22 de março de 2021

LIBERAIS, NEOLIBERAIS, POLÍTICA E MERCADO!

(Christian Edward Cyril Lynch, autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 21) O tema do neoliberalismo está em voga desde a década de 1980, quando a crise da social-democracia europeia trouxe a crítica do planejamento econômico pelo Estado e a defesa do liberalismo econômico como fórmula capaz de superar a estagnação.

Nos últimos dez anos, seu prestígio cresceu e seus partidários aderiram à chamada “nova direita”, parte da qual viria a apoiar o governo Bolsonaro. O debate público sobre o conceito de liberalismo é intenso. Hoje, o tema guarda grande atualidade, tendo em vista o referido endosso de Paulo Guedes e de maioria dos neoliberais brasileiros às tendências conservadoras e autoritárias de Jair Bolsonaro.

Entre os pretendentes dessa ideologia política, a querela gira em torno de um liberalismo democrático inimigo do autoritarismo político (a vertente liberal democrata), que mantém relações pragmáticas com a economia, e um outro, para quem a liberdade política depende essencialmente da econômica, ponto de vista segundo o qual o verdadeiro autoritarismo seria a intervenção do Estado na economia (a vertente neoliberal).

Os neoliberais se apresentam como “liberais”, ou como sendo os “autênticos liberais”, alinhando-se, todavia, a pautas reconhecidamente conservadoras em sua dimensão política. Tentam, assim, conciliar em abstrato a distinção histórica entre conservadorismo e liberalismo, sem deixar de aderir a uma coalizão de vocação autoritária, que conta com conservadores reacionários (olavistas) e estatistas (militares).

Eles enfrentam sempre a oposição de outros “liberais”, que se pretendem progressistas e negam a compatibilidade entre liberalismo e conservadorismo ou autoritarismo político.

Vários estudiosos conferiram grande importância à questão das chamadas famílias, tradições ou linhagens do pensamento político brasileiro. Esse tipo de classificação tem entre suas vantagens a capacidade de servir de anteparo ao presentismo: a tentação de ver os problemas do momento atual como puramente inéditos. Assim, podemos revisitar a tradição do liberalismo brasileiro, buscando suas regularidades no tempo.

Desde o começo do século 19, os liberais associaram o suposto atraso brasileiro a um problema de origem. A baixa capacidade de os portugueses estabelecerem as bases de uma civilização moderna nos trópicos, a influência da Igreja Católica, a concentração da grande propriedade agrária e a escravidão teriam produzido uma sociedade civicamente egoísta, indiferente à ciência, dependente de um Estado autoritário e patrimonial, avessa ao indivíduo autônomo e incapaz de cooperação —como descrito, por exemplo, por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” (1958).

Para além do transplante de instituições anglo-saxãs, o programa liberal inspirado por Stuart Mill tem se pautado por políticas públicas voltadas para a abertura comercial e cultural, para a descentralização político-administrativa, desregulação econômica e redução da burocracia.

Do ponto de vista político, o liberalismo brasileiro de tendência democrática manifesta um certo centrismo. O mais destacado intelectual liberal brasileiro do período pós-independência, Evaristo da Veiga, já celebrava a moderação como a virtude política por excelência. Essa postura confere aos liberais um dinamismo de se deslocar para a direita ou para a esquerda, conforme percebam a ameaça autoritária vindo de um dos lados opostos, socialista ou conservador.

No governo, o liberalismo democrático brasileiro tende a ser mais cauteloso, hesitando a respeito da conveniência e do ritmo da expansão dos direitos sociais e políticos. Acreditando que a colonização teria conformado uma sociedade inclinada a soluções políticas messiânicas, populistas e estatistas, os liberais acabam por não confiar no “bom senso” das massas. Daí a tendência a um excesso de moderação que conduz ao elitismo, ou seja, a circunscrever o centro decisório a uma minoria homogênea de cidadãos em termos de renda e cultura.

Desde que a democratização começou a surgir no horizonte, a partir da Campanha Abolicionista com Joaquim Nabuco e, depois, com a Campanha Civilista de Rui Barbosa, a classe média entrou no radar dos liberais. Como segmento social, exprimiria as qualidades da sociedade civil, por sua sensibilidade a temas como participação política, liberdade, mérito e moralidade.

Entretanto, por vezes, os liberais democráticos se perceberam em um clima de polarização entre a esquerda e a direita radicais que reduzia o seu espaço de atuação em defesa das liberdades públicas e inclinava o país para o autoritarismo. A sociedade brasileira parecia não se adequar à pedagogia dos valores cosmopolitas liberais.

Inoculada nas massas, a hostilidade a esses valores inclinaram-nas à tutela de um líder carismático; daí a fortuna de um conceito controverso como o de “populismo” tanto entre liberais quanto entre socialistas cosmopolitas. Tal diagnóstico leva muitos liberais democráticos a periodicamente advogarem mecanismos institucionais como o parlamentarismo e o judiciarismo.

Este último é uma velha aspiração que data da queda da Monarquia e encontrou seus grandes defensores em Rui Barbosa e Pedro Lessa, para quem a República transferira para o Supremo Tribunal a função arbitral exercida antes pelo Poder Moderador.

Somente na Nova República, todavia, com a retirada de cena do Exército, o judiciarismo se tornou hegemônico, auxiliado pelo desenho institucional da Constituição de 1988. No começo do século 21, voltou a ser apresentado como um remédio para as tendências corruptoras e oligárquicas da representação política.

Em épocas de polarização e crise aguda do Estado de Direito, quando as instituições constitucionais parecem indiferentes ou hostis à cultura do liberalismo, nasceu frequentemente entre os liberais democratas brasileiros a tentação do golpismo.

Desde 1889, o liberalismo nacional tendeu a encarar esse recurso como legítimo em momentos críticos para salvar a liberdade contra seus inimigos percebidos como autoritários. Quem melhor representou essa ambiguidade foi o próprio Rui Barbosa. O temor de um eventual reinado reacionário da princesa Isabel o fez embarcar no golpe militar e a se tornar ministro da ditadura republicana, interpretada por ele como um autoritarismo transitório que preparava um Estado de Direito mais sólido, conforme o figurino estadunidense.

Depois de combater o militarismo dos presidentes Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, Rui voltou a cogitar a intervenção do Exército no começo dos anos 1920, quando lhe pareceu que a República marchava de novo para o autoritarismo.

O golpe de 1964 também foi apoiado por liberais democratas, a exemplo de Afonso Arinos e Carlos Lacerda, como um breve período de exceção destinado a afastar o risco de ameaça comunista. Na prática, em todas essas ocasiões, os liberais brasileiros só participaram de uma “jornada de otários”, que precipitou o advento de um autoritarismo de direita que terminou por voltar-se contra eles e persegui-los como subversivos.

Embora se imagine sempre uma correlação automática entre liberalismo econômico e político, essa relação, ao longo dos últimos três séculos, é mais complexa e nem sempre de fácil distinção. Se a liberdade de mercado é parte das liberdades modernas, o foco sobre a liberdade política, aquela plasmada na forma dos direitos e das garantias constitucionais, distingue o liberalismo democrático daquele que via no livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal.

A esta última vertente poderíamos chamar de libertarianismo econômico, ou neoliberalismo. Surgido pelas mãos de Herbert Spencer por volta de 1880 como reação ao processo de democratização política, impulsionado pelo socialismo e pelo alargamento do sufrágio, o neoliberalismo consiste em um híbrido de liberalismo e conservadorismo: ao mesmo tempo em que apresenta características liberais, como o individualismo, eleva o mercado à condição de gerador e ordenador da vida social, intangível porque produto de forças extra-humanas —uma suposta “ordem espontânea” do universo social fruto da interação não planificada entre os indivíduos.

Os neoliberais apresentam seus argumentos em uma roupagem supostamente “técnica” ou “científica”, defendendo suas posições como as únicas “realistas”, não capturadas pela tentação idealista e normativa da mentalidade planificadora e maximizadora do Estado que teria marcado as ideologias democráticas desde o século 18, como se notaria tanto nos liberais quanto nos socialistas.

Na ideologia neoliberal, a função do Estado é essencialmente a preservação das condições de competição dos indivíduos no mercado. A justiça social é produto das leis do mercado, cujo livre funcionamento por parte de empresários “empreendedores” e criativos, em um contexto de população tecnicamente educada, geraria de forma mais ou menos automática riqueza pública e emprego, através de sucessivos ganhos de produtividade.

Para os neoliberais, o Brasil estaria sempre patinando entre a barbárie e a estupidez, carecendo constantemente de abertura comercial e financeira para o mercado exterior. Aqui, empreender teria muito mais obstáculos a enfrentar devido à ausência de uma cultura moderna, ou seja, capitalista. Em contraste, os países do Atlântico Norte costumam ser referenciados como modelares.

O cosmopolitismo neoliberal demonstra, coerentemente, grande apreço a organismos internacionais —mas não os de caráter político, como a Liga das Nações ou a ONU, enaltecidas pelos liberais democratas, e sim os financeiros, como o FMI, bancos e empresas multinacionais.

E se é verdade que ambas as tradições liberais podem ter uma aproximação instrumental com o autoritarismo, no caso dos neoliberais essa dimensão é muito mais acentuada. De todo esse diagnóstico negativo dos libertários econômicos sobre a situação do Brasil resultava um descompromisso ainda maior com a democracia.

A necessidade de um choque civilizador de capitalismo vindo de fora justificava métodos autoritários. A marca acentuadamente demofóbica já estava presente nos fundadores libertários da República, como os irmãos Alberto e Campos Sales, que ajudaram a urdir o golpe de 1889 contra os liberais e defendiam a toda força o presidencialismo, na crença de que só um governo forte e enérgico poderia enfrentar o “socialismo”.

No século 20, Eugênio Gudin e Roberto Campos demonstraram idêntico descaso com o regime democrático. Diziam que as constituições de 1946 e 1988, por não corresponderem às suas doutrinas, eram produtos da ignorância e da utopia. Como nenhuma delas resolvia os problemas do país, duravam pouco e mereciam, por isso, o desprezo geral.

Muitas tensões marcaram a convivência dos dois liberalismos, o democrático e o neoliberal, em nosso país. Para Rui Barbosa, o presidente Campos Sales era o grande artífice do conservadorismo da Primeira República. Ele acusava Sales de autoritário, oligarca e corruptor, assim como via na política neoliberal de seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, uma cortina de fumaça doutrinária destinada a favorecer os interesses internacionais. Já Sales e Murtinho chamavam Rui de subversivo e tendente ao socialismo, criticando sua política econômica.

Quando o regime militar impôs a Constituição de 1967, o liberal democrata Afonso Arinos também se queixou de que a nova Carta continha “excessivo liberalismo econômico em contraste com o autoritarismo político”. Em defesa dela, os neoliberais Gudin e Roberto Campos justificaram o fortalecimento do Executivo pela necessidade de passar as reformas modernizadoras de corte libertário.

Roberto Campos também se estranhou publicamente com Carlos Lacerda, quando este atacou sua política neoliberal como própria de tecnocratas e defendeu uma abordagem pragmática da economia. No livro “Brasil entre a Verdade e a Mentira” (1965), Lacerda invocou em seu apoio a autoridade de Rui Barbosa, cuja obra defendeu contra Murtinho e Campos.

Apoiador de primeira hora do golpe militar, Lacerda acabou preso após o AI-5 e teve seus direitos políticos cassados. Também para ele, a adesão ao golpismo resultou numa “jornada de otários”. A história se repetiu recentemente, com a adesão dos liberais democratas ao lavajatismo como método de deposição da esquerda. Ao invés de chegarem ao reino da liberdade republicana, esquentaram a cama para Jair Bolsonaro se deitar.

Depois de 1990, os liberais democratas recuperariam o discurso do liberalismo econômico, voltando a apresentar um ponto de contato com os neoliberais. Nem por isso se tornariam a mesma coisa. Em suas memórias, “A Lanterna na Popa” (1994), Roberto Campos lamentou as brigas com Arinos e Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro…”. Ele estava errado. Embora aparentados do ponto de vista “macro ideológico”, o liberalismo democrático e o neoliberalismo, como já se percebia então, são ideologias distintas.

O liberalismo democrático, que representa o tronco principal da linhagem, na segunda metade do século 19 já havia, por meio de Stuart Mill, renunciado a aspectos secundários da doutrina, como o voto censitário e o liberalismo econômico, vinculados ao governo oligárquico e plutocrático.

O neoliberalismo, ao contrário, surgiu como uma reação conservadora à adaptação do liberalismo ao ambiente democrático, destinado a preservar a dimensão oligárquica e plutocrática do Estado de Direito. Onde os liberais viam democracia, os neoliberais passaram a ver socialismo. Longe de preservar o liberalismo oitocentista, os neoliberais deliberadamente o reformularam, modificando seus fundamentos, para se concentrar, quase que exclusivamente, na defesa do Estado mínimo.

O atual contencioso em torno do autoritarismo conservador de Bolsonaro demonstra com clareza a distinção de neoliberais e liberais democratas. A adesão de Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica.

Basta lembrar que no passado apoiaram as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a oligárquica República Velha e o regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol…

19 de março de 2021

HISTORIADOR NARRA ALIANÇA NAZI-SOVIÉTICA!

(Paulo Nogueira – O Estado de S. Paulo, 14) Numa era de tal polarização que cada lado só vê o que quer ver (geralmente, miragens), de cancelamentos e fake news, uma vacina com eficácia de 100 por cento é ler historiografia. Pois, por incrível que pareça, a história não começou ontem, e nem mesmo com o WhatsApp.

O Pacto do Diabo, de Roger Moorhouse, passa a pente fino o tratado de não agressão de 23 de agosto de 1939 entre a URSS e a Alemanha nazista. Foi assinado em Moscou, com a presença de Stalin e dos ministros das Relações Exteriores dos respectivos países, Molotov e Ribbentrop. O pacto embasbacou tanto a direita quanto a esquerda, já que fascismo e comunismo eram teoricamente antípodas ideológicas, e não farinha do mesmo saco totalitário. Como Stalin rosnou, ao brindar à saúde de Hitler: “Temos jogado baldes de m* na cabeça uns dos outros, e nossos publicitários precisam convencer o povo que tudo foi esquecido e perdoado”. Nove dias depois a Wehrmacht invadiu a metade oeste da Polônia, iniciando a 2ª Guerra Mundial, e o Exército Vermelho anexou irmãmente a outra metade.

Inúmeros comunistas ocidentais, enojados com o mico, deixaram os PCs, no maior êxodo partidário antes da invasão soviética Hungria, em 1956, e do esmagamento da Primavera de Praga, em 1968. Houve, claro, muitos que só deram um sorriso amarelo, como o historiador Eric Hobsbawn. George Bernard Shaw derreteu-se: “Hitler está agora sob a poderosa influência de Stalin, que ama a paz”. Já George Orwell chutou o balde: “Esse pacto minou não só o básico apelo ‘antifascista’ do comunismo, mas também sua queixa contra o status quo. E os comunistas, que no passado amaldiçoaram seus governos burgueses por apaziguarem Hitler”. Em 1984, um mudança oportunista de alianças obriga o herói Winston Smith a fazer horas extras para reescrever os jornais e fingir que aquela amizade sempre existiu. Enquanto isso, em Munique, o jardim da sede do Partido Nacional-Socialista ficou juncado de distintivos jogados por nazistas não menos nauseados.

Para Hitler, o acordo permitia atacar tranquilamente a Europa Ocidental, sem se preocupar com ameaças do leste – e recebendo “commodities” russas (cereais, metais, petróleo) a preços de Black Friday. Para Stalin, as vantagens eram a expansão de influência, a transmissão da tecnologia bélica alemã e a regeneração do Exército Vermelho, mutilado pelos expurgos promovidos pelo próprio ditador. Alguns presos durante expurgos stalinistas, foram direto do Gulag para os campos de concentração hitlerianos – caso da escritora Margarete Buber-Neumann.

E havia o “protocolo secreto”, que Moscou não admitiu até 1989 (e que Putin considerou “imoral, mas compreensível”). Essas cláusulas ditavam não apenas a partilha da Polônia, mas também que os estados bálticos, então independentes (Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia), mais partes da Romênia, cairiam no colinho do Kremlin.

Alguns articulistas cornetaram que Moorhouse dá mais espaço às atrocidades comunistas que às nazistas. Bem, há no livro carnificinas suficientes – e soa plausível a alegação de que a barbárie hitleriana é muito mais conhecida que a stalinista. Quem nunca ouviu falar de Auschwitz, mas quantos sabem de Kolimá? E os retratos individuais de Pacto do Diabo são magistrais, como os de Ribbentrop e Molotov, dois bajuladores do quilométrico cordão de puxa-sacos dos autocratas de bigodão e bigodinho.

Entre as numerosas ignomínias mútuas avulta o massacre na floresta de Katyn, em maio de 1941, quando 22 mil poloneses (entre prisioneiros de guerra, professores, padres e intelectuais) foram fuzilados e lançados a uma mefistofélica vala comum. Alemães e soviéticos empurraram a batata quente de um para o outro. Hoje, a responsabilidade está estabelecida: a ordem foi de Lavrenti Beria, chefe da polícia secreta de Stalin.

O pacto legou outra consequência duradoura, de ordem conceitual: a ideia da correspondência essencial entre comunismo e fascismo. Sem falar na afinidade totalitária (já assinalada por Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo), há os sistemáticos crimes contra a humanidade (como definiu memoravelmente André Frossard, “quando se mata alguém sob o pretexto de que ele nasceu”).

Estima-se que houve 96 milhões de mortes na URSS, China, Camboja, Coreia do Norte, Vietnã e Europa Oriental. Os nazistas mataram menos (25 milhões), mas é verdade que os comunistas começaram mais cedo e duraram mais. A diferença está no anátema das vítimas dos dois regimes: um, baseado na “raça”; o outro, na “classe social”. Sem querer passar um pano infame na infâmia, talvez subsista um – quem sabe bizantino – contraste, como notou o saudoso Tony Judt. Ou seja, aquele entre um regime que exterminou pessoas na busca desumana de um objetivo arbitrário, e outro cujo objetivo foi o próprio extermínio.

17 de março de 2021

EXCESSO DE REGRAS!

(Bernard Appy – O Estado de S. Paulo, 16) Há um razoável consenso de que a situação fiscal do Brasil é preocupante. De um lado, a dívida pública do País cresceu muito nos últimos anos, aproximando-se de 90% do PIB. De outro lado, as finanças da União e de muitos Estados e municípios encontram-se fragilizadas, resultando em um nível extremamente baixo de investimentos e em dificuldades de pagamento de despesas obrigatórias.

Há vários motivos para termos chegado a essa situação, mas certamente isso não ocorreu por falta de regras fiscais, ou seja, regras destinadas a conter a expansão excessiva de gastos públicos e a sinalizar para a sustentabilidade da dívida. Segundo levantamento da Instituição Fiscal Independente (de janeiro de 2018), o Brasil possuía 11 regras fiscais, sendo uma aplicável apenas à União (teto dos gastos) e as demais a todos os entes da Federação (como a Regra de Ouro, a exigência de metas de resultado primário, etc.).

A PEC Emergencial, aprovada na semana passada, introduziu pelo menos mais duas regras fiscais: a) a vedação à concessão de créditos ou garantias pela União a outro ente da Federação, caso as despesas correntes desse ente excedam a 95% das receitas correntes e não seja implementada uma série de medidas de contenção de despesas (sobretudo de pessoal); e b) a definição de que lei complementar introduzirá regras dispondo sobre a sustentabilidade da dívida pública e mecanismos de ajuste caso a trajetória da dívida desvie de parâmetro a ser estabelecido (sendo que a Lei de Responsabilidade Fiscal já prevê limites de endividamento).

Adicionalmente, a PEC Emergencial introduziu também uma regra visando à redução de incentivos e benefícios fiscais da União (que também pode ser entendida como uma regra fiscal), sinalizando a redução de seu montante a 2% do PIB em oito anos. Não se deve, no entanto, esperar muito da aplicação desse dispositivo.

Segundo estimativas da Receita Federal, os benefícios fiscais federais devem alcançar 4% do PIB em 2021. No entanto, os benefícios excepcionados da redução prevista na PEC correspondem a, pelo menos, 1,8% do PIB. Segundo minha leitura do texto da PEC Emergencial, apenas os benefícios não excepcionados (2,2% do PIB, no máximo) teriam de ser reduzidos de forma a caber no limite de 2% do PIB. Mesmo se a leitura for outra, ou seja, de que todos os benefícios têm de caber no limite de 2% do PIB, a PEC obriga apenas o envio de projeto de lei de redução dos incentivos pelo Poder Executivo, mas não sua aprovação.

Por fim, a PEC Emergencial introduz ainda outras medidas de cunho fiscal, como a definição de critério para o acionamento dos mecanismos de ajuste previstos na Emenda Constitucional 95 (teto dos gastos).

Ainda que bem-intencionadas, as novas regras introduzidas pela PEC Emergencial provavelmente contribuirão muito pouco para a melhoria da gestão das finanças públicas do País. O que o Brasil precisa não é de mais regras fiscais, mas sim de parâmetros claros para a aplicação das já existentes e, sobretudo, de regras de melhor qualidade.

Idealmente, boas regras fiscais deveriam garantir a solvência do setor público no longo prazo e, ao mesmo tempo, permitir uma gestão anticíclica da política fiscal, ou seja, estimular a poupança do setor público em tempos de bonança, de forma a permitir gastos mais elevados em períodos de contração econômica.

No Brasil, apenas a regra do teto dos gastos tem um caráter moderadamente anticíclico; todas as demais regras são pró-cíclicas. Em particular, nenhuma regra atual obriga Estados e municípios a pouparem mais em períodos de forte crescimento da receita. Ao contrário, mecanismos de vinculação de receita a despesas e a destinação de parte da receita com royalties de petróleo a Estados e municípios acentuam ainda mais o caráter pró-cíclico das finanças subnacionais.

Se queremos melhorar a qualidade da política fiscal brasileira, não precisamos de mais regras. O que precisamos é de regras mais consistentes e de mecanismos que garantam sua aplicação.

16 de março de 2021

GUERRA NA SÍRIA COMPLETA 10 ANOS E DESTRÓI PERSPECTIVAS DE UMA GERAÇÃO!

(Folha de S.Paulo, 14) O estopim para a guerra da Síria foi uma pichação. Nos muros de um colégio, estudantes escreveram “queremos a queda do regime” e “sua hora vai chegar, doutor”. O doutor era Bashar Al-Assad, ditador do país, e a resposta do governo foi prender e torturar cerca de 15 menores de idade.

Naquele março de 2011, época de Primavera Árabe, a prisão dos jovens gerou uma onda de protestos que clamava por mais direitos e menos autoritarismo. À medida que as manifestações foram se espalhando, a repressão ficava mais brutal. O governo sitiou cidades onde os atos eram mais fortes, e, nos meses seguintes, militares deixaram o Exército para formar milícias contra o governo.

Quinze de março, considerado o dia do início dos protestos, marca o aniversário do conflito. As estimativas de mortos variam. O Observatório Sírio de Direitos Humanos confirmou a morte de ao menos 380 mil pessoas, mas calcula que o número pode ser ainda maior e chegar a quase 600 mil.

Ainda que a situação tenha sido considerada uma guerra civil em 2012, o conflito mexeu com a comunidade internacional. Ao lado de Assad, ficaram Rússia e Irã. Com os opositores, que se dividem em diversos grupos e alimentam disputas internas, Arábia Saudita, Qatar e Turquia.

Para complicar, a partir de 2013 a facção terrorista Estado Islâmico (EI) conseguiu emergir e conquistar uma grande faixa do território sírio, o que atraiu potências do Ocidente para o conflito: uma coalizão liderada pelos EUA fez ataques massivos e apoiou rebeldes, derrotando o grupo jihadista no país.

Assad quase perdeu a guerra, mas a Rússia impediu que sua hora chegasse ao combater os opositores. Hoje, o ditador controla cerca de 60% do território. O conflito esfriou, mas não acabou.

“Nos últimos três anos, houve uma estabilização, mas o país está longe de parar em pé e não tem nem sinal de autoridade efetiva”, avalia Karabekir Akkoyunlu, professor de Relações Internacionais da FGV. “A Síria deixou de ser uma tragédia aguda para ser uma tragédia crônica.”

David Kaelin, coordenador do programa de água e habitação do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) na Síria, afirma que a situação está mais calma no centro e no sul do país, mas os combates seguem ocorrendo no norte. Os desafios humanitários, diz ele, continuam enormes.

Engenheiro, Kaelin trabalha na reconstrução de escolas e redes de água e energia. Ele conta que a infraestrutura do país sofreu com falta de manutenção mesmo onde não houve bombardeios e, “se for tratada assim por mais anos, chegará a um ponto em que não teremos como recuperá-la”.

A falta de profissionais especializados dificulta a reconstrução. Muitos deles deixaram o país, e a guerra atrapalhou a formação de uma geração. Os garotos que picharam o muro em 2011 tinham entre 10 e 15 anos. Os jovens que estão hoje na faixa dos 20 anos viveram seus anos de estudo em meio ao conflito.

“É comum que os refugiados já tenham sido forçados a mudar de lugar quatro ou cinco vezes”, comenta Joel Ghazi, coordenador de operações da ONG Médicos Sem Fronteiras para o noroeste da Síria. “E sem poder estudar direito, como estes jovens vão poder reconstruir o país no futuro?”

A situação também pouco os motiva a ficar. Kaelin, da Cruz Vermelha, diz que conseguir um trabalho em empresas locais é muito difícil, e os engenheiros recém-formados com quem trabalhou querem imigrar.

Levantamento feito pelo instituto Ipsos ouviu 1.400 jovens na Síria, no Líbano e na Alemanha. Deles, 62% tiveram de deixar suas casas devido à guerra, 55% tiveram a formação escolar interrompida e 42% perderam um familiar ou amigo próximo.

Anas Obaid, 32, deixou o país após ser capturado pelo EI e veio morar no Brasil em 2015. Jornalista, trabalhou em São Paulo lavando pratos e, depois, fabricando e vendendo perfumes. A pandemia de Covid-19 atrapalhou seus negócios, mas, para ele, tudo parece mais do mesmo. “É como se estivéssemos há dez anos em quarentena. Sempre há perigo, risco de perder o trabalho e falta de dinheiro”, afirma.

Obaid, que trabalhou em um campo de refugiados no Líbano, usa o tempo de confinamento no Brasil para estudar e escrever um livro sobre sua experiência com a guerra e o refúgio. “Tenho orgulho do nosso povo. Temos o pensamento de não deixar o passado atrapalhar nosso presente. Os jovens sírios chegam com muita vontade de trabalhar e de reconstruir a vida.”

Para os jovens ouvidos pela pesquisa da Ipsos, o maior desejo é o de estabilidade, opção escolhida por 65% dos entrevistados. Planos como formar uma família e voltar a estudar são bem menos citados.

Segundo a ONU, há 6,6 milhões de refugiados sírios espalhados em 130 países, embora a maioria tenha ido para nações vizinhas. Além disso, há mais 6,7 milhões de pessoas deslocadas dentro do próprio país.

De acordo com o Acnur, órgão da ONU para refugiados, cerca de 70% dos que deixam a Síria vivem na pobreza, e há alto risco de que descambem para o trabalho infantil. O casamento de meninas menores de 18 anos também tem crescido. A estimativa da agência é de que sejam necessários US$ 5,8 bilhões para cobrir as carências mínimas dos refugiados em 2021, somando os gastos das organizações que lá atuam.

Em 2020, no entanto, apenas pouco mais da metade do orçamento projetado foi atingido.

“Nessa situação, priorizam-se as coisas mais básicas, como saúde, alimentação e abrigo, e as ações para educação e geração de renda ficam para trás”, diz Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil.

Com as dificuldades de viver como refugiado, muitos tentam voltar para casa, apesar dos riscos. Os pais de Obaid fizeram esse caminho e reencontraram a casa da família, nos arredores de Damasco, destruída.

“Meu pai ficou 40 anos melhorando a casa —e perdeu tudo. Roubaram até o piso. Agora, aos 74 anos, precisa recomeçar. Eles abriram uma loja e estão se virando. Mas meu pai mudou totalmente. Está sempre incomodado, preocupado, com medo de perder tudo de novo”, conta. “Ainda tem um conflito aqui ou ali, alguns morrem, alguns são torturados.”

No último ano, a guerra na Síria teve poucos movimentos significativos além de embates no norte do país, que cessaram após um acordo entre Turquia e Rússia em março de 2020, dias antes de a pandemia paralisar o mundo. Não há números confiáveis, pois falta acesso a testes e a atendimento médico, mas agentes em campo relatam que houve piora na situação do coronavírus no país.

“Se uma família fica doente, muitas vezes só há dinheiro para comprar remédios para uma pessoa, e os outros ficam sem. A inflação alta dificulta as coisas”, aponta Ghazi, da ONG Médicos Sem Fronteiras.

A Síria enfrentou, nos últimos meses, um agravamento da crise econômica. Na sexta (12), US$ 1 comprava 4.000 libras sírias no mercado paralelo, segundo a agência de notícias Reuters. Em junho de 2020, essa cotação era de 1 para 2.500. A crise no vizinho Líbano complicou ainda mais esse panorama. Com a desvalorização, vieram inflação e falta de produtos, incluindo pão e combustível.

O fim da crise é considerado distante, e, para tal, especialistas apontam que os países envolvidos na guerra precisam mudar a forma de agir. “As potências regionais têm a chave para decidir o futuro da Síria, mas não vejo nenhuma urgência por parte delas”, diz o professor Akkoyunlu. Ele avalia que as negociações em torno do acordo nuclear entre Irã e EUA, agora sob a Presidência de Joe Biden, podem incluir alguma mudança modesta de posição de Teerã sobre Damasco.

Um cenário provável é que a Síria se torne um país instável por décadas, como Afeganistão e Iraque, cujos conflitos internos não cessaram mesmo após diversas intervenções estrangeiras. E as demandas dos protestos de 2011, que incluíam menos corrupção e melhores serviços públicos, nunca foram atendidas.

15 de março de 2021

TANGOS!

(Roberto Rodrigues, coordenador do centro de agronegócios da Fundação Getúlio Vargas – O Estado de S.Paulo, 14)

“Si arrastré por este mundo
La verguenza de haver sido
Y el dolor de ya no ser…”

Começa com essa triste estrofe o belíssimo tango Cuesta Abajo, dos célebres Carlos Gardel e Alfredo Le Pera, ambos responsáveis por algumas das mais famosas melodias do cancioneiro portenho. Le Pera foi letrista e Gardel, além de compositor, foi o maior intérprete de tangos de todos os tempos. Sobre a origem de ambos pesam muitas dúvidas.

Há, por exemplo, uma disputa acirrada quanto ao local e data de nascimento de Gardel. Uma versão é de que teria nascido em Toulouse-França, em dezembro de 1890. Outra afirma que a terra natal é Tacuarembó, no Uruguai, na mesma data. Quando provocado a respeito, ele mesmo dizia, esquivo, que tinha nascido em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade.

Já Alfredo Le Pera, que morreu junto com Gardel em acidente aéreo em Medellin-Colômbia em 1935, era paulistano do Bixiga, onde nasceu em 1900, filho de imigrantes italianos. Ainda muito menino, os pais se mudaram para o Uruguai e mais tarde para Buenos Aires.

Jornalista respeitado, escrevia sobre teatro e acabou se aproximando de círculos artísticos. Em 1934 mudou-se para Nova York para trabalhar com Gardel, que havia conhecido em filmagens em Buenos Aires, alguns anos antes. Juntos, criaram tangos clássicos espetaculares, como Cuesta Abajo, El dia que me queiras, Por una cabeza, Silêncio, Mi Buenos Aires querido, Golondrina, Soledad e outras maravilhas que iluminaram os sonhos de gerações de tangueiros apaixonados.

Há quem se engane quando pensa que esse ritmo, mistura de polca europeia, havaneira cubana, candombé uruguaio e de milonga espanhola só é apreciado por antigas gerações. Há movimentos contemporâneos que reavivam o tango, inclusive porque as letras são atuais. Por esse motivo, vale voltar à primeira estrofe de Cuesta Abajo – cuja livre tradução é “se arrastou por esse mundo a vergonha de ter sido e a dor de não ser mais”, e parece um profundo lamento de alguém que se envergonhava por não ter feito o que deveria quando tinha condições para isso e que agora sofria por não poder mais fazer.

Esse lamento deve ser ouvido pelas lideranças globais e nacionais. Todas as que hoje exercem cargos de destaque, não importa onde – na sociedade civil, nos Poderes constituídos, na academia –, precisam fazer o que deve ser feito enquanto podem, para não se arrependerem depois de sua omissão.

Há temas pendentes a este respeito em todas as frentes. O debate deve ser fomentado democraticamente para que decisões sejam tomadas.

A reforma política talvez seja a primeira barreira. Deve acabar a reeleição? Mandatos únicos coincidentes de 5 anos? Voto distrital misto? Redução do número de partidos e das cadeiras nos Legislativos?

A reforma do Estado, separando com clareza o que é governo e o que é Estado? Toda a agenda deve ser discutida porque é de interesse da nação. Não se trata de crítica ao funcionalismo público. Fui secretário de Agricultura em São Paulo e ministro no Brasil e conheci funcionários com grandes qualificações, competentes, dedicados, patriotas, ganhando muito menos do que mereciam e que seriam admirados e respeitados em qualquer empresa privada. O foco é outro: diminuir os gastos públicos.

Privatização é necessidade iminente na mesma direção? Então, tem de ser decidido o que privatizar em qualquer nível, e depressa.

A reforma tributária deve ser considerada em seguida e, felizmente, nosso Parlamento vai se ocupar dessa duríssima tarefa muito em breve.

Há uma questão crucial que efetivamente pode garantir o futuro do País: investimentos maciços em educação, ciência e tecnologia. Não haverá bem-estar social e muito menos riqueza em uma nação que despreze tais agendas. É hora de fazer o que deve ser feito por essas lideranças, para que os pósteros não lhes apontem o dedo acusador de assassinato do futuro.

Já devia ter sido feito no século 20, e não foi. Temos de fazer agora, e acabar com a corrupção ao custo que for, para não ouvirmos neste século 21 a trágica letra de Cambalache, de Discepolo:

“Siglo veinte, cambalache,
Problemático y febril…
El que no llora no mama
Y el que no afana es un gil.”

12 de março de 2021

ENQUANTO ISSO NO CHILE…!

(O Estado de S. Paulo, 10) A rápida vacinação contra covid-19 transformou o Chile aos olhos de investidores e analistas: de patinho feio, na virada do ano, para a estrela da América Latina com perspectiva cada vez mais animadora de crescimento econômico em 2021.

O governo chileno foi agressivo ao se antecipar e fechar contratos de compras de imunizantes contra o coronavírus em quantidades suficientes de vários laboratórios, além de eficiente na logística para garantir uma rápida vacinação.

Resultado: mais de 21% da população já recebeu a primeira dose da vacina, o que coloca o país andino entre os dez que mais vacinaram no mundo. E a meta do governo chileno é que, pelo menos, 80% da população esteja vacinada até junho, o que garantiria a chamada imunidade de rebanho. No Brasil, apenas pouco mais de 4% da população recebeu a primeira dose.

Esse avanço do programa de imunização permitiu ao governo chileno começar a afrouxar mais rapidamente as restrições à mobilidade social, acelerando a reabertura da economia. Diante disso, juntamente com a maior demanda por matérias-primas, como o cobre, do qual o Chile é o maior produtor mundial, vários economistas estão revisando para cima as suas projeções para o crescimento do PIB em 2021.

A consultoria Oxford Economics elevou de 6,1% para 6,4% a estimativa de crescimento do PIB chileno em 2021. O banco Jpmorgan revisou sua previsão de expansão de 5,4% para 5,9%. Tanto a consultoria Pantheon Macroeconomics quanto o banco Itaú BBA projetam um crescimento de 6,5% do PIB chileno neste ano. E, ontem, o FMI passou a prever um crescimento de 6% do PIB chileno em 2021.

É bom lembrar que, em razão do impacto da pandemia de covid, a economia chilena encolheu 6,1% em 2020, mas a recuperação tem sido rápida, com o PIB registrando expansão em sete dos últimos oito meses. Isso foi possível, em boa parte, porque o Congresso aprovou duas rodadas de liberação de saques dos fundos de pensão privados pelos chilenos, em quantia até 10% do patrimônio, o que minimizou o impacto da perda de renda com a pandemia, dando um impulso a setores como o comércio varejista.

Também vale mencionar que o preço do cobre já subiu mais de 15% em 2021, puxado pelo aumento das importações da China, cujo PIB foi o único a registrar crescimento positivo em 2020 entre as maiores economias mundiais. O desempenho do cobre vem limitando as perdas do peso chileno ante o dólar neste ano, em meio à turbulência da disparada das taxas de retorno dos títulos do Tesouro americano. A moeda americana acumula ganho de 3,2% em relação ao peso chileno, de 7,1% ante o peso mexicano e de 13% frente o real brasileiro.

Mas a mudança de humor aconteceu mesmo com o rápido avanço da imunização contra a covid. Uma pesquisa de opinião recente mostrou que 83% dos chilenos consideram o programa de vacinação bom ou muito bom. O índice de aprovação do presidente Sebastian Piñera subiu para 24%, ainda baixo, porém bem acima do seu menor nível, de 9%, registrados antes de a pandemia ter começado e ainda sob o calor dos violentos protestos de massa no país, deflagrados após aumento nos preços dos transportes públicos.

Aliás, era o cenário político que até o fim do ano passado deixava os analistas mais pessimistas em relação à confiança dos investidores sobre o desempenho econômico do Chile em 2021. Como reflexo dos protestos, um referendo autorizou a elaboração de uma nova constituição. No mês que vem, haverá eleição para a formação de uma assembleia constituinte.

O temor era de que a deterioração econômica, em razão da pandemia, poderia ser terreno fértil para a eleição de candidatos mais radicais que pudessem retroceder o caráter liberal e favorável ao ambiente de negócios da atual Carta, além de aumentar o tamanho do Estado.

Outro evento importantíssimo acontecerá em novembro: a eleição presidencial. Piñera, de centro-direita, não poderá concorrer à reeleição. E o medo também era de que candidatos mais à esquerda e considerados radicais pudessem vencer o pleito, levando a uma fuga de investidores.

Esse cenário ainda pode ocorrer. Até porque os protestos contra a desigualdade social estão frescos na memória dos chilenos. Mas a rápida recuperação econômica proporcionada pelo avanço acelerado da vacinação contra a covid reduziu o desconforto dos investidores e analistas com uma possível turbulência gerada pelo calendário eleitoral.

11 de março de 2021

PANDEMIA, ECONOMIA E DEMOCRACIA!

(Ernesto Lozardo – O Estado de S. Paulo, 10) Os efeitos econômicos, sociais e políticos globais da pandemia de covid-19 serão equivalentes aos da 2.ª Guerra Mundial. No mundo, a contaminação atingiu mais de 117 milhões de pessoas e morreram mais de 2,6 milhões. No Brasil, mais de 11 milhões de pessoas foram contaminadas e mais de 268 mil morreram. Esses números são crescentes.

A pandemia mostrou de forma inequívoca que o que era considerado ordem se tornou desordem global. A era do entendimento institucional entre as nações encerrou-se no mandato de Bill Clinton; no governo de Donald Trump, passou-se a ter a política da desconstrução das instituições.

O trato econômico dessa pandemia é desconhecido. Nunca se teve um choque de oferta e demanda junto. A solução está em acabar com a covid-19. Isso depende da ciência, não da economia. No entanto, a pandemia global revelou que o Ocidente está sem liderança aglutinadora que inspire unidade, confiança e respeito à autodeterminação das nações: democracia sem preconceitos. O governo de Joe Biden é uma centelha de esperança.

Essa realidade rúptil da política internacional, somada à crise econômica e às dificuldades de acesso às vacinas, certamente será um obstáculo na retomada do crescimento, dos investimentos e do emprego das nações. Existem mais de 50 vacinas sendo testadas em diferentes laboratórios no mundo. A disponibilidade delas será uma luz para amenizar a inquietude de muitos, mas não materializará a esperança do crescimento sustentável.

A sonhada rápida recuperação econômica do Brasil ficou mais distante por duas razões: a falta de vacinas para imunizar toda a população brasileira e a recente opção política do Executivo de encaminhar ao Congresso Nacional somente projetos que tenham apelo popular. A primeira decorreu do erro político de minimizar o impacto econômico da pandemia e discriminar ideologicamente a origem das vacinas. A segunda é mais grave, pois aumentará a desconfiança dos investidores em relação às reformas fiscal, econômica e administrativa, as quais representam os pilares do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), do emprego e da renda.

No ano passado, muitos países tiveram perda de riqueza. Ao compararmos essa perda em dólar nominal, a brasileira perdeu 25%, sendo a maior perda entre as dez maiores economias do mundo. Isso reflete não o potencial da economia, mas a qualidade da sua governança.

A sociedade entende que governos existem para governar, não para exercer o poder por mero prazer. Há um crescente inconformismo social em relação à gestão das instituições democráticas atual. Isso está ocorrendo em vários países ocidentais. Governantes e políticos têm exercido o poder em benefício próprio, desrespeitando a dignidade econômica dos cidadãos. Acirrou-se a desconfiança das sociedades em relação à representatividade das instituições democráticas. O populismo está se tornando uma força incontrolável, incitando regimes políticos autoritários, fascistas.

Mesmo neste dramático momento, encontramos países, independentemente do regime político, onde as lideranças governam com o respaldo da sociedade, não há populismo, respeitam as recomendações da ciência e apresentam elevado nível de governança econômica. Trata-se do Vietnã, da China, da Coreia do Sul e da Austrália, que saíram da crise pandêmica com rapidez e cujas atividades econômicas retornaram à normalidade.

A pandemia passará, mas deixará um rastro de incertezas políticas e econômicas sem precedentes no Brasil.