses dois temas estão relacionados à história de Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), que se vestiu de homem, com a alcunha de ‘soldado Medeiros’, para participar das lutas independentistas em seu Estado, a Bahia, contra as tropas portuguesas resistentes às mudanças regimentais na política brasileira daquele período.

Primeira mulher a integrar as Forças Armadas, Maria Quitéria foi condecorada por D. Pedro 1º como heroína, exaltada pelo Exército a partir da década de 1950 e rosto emblemático na luta de organizações femininas pela anistia durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985).

As disputas na Bahia
Para entender a história de Maria Quitéria e sua entrada nas lutas independentistas, é preciso contextualizar o 7 de Setembro. A data, que marca o grito de D. Pedro 1º às margens do rio Ipiranga, não representa o que aconteceu de fato no Brasil, segundo alguns pesquisadores. O escritor Laurentino Gomes, no livro 1822, diz o seguinte:

“As demais províncias ou ainda estavam sob controle das tropas portuguesas, caso da Bahia, ou discordavam da ideia de trocar a tutela até então exercida por Lisboa pelo poder centralizado no Rio de Janeiro, caso de Pernambuco, que reivindicava maior autonomia regional”, diz a obra.’

Patrícia Valim, professora de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), corrobora essa versão. “O 7 de Setembro é a nossa primeira grande derrota enquanto país, ou na formação de um, porque é uma data fruto de um acordo feito em São Paulo. Muito diferente do que houve na Bahia e do contexto no qual a Maria Quitéria está inserida”, afirma.

As lutas na Bahia se intensificaram em fevereiro de 1822, quando tropas portuguesas e soldados brasileiros travaram conflitos em torno do comando da província da Bahia, na contenda entre o português Luís Madeira de Melo e o brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães.

As disputas perduraram até julho de 1823, quando os portugueses se renderam. Nesse meio tempo, há a figura de Maria Quitéria, cuja presença na guerra de independência não foi nada simples.

Contrariando a família
Maria Quitéria nasceu em São José das Itapororocas, antiga Freguesia de Nossa Senhora do Porto da Cachoeira, atual município de Feira de Santana. Seu pai era o lavrador Gonçalo Alves de Almeida, e a mãe era Quitéria Maria de Jesus.

Boa parte do que se sabe sobre a trajetória de Maria Quitéria está em biografias escritas na década de 1950, quando comemorações em torno de seu centenário se avolumaram. O livro de Pereira Reis Junior, de 1953, é um exemplo.

Esses relatos partem de registros de jornais da época e também da escritora britânica Maria Graham, que escreveu um livro sobre sua viagem ao Brasil entre 1821 e 1823, intitulado Journal of a Voyage to Brazil, de 1824.

A partir daí, é possível saber que a mãe de Maria Quitéria teria falecido quando a filha ainda era criança, e que o pai casara-se uma porção de vezes nos anos seguintes.

O patriarca era proprietário da Fazenda Serra da Agulha, onde plantava algodão, criava cabeças de gado e detinha duas dezenas de negros escravizados. “Eles não eram ricos, mas também não tinham dificuldade”, afirma Valim, da UFBA.

Maria Quitéria cresceu sendo criada por madrastas e pouco afeita aos trabalhos de casa, condição inerente às mulheres daquele período. “A família queria que ela bordasse, mas ela se recusava. Maria Quitéria gostava de montar a cavalo, cavalgar. Também manejava armas de caça, como espingarda, algo fora dos padrões”, conta a historiadora.

O Soldado Medeiros
Maria Quitéria soube da guerra quando emissários de uma Junta Provisória instalada para governar a Bahia em meio às disputas com Portugal chegaram ao Recôncavo Baiano à procura de homens para participar da luta armada a favor da independência do Estado.

Ao saber da notícia, Maria Quitéria tentou convencer seu pai a deixar que ela participasse da guerra, mas o pedido foi prontamente recusado. Então, Quitéria foi à casa de uma das irmãs, Teresa, e pegou a roupa de seu cunhado, José Cordeiro de Medeiros, além de cortar os cabelos. Nascia, então, o “Soldado Medeiros”.

A versão corrente entre os biógrafos é que Maria Quitéria teria se apresentado ao Batalhão Nº 3 de Caçadores do Exército Pacificador como filho de seu cunhado, já que usava vestimenta masculina. A mentira deu certo.

“Ela assumiu a identidade masculina com muita propriedade. Apesar de ser iletrada, ela tinha um conhecimento militar de montaria, tiro ao alvo, que fazia diferença naquele contexto de conflito. Eram habilidades irrecusáveis pelos militares brasileiros”, diz Valim.

Pouco tempo depois do sumiço da filha, Gonçalo, o pai, é informado pela irmã de que Maria Quitéria decidira se juntar às tropas disfarçada. Gonçalo vai à cidade de Cachoeira, encontra a filha e informa o major José Antônio Silva Castro de que o soldado Medeiros, na verdade, era uma mulher. “O pai pediu que ela voltasse imediatamente, sob pena de ser amaldiçoada, mas ela não retornou”, conta Valim.

O major permitiu que Maria Quitéria continuasse no Batalhão, já que possuía habilidades destacáveis com armas de fogo. Ela tinha 30 anos na época. Em março de 1823, um registro de Portaria do Governo Provisório da Vila de Cachoeira mostra que o Major pediu ao Inspetor dos Fardamentos, Montarias e Misteres do Exército que enviasse “saiotes, e uma espada” para que ela fosse devidamente fardada como mulher.

Registros apontam a participação de Maria Quitéria em ao menos três combates. Enquanto a independência era gritada em São Paulo por D. Pedro 1º, os conflitos cresciam na Bahia. Maria Quitéria participou do primeiro deles em outubro de 1822, na região da Pituba. Depois, em fevereiro do ano seguinte, em Itapuã. Nesse período, ela foi promovida a 1º cadete.

Em abril de 1823, Maria Quitéria comandou um grupo de mulheres civis que se uniram para lutar contra os portugueses na Barra do Paraguaçu, no litoral do Recôncavo. A resistência vitoriosa foi fundamental para garantir não só a independência baiana, mas também para alçar a figura de Quitéria como heroína da pátria.

Os conflitos seguiram até 2 de julho, quando os últimos portugueses que ainda resistiam decidiram abdicar do combate. A data é celebrada como o dia da independência da Bahia até hoje. “Essa celebração marca uma oposição ao 7 de Setembro e a história criada em São Paulo. História mantida até hoje, com o que é contada no Museu Paulista e centraliza a narrativa em torno da independência”, ressalta Valim.

Com o fim da guerra, Maria Quitéria vai ao Rio de Janeiro em agosto de 1823 para ser recebida por D. Pedro 1º. Ela foi condecorada com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, medalha criada como símbolo do poder imperial como forma de homenagear brasileiros ou estrangeiros que tenham lutado pela independência do país.

O debate sobre as representações
É na visita ao Rio que Quitéria conhece Maria Graham. A escritora britânica descreve Quitéria como “iletrada, mas viva” e que “tem a inteligência clara e a percepção aguda”. A lista de elogios à militar brasileira segue, com a avaliação de que “se a educassem, viria a ser uma personalidade notável”.

É também a partir do encontro com a escritora que a discussão em torno da compleição física de Quitéria começa a ser travada. Seu primeiro retrato foi feito pelo pintor inglês Augustus Earle (1793-1838), a pedido de Graham, em 1823. A tela está exposta na Biblioteca Nacional da Austrália, junto de parte do acervo do pintor.

“É um retrato cujo rosto não apresenta aspectos muito femininos. É mais quadrado, sem muitas nuances que demonstrem ser uma mulher. Na verdade, é bem similar à figura masculina”, afirma Nathan Gomes, mestrando em História do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).

A pesquisa de Gomes investiga como a imagem de Quitéria foi mudando ao longo dos anos. No segundo retrato, de 1824, feito pelo também inglês Edward Finden (1791-1857), a militar brasileira aparece de corpo inteiro, com vestimenta militar e uma paisagem que tenta reproduzir o Brasil à época, com um pando de fundo idílico.

Finden não estava no Rio de Janeiro, diferentemente de Earle. Gomes acredita que o segundo retrato tenha surgido a partir do que ele chama de “elementos não-originais”. “Existem semelhanças, mas com diferenças. A insígnia não era a utilizada no Brasil, assim como o fardamento e a arma, que é um modelo inglês”, diz o pesquisador.

Ele também acredita que o retrato de Finden, publicado no livro de Graham sobre sua viagem ao Brasil, tenha sido “construído por várias mãos”, incluindo as da própria escritora e também dos editores da obra.

O último retrato, de 1920, feito pelo italiano Domenico Failutti, está exposto no Museu Paulista. A obra foi encomendada pelo intelectual Affonso Taunay (1876-1958), que reorientou o museu na década de 1920 para torná-lo símbolo da Independência. No retrato, Quitéria aparece ainda mais feminina, com busto saliente, as maçãs do rosto mais avolumadas e a boca delineada.

Gomes afirma que tem deslocado sua pesquisa à questão étnica e o tom da pele de Maria Quitéria, com receio de propor um debate que não aconteceu quando os quadros foram pintados. A imagem de 1920 mostra a militar fenotipicamente mais próxima de negros e indígenas. Já os retratos do século anterior mostram-na caucasiana, com traços europeus. “Ao olhar a recepção do quadro de 1920 na imprensa, não houve contenda sobre o tom da pele da Maria Quitéria. Não há registro de isso ser uma preocupação do Failutti. Talvez essa seja a tentativa de propor uma discussão em torno do tom da pele dela que tem mais a ver com a ótica dos nossos tempos”, afirma.

Valim, da UFBA, diz que a discussão em torno da imagem de Quitéria é importante, já que envolve a narrativa em torno da independência do Brasil.

“Esse retrato, apesar de estar exposto no Museu Paulista, tenciona o 7 de Setembro enquanto uma ideia europeia e paulista de Independência. As lutas do Nordeste tiveram negros, indígenas, gente de todo tipo, mas esses fenótipos não aparecem”, analisa.

O legado de Maria Quitéria
Os relatos biográficos apontam que Maria Quitéria morreu sozinha, em sua cidade natal e em condições financeiras delicadas. Ela se casou e teve uma filha, cujo paradeiro é desconhecido. Seu pai nunca a perdoou por ter participado da guerra, apesar de ela ter sido tratada como heroína em seu retorno das lutas independentistas.

Em 1953, data que marcou o centenário de morte de Quitéria, seu nome foi trazido à baila em uma série de homenagens dentro das Forças Armadas. Em junho daquele ano, Getúlio Vargas bancou a construção de uma estátua de bronze em Salvador, com cerca de 1,60 m de altura, localizada ainda hoje no Largo da Soledade, no centro histórico da capital baiana.

No início de 1954, o Exército criou a Comenda Maria Quitéria, uma medalha em homenagem ao seu centenário. Alguns pesquisadores apontam o fato de que, a partir daquele momento, Quitéria foi alçada ao papel de mito dentro da corporação.

“Talvez um dos pontos mais interessantes seja o fato de a narrativa produzida pelas Forças Armadas construir Maria Quitéria como a personificação dessa mistura que caracteriza a fundação brasileira: filha de português, com características indígenas e nascida no interior do Brasil”, diz um trecho da pesquisa de Raphael Pavão, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que analisa a trajetória da militar na caserna.

Para Giovana Zucatto, mestra em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e cuja pesquisa analisa a inserção de mulheres nas Forças Armadas, a trajetória de Maria Quitéria, e suas respectivas homenagens, não impactaram a presença de mulheres entre os militares.

“Ela é uma figura que ocupa uma certa mitologia no que diz respeito à incorporação de mulheres nas Forças Armadas. Ela é utilizada como símbolo. As mulheres só voltam ao combate na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e como enfermeiras. A entrada das mulheres nas Forças Armadas só foi oficializada na década de 1980. Não tivemos mulheres na Guerra do Paraguai (1864-1870), por exemplo”, analisa.

Atualmente, quase 34 mil mulheres integram as Forças Armadas, segundo dados do Ministério da Defesa divulgados em março do ano passado. A parcela feminina representa menos de 10% do contingente militar total do país (em torno de 350 mil). Apesar do avanço nos últimos dois anos, a pesquisadora afirma que o cenário ainda não é inclusivo.

“Poucas mulheres chegaram à posição de general no Brasil, a maioria delas com atuação na área da saúde. São posições que não têm influência política nas decisões das Forças”, complementa Zucatto.

Em 1996, o Exército homenageou Maria Quitéria como Patrono da corporação, ao lado de figuras como Duque de Caxias (1803-1880) e Marechal Rondon (1865-1958). Ela se tornou patrono do Quadro Complementar de Oficiais.

“Foi algo influenciado pelo processo de redemocratização e a entrada de mulheres no Exército, que acontece a partir de 1992. É importante, mas não deixa de ser simbólico que ela seja homenageada em um quadro de apoio”, pondera a pesquisadora.

Para além do legado nas Forças Armadas, a figura de Maria Quitéria se espraiou por outros setores. Durante a ditadura militar, o nome da combatente foi utilizado para nomear o boletim informativo do Movimento Feminino pela Anistia de São Paulo, criado em 1975 e liderado pela advogada e ativista Maria Therezinha Zerbini (1928-2015).

Depois, na década de 1980, o nome da baiana foi utilizado pelo partido Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para dar nome a uma editora criada em Salvador.

“Certamente o legado dela foi mais polissêmico do que as Forças Armadas gostariam. Há uma disputa em torno da memória da Maria Quitéria para além dos limites do Exército”, comenta Nathan Gomes.
De acordo com Patrícia Valim, essa contraposição é saudável e condiz com a sua trajetória.

“Maria Quitéria está em todos os lugares. Há uma popularização dessa história, da personagem, com traços brasileiros, quase uma indígena quase negra. Esse é um resgate importante. Ela deveria ser a nossa Frida Khalo (1907-1954)”, finaliza.

26 de janeiro de 2022

OS CANHÕES DE JANEIRO! 

(O Estado de S. Paulo, 23) “O que está diante de nós, que poderia ocorrer dentro de semanas, é a primeira guerra industrializada e digitalizada de um grande Exército contra outro grande Exército neste continente em gerações”, alertou, na quarta-feira, James Heappey, vice-ministro de Defesa do Reino Unido, apontando para a concentração de mais de 100 mil soldados da Rússia na fronteira da Ucrânia. “Dezenas de milhares de pessoas poderiam morrer.”

O chefe de Defesa da Estônia ecoou o alerta. “Tudo está se movendo na direção de um conflito armado”, afirmou. Nas semanas recentes, a Rússia mobilizou reservistas e trouxe tropas e mísseis de regiões remotas, como a fronteira com a Coreia do Norte. Países ocidentais preparam-se para o pior.

Na segunda-feira, o Reino Unido começou a mandar de avião milhares de mísseis antitanque para a Ucrânia. Dias antes, a Suécia enviou veículos blindados para a Ilha de Gotland, enquanto três lanchas de desembarque russas cruzavam o Mar Báltico com destino desconhecido. No mesmo dia, a Ucrânia sofreu ciberataques que desfiguraram sites do governo e bloquearam a maioria dos computadores oficiais.

Enquanto isso, a Casa Branca afirmou que possui informações de inteligência dando conta de que a Rússia planejava encenar atos de sabotagem contra as forças que apoia no leste da Ucrânia para fabricar um pretexto para atacar o país.

Esse ataque poderia adquirir muitas formas. Uma possibilidade é a Rússia simplesmente fazer abertamente o que tem feito furtivamente há sete anos – enviar tropas às “repúblicas” de Donetsk e Luhansk, territórios separatistas da região do Donbas, no leste da Ucrânia – seja para expandir seu perímetro a oeste ou para reconhecer as regiões como Estados independentes, como fez quando acionou forças em Abkházia e Ossétia do Sul, duas regiões da Geórgia, em 2008.

CRIMEIA. Outro cenário é a possibilidade de a Rússia buscar estabelecer um acesso terrestre até a Crimeia, a península que anexou em 2014. Isso requereria tomar uma faixa de território de 300 quilômetros ao longo do Mar de Azov, incluindo o porto ucraniano de Mariupol, no Rio Dnieper.

Essas tomadas de território limitadas estão dentro das capacidades das forças concentradas na Rússia ocidental. Mas é menos claro se isso poderia servir aos objetivos de guerra do Kremlin. Se o objetivo da Rússia é deixar a Ucrânia de joelhos e impedir que o país entre para a Otan ou até mesmo coopere com a aliança, simplesmente consolidar o controle de Donbas ou de uma pequena faixa de território dificilmente resolveria a questão.

Fazer isso exigiria impor custos ao governo em Kiev – seja dizimando suas Forças Armadas, destruindo a infraestrutura crucial do país ou acabando com tudo de uma vez. Uma opção para a Rússia seria usar armas “de alcance ampliado”, sem forças terrestres, emulando a guerra da Otan contra a Sérvia, em 1999.

Ataques de lançadores de foguetes e mísseis poderiam causar destruição. Esse armamento poderia ser apoiado com novas armas, como ciberataques contra a infraestrutura ucraniana, como os que prejudicaram a rede de energia do país, em 2015 e 2016.

O problema é que campanhas punitivas como essas tendem a durar mais e serem mais difíceis do que aparentam inicialmente. Se a guerra vier, ataques à distância têm mais probabilidade de ser prelúdios e apoios para a guerra terrestre, em vez de substituí-la. “Não vejo muitos obstáculos no caminho deles até Kiev”, afirma David Shlapak, da Rand Corporation, um instituto de análise.

INSURGÊNCIA. O objetivo, provavelmente, seria danificar a Ucrânia, não ocupá-la. O país é tão grande e populoso quanto o Afeganistão e, desde 2014, mais de 300 mil ucranianos adquiriram alguma experiência militar – a maioria tem acesso a armas de fogo. Autoridades americanas disseram a aliados que tanto o Pentágono quanto a CIA dariam apoio a uma insurgência armada.

A Rússia pode considerar o que o Exército americano chama de “ataque trovão”, afirma Shlapak, um ataque veloz e profundo sobre um front estreito, com intenção de chocar e paralisar o inimigo, em vez de conquistar território. E o ataque não tem de vir apenas do leste.

Na segunda-feira, soldados russos, alguns vindos do extremo oriental do país, começaram a chegar a Belarus, para exercícios militares marcados para fevereiro. A Rússia também afirmou que enviará uma dúzia de aviões militares e dois sistemas de defesa antiaérea S-400. Um ataque vindo do norte, através da fronteira de Belarus com a Ucrânia, permitiria à Rússia se aproximar da capital ucraniana pelo oeste e cercá-la.

“Imagine o centro de Kiev ao alcance de foguetes”, disse Shlapak. “Os ucranianos gostariam de viver essa situação?” Mesmo se o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, estiver disposto a tolerar um cerco, a Rússia pode apostar que o governo dele simplesmente colapsará – e poderá usar espiões, forças especiais e desinformação para acelerar esse processo.

Mas guerras se desenrolam de maneiras imprevisíveis. A Rússia não empreende uma ofensiva em larga escala envolvendo infantaria, blindados e fogo aéreo desde as batalhas que culminaram a 2.ª Guerra. Países sob ataque podem tanto ficar firmes quanto se desintegrar. Ivan Timofeev, do Conselho Russo para Assuntos Internacionais, alerta para um “longo e moroso confronto”, que arriscaria “a desestabilização da própria Rússia”.

CUSTOS. Mesmo a vitória sairia caro. “Os ucranianos lutarão e infligirão grandes baixas aos russos”, afirma Peter Zwack, general da reserva que atuou como adido de defesa dos EUA em Moscou durante a primeira invasão russa à Ucrânia, em 2014. “Isso será difícil para a Rússia, que está basicamente sozinha.”

Juntamente com a ameaça das pesadas sanções sendo preparadas pelos EUA e por seus aliados europeus, e diante da aparente ausência de qualquer apoio doméstico para uma nova aventura, tudo isso pode estar dando a Putin, até mesmo agora, razões para pensar duas vezes.

25 de janeiro de 2022

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA EXPLICAM APOSTA DE BRIZOLA NA EDUCAÇÃO! 

(O Globo, 22) Leonel Brizola era um grande contador de histórias, mas fugia de depoimentos formais para a posteridade. “Na verdade, vivo muito mais preocupado com o futuro, com os projetos, do que com o passado”, justificava-se. Em abril de 1996, ele abriu uma exceção em sua cidade natal. Falou por mais de quatro horas a pesquisadores de Carazinho (RS), onde nasceu há cem anos, em 22 de janeiro de 1922.

Inédita até hoje, a conversa tratou da infância e da juventude do político, que perdeu o pai com 1 ano de idade. O camponês José Brizola foi morto num dos embates sangrentos entre chimangos e maragatos. “Eu me criei sob o signo desse fato, a morte do velho”, desabafou.

A mãe, Oniva, convenceu os cinco filhos a não buscarem vingança. “Não sei sinceramente se ele foi fuzilado, naquela época davam um tiro na testa ou na nuca. Ou se foi degolado”, disse Brizola. “Sempre me recusei a encarar esse assunto. Nunca quis que o povo riograndense imaginasse que eu estava querendo me vingar”, explicou.

A vida era dura no interior gaúcho. Até os 7 anos, o guri nunca havia calçado sapatos. Aos 11, foi apresentado a uma escova de dentes. A família se mudou para Passo Fundo, onde ele batalhou trocados num açougue. De manhã, ao sair para as entregas, invejava as crianças de classe média que estudavam num internato particular.

“Um colégio de colunas, muito bonito. Eu adorava olhar aquilo ali. Às vezes invadia o recinto e me botavam para fora”, recordou. “Eu ia distribuindo carne, levava aqueles ganchos. E aqueles garotos bem arrumadinhos, bem abrigados, indo pro colégio”. Um dia, o menino pobre deu uma topada e foi ridicularizado. “Sangrou, a dor, aquele frio, e o garoto disse: ‘Se foram os bichos de pé!’. Eu não tive dúvida, fui de carne e gancho para cima dele.”

Oniva alfabetizou os filhos (“tínhamos dois livros em casa, passavam de um para outro”), mas insistiu que buscassem educação formal. “A velha sempre querendo que eu estudasse, ela me botou na cabeça isso”, contou Brizola. De volta a Carazinho, ele procurou o colégio de um pastor metodista. Propôs ajudar na faxina em troca de vaga e lugar para dormir. “Foi um período áureo da minha vida”, lembrou. “Fui me civilizando ali.”

O guri arrumou novos bicos. Foi engraxate, carregador de mala, vendedor de jornal. “Depois de mil andanças, acabei indo para Porto Alegre. Fiquei quase um ano na rua, trabalhando nas piores condições”, narrou. Aos 14, conseguiu passar para uma escola técnica. Na hora da matrícula, mais problemas: não tinha certidão de nascimento nem dinheiro para o enxoval. “Foi uma saga”, resumiu.

Na capital gaúcha, o jovem Brizola trabalhou como ascensorista, operário e jardineiro. Depois passou para a faculdade de Engenharia, onde se encantou com o getulismo. Aos 25, elegeu-se deputado estadual pelo PTB. Era o início de uma carreira política de quase seis décadas, só interrompida pelos 15 anos no exílio.

Em 1958, o trabalhista chegou ao governo gaúcho com o lema “Nenhuma criança sem escola”. Construiu seis mil colégios públicos, as chamadas “brizoletas”. Mais tarde, ergueria 500 Cieps no Rio de Janeiro. Projetados por Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, os “brizolões” ofereciam alimentação, assistência médica e ensino em tempo integral. Depois seriam sucateados por sucessivos governos fluminenses.

Morto em 2004, Brizola não desperta mais as críticas apaixonadas do passado. Seu legado é disputado nas urnas, e até adversários o reconhecem como o político brasileiro mais identificado com a causa da educação. A luta dos primeiros anos ajuda a entender como tudo começou.

19 de janeiro de 2022

COVID ABALOU DEMOCRACIA EM BOA PARTE DOS PAÍSES DA REGIÃO!

(Carolina Marins, pesquisador da Universidad Católica de Chile – O Estado de S. Paulo, 16) A pandemia aprofundou a incerteza e a instabilidade na América Latina pelo segundo ano seguido, sendo usada por governos para restringir as liberdades civis. No último ano, mais da metade dos países da região tiveram piora nos índices de democracia, acendendo um sinal de alerta para o futuro.

A constatação é do Índice de Risco Político da América Latina, do Centro de Estudos Internacionais da Universidad Católica de Chile (Ceiuc). O documento aponta que a região vive uma crise tripla: de governabilidade, de expectativas e de certezas – todas agravadas pela pandemia.

A América Latina concentra um terço das mortes por covid no mundo. A pandemia, porém, foi uma “oportunidade para governos concentrarem mais poder e usarem indevidamente os estados de emergência”, diz o relatório. “Novos autoritarismos surgiram em sociedades impacientes, desconfiadas e atingidas pela emergência sanitária.”

Como exemplo de deterioração democrática, o índice cita problemas de governabilidade no Peru e no Equador, os ataques contra organismos eleitorais no Brasil, El Salvador e México, e escândalos de corrupção no Chile e na Colômbia. Além disso, o texto fala em “tendências populistas em El Salvador e no Brasil”.

“Durante a pandemia, embora o número de democracias tenha se mantido, mais da metade dos países experimentaram erosão em suas características elementares, levando regimes híbridos a se tornarem autocráticos e ditaduras a se consolidarem”, informa o texto.

RETROCESSO. “A maioria dos governos da região recorreu a estados de emergência para lidar com a pandemia”, disse Daniel Zovatto, pesquisador do Ceiuc. “Enquanto alguns governos usaram essas medidas dentro dos limites da lei, outros abusaram delas.”

“As principais consequências incluem uma maior concentração de poder no Executivo, restrição dos direitos humanos, ataques à independência do Judiciário, perseguição a jornalistas e uso crescente das Forças Armadas para tarefas que não são suas.”

A erosão democrática ocorreu rapidamente. “Finalizamos a redação do relatório em agosto de 2021 e, nesse curto período de oito meses, ocorreram eventos em vários países da região que aprofundaram a deterioração”, disse Zovatto, que cita os arroubos antidemocráticos do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, e a repressão aos protestos em Cuba. “Desde que finalizamos o documento, ocorreram novos acontecimentos que confirmam a tendência de erosão democrática, entre eles a farsa eleitoral na Nicarágua, orquestrada pela ditadura de Daniel Ortega.”

O caso mais dramático, segundo o Ceiuc, é o de El Salvador. “Bukele atacou o estado de direito, destituiu juízes e expulsou jornalistas pertencentes a meios de comunicação que criticam o governo”, aponta o estudo. Em seguida vem o Brasil, país que registrou mais categorias com deficiência democrática. Guatemala, Bolívia e Colômbia também estão entre as maiores preocupações.

O índice do Ceiuc também aponta a falta de confiança das populações nas instituições democráticas. Uma pesquisa realizada em outubro de 2021 pelo Latinobarómetro mostrou que, em 2020, 51% das pessoas não se importavam se seu governo era democrático, desde que resolvesse seus problemas.

RISCOS. O Ceiuc aponta mais nove riscos a serem enfrentados este ano na região: mudanças climáticas e a escassez de água, protestos sociais e violência, crise migratória, crime organizado, polarização política, investimento estrangeiro em queda, irrelevância regional, crimes cibernéticos e a ascensão da China.

Segundo analistas, a falta de resposta dos governos tem frustrado os mais jovens, provocando reações. Muitos desses protestos, porém, foram marcados por repressão violenta por parte dos Estados, aumentando a instabilidade política regional.

A polarização também preocupa, em razão do ciclo eleitoral que a região vive. De acordo com o relatório do Ceiuc, o risco é de intensificação das campanhas de desinformação que corroem os fundamentos democráticos.

Por fim, o documento analisa o impacto da projeção da China na América Latina. Diferentemente de outros parceiros como americanos e europeus, os chineses não impõem condições democráticas e de direitos humanos para seus investimentos. Portanto, a deterioração favorece a influência de Pequim e torna ainda mais difícil reviver as democracias.

“A diplomacia de vacinas e das máscaras, em meio a uma pandemia, trabalha a favor da China”, diz o estudo. “Os EUA poderiam buscar uma agenda proativa e positiva para conter a influência da China, mas nada garante que isso dará certo.”