Em busca de vacina contra Covid-19, Cesar Maia volta à Cidade das Artes 13 anos depois

Luiz Ernesto Magalhães 06/04/2021.

O ex-prefeito do Rio Cesar Maia compareceu no posto de vacinação na Cidade das Artes Foto: Márcia Foletto / O Globo
O ex-prefeito do Rio Cesar Maia compareceu no posto de vacinação na Cidade das Artes Foto: Márcia Foletto / O Globo

RIO — O criador voltou para visitar a criatura 13 anos depois. O vereador e ex-prefeito Cesar Maia (DEM) pisou nesta terça-feira, dia 6, pela primeira vez na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio, desde que deixou o comando da cidade, em 2008. Com restrições ao público e poucos eventos desde o início da pandemia do Covid-19, no ano passado, o espaço foi convertido em posto de vacinação. Maia, que tem 75 anos, foi tomar a segunda dose da Coronavac, mas voltou para casa sem a imunização: se enganou em relação ao dia. No comprovante entregue ao ex-prefeito no Parque Olímpico, onde tomou a primeira dose, o retorno estava marcado para o dia 16, mas o número 1 meio apagado fez o ex-prefeito ser vítima de um ‘’golpe de vista’’, só percebido pela equipe de Saúde da administração atual. 

— Minha maior emoção foi voltar à Cidade das Artes — disse ele, antes de saber que não poderia tomar a segunda dose da Coronavac por uma médica do posto.

Médica do posto montado na Cidade das Artes alerta Cesar Maia que a data para segunda dose de vacina é outra Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Médica do posto montado na Cidade das Artes alerta Cesar Maia que a data para segunda dose de vacina é outra Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

O ex-prefeito chegou ao local às 7h20m, e era o sexto da fila. Enquanto esperava a abertura do posto, às 8h, ele conversou com servidores e até foi saudado por um popular com o cumprimento de “meu presidente”. Mais tarde, por e-mail, o ex-prefeito não explicou porque, apesar de gostar de óperas, jamais assistiu a uma montagem no local. Pessoas próximas dizem que, em parte, foi por motivos políticos. Ao deixar o cargo, viu o ex-aliado  Eduardo Paes (com quem se reconciliou posteriormente) ocupar a cadeira que foi sua durante oito anos. Depois foram mais quatro anos de Marcelo Crivella (Republicanos), com quem também não se aliou.

Mas os desentendimentos com Eduardo Paes, que começou na política como seu subprefeito da Barra da Tijuca, nos anos 1990, parece que ficaram para trás. Tanto que a Riotur, que funciona na Cidade das Artes, é presidida hoje por Daniella Maia, irmã gêmea do ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e filha do ex-prefeito.

Criação da Cidade das Artes

A Cidade das Artes foi um marco na carreira do ex-prefeito e uma das maiores polêmicas de seu terceiro mandato, e que contribuiu para deixar o cargo com sua imagem desgastada. O início do governo já havia sido problemático. Em 2005, uma crise na Saúde por falta de recursos levou a uma intervenção federal nos hospitais da prefeitura (depois julgada inconstitucional) abalou sua pré-candidatura à presidência da República. Foi então que Cesar Maia dedicou seus últimos meses de mandato para construir o complexo cultural. Depois de ver seu sonho de erguer uma filial do Museu Gugenheim, na Zona Portuária, impedido pela Justiça, ele projetou um espaço para ser uma das maiores salas de concerto do mundo como o marco do fim da gestão, em 2008.

Cesar Maia voltou à Cidade das Artes 13 anos depois de ter criado a obra na Barra Foto: Marcia Foletto / O Globo
Cesar Maia voltou à Cidade das Artes 13 anos depois de ter criado a obra na Barra Foto: Marcia Foletto / O Globo

Mas o orçamento da estrutura da Cidade da Música —  nome original da Cidade das Artes – projetada pelo arquiteto Cristian de Pontzamparc estourou quando a prefeitura decidiu reformular o projeto inicial. Em lugar de um prédio mais tradicional, decidiu-se que teria imensos vãos livres para destacar o prédio. Isso contribuiu para o aumento da despesa. Anunciado como um projeto que custaria R$ 60 milhões, quando só se tinha um esboço, a obra saiu por quase R$ 600 milhões (valores da época). 

— Eu vim aqui para dar uma simbologia ao mandato longo que eu tive. Se levarmos em conta o governo Conde, são 16 anos. No ano 430 a.c., Péricles fez o Paternon  e hoje todo mundo admira a obra. Em 130, Adriano construiu o Pantheon de Roma. Em 1650, o Taj Mahal foi construído e seu criador foi confinado pelo próprio filho porque ele queria fazer uma outra obra grandiosa do outro lado do Rio Agra. Eu coloco a Cidade da Música nesse nível — disser Cesar, ao visitar as obras do complexo em outubro de 2008, antes de ir votar.

07 de abril de 2021

LIMITES FREQUENTEMENTE ESQUECIDOS!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 05) A Constituição atribui ao presidente da República o poder de adotar, em casos de relevância e urgência, medidas provisórias (MPS) com força de lei. Essa atribuição é parte do sistema de pesos e contrapesos entre os Poderes, conferindo uma competência típica do Legislativo – editar atos com força de lei – ao Executivo, como forma de remediar uma situação relevante e urgente.

Ao mesmo tempo que atribui esse poder ao Executivo, a Constituição assegura que a decisão final sobre o tema é do Congresso. “As medidas provisórias (…) perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7.º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes” (art. 62, § 3.º).

A redação desse dispositivo foi dada pela Emenda Constitucional (EC) 32/2001, que limitou a uma única vez a prorrogação de medidas provisórias. Antes elas eram reeditadas sucessivamente, fazendo com que, na falta de apreciação do tema pelo Congresso, o governo federal acabasse legislando indefinidamente sobre o tema.

Além da proibição de várias reedições, a EC 32/2001 criou para as medidas provisórias outro importante limite, muitas vezes esquecido. Desde 2001, a Constituição define uma série de matérias que não podem ser objeto de medida provisória.

“É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a (i) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; (ii) direito penal, processual penal e processual civil; (iii) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; (iv) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3.º”, diz a Constituição, em seu art. 62, § 1.º, I.

A EC 32/2001 ainda proibiu a edição de medida provisória sobre matéria que “vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro”. Impedia, assim, que algum governo repetisse o que fez o Plano Collor em março de 1990, por meio de medida provisória.

Também se vedou medida provisória sobre matéria reservada à lei complementar ou que já estivesse “disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República” (art. 62, § 1.º, IV).

A Constituição também proíbe “a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo”. Essa proibição levou a que, em junho de 2020, o então presidente do Senado, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolvesse a MP 979/2020, que dava poderes ao ministro da Educação para nomear, sem ouvir as comunidades universitárias, reitores de universidades federais durante a pandemia de covid-19. No mesmo ano, o Congresso tinha rejeitado a MP 914/2020, que, entre outros assuntos, tratava da escolha de dirigentes de universidades federais.

Em 2019, Jair Bolsonaro tinha incorrido no mesmo erro, ao editar a MP 886/2019, que dispunha sobre demarcação de terras indígenas, tema já tratado na MP 870/2019. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu parte da MP 886/2019.

É sempre importante recordar as limitações constitucionais do poder. A tarefa reveste-se de especial relevância quando esses limites são continuamente testados. Até março deste ano, Jair Bolsonaro editou 172 medidas provisórias, e boa parte não cumpria os requisitos constitucionais de relevância e urgência ou tratava de temas alheios ao âmbito de uma MP.

As medidas provisórias podem ser muito benéficas para o País em casos de verdadeira relevância e urgência, fazendo o Congresso se debruçar sobre o assunto. Mas elas não são panaceia para a governabilidade, tampouco excluem a necessidade de o Executivo dialogar e negociar com o Legislativo – também porque, entre outras razões, vários temas não podem ser objeto de medida provisória. O Congresso deve estar atento.

EM REDE SOCIAL, RODRIGO MAIA RELEMBRA HISTÓRIA DE SEU PAI, PERSEGUIDO PELA DITADURA MILITAR

PUBLICADO EM 31/03/2021 POR AVENTURAS NA HISTÓRIA/UOL.

Na publicação, o deputado explica “que não há alternativas fora da democracia”.

Foto de Rodrigo Maia (à esq) e foto de documento postado pelo político (à dir.)
Foto de Rodrigo Maia (à esq) e foto de documento postado pelo político (à dir.) – Divulgação/Facebook/Rodrigo Maia

O dia 1º de abril de 1964 é marcado pelo episódio que resultaria em anos caóticos para o Brasil. Isso porque o golpe de Estado executado pelos militares derrubou o presidente João Goulart.

Como consequência, durante décadas, Atos Institucionais passaram a impedir a população de ser livre, sendo o mais implacável deles o Ato Institucional Número 5, que mergulhou o país em sua fase mais brutal. Tortura e perseguições eram rotina.

Anualmente, a data passou a ser lembrada não só para alertar as novas gerações, que pouco conhecem o período e são alvo de negacionismo histórico, mas também manter viva a trajetória de inúmeras pessoas que foram torturadas e mortas. Uma das homenagens foi feita por Rodrigo Maia, atual deputado federal pelo Rio de Janeiro.

Maia carrega em sua trajetória pessoal as consequências de um golpe político. Através de sua página oficial no Facebook, o político lembrou a história de seu pai, Cesar Maia, perseguido pelo período militar.

“Não é a primeira vez que falo da minha história. Sou filho de um brasileiro perseguido pela ditadura. Meu pai, Cesar Maia, exilou-se no Chile e lá conheceu a minha mãe, Dona Mariangeles. Eu e minha irmã Daniela, gêmeos, nascemos lá em 1970. Fomos registrados como brasileiros no consulado em Santiago”, disse o deputado no começo da publicação.

Em seguida ele explica que saiu do país em 1971, diante da ascensão do ditador Pinochet. “Meus pais conheceram a dor da separação forçada e o abuso da força da ditadura. Mostro a vocês essa imagem do relatório da Aeronáutica de 1974, onde aparece referência a mim no documento da ditadura. Nessa época, eu tinha 3 anos de idade”.

Documento publicado por Rodrigo Maia na rede social /Crédito: Divulgação/Facebook/Rodrigo Maia

Conforme divulgado pelo portal Metropolis em 2019, Cesar englobova o movimento estudantil (estuava engenharia em Ouro Preto, Minas Gerais). Quando representou seus colegas de faculdade no XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), se tornou alvo dos militares. Assim, foi condenado a uma pena de seis meses de reclusão. 

Na última parte da publicação, Rodrigo explica que o relato foi uma forma de alerta para que as pessoas não esqueçam das consequências de um período tão sombrio.

“Esse relato é para dizer o quanto meus pais sentiram na pele o terror da repressão e, ainda crianças, também fomos atingidos por esse horror chamado golpe militar, um período de dor em que muitos foram exilados, mortos, torturados. Precisamos lembrar dos 21 anos de ditadura para não esquecer que não há alternativas fora da democracia. #DitaduraNuncaMais”.

06 de abril de 2021

O DESPERDÍCIO DO FATOR HUMANO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 03) Com 14,3 milhões de desempregados no trimestre encerrado em janeiro, o Brasil teve uma passagem de ano especialmente penosa para os pobres e agourenta para a maior parte dos negócios. Perdido o primeiro trimestre, o governo só nos próximos dias voltará a pagar o auxílio emergencial. Com isso poderá atenuar a fome e dar novamente algum impulso ao consumo e à produção. Sem Orçamento, sem rumo e aparentemente sem perceber o desastre do dia a dia, a equipe econômica deixou perder-se a recuperação iniciada em maio e já enfraquecida nos três meses finais de 2020. As condições do emprego mostram bem as limitações dessa reação, agora dificultada também pelo forte aumento dos preços no varejo.

A desocupação, o subemprego e o desestímulo a grandes parcelas da força de trabalho compõem uma forma especialmente grave de desperdício. A ociosidade dos trabalhadores pode ocasionar mais que os dramas facilmente visíveis na experiência diária e diminuição do potencial de consumo. Quando prolongado, o desemprego pode também resultar em desatualização e desqualificação da mão de obra – um obstáculo a mais ao desenvolvimento da economia. Por isso, o investimento em requalificação é uma das políticas necessárias depois de longos períodos de desocupação.

O desemprego de 14,2% da força de trabalho, na virada de ano, é apenas o aspecto mais visível desse drama econômico e social. O quadro fica mais feio quando se adicionam 5,9 milhões de pessoas desalentadas – sem ânimo para continuar buscando uma colocação – e outros grupos com potencial de trabalho subempregado ou simplesmente perdido. Tudo somado, a população subutilizada chegou a 32,4 milhões de indivíduos, ou 29% da população economicamente ativa. Este é um número muito mais adequado que a taxa de desemprego para dimensionar o desperdício de mão de obra.

Mas é preciso olhar outros detalhes para avaliar as limitações do consumo e das possibilidades de progresso individual e familiar. O nível de ocupação chegou a 48,7% das pessoas em idade de trabalhar, com aumento de 0,7 ponto porcentual em relação ao trimestre anterior. Mas esse aumento ocorreu principalmente no segmento informal, onde se acomodaram 34,1 milhões de trabalhadores no período de novembro a janeiro. O número de trabalhadores sem carteira assinada aumentou 3,6% no setor privado, taxa equivalente a 339 mil pessoas, de um trimestre para outro.

A taxa de informalidade subiu de 38,8% para 39,7%, ficando pouco abaixo daquela registrada um ano antes. Participam da informalidade tanto os empregados sem carteira assinada quanto trabalhadores por conta própria sem registro oficial. Baixo rendimento, benefícios assistenciais escassos ou nulos e contratação precária constituem algumas das condições da ocupação informal.

“A perda de força no crescimento da ocupação vem principalmente da menor expansão na indústria, no comércio e na construção”, disse a pesquisadora Adriana Beringuy, ao apresentar os dados do último levantamento do IBGE. Ainda assim, o aumento da população ocupada, no período de novembro a janeiro, é em boa parte explicável pelas contratações adicionais ocorridas no fim de ano, embora o crescimento das vendas tenha sido mais fraco que em outros anos.

Mesmo com a recuperação econômica iniciada em maio, a desocupação continuou bem maior que no período anterior à crise deflagrada pela pandemia. No trimestre móvel terminado em janeiro de 2020 havia 11,9 milhões de desempregados, ou 11,2% da força de trabalho. Os subutilizados eram 23,2%. O desemprego era bem maior que o da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), praticamente o dobro.

O quadro já era muito ruim, porque o governo do presidente Jair Bolsonaro quase nada fizera, no primeiro ano de mandato, para impulsionar a atividade econômica. Em 2019 o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou 1,4%, tendo avançado 1,6% no ano anterior. A economia já andava mal antes da pandemia, assim continua e o desemprego persistente é a consequência mais dramática.

05 de abril de 2021

A HORA SE APROXIMA!

(Fernando Henrique Cardoso – O Estado de S. Paulo, 04) A única vantagem que os mais velhos podem eventualmente ter é que já viveram situações difíceis. Elas não deixaram saudades. Os que se aproximam dos 90 anos (questão de três meses no meu caso), passaram pela 2.ª Grande Guerra; viram a migração do Nordeste tocada pela pobreza e, mais tarde, a do Sul, abrindo fronteiras no Oeste e ocupando terras; passaram pelo golpe de 1937, viram outra vez, de lado político distinto, o movimento de 1964 (em ambos os momentos carreiras foram cortadas e, mesmo, vidas ceifadas, às vezes pela tortura) e viram a democracia voltar a ser um valor. A liberdade é como o ar que respiramos: sem nos darmos conta, é dele que vivemos. Basta cortá-lo para aparecerem consequências nefastas.

Daí que eu veja com apreensão o momento atual. O País sofre uma crise sanitária gravíssima (talvez só comparável ao que aconteceu na “gripe espanhola” em 19181919); ainda está com as dificuldades econômicas, devidas não apenas à recessão, mas também à utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra, as quais, sem que haja dinamismo na produção, mostram com clareza as dificuldades para a obtenção de empregos. E, ainda por cima, temos um governo que não oferece o que mais precisamos: serenidade e segurança no rumo que estamos seguindo.

Nem tudo se deve à condução política do presidente da República. Convém repetir: ele foi eleito pela maioria e disse o que faria… Fez. E não deu certo. Em razão disso, para onde vai o País?

Primeiro, não julgo que seja suficiente distribuir “culpas”. Há várias culpas e vários culpados, interna e externamente. Sejamos realistas: ainda que o presidente fosse capaz de conter os seus ímpetos, não nos livraríamos do vírus que nos atormenta. Mas poderia haver menos mortos. A credibilidade dos que mandam é quase tão eficaz para conter desatinos como a competência dos serviços de saúde para evitar mortes.

A semana que passou dava a sensação (a meu ver, falsa) de que corríamos o risco da volta ao autoritarismo. O símile com situações autoritárias do passado não ajuda a entender as opções disponíveis. Houve, sim, uma forte movimentação de comandos militares. Mas, para dizer em termos simples, trocamos seis por meia dúzia.

Cada chefe militar tem, é natural, suas características e suas manias. Nenhum dos atuais comandantes, antigos ou novos nos postos, imagina que “um golpe” resolva a situação. Não sei o que se passa na cabeça presidencial, mas, ainda que desejasse um “golpe”, com que roupa? Basta ler as declarações dos militares que partiram ou dos que chegaram: quase todos falam em respeitar a Constituição e agir dentro da lei.

Não me parece haver clima, no País e na parte do mundo a que estamos mais vinculados, para aventuras. Dado o porte de nossa economia e a quantidade de questões sociais e econômicas a serem enfrentadas, por que uma pessoa razoável aumentaria as nossas angústias? E as que não são razoáveis? Estas precisam dispor de um clima favorável a suas loucuras, o que não me parece ser o caso.

Sendo assim, aumenta a responsabilidade de cada um dos cidadãos: devemos dizer, com firmeza, sim ao que queremos e não ao que nos assusta. Não é hora de calar, nem de fazer algazarra. Aproveitemos o quanto possível para, com equilíbrio, mostrar a insensatez de concentrar poderes nas mãos de quem quer que seja, pessoa ou instituição.

Defendamos a Constituição da República, que é democrática, e saudemos os políticos que creem que é melhor apoiar quem possa chegar à Presidência sem representar um extremo. Apresentemos aos brasileiros, quanto antes, um programa de ação realista, que permita juntar ao redor dele os partidos e as pessoas para formar um centro que seja progressista, social e economicamente. Centro que não pode ser anódino: terá lado, o da maioria, o dos pobres; mas não só, também o dos que têm visão de Brasil e os que são aptos para produzir.

Quem personificará esse centro? É cedo para saber. É cedo para “fulanizar”, como diria Ulysses Guimarães. Mas é hora de promover a junção das forças capazes de se contrapor a eventuais estrebuchamentos autoritários, antes que surjam propostas que nos levem a eles.

Vejo que alguns políticos se dispõem a agir para evitar que a mesmice predomine. Pelo menos é o que deduzo das declarações recentes de vários líderes da vida brasileira. A eles juntarei minha voz. Sei das minhas limitações e não tenho a ilusão de que, ao escrever que a eles me juntarei, a situação mudará. Mas se cada um dos brasileiros se dispuser a falar e a agir, é de esperar um futuro melhor.

Na política, como na vida, ou se acredita que é possível mudar e obter uma algo melhor, ou se morre por antecipação. Continuemos, pois, vivendo: propondo mudanças, sempre com a expectativa de que elas possam ser realizadas e com elas o Brasil ficará melhor.

01 de abril de 2021

UM BALANÇO DO INSTITUTO DA COLABORAÇÃO PREMIADA NA LAVA JATO DO RIO DE JANEIRO!

(Almir Teubl Sanches, Procurador da República lotado na Força-Tarefa da Lava Jato do Rio de Janeiro desde 2017 – Folha de S.Paulo, 31) O instituto jurídico da colaboração premiada, em seu formato atual, foi criado em agosto de 2013 e ajudou a revolucionar o combate ao crime organizado, em especial o de colarinho branco. E a força-tarefa da Lava Jato do Rio de Janeiro, que se encerra neste dia 31/3, conviveu intensamente com ele, em quase 5 desses 8 anos, lidando com suas enormes possibilidades e não menores desafios.

A colaboração premiada surgiu para tentar reverter um quadro desolador. A impunidade era quase uma certeza. Dois aspectos ilustram esse cenário.

Primeiro, era muito difícil que os esquemas de colarinho branco fossem inteiramente descobertos; as investigações em geral estancavam em agentes periféricos, quase nunca alcançando os líderes da organização criminosa.

Em segundo lugar, mesmo que a investigação avançasse, era quase impossível recuperar o dinheiro ilícito.

A lei que cria a colaboração premiada remete a estes dois problemas, exigindo como um de seus resultados a identificação dos demais agentes criminosos, a revelação da estrutura hierárquica e divisão de tarefas da organização criminosa e a recuperação total ou parcial dos valores dos crimes praticados pela organização.

E a experiência da força-tarefa do Rio comprova que, se bem utilizado, o acordo de colaboração premiada é ferramenta eficaz para auxiliar nestes resultados.

Foram 55 operações deflagradas, que culminaram com 105 ações penais e 894 pessoas denunciadas, muitas das quais ocupavam as mais altas hierarquias de esquemas de corrupção e de lavagem de dinheiro, tanto do setor público, quanto do setor privado, nas mais diversas áreas.

Também com relação aos valores recuperados, os resultados são expressivos. A soma dos valores de acordos de colaboração da da força-tarefa do Rio é de quase R$ 3,9 bilhões. Valores que voltam aos cofres públicos.

Esse resultado foi alcançado apesar do cenário inicial de quase certeza da impunidade, que, naturalmente, diminui o interesse de investigados em celebrar acordos e dificulta os termos em que eles são negociados. Em um cenário de menor confiança na impunidade, há um futuro ainda mais promissor para novos acordos.

Além dos valores recuperados em acordos, a da força-tarefa do Rio requereu a condenação em reparação de mais de R$ 11,5 bilhões nas ações penais em curso, e mais de R$ 4 bilhões nas ações de improbidade já ajuizadas.

Tudo isso foi alcançado com absoluto respeito aos direitos fundamentais de colaboradores e de delatados.

Quanto aos colaboradores, os acordos sempre partiram de sua iniciativa espontânea, sempre na presença de seu defensor constituído, sendo a enorme maioria dos casos negociados com o investigado solto.

Quanto aos delatados, nunca se aceitou isoladamente narrativa de colaborador. Sempre se exigiu que a narrativa fosse confirmada por robustas provas de corroboração.

Mais do que isso, mesmo confirmada por provas, a narrativa sempre foi tomada apenas como ponto de partida, dela se desenvolvendo profunda investigação, combinando diversas técnicas de apuração, até que restassem provas evidentes dos crimes cometidos e sua autoria.

A força-tarefa do Rio sempre tratou com irresignável seriedade o interesse público que representava, talvez por isso conseguindo resultados tão expressivos. Cinco dos sete acordos maiores acordos de colaboração da história do país, com relação a pena pecuniária, foram negociados pela força-tarefa do Rio. Muitos deles os maiores, quando celebrados.

Os valores destes acordos foram de aproximadamente R$ 330 milhões, R$ 370 milhões, R$ 380 milhões, R$ 800 milhões e R$ 1 bilhão. Tais sanções pecuniárias sempre foram acompanhadas de significativas penas corporais, havendo acordo que prevê cumprimento de pena privativa de liberdade de 18 anos.

Transacionar representando o interesse público não é tarefa simples. Para tanto, a da força-tarefa do Rio sempre buscou estabelecer critérios objetivos, definindo as condições dos acordos de acordo com a gravidade dos crimes cometidos, o momento em que se buscou a colaboração, a magnitude dos valores ilícitos envolvidos, a quantidade de informações e provas trazidas pelo colaborador.

Tais conquistas, que retratam a história da da força-tarefa do Rio, são méritos de todo o Ministério Público Federal, que soube usar do instrumento da colaboração premiada. E de todos os Poderes constituídos, Executivo e Legislativo que souberam criar o instituto, em 2013, e Judiciário que soube interpretá-lo posteriormente.

É nefasto qualquer discurso que, a pretexto de defender o combate à corrupção, vocifere sua sanha autoritária contra as instituições democráticas. É por meios dessas instituições que a sociedade brasileira deve zelar para que institutos jurídicos eficazes, como o da colaboração premiada, sejam preservados e fortalecidos.

31 de março de 2021

ARRANCADA RÁPIDA!

(Luiz Carlos Trabuco – O Estado de S. Paulo, 29) Alta maior da Selic evita que uma inflação transitória se transforme numa inflação inercial, mais difícil de erradicar.

O Banco Central surpreendeu o mercado com uma largada acelerada na elevação dos juros. Aumentou a taxa básica em 0,75 ponto porcentual, acima das projeções dos analistas, e anunciou outro aumento de igual magnitude na próxima reunião, em maio. Foi uma decisão difícil, porém acertada. Conhecida como Selic, a taxa básica serve para balizar o custo do dinheiro nas transações realizadas na sociedade. No sistema financeiro, é a taxa de juros de um dia que determina a inclinação da curva de juros para frente. Quando está muito baixa, pressiona a parte mais longa da curva para cima; se está alta demais, a curva de juros se achata, podendo inclusive ficar negativa em alguns casos.

Os juros altos têm inconveniências, entre elas tornar a rolagem da dívida pública mais cara e aumentar o custo do crédito. Como a atividade econômica está anêmica e o desemprego elevado, eis a dúvida: o efeito do juro mais alto não agravaria o quadro?

Essa decisão, porém, seguiu a prescrição técnica. A desvalorização cambial e o aumento das cotações das commodities impactaram os preços internos de forma transitória, mas influenciaram nas expectativas de inflação para este ano e o próximo. A elevação dos juros deve arrefecer essa pressão nos preços e a volatilidade da taxa de câmbio.

O nosso alento é o cenário externo positivo. Apesar das incertezas, as indicações são de um início de crescimento vigoroso no exterior. O Banco Mundial projeta 4%; todavia, pode ser maior. Um destaque é o pacote de estímulos fiscais aprovado nos Estados Unidos, que deve impulsionar a economia americana e a mundial.

Isso ajuda num momento de incertezas no cenário interno. Na margem, os números são positivos. Em janeiro, o IBC-BR, que é a estimativa do PIB mensal feita pelo Banco Central, mostrou uma alta acima das expectativas do mercado e a abertura de vagas de trabalho apresentou recuperação forte. As incertezas são a evolução da pandemia no País, o ritmo de vacinação e a dinâmica fiscal.

A questão central dos juros é a calibragem. Mesmo com as duas altas de março e maio (prevista), a taxa de juros real continuará negativa. Há vantagens a considerar numa alta maior que a esperada pelo mercado. A primeira é que afasta com mais segurança a alta de preços temporária e evita que uma inflação considerada transitória se transforme numa inflação inercial, mais difícil de erradicar e com consequências duradouras.

Outro benefício é que uma alta mais forte encurta o ciclo de ajustes. Um processo de elevação demorado tem o custo de juros altos por mais tempo e pode até ter uma taxa máxima maior do que a de uma política mais contundente. Dessa forma, o custo social do ajuste monetário é mais curto. Considerando prós e contras, melhor não correr riscos.

O papel do Banco Central é calibrar a taxa para cumprir a meta de inflação. Analisa indicadores econômicos, pondera os riscos e as incertezas. O espaço de manobra do BC é estreito e depende de inúmeras variáveis fora de seu controle, como a pandemia, o estado da economia internacional, o andamento das reformas e o ajuste fiscal.

A evolução da dívida pública é outra preocupação. Estabilizou-se no ano anterior à pandemia, quando também foi aprovada a reforma da Previdência, colocando-a numa trajetória melhor. A queda do PIB e o auxílio emergencial a levaram para outro patamar, acima. A questão agora é evitar que fuja do controle e o País entre num círculo vicioso de juros mais altos e crescimento baixo.

Nesse cenário inquietante, a vacinação e as reformas representam o centro definidor. O andamento positivo nas votações do Congresso e a aceleração do ritmo da vacinação podem dar tração à atividade econômica e acomodar as expectativas em relação ao câmbio – com efeitos diretos na inflação. É a porta para o País entrar num círculo virtuoso de juros baixos sustentáveis, mais crédito, mais investimento e melhorias nos indicadores sociais.

E o mais importante: para preservar vidas.

30 de março de 2021

A ESQUINA DO FUTURO!

(Luís Eduardo Assis – O Estado de S. Paulo, 29) Após a pandemia, haverá uma geração a quem será privado o conhecimento e, desta forma, o exercício pleno da cidadania.

Já dizia o escritor inglês H. G. Wells: a história da civilização é uma disputa entre a educação e a barbárie. A ideia de que é preciso desvendar mistérios através de métodos científicos é relativamente recente na história da humanidade, mas sem ela não teríamos conseguido os extraordinários avanços dos últimos séculos. Demoramos milhares de anos para aprender que o avanço do conhecimento nos torna melhores. O método científico – que ainda hoje alguns apalermados refutam – é indissociável da ideia de progresso, algo também recente do ponto de vista histórico. Há enorme correlação entre o índice de desenvolvimento humano e o nível de educação dos países. Soa como uma platitude, mas aqui em terras tabajaras a necessidade de fazer avançar o nível educacional só encontra consenso na sua manifestação genérica e superficial. Ninguém se diz a favor da ignorância, mas as políticas públicas para combatê-la acabam esbarrando na falta de recursos, na incúria da elite e na cristalização de interesses corporativos. Gastamos pouco, gastamos mal e os resultados beiram a calamidade. O exame Pisa, realizado a cada três anos, teve sua última edição em 2018 e avaliou o desempenho acadêmico de jovens de 15 anos em 79 países. O Brasil ficou em 59.º em leitura, 67.º lugar em ciências e 73.º em matemática.

Tudo sugere que a pandemia teve um impacto devastador sobre um esforço que já rendia poucos frutos. Estudo da Unicef divulgado em janeiro mostra que aumentou a evasão escolar durante a pandemia. Em 2019, o IBGE identificou uma taxa de abandono de 2,2% entre crianças e jovens de 6 a 17 anos. Já em outubro de 2020, o porcentual registrado pela Unicef foi de 3,8%, ou seja, 1,38 milhão de pessoas não frequentavam a escola. A este contingente devem ser acrescentados outros 4,1 milhões que afirmaram estarem matriculados, mas não participaram de nenhuma atividade nas escolas. O abandono escolar atinge mais os alunos pobres, cujo atendimento já era insatisfatório e que não tiveram acesso ao ensino remoto. Uma tragédia dentro de um drama. Em estudo divulgado em julho de 2020 (Consequências da Violação do Direito à Educação), o Insper estimou que, em 2018, 557 mil jovens com 16 anos não concluíram a educação básica. Isto vai provocar uma perda de renda ao longo de toda a vida laboral de cada um destes jovens de R$ 395 mil, o que significa que o custo total do abandono escolar para esta faixa etária alcança a cifra astronômica de R$ 220 bilhões. Para efeito de comparação, o orçamento do MEC para a Educação Básica em 2020 foi de R$ 42,8 bilhões (aliás, 34% menor que o de 2012).

O problema das consequências é que elas chegam depois, já dizia Marco Maciel. O que o governo tem a dizer sobre o abandono escolar provocado pela pandemia? Se o sistema educacional brasileiro já vinha mal antes como evitar que fique ainda pior? O Ministério da Educação não tem planos – nem sequer diagnóstico. No meio da tragédia da covid-19, gastou tempo e esforços na busca da regulamentação do ensino domiciliar, uma abjeta excrescência ideológica. Para um governo que recusa o passado e não reconhece o presente, pensar a longo prazo é um luxo inacessível. A propósito, qual é mesmo o nome do atual ministro da Educação? Quando a pandemia arrefecer, malgrado o descaso do presidente, voltaremos a frequentar pizzarias, mas os jovens que nos entregam as pizzas hoje não voltarão para as escolas. Haverá uma geração a quem será privado o conhecimento e, desta forma, o exercício pleno da cidadania. Não se trata apenas de fomentar a ignorância; é a barbárie que está à espreita. Há um despacho na esquina do futuro, já dizia Marcelo Yuka.

29 de março de 2021

VERDADEIRO DESASTRE PARA A AMÉRICA LATINA PODE VIR EM 2021!

(Brian Winter – Americas Quarterly – O Estado de S. Paulo, 28) Em toda a América Latina, 2021 ainda está sendo saudado como um ano de recuperação. Depois que a região foi responsável por 28% das mortes confirmadas de covid no mundo, no ano passado, e sofreu sua pior contração econômica anual (-7,4%) desde 1821, no contexto das guerras pela independência, a maioria dos políticos e líderes empresariais acreditam que o pior já passou.

Sim, surtos recentes no Brasil, no Chile e em outros países causaram um novo aumento nas mortes e lockdowns. Mas, teoricamente, o ritmo da vacinação deve se acelerar ao longo do ano. A maioria dos governos viu sua popularidade se manter estável ou até aumentar, e há poucos sinais dos protestos em massa que sacudiram a região antes que a pandemia expulsasse as multidões das ruas. “Acho que estamos muito perto da linha de chegada”, um político me disse recentemente. “Poderia ter sido bem pior.”

Mas vários estudos publicados este mês contam uma história bem diferente: a covid-19 abalou a América Latina em um grau maior do que muitos imaginam, e a sensação de condescendência pode estar condenando a região pelos próximos anos. Esses estudos mostram a gravidade com que a pandemia atingiu grupos vulneráveis, como mulheres, negros e trabalhadores informais, e alertam que a recuperação provavelmente os deixará ainda mais para trás.

Os bancos da América Latina podem estar mais frágeis do que geralmente se reconhece, e a conversa animada sobre a transferência das cadeias de suprimentos da Ásia após a crise até agora continua sendo só uma conversa. As escolas ainda ficarão fechadas em maior número do que em qualquer outro lugar do mundo, arriscando criar uma verdadeira “geração perdida” – e deixando as economias sem um motor mais claro de crescimento, pois a região envelhecerá rapidamente nas décadas de 20 e 30.

É verdade que as coisas poderiam ter sido piores. Auxílios emergenciais na forma de transferências em dinheiro chegaram a 61% dos latino-americanos em 2020, quase o triplo do porcentual de pessoas que recebiam tais pagamentos antes da pandemia, de acordo com um novo relatório da Cepal, a comissão econômica da ONU para a América Latina.

O tamanho e a duração dos auxílios variaram muito e desafiaram os estereótipos ideológicos: os governos de direita do Brasil e do Chile ofereceram o apoio mais generoso, mais que o dobro em termos relativos do que seus colegas de México, Argentina e Bolívia. No todo, a pobreza na região aumentou “apenas” cerca de 3 pontos porcentuais, para 33,7% da população, o nível mais alto desde 2006 e uma tragédia por si mesma. Mas a Cepal calculou que, sem os programas de ajuda, a pobreza teria mais que dobrado.

Logo abaixo da superfície, no entanto, existem disparidades vastas e crescentes naquela que já era a região mais desigual do mundo. Em 2020, o quintil mais rico dos latino-americanos viu sua renda cair apenas 7%, em média, e seu desemprego quase não aumentou. Já o quintil inferior viu sua renda cair impressionantes 42% e seu desemprego crescer 5 pontos porcentuais.

As mulheres abandonaram a força de trabalho a taxas maiores do que os homens em 9 dos 12 países estudados pela Cepal, que também descobriu que os negros no Brasil tinham apenas metade da probabilidade dos brancos de continuar trabalhando de suas casas.

É provável que o maior desastre de todos tenha sido enfrentado por mais da metade dos trabalhadores latino-americanos que trabalham no chamado mercado informal. Em países como México, Brasil e Costa Rica, mais de 70% da perda total de empregos em 2020 ocorreu nesse setor. Esses trabalhadores já tinham pouca ou nenhuma rede de segurança – e imediatamente enfrentaram a fome, a falta de moradia ou algo ainda pior.

E é aí que o trem da recuperação realmente começa a descarrilar. Tanto a Cepal quanto o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em seu recémpublicado relatório macroeconômico anual, destacam a probabilidade de que, caso se mantenham as tendências atuais, a recuperação econômica seja fraca – e a maioria dos empregos futuros seja criada no setor informal. Isso significa uma vida mais precária para milhões de latino-americanos e taxas de pobreza que ficarão insistentemente altas.

Enquanto isso, a maioria dos governos, incluindo o do Brasil, reduziu ou eliminou os programas de ajuda de 2020, deixando milhões sem proteção, em grande parte por causa do medo de agravamento de uma crise fiscal. Os temores são reais: a dívida pública média da região disparou de 58% para 72% do PIB no ano passado, e o cenário básico do BID é que continue a aumentar, chegando a 76% até 2023.

É importante notar que os EUA estariam enfrentando um cenário igualmente desolador se não fossem abençoados pela moeda de reserva mundial – e, portanto, a capacidade (aparente?) de imprimir trilhões de dólares sem grandes consequências. Mas a América Latina, com sua longa história de credores rígidos, está sob uma rédea mais curta do que a maioria das outras regiões. Ainda não está claro se isso resultará em uma onda de inadimplência da dívida soberana, como na década de 1980; mas o relatório do BID trouxe uma seção que faz uma retrospectiva daquela “década perdida”, argumentando essencialmente que, se for necessário fazer reestruturações, quanto mais cedo melhor.

O BID também advertiu sobre uma “falsa sensação de segurança” no sistema financeiro da região, citando vários sinais de alerta nos últimos meses, apesar dos balanços aparentemente saudáveis. A inflação está aumentando em alguns países, mesmo com as economias ainda estagnadas. O Brasil subiu as taxas de juros recentemente pela primeira vez desde 2015, em 0,75 ponto porcentual.

Por fim, tem a tragédia em curso nas escolas. Cerca de 114 milhões de alunos na América Latina e no Caribe, ou cerca de 80% do total, ainda não podem frequentar a escola presencialmente, de acordo com um relatório divulgado na quarta-feira pelo Unicef. É de longe o maior número do mundo, e a expectativa é que pelo menos 3 milhões desses estudantes – e possivelmente muitos mais – nunca mais voltem às salas de aula. Apenas uma fração dos alunos conseguiu frequentar efetivamente a escola pela internet, e os estudos sugerem que milhões de jovens no ensino fundamental já perderam as habilidades básicas de leitura e matemática.

Isso está revertendo uma das grandes histórias de sucesso (e motores de crescimento econômico) da região nos últimos 30 anos: o crescimento da educação primária, secundária e universitária. O Banco Mundial calculou que a crise educacional poderia reduzir cerca de 10% dos ganhos futuros dos latino-americanos, um valor insondável de US$ 1,7 trilhão.

Como sempre na América Latina, é importante não cair na armadilha do fatalismo. A história mostra que este sempre foi um lugar de altos e baixos. É possível que a recente alta nos preços do petróleo, cobre e outras commodities impulsione as economias exportadoras da América do Sul e um boom econômico pós-estímulo nos EUA dê um impulso imediato ao México e à América Central.

Alguns governos parecem compreender a magnitude dos desafios, enquanto algumas pessoas no setor privado, na sociedade civil e na mídia continuam cobrando mudanças. Mas, em face dessa inércia avassaladora, praticamente todas as outras razões para esperança que citei no ano passado se erodiram, especialmente a educação.

Na verdade, é difícil escapar das seguintes conclusões: 1) muitas elites latino-americanas, por terem passado pela covid mais ou menos ilesas, não estão conseguindo entender que 2021 não é o momento de relaxar e declarar a vitória sobre a pandemia; 2) a maioria dos presidentes da região e outros líderes políticos, tanto à esquerda quanto à direita, parecem satisfeitos em simplesmente reciclar ideias fracassadas das décadas de 60 e 70 ou focar nas próximas eleições, em vez de pressionar com urgência as reformas modernizadoras que poderiam impulsionar o investimento e a criação de empregos de qualidade; 3) os mais vulneráveis da região, relativamente blindados em 2020, agora podem estar abandonados à própria sorte.

O crescimento na América Latina ficou estagnado durante anos, mesmo antes da pandemia, e a renda per capita já caiu aos níveis de meados dos anos 2000, segundo a Cepal. É uma região que não está pegando fogo – pelo menos não por enquanto –, mas que mais parece um sonâmbulo andando em direção ao abismo na renda e na qualidade de vida. Se seus líderes não acordarem – e rápido – podemos muito bem olhar para as decisões tomadas e não tomadas durante 2021 como algo ainda mais desastroso do que os eventos de 2020.

26 de março de 2021

EDUARDO PAES: O SOL HÁ DE BRILHAR MAIS UMA VEZ!

(Eduardo Paes – O Globo, 25) Tem início na sexta-feira (26 de março) um período de dez dias até o Domingo de Páscoa (4 de abril) que será um tempo de reclusão forçada, de recolhimento, determinado por nós por força das necessidades impostas pela pandemia que ainda se faz presente. Uma medida dura, sabemos todos, mas que é mais do que necessária conforme orientação firme do Comitê Científico, formado por especialistas de diversas áreas, que norteia as decisões da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro em tempos tão difíceis. E é necessária porque não há nada que valorizemos mais do que a vida dos cariocas e das cariocas, que são a razão de ser dessa cidade.

É da preservação de vidas que estamos falando. E foi pensando, também, na preservação de vidas, e no sustento das famílias cariocas, que lançamos na última quarta-feira um programa que destinará para cerca de 900 mil pessoas aproximadamente R$ 100 milhões nos próximos dias: porque há urgência.

E porque há urgência – no combate ao coronavírus, no combate à fome, ao desemprego e às dificuldades geradas com esse período de reclusão que estamos impondo – é que fazemos o apelo: vamos juntos atravessar esses dez dias com o espírito da solidariedade norteando nossos passos em direção ao Domingo de Páscoa.

E solidariedade nesses dias está intimamente ligada à sobrevivência, a cuidados capazes de preservar a saúde de todos nós enquanto aguardamos a imunização por meio das vacinas que estamos recebendo e imediatamente disponibilizando. Não viveremos um feriadão, com se tem dito e como nos acostumamos a viver. Feriados sempre foram sinônimo de festa, de aglomeração, de praias cheias, e tudo o que não precisamos (e não podemos) fazer nesses dias é isso. Façamos, cada um, nossa festa particular e silenciosa, cada um a seu modo, a fim de que possamos desafogar nossa rede de saúde, próxima do colapso apesar dos esforços que fazemos desde o primeiro dia de nosso governo, aumentando imensamente nossa capacidade de atendimento.

Mantenhamos firme nosso propósito de seguirmos vivos até que a vacina chegue a cada um de nós. O Rio é referência na matéria e temos ampla condição de vacinar a população com presteza e rapidez.

A Prefeitura do Rio vai seguir nesse mesmo caminho: vacinando seu povo, ouvindo os especialistas e chamando os cariocas para a missão da superação das dificuldades que sempre superamos juntos, fossem quais fossem os revezes. Conto com vocês e vocês podem contar comigo. O sol, podem estar certos, há de brilhar mais uma vez.

25 de março de 2021

PÁRIAS, PATETAS E PREPOTENTES!

(Elio Gaspari – Folha de S.Paulo, 24) Está nas livrarias a prova acabada dessa patetice. É o volume “Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil”, do embaixador Synésio Sampaio Goes Filho.

Synésio é tudo o que o ministro Araújo ainda não conseguiu ser. Erudito, estuda a diplomacia brasileira e uma questão que pouca gente procura conhecer: Como é que Portugal ficou com a Amazônia? Afinal, pela linha do Tratado de Tordesilhas (1494), suas terras paravam na foz do Amazonas. Diplomata, chefiou as embaixadas em Bogotá, Lisboa e Bruxelas. Além disso, presidiu a Fundação Alexandre de Gusmão, que foi uma usina de produção cultural do Itamaraty.

Foi porque, desde a chegada de Araújo, deixou de ser. Pela Fundação, o embaixador já havia publicado “Navegantes, bandeirantes, diplomatas”. (O livro está na rede, de graça.)

Em 2019 a Fundação recusou-se a publicar o “Alexandre de Gusmão”. Teria sido pressão da Espanha, que perdeu as terras pelo Tratado de Madri, de 1750? Talvez algum descendente do Marquês de Pombal, que azucrinava Gusmão? Nada. O livro de Synésio Sampaio não podia ser publicado porque tinha um prefácio do embaixador Rubens Ricupero, um ex-chanceler, ex-embaixador em Washington e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento. Motivo murrinha, coisa de patetas prepotentes. Como era de se prever, o livro saiu por uma editora privada, a Record.

O Brasil tem o formato de um presunto graças a grandes homens e à sabedoria de Lisboa. Para começar, há a figura de Pedro Teixeira. Um português que em 1637 saiu do Pará com 47 canoas e chegou a Quito. No caminho fundou o povoado de Franciscana, nos confins do oeste do vale amazônico. Achava-se que havia por ali um “Rio do Ouro”.

Em 1746 o paulista Alexandre de Gusmão, formado em Coimbra e em Paris, começou a cuidar das negociações do Tratado de Madri. Quatro anos depois Espanha e Portugal se acertaram e o Brasil ficou com o vale do Amazonas. Com essa e outras expansões, ficou dois terços maior.

Os mapas mandados por Gusmão desenharam três mil quilômetros da fronteira do Norte num texto de 66 palavras. Ele fez concessões nas fronteiras do Sul e foi atazanado pelas intrigas da Corte. Era secretário do rei João V e, quando ele morreu, o marquês de Pombal afastou-o.

Fritaram Alexandre de Gusmão, acusaram-no de ser judeu, “globalista” em araujês. Em tempo: toda a mitologia do Eldorado amazônico corria atrás de uma montanha de ouro. Afinal, na Bolívia havia-se achado uma de prata. Ela existia. Em 1644, sete anos depois da partida de Pedro Teixeira, um sujeito chamado Bartolomeu Barreiros de Ataíde catou algum ouro na região do Araguaia, mas a montanha só foi achada em 1979, na Serra Pelada.

24 de março de 2021

BORBOLETAS, DITADORES E ESCRITORES!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S.Paulo, 21) Foi uma sorte para a América Latina que, em sua infância, Michi Strausfeld visse os documentários de Hans Domnik mostrando as suntuosas ruínas dos astecas e maias no México e na Guatemala, e as enigmáticas pedras do santuário de Machu Picchu no Peru. Porque o resultado disso foi uma crítica e editora latino-americanista que fez muito mais do que todas as universidades reunidas do seu país para a difusão da literatura da América Latina na Alemanha.

Não é exagero. Michi estudou filologia inglesa e espanhola e sua tese de doutorado foi sobre a obra de Gabriel García Márquez. Viajou pelos quatro cantos do Novo Mundo, por grandes cidades e pequenos vilarejos perdidos, foi amiga de escritores e editores, aprendeu as línguas que ali eram faladas (além dos infinitos dialetos), espanhol, português, francês e inglês. E, como editora, primeiro da Suhrkamp e depois da S. Fisher, publicou traduções de muitos autores latino-americanos, além de organizar simpósios, mesas-redondas e trazer a convite para a Alemanha uma infinidade de escritores. E digo: fez mais do que todas as universidades da Alemanha juntas.

E, como se tudo isso fosse pouco, acaba de editar em espanhol um esplêndido livro de mais de 500 páginas intitulado Mariposas Amarillas y los Senõres Dictadores, que acabei de ler. Em primeiro lugar, há duas coisas pelas quais felicitamos Michi Strausfeld. A primeira é que se refere à literatura deste vasto continente como um todo integral, muito variado, mas orgânico (que diferenças essenciais existem entre as literaturas do Equador, Peru, Bolívia, ou entre a argentina e a uruguaia?). E a segunda é que ela julga e se refere à poesia, ao conto, ao ensaio e ao romance como algo essencialmente ligado à história.

Testemunhos

Isso lhe permite, em sua exuberante investigação, referir-se não apenas aos livros literários mais originais e criativos, mas também às narrativas de menor importância oferecidas como testemunhos e investigações particulares da violência que permeia esse continente derivada das ditaduras, das lutas contra elas, da discriminação da mulher e, nos últimos anos, como consequência do tráfico de drogas. O livro é muito bem escrito e, apesar da sua envergadura, o lemos com prazer e simpatia, porque as sisudas nomenclaturas e análises rigorosas são atenuadas com historietas, fofocas, confidências e alarmantes passeios por regiões inóspitas, dominadas pelas guerrilhas e locais de incontáveis assassinatos.

Como muitos intelectuais europeus, minha amiga Michi Strausfeld tem um fascínio pelas revoluções e gostaria que os escritores estivessem sempre do lado dos rebeldes que lutam pelas boas causas – nem sempre é assim. Alguns intelectuais latino-americanos estão muito longe das pistolas e das bombas, e nossa aspiração é que a América Latina seja um continente pacífico e democrático, sem pistoleiros nem explosivos, como é hoje na Alemanha. Mas precisamos dizer, a seu favor, que ela não discrimina ninguém segundo critérios políticos e nas páginas do seu fascinante livro dá espaço tanto a Mario Benedetti e Eduardo Galeano quanto a Octavio Paz e Sergio Ramírez.

A única omissão maior que encontrei nesses capítulos onde há mais de uma centena de livros e autores estudados – com análises geralmente penetrantes e acertadas – é a do chileno Jorge Edwards, romancista, contista e ensaísta de alto nível, que merecia figurar neste panorama original das letras latino-americanas.

O livro começa com o descobrimento, ou seja, em outubro de 1492, quando Colombo escreve ao papa Alexandre VI que tem a impressão de “que estas paragens são as do Paraíso terrestre”. Os principais cronistas, Bernal Díaz del Castillo, no caso do México, e o Inda Garcilaso de la Vega, do Peru, estão bem estudados, com páginas que conservam intacto o deslumbramento dos espanhóis com os palácios, praças e caminhos, ao mesmo tempo que descobrem tribos primitivas, civilizações refinadas, com arquiteturas requintadas e cidades lacustres.

O livro dá um salto dos anos coloniais – sem deixar de citar, claro, a irmã Juana Inés de la Cruz, distante discípula de Góngora, cujos romances foram proibidos na América por uma misteriosa razão que até agora ninguém soube explicar. A proibição não funcionou com relação à importação de livros porque o contrabando era muito intenso. Fala-se que os primeiros exemplares de Dom Quixote chegaram ao Porto de Callao ocultos em uma caixa de vinhos – mas impediu as publicações, pois o primeiro romance a ser impresso na América foi El Periquillo Sarniento, no México, em 1816.

Ditaduras

O livro se intensifica nos séculos 19, 20 e 21, à medida que as colônias se tornam independentes e começa o período das ditaduras militares, quando a América Latina, com poucas exceções, se dedica a um extermínio recíproco, a roubar e destruir as novas repúblicas que, traindo o legado de Bolívar, em vez de se unirem como ocorreu na América do Norte, se dividiram e subdividiram, guerreando entre si e com os vizinhos, até transformar o novo continente num bacanal sinistro.

Este é o momento em que surgem, com grande força, a poesia e os romances, como um florescimento literário da guerra e os múltiplos problemas sociais. Michi Strausfeld insiste muito, e de modo convincente, que esta nova literatura preenche os vazios deixados pela história e exalta e diversifica ao extremo o que os grandes feitos históricos não tiveram condições de detalhar, ou seja, o sofrimento iníquo das vítimas, a crueldade para com os pobres provocada pelas enormes divisões sociais, a maneira como os Estados Unidos amparam as companhias americanas, subornando ou pressionando os governos que começaram processos de reforma agrária e provocando os primeiros sintomas – na educação pública – da igualdade de oportunidades.

Estas são as páginas mais interessantes do livro: a maneira como a literatura é contagiada pela problemática social e a reflete, às vezes aumentada, às vezes diminuída, mas sempre apoiada numa realidade viva, embora imaginando um vilarejo de mortos, como Juan Rulfo, ou o espetáculo de um país devastado por um ditador louco, erudito e sanguinário, como o doutor Francia nos romances de Augusto Roa Bastos. Ela adverte, com muita razão, que na literatura é que começa a ser documentada a condição da mulher e as lutas, hoje disseminadas por todo o continente, por sua emancipação, um processo lento e terrível que está em marcha e com alguns sucessos obtidos.

O problema da droga ocupa um bom número de páginas e com razão, pois os cartéis acumularam fortunas e causaram uma violência infernal, sobretudo na Colômbia e no México. Na Colômbia, esses cartéis subvencionaram meio século de guerrilhas e seus massacres espantosos, e no México a violência alcançou um nível de horror ilustrado nas “crônicas” do jornalismo, gênero ao qual Michi dedica, com muita exatidão, um bom número de páginas.

Desinteresse

Ela lamenta que, depois do famoso e já defunto “boom” da literatura latino-americana, a Europa tenha se desinteressado dela, especialmente quando se pensa nos anos 60 e 70. Não deveria. Já estamos ali, também na Europa, e não somos nada exóticos, nosso valor não é em função do local de onde viemos, mas em função do que fazemos, nem mais e nem menos do que os franceses, os ingleses, os italianos, os alemães e outros europeus. Não era isso que queríamos?

23 de março de 2021

CRESCEM OS ATOS DE CRIMES DE ÓDIO E RACISTAS CONTRA ASIÁTICOS!

Há um aumento de atos de racismo e violência contra asiáticos em todo o mundo.

Mas foi preciso o assassinato de oito pessoas, sendo seis mulheres asiáticas, para que a grande mídia americana se posicionasse e passasse a cobrir a escalada de casos de violência física e verbal diários contra asiáticos, em geral direcionados a idosos e mulheres, alvos mais “fáceis” para aqueles que costumam cometer esse tipo de violência.

Mesmo assim, a imprensa tem se negado a designar os assassinatos em Atlanta como “crime de ódio” e pouco destaque se deu à ida de Biden e Harris a Atlanta para encontrar com líderes e ativistas asiáticos.

Segundo a Stop AAPI Hate (em tradução literal “Pare com ódio contra asiático-americanos e habitantes das ilhas do Pacífico”), organização criada em março do ano passado, já são mais de 3,8 mil casos de violência contra a comunidade AAPI. No Brasil, eram cerca de 200 em maio de 2020, segundo o Instituto Sociocultural Brasil-China e, hoje, já ultrapassam mil.

Como as comunidades asiáticas não são homogêneas, são consideradas “estatisticamente irrelevantes” e somando-se o mito da “minoria modelo”, em que se espera que os asiáticos se comportem de forma dócil e quieta, as comunidades asiáticas se tornam menos organizadas, menos vocais e recebem cobertura quase nula da imprensa.

Um exemplo local é o da jornalista Thaís Oyama, que escreveu o livro “Tormenta”, sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro. Ao comentar sobre o livro, o presidente Bolsonaro disse: “Esse é o livro dessa japonesa que não sei o que faz no Brasil” e “No Japão ia morrer de fome”. Thaís Oyama é brasileira. O caso não teve repercussão.

O aumento de casos de crimes de ódio e racismo contra asiáticos não elimina ou deve ser comparado ao racismo estrutural existente contra outras minorias. Porém, o racismo contra asiáticos não é novidade no Brasil ou em qualquer lugar. Geralmente travestido de brincadeira ou fetiche (a hipersexualização, fetichização e objetificação de mulheres asiáticas esteve presente nos assassinatos em Atlanta, em que o assassino culpa seu vício em sexo e fetiche por mulheres asiáticas por motivar a “eliminação da tentação”) e aliado ao mito da “minoria modelo”, faz com que seja constantemente minimizado e relativizado.

Desde fevereiro de 2020, há toda sorte de agressão e ataques registrados -sejam com faca, ácido, fogo, socos e chutes- contra pessoas asiáticas nos EUA, tendo os seis assassinatos por arma de fogo em Atlanta se juntado a outros dois de idosos de 84 e 75 anos que não resistiram aos ferimentos das agressões sofridas na Califórnia.

Somando-se à retórica racista, muitas vezes impulsionada pelos governantes, que faz de todos asiáticos bodes expiatórios, culpando-os pelo COVID-19, não é de se espantar que esses crimes de ódio estejam aumentando e que, na medida em que a pandemia vai piorando no Brasil, casos extremos também se tornem uma realidade aqui.

22 de março de 2021

LIBERAIS, NEOLIBERAIS, POLÍTICA E MERCADO!

(Christian Edward Cyril Lynch, autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 21) O tema do neoliberalismo está em voga desde a década de 1980, quando a crise da social-democracia europeia trouxe a crítica do planejamento econômico pelo Estado e a defesa do liberalismo econômico como fórmula capaz de superar a estagnação.

Nos últimos dez anos, seu prestígio cresceu e seus partidários aderiram à chamada “nova direita”, parte da qual viria a apoiar o governo Bolsonaro. O debate público sobre o conceito de liberalismo é intenso. Hoje, o tema guarda grande atualidade, tendo em vista o referido endosso de Paulo Guedes e de maioria dos neoliberais brasileiros às tendências conservadoras e autoritárias de Jair Bolsonaro.

Entre os pretendentes dessa ideologia política, a querela gira em torno de um liberalismo democrático inimigo do autoritarismo político (a vertente liberal democrata), que mantém relações pragmáticas com a economia, e um outro, para quem a liberdade política depende essencialmente da econômica, ponto de vista segundo o qual o verdadeiro autoritarismo seria a intervenção do Estado na economia (a vertente neoliberal).

Os neoliberais se apresentam como “liberais”, ou como sendo os “autênticos liberais”, alinhando-se, todavia, a pautas reconhecidamente conservadoras em sua dimensão política. Tentam, assim, conciliar em abstrato a distinção histórica entre conservadorismo e liberalismo, sem deixar de aderir a uma coalizão de vocação autoritária, que conta com conservadores reacionários (olavistas) e estatistas (militares).

Eles enfrentam sempre a oposição de outros “liberais”, que se pretendem progressistas e negam a compatibilidade entre liberalismo e conservadorismo ou autoritarismo político.

Vários estudiosos conferiram grande importância à questão das chamadas famílias, tradições ou linhagens do pensamento político brasileiro. Esse tipo de classificação tem entre suas vantagens a capacidade de servir de anteparo ao presentismo: a tentação de ver os problemas do momento atual como puramente inéditos. Assim, podemos revisitar a tradição do liberalismo brasileiro, buscando suas regularidades no tempo.

Desde o começo do século 19, os liberais associaram o suposto atraso brasileiro a um problema de origem. A baixa capacidade de os portugueses estabelecerem as bases de uma civilização moderna nos trópicos, a influência da Igreja Católica, a concentração da grande propriedade agrária e a escravidão teriam produzido uma sociedade civicamente egoísta, indiferente à ciência, dependente de um Estado autoritário e patrimonial, avessa ao indivíduo autônomo e incapaz de cooperação —como descrito, por exemplo, por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” (1958).

Para além do transplante de instituições anglo-saxãs, o programa liberal inspirado por Stuart Mill tem se pautado por políticas públicas voltadas para a abertura comercial e cultural, para a descentralização político-administrativa, desregulação econômica e redução da burocracia.

Do ponto de vista político, o liberalismo brasileiro de tendência democrática manifesta um certo centrismo. O mais destacado intelectual liberal brasileiro do período pós-independência, Evaristo da Veiga, já celebrava a moderação como a virtude política por excelência. Essa postura confere aos liberais um dinamismo de se deslocar para a direita ou para a esquerda, conforme percebam a ameaça autoritária vindo de um dos lados opostos, socialista ou conservador.

No governo, o liberalismo democrático brasileiro tende a ser mais cauteloso, hesitando a respeito da conveniência e do ritmo da expansão dos direitos sociais e políticos. Acreditando que a colonização teria conformado uma sociedade inclinada a soluções políticas messiânicas, populistas e estatistas, os liberais acabam por não confiar no “bom senso” das massas. Daí a tendência a um excesso de moderação que conduz ao elitismo, ou seja, a circunscrever o centro decisório a uma minoria homogênea de cidadãos em termos de renda e cultura.

Desde que a democratização começou a surgir no horizonte, a partir da Campanha Abolicionista com Joaquim Nabuco e, depois, com a Campanha Civilista de Rui Barbosa, a classe média entrou no radar dos liberais. Como segmento social, exprimiria as qualidades da sociedade civil, por sua sensibilidade a temas como participação política, liberdade, mérito e moralidade.

Entretanto, por vezes, os liberais democráticos se perceberam em um clima de polarização entre a esquerda e a direita radicais que reduzia o seu espaço de atuação em defesa das liberdades públicas e inclinava o país para o autoritarismo. A sociedade brasileira parecia não se adequar à pedagogia dos valores cosmopolitas liberais.

Inoculada nas massas, a hostilidade a esses valores inclinaram-nas à tutela de um líder carismático; daí a fortuna de um conceito controverso como o de “populismo” tanto entre liberais quanto entre socialistas cosmopolitas. Tal diagnóstico leva muitos liberais democráticos a periodicamente advogarem mecanismos institucionais como o parlamentarismo e o judiciarismo.

Este último é uma velha aspiração que data da queda da Monarquia e encontrou seus grandes defensores em Rui Barbosa e Pedro Lessa, para quem a República transferira para o Supremo Tribunal a função arbitral exercida antes pelo Poder Moderador.

Somente na Nova República, todavia, com a retirada de cena do Exército, o judiciarismo se tornou hegemônico, auxiliado pelo desenho institucional da Constituição de 1988. No começo do século 21, voltou a ser apresentado como um remédio para as tendências corruptoras e oligárquicas da representação política.

Em épocas de polarização e crise aguda do Estado de Direito, quando as instituições constitucionais parecem indiferentes ou hostis à cultura do liberalismo, nasceu frequentemente entre os liberais democratas brasileiros a tentação do golpismo.

Desde 1889, o liberalismo nacional tendeu a encarar esse recurso como legítimo em momentos críticos para salvar a liberdade contra seus inimigos percebidos como autoritários. Quem melhor representou essa ambiguidade foi o próprio Rui Barbosa. O temor de um eventual reinado reacionário da princesa Isabel o fez embarcar no golpe militar e a se tornar ministro da ditadura republicana, interpretada por ele como um autoritarismo transitório que preparava um Estado de Direito mais sólido, conforme o figurino estadunidense.

Depois de combater o militarismo dos presidentes Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, Rui voltou a cogitar a intervenção do Exército no começo dos anos 1920, quando lhe pareceu que a República marchava de novo para o autoritarismo.

O golpe de 1964 também foi apoiado por liberais democratas, a exemplo de Afonso Arinos e Carlos Lacerda, como um breve período de exceção destinado a afastar o risco de ameaça comunista. Na prática, em todas essas ocasiões, os liberais brasileiros só participaram de uma “jornada de otários”, que precipitou o advento de um autoritarismo de direita que terminou por voltar-se contra eles e persegui-los como subversivos.

Embora se imagine sempre uma correlação automática entre liberalismo econômico e político, essa relação, ao longo dos últimos três séculos, é mais complexa e nem sempre de fácil distinção. Se a liberdade de mercado é parte das liberdades modernas, o foco sobre a liberdade política, aquela plasmada na forma dos direitos e das garantias constitucionais, distingue o liberalismo democrático daquele que via no livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal.

A esta última vertente poderíamos chamar de libertarianismo econômico, ou neoliberalismo. Surgido pelas mãos de Herbert Spencer por volta de 1880 como reação ao processo de democratização política, impulsionado pelo socialismo e pelo alargamento do sufrágio, o neoliberalismo consiste em um híbrido de liberalismo e conservadorismo: ao mesmo tempo em que apresenta características liberais, como o individualismo, eleva o mercado à condição de gerador e ordenador da vida social, intangível porque produto de forças extra-humanas —uma suposta “ordem espontânea” do universo social fruto da interação não planificada entre os indivíduos.

Os neoliberais apresentam seus argumentos em uma roupagem supostamente “técnica” ou “científica”, defendendo suas posições como as únicas “realistas”, não capturadas pela tentação idealista e normativa da mentalidade planificadora e maximizadora do Estado que teria marcado as ideologias democráticas desde o século 18, como se notaria tanto nos liberais quanto nos socialistas.

Na ideologia neoliberal, a função do Estado é essencialmente a preservação das condições de competição dos indivíduos no mercado. A justiça social é produto das leis do mercado, cujo livre funcionamento por parte de empresários “empreendedores” e criativos, em um contexto de população tecnicamente educada, geraria de forma mais ou menos automática riqueza pública e emprego, através de sucessivos ganhos de produtividade.

Para os neoliberais, o Brasil estaria sempre patinando entre a barbárie e a estupidez, carecendo constantemente de abertura comercial e financeira para o mercado exterior. Aqui, empreender teria muito mais obstáculos a enfrentar devido à ausência de uma cultura moderna, ou seja, capitalista. Em contraste, os países do Atlântico Norte costumam ser referenciados como modelares.

O cosmopolitismo neoliberal demonstra, coerentemente, grande apreço a organismos internacionais —mas não os de caráter político, como a Liga das Nações ou a ONU, enaltecidas pelos liberais democratas, e sim os financeiros, como o FMI, bancos e empresas multinacionais.

E se é verdade que ambas as tradições liberais podem ter uma aproximação instrumental com o autoritarismo, no caso dos neoliberais essa dimensão é muito mais acentuada. De todo esse diagnóstico negativo dos libertários econômicos sobre a situação do Brasil resultava um descompromisso ainda maior com a democracia.

A necessidade de um choque civilizador de capitalismo vindo de fora justificava métodos autoritários. A marca acentuadamente demofóbica já estava presente nos fundadores libertários da República, como os irmãos Alberto e Campos Sales, que ajudaram a urdir o golpe de 1889 contra os liberais e defendiam a toda força o presidencialismo, na crença de que só um governo forte e enérgico poderia enfrentar o “socialismo”.

No século 20, Eugênio Gudin e Roberto Campos demonstraram idêntico descaso com o regime democrático. Diziam que as constituições de 1946 e 1988, por não corresponderem às suas doutrinas, eram produtos da ignorância e da utopia. Como nenhuma delas resolvia os problemas do país, duravam pouco e mereciam, por isso, o desprezo geral.

Muitas tensões marcaram a convivência dos dois liberalismos, o democrático e o neoliberal, em nosso país. Para Rui Barbosa, o presidente Campos Sales era o grande artífice do conservadorismo da Primeira República. Ele acusava Sales de autoritário, oligarca e corruptor, assim como via na política neoliberal de seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, uma cortina de fumaça doutrinária destinada a favorecer os interesses internacionais. Já Sales e Murtinho chamavam Rui de subversivo e tendente ao socialismo, criticando sua política econômica.

Quando o regime militar impôs a Constituição de 1967, o liberal democrata Afonso Arinos também se queixou de que a nova Carta continha “excessivo liberalismo econômico em contraste com o autoritarismo político”. Em defesa dela, os neoliberais Gudin e Roberto Campos justificaram o fortalecimento do Executivo pela necessidade de passar as reformas modernizadoras de corte libertário.

Roberto Campos também se estranhou publicamente com Carlos Lacerda, quando este atacou sua política neoliberal como própria de tecnocratas e defendeu uma abordagem pragmática da economia. No livro “Brasil entre a Verdade e a Mentira” (1965), Lacerda invocou em seu apoio a autoridade de Rui Barbosa, cuja obra defendeu contra Murtinho e Campos.

Apoiador de primeira hora do golpe militar, Lacerda acabou preso após o AI-5 e teve seus direitos políticos cassados. Também para ele, a adesão ao golpismo resultou numa “jornada de otários”. A história se repetiu recentemente, com a adesão dos liberais democratas ao lavajatismo como método de deposição da esquerda. Ao invés de chegarem ao reino da liberdade republicana, esquentaram a cama para Jair Bolsonaro se deitar.

Depois de 1990, os liberais democratas recuperariam o discurso do liberalismo econômico, voltando a apresentar um ponto de contato com os neoliberais. Nem por isso se tornariam a mesma coisa. Em suas memórias, “A Lanterna na Popa” (1994), Roberto Campos lamentou as brigas com Arinos e Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro…”. Ele estava errado. Embora aparentados do ponto de vista “macro ideológico”, o liberalismo democrático e o neoliberalismo, como já se percebia então, são ideologias distintas.

O liberalismo democrático, que representa o tronco principal da linhagem, na segunda metade do século 19 já havia, por meio de Stuart Mill, renunciado a aspectos secundários da doutrina, como o voto censitário e o liberalismo econômico, vinculados ao governo oligárquico e plutocrático.

O neoliberalismo, ao contrário, surgiu como uma reação conservadora à adaptação do liberalismo ao ambiente democrático, destinado a preservar a dimensão oligárquica e plutocrática do Estado de Direito. Onde os liberais viam democracia, os neoliberais passaram a ver socialismo. Longe de preservar o liberalismo oitocentista, os neoliberais deliberadamente o reformularam, modificando seus fundamentos, para se concentrar, quase que exclusivamente, na defesa do Estado mínimo.

O atual contencioso em torno do autoritarismo conservador de Bolsonaro demonstra com clareza a distinção de neoliberais e liberais democratas. A adesão de Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica.

Basta lembrar que no passado apoiaram as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a oligárquica República Velha e o regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol…