02 de setembro de 2021

O FRACASSO NO AFEGANISTÃO!

(Henry Kissinger- The Economist/O Estado de S. Paulo, 28) Os objetivos militares americanos têm sido absolutos e inatingíveis. E os políticos, abstratos e fugidios.

A tomada do Afeganistão pelo Taleban põe o foco da preocupação imediata no resgate de dezenas de milhares de americanos, aliados e afegãos imobilizados em todo o país. Seu socorro precisa ser a mais urgente prioridade dos EUA.

A questão mais fundamental, porém, é saber como os EUA se viram levados a se retirar em uma decisão tomada sem muito aviso ou consulta aos aliados ou às pessoas mais diretamente envolvidas em 20 anos de sacrifício. E por que o desafio básico no Afeganistão foi concebido e apresentado ao público como uma escolha entre o controle total do país ou a retirada completa.

Uma questão subjacente perseguiu os esforços americanos de contrainsurgência, do Vietnã ao Iraque, por mais de uma geração. Quando os EUA arriscam a vida de seus militares, põem em risco também seu prestígio e envolvem outros países, então devem fazê-lo com base em uma combinação de objetivos estratégicos e políticos.

Estratégicos, para deixar claras as circunstâncias pelas quais está lutando; políticos, para definir uma estrutura de governo que dê sustentação ao resultado, tanto dentro do país em causa quanto no cenário internacional.

Os EUA se dilaceraram em seus esforços de contrainsurgência por causa de sua incapacidade de definir objetivos alcançáveis e vinculá-los de uma forma que fosse sustentável pelo processo político americano. Os objetivos militares têm sido muito absolutos e inatingíveis. E os políticos, muito abstratos e fugidios. O fracasso em vinculá-los um ao outro enredou a América em conflitos sem pontos finais definíveis e a fez dissolver o propósito unificado em um pântano de controvérsias domésticas.

Os EUA entraram no Afeganistão com amplo apoio público para responder ao ataque da Al-qaeda ao território americano, lançado de um Afeganistão controlado pelo Taleban. A campanha militar inicial prevaleceu com grande eficácia. O Taleban sobreviveu essencialmente em santuários paquistaneses, de onde realizou ataques no Afeganistão, com a ajuda de algumas autoridades paquistanesas.

Mas, enquanto o Taleban estava fugindo do país, os EUA perderam o foco estratégico. Os americanos se convenceram de que, em última análise, o restabelecimento de bases terroristas só poderia ser evitado transformando o Afeganistão em um Estado moderno, com instituições democráticas e um governo constitucional. Tal empreendimento jamais poderia ter um cronograma compatível com os processos políticos americanos. No ano de 2010, em um artigo em resposta a um aumento de tropas, alertei contra um processo que fosse tão prolongado e intrusivo a ponto de virar até mesmo os afegãos não jihadistas contra todo o esforço.

Pois o Afeganistão nunca foi um Estado moderno. A organização estatal pressupõe um senso de obrigação comum e centralização da autoridade. O solo afegão, rico em muitos elementos, carece destes. A construção de um Estado democrático moderno no Afeganistão, onde o mandato do governo funcionasse uniformemente em todo o país, implicaria um período de muitos anos – na verdade, décadas. Mas isso vai contra a essência geográfica e etnorreligiosa do país. Foi precisamente a fragmentação, a inacessibilidade e a ausência de autoridade central que fizeram do Afeganistão uma base atraente para redes terroristas.

Embora se possa datar do século 18 uma entidade afegã distinguível, seus povos constituintes sempre resistiram ferozmente à centralização. No Afeganistão, a consolidação política – e, especialmente, a militar – ocorre ao longo de linhas étnicas e de clãs, em uma estrutura basicamente feudal, onde os mediadores de poder mais decisivos são os organizadores das forças de defesa do clã. Quase sempre em conflito latente entre si, esses senhores da guerra se unem em coalizões, sobretudo quando alguma força externa – como o Exército britânico que invadiu, em 1839, e as forças armadas soviéticas, que ocuparam em 1979 – tenta impor centralização e coerência.

Tanto a calamitosa retirada britânica de Cabul, em 1842, na qual apenas um único europeu escapou da morte ou do cativeiro, quanto a decisiva retirada soviética do Afeganistão, em 1989, foram provocadas por essa mobilização temporária entre os clãs. O argumento hodierno de que o povo afegão não está disposto a lutar por si mesmo não tem respaldo histórico. Eles são combatentes ferozes por seus clãs e pela autonomia tribal.

Com o tempo, a guerra assumiu o caráter ilimitado das campanhas de contrainsurgência anteriores, nas quais o apoio interno aos americanos enfraqueceu progressivamente com o passar dos anos. A destruição das bases do Taleban foi essencialmente conseguida. Mas a construção de uma nação sobre um país dilacerado pela guerra absorveu forças militares substanciais. O Taleban podia ser contido, mas não eliminado. E a introdução de formas governamentais desconhecidas minou o compromisso político e aumentou a corrupção já abundante.

Assim, o Afeganistão repetiu os padrões anteriores de controvérsias domésticas americanas. O que o lado da contrainsurgência definia como progresso, o lado político tratava como desastre. Os dois grupos tenderam a paralisar um ao outro durante os sucessivos governos de ambos os partidos. Um exemplo é a decisão de 2009 de juntar um aumento de tropas no Afeganistão ao anúncio simultâneo de que elas começariam a se retirar em 18 meses.

O que se negligenciou foi uma alternativa concebível, combinando objetivos alcançáveis. A contrainsurgência poderia ter se reduzido à contenção, e não à destruição, do Taleban. E o curso político-diplomático poderia ter explorado um dos aspectos especiais da realidade afegã: o fato de os vizinhos do país – mesmo quando adversários um dos outros e, ocasionalmente, dos EUA – se sentirem ameaçados pelo potencial terrorista do Afeganistão.

Teria sido possível coordenar alguns esforços comuns de contrainsurgência? É verdade que Índia, China, Rússia e Paquistão costumam ter interesses divergentes. Uma diplomacia criativa poderia ter destilado medidas comuns para superar o terrorismo no Afeganistão. Essa estratégia é a forma como o Reino Unido defendeu as abordagens territoriais à Índia em todo o Oriente Médio por um século, sem bases permanentes, mas com prontidão constante para defender seus interesses, junto com apoiadores regionais ad hoc.

Mas essa alternativa nunca foi explorada. Depois de fazer campanha contra a guerra, os presidentes Donald Trump e Joe Biden empreenderam negociações de paz com o Taleban, com cuja extirpação os EUA haviam se comprometido, induzindo aliados a ajudá-los, 20 anos atrás. Tudo isso agora culminou no que equivale a uma retirada incondicional dos EUA por parte do governo Biden.

Descrever a evolução não elimina a insensibilidade e, sobretudo, a intempestividade da decisão da retirada. Por causa de suas capacidades e valores históricos, a América não pode escapar de ser um componentechave da ordem internacional. Não pode evitá-lo apenas retirando-se. Como combater, conter e superar o terrorismo aprimorado e apoiado por países com uma tecnologia crescente e cada vez mais sofisticada? Essa questão continuará a ser um desafio global, que deverá ser enfrentado pelos interesses estratégicos nacionais, juntamente com qualquer estrutura internacional que os EUA possam criar por meio de uma diplomacia proporcional.

Os americanos devem reconhecer que não haverá no futuro imediato nenhum movimento estratégico dramático para compensar esse revés autoinfligido, como assumir novos compromissos formais em outras regiões. A precipitação americana aumentaria o desapontamento entre os aliados, encorajaria os adversários e semearia confusão entre os observadores.

O governo Biden ainda está em seus estágios iniciais. Deve ter a oportunidade de desenvolver e sustentar uma estratégia compatível com as necessidades nacionais e internacionais. As democracias evoluem nos conflitos entre as partes. E alcançam grandeza por suas reconciliações.

01 de setembro de 2021

BICENTENÁRIO DE ANITA GARIBALDI: DEBATE IDEOLÓGICO EM TORNO DO LEGADO DA REVOLUCIONÁRIA!

(Folha de SP, 29) O convés do navio comandado por Giuseppe Garibaldi (1807-1882), sob ataque das tropas imperiais brasileiras, começava a ser coberto por tripulantes caídos, mas Anita, apelido dado pelo italiano à Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva, seguia na primeira linha de atiradores.

Mesmo com a batalha escalando em mortos e feridos, ela seguia na proa, entre dois marinheiros, “de fuzil ao peito”, exposta “às balas do inimigo” e atirando, escreveu Lindolfo Collor, avô do ex-presidente e hoje senador Fernando Collor, em “Garibaldi e a Guerra dos Farrapos”, livro de 1938 sobre a revolta ocorrida no sul do Brasil entre 1835 e 1845.

A cena é mais uma a ilustrar, em tintas carregadas, Anita Garibaldi em batalhas -com cerca de 18 anos, de origem pobre, ela se juntou à revolta e partiu de Laguna (SC) para lutar ao lado de Garibaldi, por quem se apaixonou, apesar de oficialmente ser uma mulher casada. Um escândalo para a época.

Anita já foi samba-enredo no Carnaval do Rio de Janeiro, interpretada na TV por Giovanna Antonelli e no cinema por Anna Magnani, atriz do neorrealismo italiano, e é uma das poucas mulheres brasileiras nas páginas de aço do “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria”, exposto na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Às vésperas da data que marca 200 anos de seu nascimento, algumas vitrines da sua terra natal, onde o nome de Anita está em museu, rua, autoescola e restaurante, colocaram manequins vestidos como ela, a maioria com uma arma a tiracolo.

Sua memória no bicentenário se divide em eventos e na discussão de como os valores defendidos por ela se colocariam no polarizado Brasil de 2021.

A data de nascimento, 30 de agosto de 1821, foi reconhecida pela Justiça de Santa Catarina no final dos anos 1990 depois de um processo movido para que se criasse um documento atestando que Anita era brasileira, já que sumiram todos os registros oficiais, como o livro tombo da igreja onde foi batizada.

“Em nome das lojas maçônicas, da Câmara de Vereadores, da Unisul (Universidade do Sul de Santa Catarina) e do próprio Instituto Anita, na época, fundação, pedimos que se reconhecesse o nascimento tardio de Anita”, conta Adílcio Cadorin, advogado e autor de livros como “Anita – Guerreira das Repúblicas e da Liberdade”.

“Fomos ao cartório e registramos o nascimento dela 178 anos depois de ela ter nascido”, acrescenta ele.

Ex-prefeito de Laguna, Cadorin participou da criação do movimento separatista O Sul É Meu País –do qual se afastou. Diretor do Instituto Cultural Anita Garibaldi, é visto como o principal divulgador da memória dela hoje.

A Guerra dos Farrapos foi iniciada no vizinho Rio Grande do Sul devido à insatisfação de estancieiros com os tributos cobrados sobre o charque gaúcho, e levou à proclamação de duas repúblicas, a Piratini, no Rio Grande do Sul, e a Juliana, em Santa Catarina, com a tomada da Laguna de Anita.

Simpática aos valores republicanos, por influência do tio, Anita cresceu montando a cavalo como os homens, com uma perna de cada lado, e com fama de indômita. Uma das histórias sobre ela diz que chegou a dar um golpe de chicote em um homem que a assediou e comunicou à polícia o ocorrido.

Com a mãe viúva e irmãos pequenos, foi convencida a se casar com um sapateiro da cidade no dia em que completou 14 anos. Manoel Duarte, conhecido como Manoel dos cachorros, que lutou ao lado do Império, teria a deixado antes da chegada de Garibaldi à cidade, afirma Cadorin.

Ao lado do italiano, com quem Anita se casou depois no Uruguai, em um intervalo de dez anos, ela engravidou cinco vezes e participou ativamente da luta pela unificação da Itália.

“Anita era um espírito livre e lutador, mas certamente, a partir das ‘Memórias de Garibaldi’, especialmente na versão de Alexandre Dumas, os traços corajosos e heróicos de Anita se acentuaram. Se Garibaldi pretendia propor uma mulher, ainda mais imprudente do que os homens para incitar os italianos na luta patriótica, Dumas estava construindo o casal romântico perfeito de amor e revolução”, avalia a italiana Silvia Cavicchioli, autora de “Anita – Storia i Mito di Anita Garibaldi” (Einaudi, 2017, sem versão em português).

“Na decisão de deixar os filhos, de cruzar a Itália sozinha para chegar ao parceiro, está toda a natureza não convencional e rebelde de Anita.”

Em maio, em meio à pandemia de Covid-19, a estátua dela no centro da praça República Juliana, em Laguna, amanheceu segurando uma placa escrita “Fora Bolsonaro genocida”. No Instagram, a conta @anitasemlimites publicou um registro e a legenda: “Um dia empunhei minha garrucha contra o imperialismo, hoje levanto minha bandeira contra o fascismo! Prazer, Anita Garibaldi”.

Os comentários se dividiram entre elogios à ação e quem a considerasse vandalismo e desrespeito à memória de Anita.

“Fala sério que essa gente acha que eu apoiaria o fascistoide militar se tivesse andando por terras brasilis nos dias atuais”, diz a pessoa por trás do perfil, que responde dizendo ser a própria Anita a falar. Ela não quis se identificar.

“Sorte dele que hoje os tempos são outros, há cento e tantos anos, resolvemos as coisas de outra forma com o pessoal uniformizado que falava em nome da nação. Bolsonaro é a escória. E como diria Giuseppe, ‘socialismo é o sol do futuro'”.

A usuária responsável pela conta, se fazendo passar por Anita, diz não estar contente com os eventos em torno de seu bicentenário. “Me parece que querem me colocar como uma conservadora”, diz ela.

O prefeito Samir Ahmad, que considera que Anita “cada dia mais serve de modelo”, diz que o direito de expressão deve ser assegurado, mas não se pode destruir imagens para reconstruir a versão que se quer da história -a estátua não parece ter sido danificada na intervenção.

“Maturidade política não pode ser confundida com deturpação da história. Que a liberdade de expressão fique restrita à esfera das palavras e discussões sem imposição de nenhuma forma. A cada quatro anos temos novos eleitos, que seja feita e respeitada a vontade do povo, como defendeu a nossa heroína.”

Eleito pelo PSL, ele deixou o partido há poucos dias e diz que deve seguir o governador Carlos Moisés, que também saiu da sigla. “Votei no Bolsonaro e até posso votar novamente, porém, isso não significa que convergimos em tudo.”

“[Hoje, Anita] seria uma republicana, democrata, defenderia liberdade, igualdade social, igualdade entre mulheres e homens, o que ela sempre exigiu do Garibaldi. Ela nunca se colocou acima dele, mas do lado”, diz Cadorin, que avalia que Bolsonaro está fazendo a coisa certa, mas dizendo coisas erradas.

“Anita foi uma mulher muito à frente do seu tempo, que rompeu paradigmas. E que teve que enfrentar questões que hoje assolam a mulher moderna, como a maternidade versus o desejo de se realizar em outros espaços, mais masculinos”, diz Leticia Wierzchowski, autora dos livros “A Casa das Sete Mulheres” e “Travessia”, sobre Anita e Garibaldi.

Anita morreu em 4 de agosto de 1849, aos 27 anos, grávida do quinto filho e perseguida por tropas austríacas na Itália. E continuou rendendo histórias.

Com a roda quebrada da charrete que levava o corpo, os homens que fariam seu enterro amarram uma corda no pescoço do cadáver e o arrastaram, antes de deixá-lo em uma cova rasa. O corpo foi encontrado dias depois e abriu uma investigação de homicídio, que gerou rumores de que o próprio Garibaldi a teria matado.

Em entrevista à Folha de S.Paulo em 1999, o jornalista Paulo Markun, que escreveu “Anita Garibaldi – Uma Heroína Brasileira”, disse: “O legista cometeu um engano ao imaginar que ela teria sido estrangulada. Mas, num primeiro momento, esse boato chegou a se espalhar”.

Anita teve sete sepultamentos, sendo as duas últimas na repatriação que o ditador fascista Benito Mussolini fez de seus restos, que estavam na França.

“Em Ravena, onde ela morre, e em grande parte da Itália central, ela é muito amada e continua a existir um verdadeiro culto laico de Anita, um nome que ainda se dá às crianças em sua memória”, diz Silvia.

31 de agosto de 2021

ALBERTO DA COSTA E SILVA TORNA EXCELENTE PESQUISA SOBRE ÁFRICA EM CONVERSA!

(Angela Alonso – Folha de SP, 28) A África está na moda. Por fim, o Brasil —ou sua parte que crê em urna eletrônica— percebeu o quanto se enraíza na outra costa do Atlântico, não acima, como sua elite sempre fantasiou, mas abaixo do equador.

A escravidão virou assunto de best-sellers e programas de TV, suscita tertúlias literárias e debates políticos. Habitantes de Twitter e TikTok descobriram —antes tarde do que nunca— a circunferência do legado africano e o tamanho da barbaridade escravista.

É muito bem-vindo este recente despertar coletivo do sono da “democracia racial”. Mas, para quem frequenta o mundo da pesquisa, o assunto é velho de guerra.

Autoridade inconteste no campo é Alberto da Costa e Silva, que completou 90 anos em maio e se dedica há seis décadas ao ofício meticuloso de garimpar arquivos e pesar evidências, antes de publicar interpretações.

Reconhecida em escala internacional com o Prêmio Camões, sua obra combina a excelência da pesquisa à cadência da conversa, a contar no miúdo o que todos os brasileiros deveriam saber, mas quase ninguém sabe.

Conversa comprida, travada em vários livros, sobretudo no monumental “A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão, de 1500 a 1700”, senhor de dois prêmios, o Jabuti e o da Fundação Biblioteca Nacional.

O assunto retorna agora em “A África e os Africanos na História e nos Mitos”. Aí se mesclam ensaísmo, comentário de livro alheio, relato autobiográfico e até transcrição de documento a duras penas resgatado.

No agregado, ensina que a relação do Brasil com a “África” é uma generalização. Pelo Rio de Janeiro passaram ambudos, congos, sossos, iacas, vilis, huambos, lubas, galangues, bailundos, luenas, macuas, tongos. Nem todos escravos.

São muitas Áfricas. A do reino de Daomé, de sistema político intricado, não é a mesma do reino de Guiné, com suas ervas e joias; tampouco a do reino de Onim, cujo rei Ajan negociava com o Brasil e encomendou ao próprio Pedro 1º uma carruagem, quatro chapéus e uma “bomba de fogo”.

O maior dos negócios entre aqui e lá era o tráfico negreiro, daí porque o livro fala de abolicionistas, sem esquecer dos escravistas. A escravidão brasileira surge na sua inteireza, como fenômeno atlântico, e contrastada às da Grécia Antiga e de partes da África.

A escrita fluida desenha uma África múltipla, em geografia e demografia, em mitos e temperos. Ao Brasil vieram africanos de vária extração, incluídos letrados e mestres de ofícios. Nos registros de entrevistas de José Bonifácio com alguns deles se entrevê a arquitetura das cidades de origem, a rede de comunicação entre os reinos e a variedade linguística —o próprio Bonifácio compilou vocábulos da língua hauçã.

De seu lado, a heterogeneidade étnica é escavada via comentário dos anúncios de compra, venda e fuga de escravos compilados por Gilberto Freyre, enmescla culinária entre o azeite de oliva e o de dendê chega na remissão às novelas de Jorge Amado.

Já as fotografias de Pierre Verger facultam descrição vívida dos retornados à África Ocidental. Do conjunto emerge, com viço e carne, uma constelação de relações multivalentes, contraditórias, que impõem ao leitor ora sua beleza, ora sua violência.

A escrita tem a nota pessoal de quem viveu em países africanos. A experiência frisa semelhanças, entre coqueiros e casas de Nordeste e Lagos, e marca contrastes, entre os “ternos cinzentos” da diplomacia brasileira e a exuberância de “leses, sedas, veludos e damascos” das autoridades africanas.

São relatos de ida e volta. A África se entranhou no Brasil. Mas o Brasil também foi à África, exportando de versos de Castro Alves ao bicho-de-pé.

O circuito do escravismo, o livro mostra, não se fechou com o fim da escravidão. Duas malungas que o autor conheceu, levadas crianças daqui para a Nigéria, em 1900, ilustram os que tentaram achar a pátria na África, por não a terem encontrado no Brasil.

Os descendentes de africanos ainda hoje são, como as malungas, duplamente expatriados, arrancados à força da África e sem cidadania plena no Brasil. Na perfeita síntese do autor, “como se estivessem para sempre fadados a estar no exílio em casa”.

30 de agosto de 2021

AFEGANISTÃO, TERRAS RARAS E A CHINA DE OLHO NELAS!

(Celso Ming e Pablo Santana – O Estado de S. Paulo, 26) O Afeganistão é um dos países mais pobres do mundo. Em 2020, seu PIB per capita não passou de US$ 508 por ano. Mas é rico em minérios estratégicos ainda quase nada explorados. Entre estes estão as chamadas terras raras. Com a derrota dos Estados Unidos na guerra contra o Taleban, a China cobiça essas jazidas hoje avaliadas em cerca de US$ 1 trilhão.

Têm essa designação 17 materiais cada vez mais exigidos na economia de descarbonização e geração de energia renovável. Entre eles estão o escândio, o ítrio, lantânio, cério e neodímio. São essenciais na produção de veículos elétricos e componentes, semicondutores, smartphones, placas fotovoltaicas, cabos de fibra óptica, sistemas de GPS, turbinas eólicas e, também, para o setor de defesa (mísseis, aeronaves, satélites, drones).

Embora não sejam materiais escassos, recebem essa designação porque são difíceis de ser encontrados em concentrações tais que permitam extrações como produto principal. A demanda por esses minerais deve aumentar 35% até 2025, conforme apontam estudos da consultoria alemã Statista. Essa condição deixa o xadrez geopolítico mais sujeito a disputas comerciais ou a choques por eventuais embargos na oferta, como já aconteceu com o petróleo na década de 1970.

“Esses materiais têm propriedades específicas que dificultam sua substituição por outros. O índice de reciclagem de alguns deles é muito baixo”, observa Alexandre Szklo, professor de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ.

A movimentação geopolítica em relação aos minerais mais críticos orbitará em torno de quatro grandes questões. A primeira envolve a existência de jazidas. O Brasil, terceiro país mais importante em reservas (veja gráfico), pode vir a ter papel relevante nesse mercado, caso avance em regulações e fortaleça a indústria de mineração. Hoje, contribui com apenas 0,42% da produção mundial.

A segunda e terceira questões correspondem à capacidade de extração e de processamento. É nesse campo que a China se destaca, pois praticamente monopoliza a cadeia global de processamento, quase 90% da capacidade global. A quarta questão gira em torno dos riscos sistêmicos que envolvem as cadeias globais de valor. A crescente dependência desses minerais tende a tornar sua oferta e sua reposição mais altamente vulneráveis à escassez e à alta de preços.

Cerca de 85% da produção está concentrada em três países: Estados Unidos, Mianmar e China, esta última principal fornecedora do mundo, responsável por 60% da produção. Detém reservas estimadas em 44 milhões de toneladas.

Como aponta Carlos Crêspo, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco, esse domínio da China aumenta seu protagonismo global. E pode dificultar o desenvolvimento da indústria de defesa de outros países. A China já foi alvo da Organização Mundial do Comércio por restringir as exportações desses materiais por razões políticas.

27 de agosto de 2021

POR ISSO OS EUA CONTINUAM A PRODUZIR FRACASSOS!

(Fareed Zakaria – The Washington Post/O Estado de S. Paulo, 24) Se deseja uma estatística para explicar o fracasso da retirada dos EUA do Afeganistão, é essa: o Conselho de Segurança Nacional se reuniu 36 vezes desde abril para debater o assunto.

E o mais notável, esse número foi divulgado para a mídia para ilustrar o quão bem o governo vinha estudando o caso. A estrutura no campo das tomadas de decisão de política externa se transformou em um dinossauro, com um corpo imenso e pouco cérebro, uma burocracia onde o processo se tornou político.

Quanto mais reuniões você realiza, menos eficiente uma organização se torna. “Os delegados ali estiveram em reuniões que duraram horas e horas sem fim. Isso tem um custo”, lembrou Frances Townsend, que foi assessora de Segurança Interna do presidente George W. Bush. Pessoas perdendo um tempo precioso em reuniões, mais falando do que executando. Tudo se reduzindo ao denominador comum menos importante. Preparação e memorandos das reuniões substituíram uma ação efetiva.

O Wall Street Journal descreveu a corrida para a saída do Afeganistão assim: “O governo realizou reuniões durante meses, mas houve poucas instruções para as diversas agências governamentais sobre como se prepararem para a transição de poder”.

Os EUA combateram a Guerra Fria com uma grande burocracia, mas que, especialmente no seu topo, era surpreendentemente enxuta e eficiente. O Conselho de Segurança Nacional moderno, por exemplo, ao ser criado por Henry Kissinger, não tinha mais do que 50 pessoas. E se manteve nesse nível durante a maior parte do século 20, embora à época dos anos 2000 tenha sido ampliado para 100. Nos primeiros anos do governo de George W. Bush, esse número dobrou novamente.

Sob o governo de Barack Obama, duplicou de novo. E Donald Trump o reduziu um pouco, mas o presidente Joe Biden hoje dobrou o seu número, levando a mais de 350, com muitos delegados, escalões e complexidade.

Quanto maior se torna uma organização, mais escalões ela cria. E quanto mais escalões, mais difícil fica transpô-los. Pense no Departamento de Defesa, que é algo assombroso em termos de tamanho e complexidade. Com um orçamento anual de mais de US$ 700 bilhões, provavelmente, é a maior burocracia do planeta. E cresceu vigorosamente nas duas últimas décadas.

O estudioso da Universidade de Nova York Paul Light afirma que os cinco escalões mais altos do Pentágono congregavam 363 pessoas, em 1998, aumentando para 870, em 2020. Só no nível de secretário adjunto, seu número foi de 193 para 629. Hoje, há 33 níveis de burocracia no mais alto comando do Departamento de Defesa.

Em grandes organizações, o desafio de conduzir a burocracia recebe muito mais atenção do que as decisões políticas. A informação é sempre gerada internamente – nada de fora pode se infiltrar no edifício. Essa realidade explica talvez o fato mais alarmante no caso da intervenção no Afeganistão – que durante 20 anos o governo dos EUA se enganou e enganou o mundo levando-o a acreditar que ele estava fazendo progressos e que o Exército afegão crescia em força e eficácia.

Hoje, com o fracasso evidente da política, todas as burocracias em Washington afirmam furiosamente que agiram certo. Mas consideremos o que o Pentágono vem dizendo nas duas últimas décadas. Em 2011, o general William Caldwell, então chefe do comando de treinamento no Afeganistão, afirmou que o Exército afegão era “o melhor treinado, o melhor equipado e o melhor liderado”, acrescentando que “só continuarão a melhorar com o tempo”.

Dois anos depois, o general Mark Miller, então o segundo no comando das forças americanas no Paquistão, declarou: “Estou bastante otimista quanto aos resultados, desde que as forças de segurança afegãs continuem a fazer o que vêm fazendo”. O aumento do número de soldados decidido por Obama, em 2009-2012, foi um sucesso, apesar de, em 2015, o Taleban controlar mais áreas do país como jamais foi visto desde o início da guerra.

Muitas pessoas com informações privilegiadas entendiam que a missão estava condenada ao fracasso, mas a informação ficou presa dentro da burocracia. Como o Washington Post documentou em sua reportagem Papéis do Afeganistão, as autoridades, quando pressionadas, haviam expressado seu ceticismo. Mas a narrativa oficial era sempre otimista.

“Cada ponto de dado era alterado para apresentar o melhor quadro possível”, afirmou Bob Crowley, assessor da área de contrainsurgência no Afeganistão, aos investigadores do governo. Informações externas nunca penetraram, como a do especialista do Brookings Michael O’hanlon, que concluiu que o Exército afegão tinha taxas de diminuição de 20% a 30% por causa de deserções e ferimentos.

O inspetor especial para a reconstrução do Afeganistão, repetidas vezes, falou do problema dos “soldados fantasmas” e deu o alarme chamando atenção para uma notícia da Associated Press indicando que, apesar de um número oficial de 300 mil soldados, as forças de segurança afegãs contavam na realidade com apenas 120 mil homens.

A fase número um da saída do Afeganistão foi um fracasso. A de número dois, a retirada de dezenas de americanos e afegãos, poderia ser um sucesso. As evidências até agora – leia o artigo de David Rohde na New Yorker – é que a retirada ainda é totalmente caótica, faltando uma ação eficaz. O governo ainda pode fazer com que isso aconteça, mas precisa parar de se reunir e começar a agir.

26 de agosto de 2021

A ASFIXIA DA POLÍTICA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 23) É preciso investigar e punir o crime, mas preservando a política – o que significa afastar da política quem é mais afeito ao crime do que à política.

Um Estado Democrático de Direito deve ser capaz de prevenir, investigar, perseguir e punir ações criminosas. Não há civilidade, tampouco paz, onde reina a transigência com condutas que agridem bens jurídicos essenciais de uma sociedade. Esta é a razão da legislação penal: proteger elementos fundamentais da vida em sociedade.

Ao mesmo tempo, o Estado é muito mais amplo do que seu sistema penal, cuja atuação é sempre subsidiária. A imensa maioria das questões de uma sociedade não está na esfera penal. Há uma vastíssima gama de assuntos, desafios e problemas que não são resolvidos por mera proibição e punição de condutas. O encaminhamento desses temas deve ser dado pela política.

Na seara política, as soluções não são binárias: proibir ou permitir, punir ou não punir. Os temas possuem variadíssimas possibilidades, e a definição do caminho a ser trilhado não é dada por uma regra prévia. As soluções devem ser fruto de estudo, diálogo, debate, negociação e também concessões, muitas concessões.

Na política, não existem fórmulas perfeitas. O que se tem são caminhos possíveis, necessariamente imperfeitos, que, ao longo do tempo, podem e devem ser testados, corrigidos e aperfeiçoados. Por isso, num Estado Democrático de Direito, é fundamental o funcionamento dos Poderes Legislativo e Executivo. Sempre há questões políticas a serem decididas e essas decisões devem ser adotadas por representantes escolhidos pelo voto popular.

O Judiciário é imprescindível para fazer com que a lei seja aplicada, mas ele sozinho não é suficiente. Num regime de liberdade, o encaminhamento das questões, desafios e problemas enfrentados pela sociedade não é dado – repita-se – por simples aplicação de regras prévias, mas por um contínuo trabalho político.

No entanto, observa-se atualmente um paulatino estreitamento do campo da política, junto com o avanço – muitas vezes, verdadeiro predomínio – das questões criminais na seara pública. Tal fenômeno ficou em evidência na Operação Lava Jato. Foram muitas e insistentes as tentativas para que o trabalho investigativo-judicial proporcionasse soluções políticas ou mesmo que substituísse o labor político.

Agora, o que resta da Lava Jato já não está em destaque, e seu objetivo de refundar a política nacional é não apenas distante, como rigorosamente fantasioso. No entanto, o fenômeno de asfixia da política por questões penais permanece. Na seara pública, não existe debate sobre questões políticas.

Não se vê uma proposta para o futuro, ou mesmo para o presente. O que se tem é o aparato estatal submerso em questões e investigações criminais.

A lei penal precisa ser aplicada, e quem praticou crime deve ser contido e punido. No entanto, a aplicação da lei penal, por mais rigorosa que seja, não dará solução aos problemas nacionais.

É preciso cuidar da saúde e da educação da população, com propostas adequadas às circunstâncias atuais. É preciso restabelecer as condições para o crescimento econômico e a retomada do emprego. É preciso oferecer respostas urgentes para a fome e a pobreza, bem como buscar caminhos efetivos para a redução das desigualdades sociais.

Tudo isso, que é absolutamente necessário e urgente, não será alcançado por meio de operações da Polícia Federal, inquéritos supervisionados pelo Ministério Público ou ações penais. A política é o único caminho capaz de oferecer respostas a essas questões.

Nos tempos da Lava Jato, ganhou notoriedade a atuação voluntarista de alguns procuradores. É preciso reconhecer, no entanto, que a asfixia da política nunca foi um fenômeno causado apenas pelo Ministério Público. As administrações petistas levaram a política para o crime, como se viu no mensalão e no petrolão.

Agora, Jair Bolsonaro impõe ao País trajetória semelhante. Em vez de oferecer propostas políticas, seu governo suscita a cada dia novos conflitos e novas investigações criminais.

É preciso investigar e punir o crime, mas preservando a política – o que significa, entre outras coisas, afastar da política quem é mais afeito ao crime do que à política.

20 de agosto de 2021

INVESTIMENTO ESTRANGEIRO E DESENVOLVIMENTO!

(Antonio Corrêa De Lacerda – O Estado de S. Paulo, 18) O investimento direto estrangeiro (IDE) representa todo ingresso de recursos advindos do exterior para instalação ou aquisição de empresas, caracterizando uma relação direta com a gestão da atividade. Nos 25 anos entre 1995 e 2020, o Brasil se manteve entre os principais países receptores de IDE no mundo.

Apesar desse desempenho relativamente positivo, ainda nos falta uma estratégia mais clara no relacionamento com os potenciais investidores internacionais, assim como para as empresas transnacionais já em operação no mercado doméstico.

Dois aspectos se destacam nesta pauta. O primeiro, internacional, é que tem crescido a disputa de novos projetos entre os vários mercados, uma vez que os efeitos da pandemia de covid-19 provocaram uma queda de 33% nos fluxos globais de investimentos estrangeiros em relação ao ano anterior. O segundo aspecto é que a economia brasileira tem perdido espaço nas cadeias globais de valor, pela saída de empresas que mantinham operações no Brasil.

No Brasil, duas características têm marcado o IDE ingressante. Uma primeira, não exclusivamente local, é a predominância dos fluxos voltados para a aquisição de empresas já existentes.

Ou seja, não se trata de investimento novo propriamente dito, mas de transferência de capital doméstico para internacional, sempre com implicações. A segunda observação se refere à predominância dos investimentos sem vocação exportadora, voltados para o atendimento do mercado doméstico.

Foi recentemente criada no Congresso Nacional a Frente Parlamentar em Apoio aos Investimentos Estrangeiros para o Brasil (Frente Investe Brasil), cujo objetivo é articular as condições para incentivar o ingresso dessa modalidade. Trata-se de iniciativa válida, tendo em vista a relevância do tema.

A grande maioria dos países mundo afora conta com agências nacionais e regionais de promoção de investimentos, as quais visam a prospectar e atrair a parcela mais interessante dos investimentos estrangeiros. No Brasil, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apexbrasil) – antiga Apex – tem essas atribuições. Há outros órgãos governamentais que também têm interação no assunto, como, principalmente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Vale a pena desmistificar o papel do investimento estrangeiro no desenvolvimento dos países. Na verdade, o IDE não é o vilão apontado por alguns nem tampouco a panaceia apresentada por outros. Ao mesmo tempo que gera externalidades positivas, embora não automáticas, também provoca impactos na estrutura produtiva e de distribuição, assim como no balanço de divisas.

O IDE, embora de relevância crescente a partir da globalização e especialmente pós-década de 1990, tem papel apenas marginal no total do investimento realizado pela maioria dos países, representando, na média, algo próximo de 10%. Mesmo

Não se pode esperar do capital estrangeiro o protagonismo dos investimentos totais na China, ele não representa mais do que 15% da formação bruta de capital fixo.

Portanto, não se pode esperar do capital estrangeiro o protagonismo dos investimentos totais. Todas as experiências internacionais analisadas apontam para um papel dessa modalidade relevante qualitativamente, tendo em vista sua integração às cadeias de valor, mas o vetor principal das inversões está na atividade doméstica!

A inserção internacional brasileira sob o ponto de vista comercial, tecnológico e produtivo passa por um aprimoramento na regulamentação e de políticas de relacionamento com as empresas transnacionais. Tanto as já em operação como aquelas potenciais investidoras no Brasil. Algo que requer a combinação de ações governamentais, mas também da iniciativa privada.

19 de agosto de 2021

AFEGANISTÃO VIRA ALVO DE INFLUÊNCIA DE RÚSSIA E CHINA!

(O Estado de S. Paulo, 15) A saída das tropas dos Estados Unidos e o avanço fulminante do Taleban no Afeganistão abriram caminho para a disputa de Rússia e China por poder e influência na Ásia Central. A milícia tomou ontem Mazar-e-Sharif, a quarta maior cidade de país, e está a 11 km da capital, Cabul.

A retirada dos Estados Unidos do Afeganistão e o avanço fulminante do Taleban para controlar o país abriram o caminho para uma disputa entre China e Rússia por influência na Ásia Central. Enquanto Pequim aposta no seu peso econômico, Moscou usa a cooperação militar com as ex-repúblicas soviéticas para projetar seu poder na região.

Especialistas indicam duas razões principais para a entrada de chineses e russos no cenário geopolítico afegão. A primeira é o vácuo de poder deixado pelos americanos. Moscou viu nele uma oportunidade de projetar mais influência na Ásia Central, já que o Afeganistão é cercado por ex-repúblicas soviéticas, como Tajiquistão, Usbequistão e Turcomenistão.

Por ser um ponto de passagem entre Oriente Médio, sul da Ásia e Ásia Central, o Afeganistão é também um ativo estratégico para a China e sua Nova Rota da Seda, a rede de estradas, pontes, ferrovias e portos patrocinada pelo governo chinês em vários países na Ásia, Oriente Médio e África.

Além disso, o ressurgimento do Taleban preocupa chineses e russos, que têm um histórico de repressão a minorias islâmicas em seu próprio território. Mesmo as antigas repúblicas soviéticas estão na gênese de muitos movimentos radicais islâmicos que influenciaram o Taleban e a Al-Qaeda, como o MIU (Movimento Islâmico do Usbequistão).

“A crise no Afeganistão preocupa muito os países da Ásia Central, que há muito tempo têm problemas com militantes islâmicos que várias vezes foram treinados pelo Taleban”, explica Vanda Felbab-Brown, pesquisadora do Brookings Institution. “A Rússia conseguiu do Taleban o compromisso de impedir esses militantes de agirem na região e tem influência em termos financeiros e políticos entre líderes políticos e tribais no Afeganistão para assegurar seus interesses.”

Na semana passada, soldados russos fizeram exercícios conjuntos com militares de Tajiquistão e Usbequistão e anunciaram programas de parceria com as duas ex-repúblicas. Moscou tem se aproximado do Taleban desde 2018, na expectativa de o grupo impedir a infiltração de jihadistas em áreas de minoria islâmica na Rússia.

“O Kremlin age para garantir a segurança de seus aliados na Ásia Central”, lembrou ao Financial Times o cientista político russo Arkadi Dubnov, especialista na região. “É uma questão de imagem. Putin tem de convencer seus aliados que só ele pode garantir sua segurança.”

A China, por sua vez, tem interesses econômicos e estratégicos no Afeganistão, e ambos foram facilitados pela saída de cena dos americanos. Dois projetos de infraestrutura da Nova Rota da Seda passam pelo Afeganistão: uma estrada que ligará Cabul a Peshawar, no Paquistão, e outra rodovia que conectará a Província de Xinjiang, de maioria muçulmana, ao Afeganistão e ao Paquistão.

“Quando essas obras forem concluídas, Pequim poderá alcançar sua meta de aumentar o comércio e a extração de recursos naturais no Afeganistão”, afirma Derek Grossman, da consultoria Rand. “Estima-se que o país tenha reservas imensas de metais raros, cruciais para a indústria de ponta chinesa.”

Os interesses chineses e russos na Ásia Central, no entanto, não coincidem e podem provocar rivalidades no futuro. “A Rússia tem cumprido um papel de oferecer segurança a esses países e os define como área de influência”, acrescenta Vanda Felbab-Brown. “Já a China tem feito ofensivas diplomáticas e econômicas na região, o que Moscou vê como contrário a seus interesses.”

18 de agosto de 2021

AUSÊNCIA DO BRASIL DEIXA AMÉRICA LATINA MAIS DESINTEGRADA DO QUE NUNCA, DIZ EX-PRESIDENTE CHILENO RICARDO LAGOS!

(O Globo, 15) Os chefes de Estado da América Latina estão em falta em matéria de esforços pela integração regional. O recado foi dado pelo ex-presidente do Chile Ricardo Lagos (2000-2006) em entrevista ao GLOBO, na qual lamentou que a região esteja mais desintegrada do que nunca e, em consequência, excluída de grandes debates globais. “Precisamos ter uma voz comum para sermos escutados, e não estamos fazendo as coisas bem”, disse Lagos, que frisou o impacto negativo para as articulações regionais da saída do Brasil da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), anunciada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2020. Aos 83 anos, o ex-presidente, do Partido Socialista, elogiou o processo de mudanças políticas em seu país e disse esperar que o Chile passe a ter “uma Constituição adequada às necessidades de hoje”.

• Em artigo recente, o senhor fala em carência de uma política externa regional e menciona a ausência do Brasil da Celac…

A região nunca esteve mais desintegrada do que está hoje. É difícil pensar, olhando para trás, em que momento tivemos a dificuldade que temos hoje de nos expressarmos conjuntamente sobre temas comuns. A pandemia é a terceira grande crise do século XXI. A primeira foi a desencadeada pelo atentado às Torres Gêmeas e suas consequências. Sabíamos onde devíamos discutir, no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A segunda foi a crise financeira de 2008, e naquele momento houve uma resposta. O presidente George W. Bush convidou chefes de Estado a Washington e nasceu o G-20, lá estavam Brasil, México e Argentina. A região entendeu que, se teríamos reuniões presidenciais ou de ministros da Fazenda, devíamos ter reuniões prévias entre os latino-americanos para que esses três países fossem uma espécie de representação da região. Era natural, conversávamos entre nós. Quando falamos de política externa, estamos falando dos interesses concretos de cada país. É preciso coordenar os interesses de cada país e ter consensos na região.

• A ausência do Brasil da Celac e em algumas articulações regionais, por exemplo entre Argentina e México, têm impacto na região?

Para ser franco, sem o Brasil, ou sem o México, a América Latina dificilmente existe. É claro, [a ausência do Brasil da Celac] afeta muito. Diante desta crise, da pandemia, não existe um lugar onde discutir. Cada governante resolveu sozinho como conseguir respiradores, vacinas, nos acostumamos a que os países façam política com suas vacinas, a diplomacia das vacinas. Juntos poderíamos encontrar caminhos, mas não há iniciativas.

• A América Latina está ficando à margem de debates globais?

É evidente. Hoje, alguns problemas excedem a soberania de cada país. Quando ninguém menos que Joe Biden defende a criação de um tributo sobre grandes empresas supranacionais, como a América Latina não reage e participa, em conjunto, dessa discussão? Na última reunião de ministros da Economia do G-20, foi acordado um encontro em outubro para tomar a decisão final. Estão discutindo se a alíquota será de 15% ou 25%. Caramba, deveríamos estar participando dessa discussão.

• A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi desarticulada e o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul) não tem relevância. O que existem hoje são subgrupos, por exemplo entre Brasil e Colômbia ou entre Argentina e México…

Mais do que subgrupos, eu falaria em coincidências ideológicas. Mas, em política externa, o que existem são interesses de países. O multilateralismo obriga a ter certas normas gerais. O que convém à América Latina é ter uma só voz em matéria de vacinas ou medidas de combate à pandemia. O que não é possível é dizer que a Unasul é para os esquerdistas e o outro grupo é mais para a direita. Assim não se faz política externa. Precisamos ter uma voz comum para sermos escutados. Se queremos ser ouvidos pelo resto do mundo, temos de aprender a nos ouvirmos entre nós. Os governantes da América Latina, nesse aspecto, estão em falta.

• Em suas redes sociais, o senhor elogiou uma recente reunião entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Por quê?

Fui presidente e convivi com Cardoso e com Lula. Me pareceu, que frente à situação do Brasil, que está fora de tudo pelas atuações do presidente Bolsonaro, era importante que esses dois líderes democratas tivessem esse gesto pelo bem do Brasil. Foi um bom exemplo para a América Latina. Esta crise foi muito profunda, evidenciou nossas fraquezas, a enorme desigualdade. Também temos questões importantes como as mudanças climáticas, o grande desafio do século XXI. Diante desses desafios, podemos ter um olhar comum? Isso não tem a ver com esquerdas e direitas, tem a ver com a maneira de nos aproximarmos dessa realidade. Mas cada um está vendo como resolver sozinho, e assim não seremos ouvidos. No mundo global, pesam os grandes blocos. O exemplo da União Africana é relevante, ou da União Europeia. O cenário está mudando, os EUA estão retornando com força e encontrando um mundo diferente, com uma China mais empoderada. O que faz a América Latina, entre EUA e China? Hoje, em boa parte de nossos países, a China é o sócio comercial número um ou quase.

• A visita do conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, a Brasil e Argentina evidenciou a preocupação dos EUA com a presença chinesa, mas, até agora, a agenda de Biden para a América Latina foi pobre…

[A região] não aparece entre as prioridades. Há uma pequena inquietação pela América Central, relacionada a questões de imigração, temas de política interna. Existe uma falência de Biden em relação à América Latina.

• Existem alertas sobre a democracia na Nicarágua, na Venezuela, e até mesmo o Brasil hoje é mencionado como preocupação nesse sentido. O senhor está preocupado com a democracia na região?

Tínhamos dado grandes passos em matéria de democracia na região. Agora temos algumas dificuldades. A crise do coronavírus desencadeou demandas sociais muito importantes, e há dificuldades para satisfazê-las. Ao mesmo tempo, estamos numa revolução ainda maior, passamos de uma revolução industrial à revolução digital, que muda todos os parâmetros. O desafio é nos adaptarmos. As pessoas falam todos os dias através das redes sociais. A perda de confiança nas instituições democráticas preocupa. Como se faz, então, para aprender a ouvir e responder?

• A revolução digital ajuda a explicar a eleição de tantos independentes para a Convenção Constitucional chilena?

Esse grupo se formou através do WhatsApp, se coordenou assim. Mas, veja, na mesma eleição dos constituintes, também foram eleitos prefeitos e vereadores. E, nesse último caso, venceram os partidos tradicionais do Chile. Depois, nas primárias [para a escolha dos candidatos à Presidência da esquerda e da direita], venceram os candidatos mais próximos do centro, e isso também fala sobre como é o país.

• Qual é sua expectativa sobre este novo Chile?

Estamos introduzindo instituições novas. Na Convenção, temos igual número de mulheres e homens. É algo inédito no mundo e melhora a qualidade dos parlamentos, é um olhar diferente. Quero pensar que teremos uma Constituição adequada às necessidades que o país tem hoje e acho que aprendemos muito.

17 de agosto de 2021

CERCO ÀS ARMAS FANTASMAS!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 12) Nos EUA, os departamentos de polícia estão vendo fantasmas – armas fantasmas. Elas são armas de fogo particulares que não têm número de série e, portanto, são impossíveis de rastrear se forem usadas para cometer algum crime. E elas estão em alta. No ano passado, 8.712 dessas armas foram recuperadas em cenas de crime e registradas no Departamento de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF), mais do que o triplo do número de 2017.

Em 2020, a polícia de Baltimore recuperou 126 armas fantasmas, 15 das quais diretamente ligadas a chacinas. Quase um quarto das armas fantasmas apreendidas pelo Departamento de Polícia de Baltimore eram de pessoas muito jovens para comprar uma arma de fogo legalmente.

Parte da culpa é da tecnologia. A internet permitiu que as pessoas comprassem kits ou componentes e os montassem em casa, construindo armas sem números de série. As pessoas com mais recursos também podem produzi-las com impressoras 3D. Os sites que vendem “receptores 80%”, que são armas de fogo quase prontas, as quais exigem tempo e ferramentas para serem montadas, prosperaram.

Em geral, tudo que você precisa para montar as peças da arma de fogo são perfis de metal, lixa, WD-40, um martelo, chave de fenda, torno de bancada e furadeira: os kits chegam com instruções e links para tutoriais em vídeo. “Isso faz com que você esteja a um passo de inaugurar sua própria fábrica de armas”, orgulha-se uma empresa, a 80 Percent Arms, em seu anúncio online para um kit de montagem doméstica de AR-15.

Esses vendedores estão explorando as lacunas para seu próprio benefício. Por estarem vendendo kits inacabados e armas não concluídas, essas empresas não estão tecnicamente obrigadas a marcar um número de série na “estrutura” ou “receptor”, que contém todas as peças operacionais da arma.

Nem obrigadas a conduzir uma verificação de antecedentes dos compradores, como os negociantes de armas licenciados precisam fazer. Isso significa que as pessoas que podem ser impedidas de comprar uma arma, como criminosos condenados, doentes mentais ou menores de idade, podem fazê-lo com relativa facilidade.

Policiais e políticos estão preocupados. Em 2019, a Comissão de Segurança Interna da Câmara argumentou em um relatório que “terroristas e outras pessoas mal-intencionadas podem tentar explorar a disponibilidade dessas armas para fins perigosos” e chamou as armas fantasmas de “ameaça à segurança interna”. Elas já provaram ser uma ameaça à segurança pública. Perpetradores de várias chacinas, como há dois anos em Dayton, Ohio, que matou nove pessoas, usaram armas de fogo montadas em casa.

Vários níveis de governo estão começando a fechar o cerco, até mesmo legislaturas estaduais e condados. Até o momento, neste ano, dez Estados introduziram projetos de lei para regulamentar as armas sem números de série – e se espera que outros projetos sejam apresentados ainda neste ano.

Governadores de vários Estados, como Nevada e Havaí, assinaram leis que miram as armas fantasmas. “Há um grande interesse nisso entre os legisladores estaduais”, diz Kris Brown, da Brady, uma organização de controle de armas. “No mundo hiperpartidário em que vivemos, esse tipo de projeto de lei tem uma chance razoável de passar até em algumas legislaturas conservadoras”, acrescenta.

Enfrentando a resistência republicana às novas leis sobre armas, o governo de Joe Biden não pressionou por uma solução no Congresso. Em vez disso, visa fazê-lo por meio de ordem executiva, exigindo que o Departamento de Justiça elabore maneiras de conter as armas fantasmas. O departamento propôs exigir que todos os fornecedores de kits contendo as peças para montar uma arma de fogo fizessem verificações de antecedentes; determinar que os fabricantes incluam um número de série nas “estruturas” das armas de fogo vendidas em kits; e obrigar os revendedores licenciados pelo governo federal a adicionarem um número de série a qualquer arma sem número de série que vendam. O lobby das armas tem ficado mais silencioso em suas críticas do que o normal. Comentários sobre as regras propostas devem ser feitos no mês que vem.

Essa repressão funcionará? A exigência de um número de série e verificação de antecedentes dá aos policiais mais poder de fogo para processar pessoas que se envolvem em contravenções. No entanto, os EUA já têm tantas armas em circulação que bandidos que desejem uma arma encontrarão facilmente uma maneira de obtê-la. As leis estaduais não podem fazer muito, porque as armas de fogo podem fluir de Estados vizinhos com regras mais flexíveis. Uma lei federal seria muito melhor.

Um negociante de armas de fogo com licença federal prevê que alguns vendedores de peças de armas tentarão encontrar brechas. Já houve uma corrida a kits de armas AR-15, os quais estão esgotados em muitos sites. Sempre que as pessoas pensam que um determinado tipo de arma de fogo será alvo de um novo regulamento, aumentam as vendas. Por exemplo, a venda de AR-15S disparou após o massacre de Sandy Hook, em 2012, quando as pessoas pensaram que os democratas poderiam proibir as armas de assalto – eles tentaram, mas os republicanos barraram a proposta.

A forma mais eficaz de combater a violência armada é por meio de verificações universais de antecedentes nas vendas de armas, diz Adam Winkler, autor do livro Gunfight. Mas, enquanto a tecnologia barateia e facilita a criação de armas por particulares, o processo de verificação de antecedentes pode perder parte de sua eficácia, diz ele.

Pegar pessoas que estão vendendo e fabricando armas ilicitamente também exigiria muito mais recursos. No entanto, o ATF está sem financiamento e recursos humanos. Teve apenas um diretor permanente confirmado pelo Senado em apenas 2 dos últimos 15 anos, devido à oposição efetiva do lobby próarmas. Apesar dos melhores esforços dos políticos, as armas fantasmas podem assombrar os EUA por muitos anos

16 de agosto de 2021

O ATERRORIZANTE TRIUNFO DO TALEBAN!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 16) A humilhação dos Estados Unidos e de seus aliados do Ocidente dificilmente poderia ser mais severa.

Nos últimos anos, o palácio presidencial em Cabul, conhecido como Arg, ou cidadela, foi um oásis de calma em uma cidade agitada e enervante. Para chegar até lá, os visitantes tinham que passar por cerca de um quilômetro e meio de postos de controle com comandos cada vez mais bem armados do Exército afegão. Dentro do pátio do século 19, funcionários do governo bebericavam lattes de máquinas de café, cercados por jardins bem cuidados, e discutiam a política do lado de fora, no Afeganistão de verdade.

Quando os oficiais do país visitaram pela última vez as autoridades do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, explicaram que, na opinião deles, o Taleban estava enfraquecido. A única razão pela qual eles não haviam sido derrotados pelo exército do Afeganistão apoiado pelos americanos, na opinião daqueles oficiais, era que o governo do Afeganistão não queria pôr os civis em perigo ao partir para a ofensiva. “Eles não são capazes de conquistar uma vitória militar”, disse um oficial. “Nossas forças especiais são muito fortes. O Taleban só pode atacar e fugir.”

Domingo helicópteros iam e voltavam do Arg, retirando os mesmos oficiais. Uma nuvem de fumaça emergia da embaixada americana, semelhante a uma fortaleza, enquanto os funcionários queimavam documentos confidenciais. Isso ocorreu praticamente um mês depois de o presidente Joe Biden declarar que “não haverá nenhuma circunstância em que você verá pessoas sendo resgatadas do telhado” da embaixada americana, como em Saigon em 1975, quando helicópteros foram fotografados pairando sobre o complexo, transportando diplomatas para o aeroporto.

Enquanto isso, Zabihullah Mujahid, o porta-voz do Taleban em Doha, a capital do Catar onde os taleban têm sua unidade diplomática e política, declarou magnanimamente que as forças do Taleban interromperiam seu avanço nos portões da cidade enquanto as negociações para a rendição continuassem. Ashraf Ghani, presidente do Afeganistão desde 2014, fugiu do país com seus assessores mais próximos. O Estado afegão, construído ao longo de duas décadas com trilhões de dólares, parece ter desaparecido no ar.

Como um governo com 350 mil soldados treinados e equipados pelos melhores exércitos do mundo entra em colapso tão rapidamente? Em 1975, o exército do Vietnã do Norte, apoiado por uma superpotência, levou meses para avançar pelo Vietnã do Sul, lutando arduamente pelo território.

O Taleban, que se acredita não ter mais do que 200 mil soldados, armados, em sua maioria, com equipamentos que confiscaram de seus inimigos, tomou todos os centros urbanos do Afeganistão em pouco mais de uma semana, geralmente sem muita resistência. A resposta parece ser que, o que eles não têm em força, compensam em inteligência, determinação e perspicácia política.

No ano passado, diplomatas em Doha esperavam que o Taleban pudesse ser obrigado a negociar com o governo de Ghani para concordar com algum tipo de pacto de divisão de poder. Os rebeldes evidentemente perceberam que seria mais vantajoso negociar com os subordinados de Ghani, cidade por cidade, e, desse modo, simplesmente puxar o tapete debaixo dele.

O que significa a tomada do Afeganistão pelo Taleban? Apesar de todas as suas promessas de mostrar misericórdia pela vitória, poucos entre aqueles da elite intelectual do país estão tranquilos. Depois que os taleban tomaram Spin Boldak, uma cidade na fronteira com o Paquistão que estava entre as primeiras a ser conquistada no fim de julho, relatos confiáveis surgiram rapidamente depois sobre dezenas de apoiadores do governo sendo massacrados.

Em Kandahar, no final de julho, quando os insurgentes começaram a tomar os arredores da cidade, eles sequestraram Nazar Mohammad, um famoso comediante, e o assassinaram. Relatos de Kandahar dizem que os taleban armados estão indo de porta em porta em busca de pessoas que trabalharam para governos ocidentais. Nas últimas semanas, milhares de refugiados se reuniram nos parques de Cabul. Centenas se aglomeraram nos centros de solicitação de vistos, esperando por um espaço nas retiradas de última hora organizadas pelas potências do ocidente.

O braço político do Taleban em Doha alegou que eles não são mais os teocratas sangrentos que governaram o Afeganistão de 1996 a 2001, quando criminosos acusados foram executados publicamente nos campos de futebol de Cabul, entre eles mulheres que foram apedrejadas até a morte por adultério.

Seus negociadores têm enfatizado que não há regra no Islã contra a educação das mulheres, por exemplo. Contudo, a desconexão entre as declarações feitas no Catar e o que está sendo feito pelos comandantes do Taleban no Afeganistão atualmente é do tamanho de um cânion. Em Herat, onde 60% dos alunos da universidade eram mulheres, elas já teriam sido obrigadas a voltar para suas casas. Aquelas que trabalham foram instruídas a ceder seus empregos a parentes do sexo masculino. Quanto à educação das meninas, um comandante do Taleban, entrevistado pela BBC, foi absolutamente claro.

“Nem uma única menina foi à escola em nosso vilarejo e no nosso distrito (…) as instalações não existem e não permitiríamos isso de qualquer modo.”

Mesmo o melhor cenário possível, onde a liderança do Taleban decide mostrar que leva a sério reformas, parece desolador. Com certeza, o governo do Afeganistão fez apenas progressos esporádicos no aumento da qualidade de vida dos afegãos comuns, até mesmo nas cidades, onde teve muito mais controle do que no campo.

Sua corrupção foi profunda e irritante e, sem dúvida, parte da razão pela qual o Taleban conseguiu conquistar o país com tanta eficácia. Imagens de vídeos de soldados do Taleban caminhando pelo opulento interior da casa capturada de Abdul Rashid Dostum, um senhor da guerra e ex-vice-presidente, que teria fugido para o Usbequistão, evidencia a podridão do Estado. E, mesmo assim, sustentado por um tsunami de ajuda financeira, o governo educou as pessoas e poucos afegãos morreram de fome. À medida que as embaixadas fecham e os estrangeiros fogem, o auxílio que sustentou a economia do país e ajudou a educar suas crianças, inclusive as meninas, certamente desaparecerá agora. Uma catástrofe humanitária poderia acontecer como resultado rapidamente.

A humilhação dos Estados Unidos e de seus aliados do ocidente dificilmente poderia ser mais severa. Uma vez que a remoção de seus cidadãos – e daqueles poucos trabalhadores afegãos sortudos o suficiente para conseguir uma passagem – termine, os governos do ocidente terão pouca escolha a não ser aceitar que o Taleban está no poder. No fim dos anos 90, o governo do Taleban foi reconhecido apenas por um punhado de países, particularmente por Paquistão e Arábia Saudita. Naquela época, a Aliança do Norte anti-taleban, um conjunto de exércitos concentrados no norte do Afeganistão, lutou em conjunto contra o Taleban.

Dessa vez, o grupo foi sagaz o suficiente para derrotar o norte primeiro. Hoje, as autoridades do Taleban já se reuniram com diplomatas de várias outras potências. No fim de julho, uma delegação de insurgentes se encontrou com o ministro das Relações Exteriores da China. A embaixada da Rússia declarou que não vai deixar Cabul. A União Europeia prometeu “isolar” o novo governo caso ele se apodere do poder por meio de violência. Isso parece menos e menos crível a cada minuto.

13 de agosto de 2021

CONFLITO COM RADICAIS ISLÂMICOS EM MOÇAMBIQUE CRESCE E JÁ ENVOLVE 6 PAÍSES!

(Folha de SP, 06) As imagens do navio de patrulha sul-africano SAS Makhanda na costa de Moçambique e a chegada, no último final de semana, de uma coluna de blindados Casspir, que um dia já foram usados pelo regime do apartheid contra manifestantes, marcaram o início de uma nova etapa no combate a radicais islâmicos na província de Cabo Delgado.

Tropas sul-africanas durante operação militar na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique – Alfredo Zuniga/AFP. O conflito iniciado em 2017, que já causou a morte de 3.000 pessoas e o deslocamento de 800 mil no norte moçambicano, adquire agora contornos regionais.
Ao menos cinco países africanos enviaram tropas a Moçambique ou estão em vias disso, aumentando a escala do confronto e os riscos envolvidos. Localizado no extremo norte da ex-colônia portuguesa, Cabo Delgado é historicamente uma região pobre e isolada, que pareceu ter tirado a sorte grande há dez anos, com a descoberta de vastos depósitos de gás natural offshore.

Como rotineiramente ocorre na África, no entanto, a riqueza mineral trouxe junto mais instabilidade. No caso moçambicano, isso se traduziu no surgimento da facção Ansar al-Sunna (“defensores da tradição”), que reúne cerca de 3.000 combatentes e alega ter ligações com o Estado Islâmico.

Em março deste ano, o grupo fez sua ação mais ousada, na cidade de Palma, usada como base por diversos trabalhadores estrangeiros. O ataque deixou dezenas de mortos e provocou a suspensão das operações pela francesa Total, que detém a concessão para exploração do gás.

Gerou também uma reação por parte do governo de Moçambique, que reverteu sua relutância inicial e finalmente pediu ajuda internacional.

“No começo, o governo de Moçambique tratava a questão como um caso de banditismo comum, de perturbadores da ordem que seriam vencidos rapidamente. Houve uma certa ingenuidade, mas os fatos acabaram se impondo, porque a situação se complicou”, diz Salvador Forquilha, que pesquisa o assunto no Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (Iese), de Moçambique.

A ação multinacional envolve cinco países, além de Moçambique. Quatro deles integram uma força de estabilização da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral), um bloco regional.

É liderada pela África do Sul, que fornece o contingente mais numeroso (1.500 homens) e a maior parte do equipamento militar pesado. São parte desta força também, por enquanto, Zimbábue, Botsuana e Angola. Há ainda informações extraoficiais de que tropas da Tanzânia já atuariam em território moçambicano.

Complicando o cenário, há mais mil homens enviados por Ruanda, que operam fora da cadeia de comando da força da SADC, após uma negociação bilateral com o governo moçambicano.

Além disso, equipes militares de EUA e União Europeia oferecem treinamento às Forças Armadas moçambicanas. O governo ainda contratou mercenários russos e sul-africanos para ajudar a combater os rebeldes, que teoricamente já saíram, mas suspeita-se que continuem ativos.

“Se não houver coordenação entre essas diferentes forças, a operação vai se tornar uma bagunça”, diz Jasmine Opperman, analista de defesa sul-africana que vem acompanhando a crise.

As tropas de Ruanda estariam sendo financiadas pela França, embora não haja confirmação dos governos envolvidos.

Com experiência em missões de paz no continente e uma reputação de profissionalismo e impetuosidade, os ruandenses foram os primeiros a chegar. Eles apregoam terem já assegurado a circulação em áreas antes tomadas pelos radicais e matado dezenas deles em combate.

Já a missão da SADC tem procedido de forma mais lenta e afirma que vai permanecer por apenas três meses, o que analistas acham completamente irrealista.

“Com relação a estradas e áreas de fronteira, é possível um controle mais rápido, mas para vencer os insurgentes é preciso entrar no mato, e isso não é fácil. Não é algo que dure menos de um ano”, afirma Opperman.

Os radicais adotam táticas de guerrilha e métodos consagrados por outros terroristas, como explosões e a decapitação de civis e militares.

Apesar disso, diz Alex Vines, especialista do centro de estudos britânico Chatham House, é um exagero vê-los apenas como uma extensão de outros grupos islâmicos.

“Essa rebelião é menos sobre jihadismo e mais sobre questões práticas, como a falta de direitos para a população”, afirma Vines. “A suposta ligação com o Estado Islâmico é mais uma forma de os militantes conseguirem atenção global.”

Integrantes de contingente militar de Ruanda se preparam para entrar em operação em Cabo Delgado, no norte de Moçambique – Cyril Ndegeya/Xinhuan. Segundo ele, o norte de Moçambique é culturalmente muito próximo de regiões da África central, com forte tradição islâmica.

“Cabo Delgado está numa das pontas do chamado ‘corredor suaíli’, com ligações pessoais e culturais que vão até a Somália. É uma região de influência islâmica, mas não necessariamente radicalizada”, afirma Vines.

Ele estima que mais de 90% dos combatentes sejam moçambicanos ou vindos da Tanzânia, país que faz fronteira com Cabo Delgado. Um punhado apenas seria proveniente de outros países ou do Oriente Médio.

“Por outro lado, caso o conflito se expanda, Cabo Delgado pode começar a atrair jovens radicalizados de outras partes do mundo, como ocorreu com Iraque e Síria em anos recentes”, afirma o pesquisador.

O cenário de uma guerra regional interminável, envolvendo cada vez mais países, neste momento não é o mais provável, dizem os analistas. “Os países africanos não têm recursos para manter-se em Cabo Delgado indefinidamente”, afirma Opperman.

Apenas a África do Sul estimou seus gastos em cerca de R$ 350 milhões, uma conta que vem sendo objeto de críticas internas no país.

Apesar disso, a avaliação por ora é de que é necessário combater o radicalismo islâmico antes que cresça e se transforme em mais um foco de instabilidade no continente.

Só o projeto de extração de gás em Cabo Delgado é avaliado em US$ 20 bilhões, e não tem previsão de retomada.

Além disso, cerca de 1 milhão de pessoas precisam de ajuda humanitária em razão do conflito, segundo o Programa Alimentar Mundial, da ONU.

“O risco de o radicalismo islâmico se alastrar pela África austral existe. Em ataques feitos em Cabo Delgado, já houve indícios de presença de cidadãos sul-africanos”, diz Forquilha.

Segundo ele, mesmo que a insurgência seja controlada, a tensão na região não deve desaparecer de imediato.

“Tudo indica que teremos uma zona com uma espécie de violência endêmica, como ocorre no leste da República Democrática do Congo. E oxalá o grupo não se fragmente, porque isso tornará o combate muito mais complicado”, afirma o pesquisador.

O governo de Moçambique, que tem cerca de 4.000 militares atuando na região, tem adotado uma estratégia que mescla uso de força e gestos diplomáticos.

Num pronunciamento no final de julho, o presidente Filipe Nyusi agradeceu a presença de tropas estrangeiras e prometeu manter as operações de combate até derrotar a insurgência.

Ao mesmo tempo, o ex-presidente Joaquim Chissano (1986-2005), liderança ainda bastante influente no país, propôs que em algum momento haja negociações com os radicais.

“É provável que no curto prazo a situação dê uma certa acalmada. Mas a grande questão é: após a poeira baixar, o que impede que o problema apareça de novo?”, afirma Vines.

12 de agosto de 2021

FRESNILLO, A CAPITAL DO MEDO NO MÉXICO!

(The New York Times/O Estado de S. Paulo, 04) A violência já era terrível quando granadas explodiram do lado de fora de sua igreja em plena luz do dia, há cerca de cinco anos. Depois, as crianças da cidade foram sequestradas, desaparecendo sem deixar pistas. Em seguida, os corpos dos executados foram despejados nas ruas da cidade.

E, então, chegou o dia, no mês passado, em que homens armados invadiram sua casa, arrastaram o filho de 15 anos e dois dos amigos dele para fora e os mataram a tiros, deixando Guadalupe – que não quis ser identificada pelo nome completo por medo dos assassinos – apavorada demais para sair de casa.

“Não quero que a noite chegue”, disse ela em meio às lágrimas. “Viver com medo não é vida de jeito nenhum.”

Para a maioria da população de Fresnillo, uma cidade mineira no centro do México, uma vida com medo é a única que conhecem. Ao menos 96% dos residentes dizem que não se sentem seguros, a maior porcentagem de qualquer cidade do México, de acordo com uma pesquisa recente da agência nacional de estatísticas do país.

A economia pode ir de vento em popa ou quebrar, presidentes, partidos e suas promessas podem ir e vir, mas para seus habitantes, assim como para muitos no México, há uma sensação crescente de que não importam as mudanças, a violência continua.

Desde que o governo do México começou sua guerra contra os cartéis de drogas, há aproximadamente 15 anos, as estatísticas de assassinatos aumentaram inexoravelmente.

Decepção. Em 2018, durante sua disputa pela presidência, Andrés Manuel López Obrador ofereceu uma visão grandiosa para refazer o México – e uma forma radicalmente nova de combater a violência. Ele romperia com as táticas fracassadas de seus antecessores, afirmou. Em vez de prender e matar traficantes como os líderes anteriores haviam feito, ele focaria nas causas da violência: “abraços, não balas”, defendia. E conseguiu ganhar as eleições.

Mas três anos depois de sua vitória esmagadora, e com seu partido, Movimento Regeneração Nacional(morena), no controle do Congresso, o padrão de mortes continua. “Estamos vivendo no inferno”, disse Victor Piña, que concorreu à prefeitura de Fresnillo nas eleições de junho e viu um assessor ser morto a tiros ao lado dele durante um evento antes da campanha.

Zacatecas, Estado em que fica a cidade de Fresnillo, tem a maior taxa de homicídios do país. Ultimamente, o lugar se tornou um show de terror nacional, com cadáveres encontrados pendurados em pontes, enfiados em sacos plásticos ou até mesmo amarrados a uma cruz.

Fazendo fronteira com outros oito Estados, Zacatecas há muito tem sido um ponto central para o narcotráfico; um ponto de intersecção entre o Pacífico, para onde os narcóticos e produtos para fabricação de drogas são enviados, e os Estados do norte ao longo da fronteira com os Estados Unidos. Fresnillo, que fica no centro de importantes estradas e rodovias, é estrategicamente vital.

Mas durante grande parte de sua história recente, os residentes dizem que foram, em grande parte, deixados em paz. Isso começou a mudar por volta de 2007 e 2008, quando a investida do governo contra os cartéis os levou a se fragmentar, evoluir e se espalhar.

Recentemente, a região tem sido envolvida em uma batalha entre dois dos grupos de crime organizado mais poderosos do país: o Cartel de Sinaloa e o Cartel da Nova Geração de Jalisco.

Presos no meio do conflito estão pessoas como Guadalupe. Ela se lembra de ficar sentada na frente de casa com os vizinhos até a meia-noite, quando era uma menina. Agora, a cidade fica deserta depois que o sol se põe.

Guadalupe não deixa os filhos brincarem do lado de fora sem supervisão, mas mesmo assim não conseguiu impedir que a violência destruísse sua família. Na noite em que seu filho foi assassinado, quatro homens armados invadiram sua casa, arrastaram para fora seu filho, Henry, e dois amigos que estavam dormindo. Os tiros foram disparados e, em seguida, os assassinos foram embora. Foi Guadalupe quem encontrou os corpos dos adolescentes.

10 de agosto de 2021

RIO NA VANGUARDA CONTRA A OBESIDADE INFANTIL!

(Armínio Fraga, Guilherme Frering e Rita Lobo – O Globo, 08) O enfrentamento da obesidade na infância e na adolescência, tema debatido no mundo todo, pode ter no Rio de Janeiro um exemplo para o país. A Câmara dos Vereadores do município aprovou em primeira discussão o Projeto de Lei (PL) 1.662/2019, que, se aprovado em definitivo, fará da cidade modelo para o Brasil e para a América Latina. O texto proíbe a venda de produtos ultraprocessados e bebidas açucaradas nas escolas.

A obesidade infantil é um problema crescente. Na Região Sudeste, segundo dados do Ministério da Saúde, o excesso de peso na infância atingiu em 2018 quase 40% dessa população. No Rio, dados do Panorama da Obesidade em Crianças e Adolescentes do Instituto Desiderata mostram que 30,2% das crianças de 5 a 9 anos apresentavam excesso de peso em 2019.

A obesidade é fator de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, hoje responsáveis por 71% do total de mortes no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Conter essa epidemia silenciosa exige iniciativas desde cedo. No caso da alimentação, especial atenção ao consumo de produtos ultraprocessados. Estudos comprovam que esses alimentos, produzidos com aditivos químicos, como conservantes e aromatizantes, trazem riscos à saúde ao substituir a comida de verdade. O Guia Alimentar para a População Brasileira, que orienta os profissionais da saúde, recomenda que se evite o consumo desses produtos — como salgadinhos de pacote e bebidas açucaradas.

Mesmo com o entendimento de que a alimentação saudável é fundamental, não é fácil garantir comida de verdade em todas as refeições. Por isso é tão importante essa iniciativa dos vereadores do Rio. O PL aborda o outro espaço que demanda atenção especial: as escolas. Crianças e adolescentes permanecem nelas por um longo período do dia, e cerca de 200 dias do ano. Aí consomem de uma a duas refeições no horário letivo — 30% a 50% de sua ingestão diária. Nas particulares, 30% das calorias consumidas por crianças e adolescentes vêm de ultraprocessados. E, nas públicas municipais do Rio, em 2020, 61% das refeições continham esses produtos.

O PL viabiliza a transformação das escolas em espaços saudáveis, liberando-as dos alimentos ultraprocessados e das bebidas açucaradas. Numa tacada, a implementação da lei melhoraria a alimentação de mais de 1 milhão de pessoas, reduzindo sobrepeso e obesidade entre crianças em idade escolar, sem aumentar em um centavo o gasto público. Segundo estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), preparos mais saudáveis podem apresentar um custo menor que as opções ultraprocessadas e até permitir economia na compra de alimentos, a depender do cardápio selecionado. A proibição da venda desses alimentos não prejudicaria emprego nem renda dos cantineiros escolares. Informações sobre o PL e sobre como apoiar sua aprovação estão no site da campanha “Quem quer prevenir a obesidade infantil, levanta a mão!”.

O PL atraiu atenção multipartidária. Capitaneado por Cesar Maia (DEM-RJ), o texto é da autoria de 15 vereadores e foi assinado por outros 14, de 11 partidos diferentes. Nessa primeira votação, obteve 75% dos votos dos presentes, indicando que pelo menos 30 representantes cariocas estão conectados com o tema. O PL aguarda agora a segunda votação, prevista para as próximas semanas. Basta que os mesmos vereadores repitam seu voto e que o prefeito sancione o projeto para que o Rio de Janeiro se transforme em exemplo de liderança num dos temas mais prementes da sociedade contemporânea

09 de agosto de 2021

CUSTO BRASIL E DESINFORMAÇÃO!

(José Roberto Afonso, economista, professor do Instituto Brasileiro de Direito Público e pesquisador da Universidade de Lisboa – O Globo, 07) Distorções locais que tornam o país mais caro, conhecidas como custo Brasil, ganharam novo componente: o custo da desinformação. A pior conta passa pelas incomensuráveis perdas na saúde. Mas há também perdas de oportunidades em matérias como tributação. Muitos opinam, até nos jornais, sem compreender os efeitos das radicais transformações econômicas e sociais puxadas pela digitalização e aceleradas pela pandemia.

A proposta de reformar o Imposto de Renda é um exemplo. O modelo foi redesenhado junto com a moeda do real e logrou aumentar a arrecadação, facilitar as declarações, criar o Simples e ser um caso raro de imposto sem maior disputa na Justiça. Porém a tentativa de aceno eleitoral gerou um projeto sem objetivo e um debate sem evidência empírica.

É emblemática a insistência em confundir a “pejotização” com empreendedorismo e, sobretudo, em ignorar que renúncia tributária é um cálculo teórico (que nunca resultaria em entrada de igual valor nos cofres públicos). O Brasil conta com 13 milhões de inscritos no MEI e mais de 4,8 milhões no Simples — um grau de formalização reconhecido internacionalmente. Estes geram apenas 2,6% da arrecadação agregada do IR e contribuição do lucro — ou seja, estão longe de ser o problema. Para ter uma ideia, os donos dessas empresas declararam ao IRPF uma retirada anual de R$ 120 bilhões, com uma média de contribuintes por faixa de renda sempre abaixo de R$ 20 mil, enquanto acionistas de grandes empresas retiraram mais de R$ 400 bilhões.

É um caso de política pública compreender as profundas mudanças nos mercados de trabalho e de serviços impulsionadas pela revolução digital e pela pandemia. Os regimes tributários simplificados contemplam boa parte dos empreendimentos dinâmicos — tanto que países ricos procuram expandir o equivalente ao Simples e vinculá-lo à inovação.

Quem olha só o retrovisor ainda acha que serviços são basicamente para famílias, prestados por pequenas firmas, ou profissionais que, como se fossem masoquistas, desdenhariam ter carteira assinada e benefícios. Quem olha o entorno de sua vida saberá que a atual economia — cada vez mais automatizada, especializada, produtiva — é dominada por serviços dinâmicos, exercidos por profissionais multifacetados, que não precisam estar num local fixo e vendem basicamente para outras empresas, muitas das quais produzem e empregam pouco, mas ainda assim se tornam as mais valiosas das Bolsas. Quem tratar a tributação dessa economia emergente como se fosse a de uma fábrica, com mercadorias palpáveis e contáveis, imporá mais um custo pesado a um país sem crescimento e desenvolvimento.

Não é por acaso que, no declarado pelas pessoas físicas em 2019, as retiradas dos empreendedores cresceram duas vezes mais rápido que os dividendos dos maiores capitalistas, e ambos 17 vezes mais que os salários. No declarado pelas pessoas jurídicas, a razão entre tributos federais e receita bruta apurada no regime do Simples (8,2%) supera a do regime do lucro real (7%) — e ainda se fala em renúncia. O lado mais dinâmico da economia e da arrecadação passa cada vez mais pelos regimes tributários diferenciados, referidos equivocadamente como subsidiados. Presume-se que eles deveriam lucrar ao menos 8% do que faturam, quando mal chega a 3% a mesma proporção verificada pela Receita Federal nas maiores corporações brasileiras. Há quem critique, ainda, que a linha de corte do faturamento para microempresas no Brasil fique muito acima dos países ricos, mas não conta que lá serve para os que estão abaixo ficarem isentos de IVA e até de IRPJ, enquanto aqui a menor das empresas sempre contribui para o Simples (ao menos 4,5% sobre o que fatura). A maior das renúncias de nosso sistema é a da racionalidade.

O atual debate do IR e da renúncia tributária ilustra como, sem saber ao certo onde se está, se acha possível dizer aonde ir. Equívocos na formulação da política fiscal podem impor aos brasileiros um preço alto, que vai muito além de recolher mais ou menos impostos. Quando a desinformação se restringia às redes sociais, não contaminava tão diretamente o custo Brasil.

06 de agosto de 2021

LUIZ GAMA: ESCRITOS INÉDITOS E FILME AJUDAM A RECUPERAR A IMPORTÂNCIA DO ADVOGADO NA LUTA ANTIRRACISTA!

(Bolívar Torres – O Globo, 05) Especialista em Luiz Gama (1830-1882), o pesquisador Bruno Rodrigues de Lima já trocou ideias com admiradores do abolicionista baiano em diversas áreas. Do cantor Jorge Benjor ao jurista alemão Thomas Duve (diretor do prestigioso Instituto Max Planck), passando por líderes religiosos como a ialorixá Mãe Stella, não foram poucos os que revelaram, em conversas informais com o doutorando em História do Direito pela Universidade de Frankfurt, um profundo interesse e respeito por Gama.

Nascido livre e vendido pelo pai como escravo aos 10 anos de idade, o advogado, poeta, orador e jornalista estudou Direito por conta própria e foi responsável por libertar centenas de escravizados. Mas, após sua morte, o seu legado acabou apagado pela História oficial do abolicionismo, em detrimento de personalidades hoje mais conhecidas, como Joaquim Nabuco. Por isso, Lima defende a ideia de que o reconhecimento de Gama ainda é “underground” — ou seja, acontece fora de universidades, museus, monumentos e outros espaços institucionais.

Graças ao trabalho de diversos artistas e pesquisadores (incluindo Lima), Gama vem gradualmente reconquistando o lugar que merece, incluindo títulos importantes. O mais recente deles é o de Doutor Honoris Causa da Escola de Comunicações e Artes da USP, recebido mês passado. Nos cinemas, sua vida é retratada na cinebiografia “Doutor Gama”, dirigida por Jeferson, de que estreia hoje. E seus escritos ganham uma primeira edição de “Obras completas”, com nada menos do que 600 textos até então desconhecidos (80% do total). Descobertos pelo próprio Lima em veículos como o jornal Democracia, os inéditos revelam perspectivas novas sobre Gama.

—A História oficial cuspiu em Gama, mas os movimentos populares guardaram sua memória, principalmente as lideranças mais velhas nas comunidades negras de Salvador —diz Lima, responsável pela organização e pelas mais de 7 mil notas da publicação das obras completas. —É uma gratidão que passou de pai para filho. Já vi muita gente que não leu uma página sequer de Gama e ainda assim sabe que ele deixou um modelo de resistência a ser seguido.

A amplitude do pensamento de Gama ficou mais evidente nos últimos anos, graças ao garimpo de pesquisadores dedicados. Umas das grandes responsáveis por sua ressurgência, Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp, revelou a verve literária do abolicionista, idealizando livros como “Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas” (2011). Já as cinco mil páginas das “Obras completas” (Hedra) organizadas por Lima serão publicadas em dez volumes até julho de 2022, mas não em ordem cronológica. Os primeiros a chegar foram o 4 (“Democracia”) e o 8 (“Liberdade”), ambas no mês passado.

Pesquisando em arquivos públicos durante nove anos, Lima descobriu textos que, garante, podem mudar as interpretações sobre Gama. Um documento original, redigido de próprio punho, dá a entender que o abolicionista seria responsável pela criação de uma biblioteca comunitária com 5 mil títulos — feito até então atribuído exclusivamente à loja maçônica da qual ele fazia parte. Além disso, manifestos no jornal Democracia, assinados sob o pseudônimo Afro, revelam o teórico comprometido com um projeto de escola laica e pública.

—Isso significa que ele tinha uma obra sobre o tema pelo menos 30 anos antes dos primeiros debates sobre educação popular — diz Lima. — Outros textos inéditos mostram que Gama finalizou sua luta política sem fazer qual- quer concessão a liberais e conservadores, até mesmo republicanos. Segundo ele, nenhuma dessas três forças políticas representaria o abolicionismo de verdade. Acredito que isso explica porque Gama foi apagado após sua morte.

Alfabetizado ainda como escravo, Gama conquistou sua própria liberdade. Atuou voluntariamente em processos de alforria, mas também teve clientes ricos, tornando-se um dos três advogados mais bem pagos de São Paulo. Este itinerário excepcional é contado por Jeferson De em “Doutor Gama”. Três atores vivem o abolicionista em diferentes fases: Pedro Guilherme (infância), Angelo Fernandes (adolescência) e Cesar Mello (maturidade). Sem deixar de lado o aspecto romanesco de sua vida, o cineasta queria que o longa servisse como uma janela para a obra do autor e mostrasse suas ideias. Uma das liberdades tomadas pelo roteiro foi juntar diferentes processos protagonizados por Gama em um só. Para Jeferson de lançar o longa no momento em que a sociedade ainda repercute o assassinato de George Floyd e a chacina do Jacarezinho tem um significado especial.

— Quando trabalhamos o roteiro, em muitos momentos parecia que íamos rodar um filme sobre 2021, e não sobre o século XIX — diz o cineasta, que em 2019 dirigiu a minissérie de ficção “A revolta dos Malês”, baseada no levante de escravizados em Salvador. —As pautas de Gama são contemporâneas e mostram que nossas lutas vêm de longe.

Para manter o máximo de fidelidade aos fatos históricos, a produção recorreu aos conhecimentos de Ligia Fonseca Ferreira, que atuou como consultora. A professora lançou em 2020 o livro “Lições de resistência”, que reúne artigos jornalísticos de Gama.

—As homenagens são justas e importantes, mas o legado de Luiz Gama é sua escrita diz Ferreira. —Através da sua faceta de jornalista, ele era ouvido como um influenciador. É importante resgatá-lo não só como um precursor do abolicionismo, mas também como uma encarnação da prática completa da luta antirracista.

05 de agosto de 2021

POPULISTAS ESTIMULAM PROTESTOS CONTRA PASSAPORTE DE VACINA NA FRANÇA E ITÁLIA!

(O Estado de S. Paulo, 03) Líderes populistas europeus de direita têm adotado como estratégia política o estímulo a protestos contra o passaporte vacinal, que será adotado esta semana na Itália e na França. Analistas veem na tática de denunciar privação à liberdade uma tentativa de manter a base eleitoral coesa.

A resistência à adoção de medidas mais duras para obrigar céticos com a vacinação contra a covid-19 a se imunizar tem atraído o apoio de populistas de direita em países europeus. A pressão é mais evidente na Itália e na França, onde o chamado passaporte da vacina está em adoção e partidos de extrema direita defenderam protestos contra a adoção do passe.

Na Itália, o líder populista Matteo Salvini, da Liga, defendeu os protestos e mantém uma posição crítica ao passaporte, apesar de apoiar o governo do premiê Mario Draghi. Num ato contra o passe, ele acusou Draghi de excluir 30 milhões de italianos da vida social. Giorgia Meloni, do partido extremista Irmãos da Itália, afirmou que o projeto matará o turismo.

Na França, há três fins de semana, o país vem enfrentando protestos convocados por grupos contrário as vacinas. No último sábado, cerca de 205 mil pessoas participaram de manifestações em Paris e outras cidades francesas. Na capital, uma das marchas foi liderada por Florian Philippot, ex-aliado da líder de extrema direita Marine Le Pen, hoje líder de seu próprio partido anti-ue. Houve confrontos entre policiais e manifestantes.

Especialistas que observam o fenômeno do populismo na Europa avaliam que esses partidos usam a pandemia de covid-19 para valorizar sua ideologia e dar coesão à sua base eleitoral, com o auxílio de temas obscuros, como o ceticismo em relação às vacinas, a adoção de remédios ineficazes e, agora, a resistência ao monitoramento do status vacinal da população por meio dos passaportes.

“Esses partidos conseguem dar coesão e sentido pras franjas da sociedade ao se unirem em torno de um tema, obviamente polêmico e obscuro”, explica Ana Simão, Coordenadora do curso de Relações Internacionais da ESPM Porto Alegre. “O movimento antivacina é, para além da questão da vacina, um movimento contra o status quo e o mainstream.”

Ceticismo. Apesar do avanço da vacinação na Europa e na América do Norte, a maioria dos países ricos enfrenta dificuldades em superar os 75% da população imunizada com duas doses – número projetado por especialistas como o ideal para controlar a pandemia.

A Itália tem 52% da população com o esquema vacinal completo e 64% com apenas uma dose. Na França, 47% das pessoas tomaram as duas doses e 62%, apenas uma.

Com o aumento das infecções e hospitalizações por covid-19, principalmente entre quem ainda não está imunizado, ambos os países optaram pelo passaporte para restringir a circulação de quem ainda está suscetível ao vírus, principalmente em lugares fechados, onde o risco de contágio é maior.

Na França, desde 21 de julho, só entra em espaços culturais e de lazer quem estiver vacinado. Na semana que vem, a medida valerá também para bares, restaurantes, aviões e trens.

O passaporte na Itália tem medidas um pouco mais brandas. Ali, é necessário comprovar apenas uma dose da vacina ou um teste negativo de covid19 nas últimas 48 horas para entrar em cinemas, museus, academias, restaurantes sem mesas ao ar livre ou eventos com aglomeração.

A regra enfureceu os céticos com a vacinação, que julgam o projeto dos passaportes uma afronta a seu direito de ir e vir. Alguns dos manifestantes na Itália e na França chegaram a protestar com estrelas de Davi, em uma referência ao tratamento dado pelos nazistas aos judeus em guetos durante a 2ª Guerra, o que provocou protestos da comunidade judaica.

“Vivemos num tempo de tanta ignorância e violência que distorções dessa magnitude nem são reprimidas mais”, lamentou a senadora italiana Liliana Sagre, uma sobrevivente do Holocausto. “Esses gestos de maus gosto são uma loucura combinada com ignorância.”

Apesar dos protestos, no entanto, o interesse pela vacinação tem crescido na Itália e na França.

Na Dinamarca, país pioneiro na adoção de medidas desse tipo, comerciantes dizem que a resistência dura apenas até o momento em que a grande maioria da população está apta a retomar a vida normal.

Atualmente, 80% dos dinamarqueses estão vacinados.

04 de agosto de 2021

O MUNDO ESTÁ NOS LEMBRANDO QUE A DEMOCRACIA É DIFÍCIL!

(Fareed Zakaria – O Estado de S. Paulo, 02) A notícia desta semana de que a democracia está em perigo na Tunísia – o único caso de sucesso da Primavera Árabe – chega apenas três semanas depois de sabermos que o presidente do Haiti foi assassinado. Enquanto isso, no Afeganistão, o governo parece incapaz de estabelecer autoridade em todo o país. Isso me fez refletir a respeito de uma das questões fundamentais da política: por que é tão difícil construir e manter a democracia liberal?

O melhor trabalho recente sobre o tema vem de uma notável dupla de estudiosos, Daron Acemoglu e James A. Robinson. Em seu último livro, The Narrow Corridor (O estreito corredor, em tradução livre), eles responderam a essa pergunta com grande perspicácia. Em todas as sociedades, eles observam, o primeiro passo é simplesmente alcançar algum grau de ordem e estabilidade. A história está cheia de lugares onde gangues, senhores da guerra e tribos governam, e o Estado nunca é capaz de consolidar o poder e governar de verdade. Esse foi o passado do Afeganistão e pode ser o seu futuro.

Se a ordem política é rara, a ordem política liberal é ainda mais rara. A democracia liberal é a forma perfeita de governo. Precisa de um Estado que seja forte o suficiente para governar de verdade, mas não tão forte a ponto de destruir as liberdades e os direitos de seu povo. Os autores chamam isso de “o Leviatã acorrentado”. (Thomas Hobbes usou o monstro bíblico Leviatã para descrever um Estado poderoso. Chegar à democracia liberal exige que as sociedades atravessem um estreito corredor, que permita ao Estado estabelecer poder enquanto permite o desenvolvimento de uma sociedade civil que se afirma e luta por direitos. Juntos, eles criam o delicado equilíbrio entre estabilidade e liberdade. Os países do Ocidente tiveram sucesso porque conseguiram construir tanto Estados como sociedades fortes.

No Afeganistão, apesar de duas décadas de esforços, o Estado tem falhado em conquistar o controle de grande parte do país, criando o que os autores chamam de “Leviatã ausente”. No Egito, o Estado é muito forte. Mas após um breve flerte com a democracia depois da Primavera Árabe, o país retrocedeu para a ditadura. Outras partes do mundo têm “Leviatãs de papel” – governos que exercem o poder principalmente para enriquecer uma pequena elite no topo. Pense na Nigéria ou na Venezuela.

Como o Ocidente alcançou a política perfeita? Os autores citam duas forças opostas. Primeiro, houve o legado do Império Romano, que ofereceu instituições, leis e tradições que tornaram possível criar a ordem. Em segundo lugar, as tribos do norte da Europa, enraizadas em assembleias igualitárias, tinham uma tradição de desafiar líderes poderosos. A competição entre nobres e reis – e mais tarde, eu acrescentaria, entre Igreja e Estado, e entre as centenas de estados, ducados e principados da Europa medieval – tudo isso, ajudou a liberdade individual a crescer e florescer.

Não é uma questão de superioridade cultural do Ocidente, mas, sim, de sua história incomum. Países em outras partes do mundo têm conseguido atingir um equilíbrio semelhante – Índia, Coréia do Sul, Costa Rica. Mas o corredor é estreito e entender isso nos ajuda a reconhecer a fragilidade da democracia liberal.

Fraquezas. É por isso que, no final da década de 1990, enquanto estávamos aplaudindo os países em todo o mundo que realizavam eleições, identifiquei o fenômeno da “democracia iliberal”, lugares onde líderes eleitos estavam sistematicamente abusando do poder, privando as pessoas de seus direitos e esvaziando a essência do governo liberal e constitucional. Desde então, infelizmente, essa lista tem ficado muito mais longa, incluindo países ocidentais como a Hungria, democracias estabelecidas como a Índia e alguns, como a Rússia, que simplesmente se transformaram em ditaduras.

Os países, incluindo os Estados Unidos, que atravessaram o estreito corredor e atingiram o equilíbrio certo entre Estado e sociedade são felizardos. Mas estamos em uma era de funcionamento fora do padrão das democracias, já que os movimentos populistas ameaçam as instituições e as normas políticas que há muito tempo são vistas como neutras. Vemos isso de forma mais perigosa na tentativa do Partido Republicano de politizar a contagem de votos nos estados que controla.

Os EUA continuam sendo uma democracia liberal, mas a audiência desta semana a respeito da insurreição do dia 6 de janeiro no Capitólio destacou a fragilidade das normas democráticas até mesmo aqui. Nossas instituições políticas são mais fortes que a maioria, mas estão sendo exauridas por uma sociedade que está profundamente dividida – tanto que mesmo os fatos básicos do que aconteceu em 6 de janeiro são vigorosamente contestados.

Os desordeiros, encorajados por políticos inescrupulosos, mostraram o dano que um grupo de cidadãos comuns poderia causar. Podemos reparar esse dano pressionando por proteções democráticas mais fortes e resistindo a esforços para subverter a vontade do povo.

Você provavelmente já deve ter ouvido a história de que, em 1787, alguém supostamente perguntou a Benjamin Franklin que tipo de governo a Convenção da Filadélfia havia decidido. “Uma república”, respondeu ele, “se você puder mantêla.” Os delegados poderiam ter projetado o melhor sistema do mundo, mas seu sucesso, em última análise, coube ao povo.

Isso parece um alerta ameaçador, mas também pode nos consolar – o poder de preservar a democracia está em nossas mãos.

03 de agosto de 2021

A RECAÍDA NA FOME!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 01) A fome voltou no Brasil e até poderia constar da pauta do governo central, se os arranjos políticos do presidente Jair Bolsonaro deixassem algum espaço.

Fome virou assunto no Brasil, o segundo maior exportador de comida, capaz de abastecer toda a sua população, alimentar centenas de milhões em todo o mundo e ainda armazenar muita sobra. A insegurança alimentar voltou a ser tema de pesquisadores nacionais e estrangeiros, embora o País tenha saído há vários anos do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). A pobreza nunca foi extinta, mas a desnutrição como problema econômico parecia convertida, de forma definitiva, em passado histórico. Mas a fome voltou, e até poderia constar da pauta do governo central, se os arranjos políticos do presidente Jair Bolsonaro deixassem algum espaço.

O custo da alimentação subiu 0,59% em julho, 3,23% no ano e 10,81% em 12 meses, segundo o Índice Geral de Preços – Mercado (IGPM), da Fundação Getulio Vargas (FGV). Não houve crescimento salarial desde o ano passado, mas nem isso faz muita diferença para os quase 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e cerca de 34 milhões de informais. Dinheiro curto seria problema sério mesmo com preços estáveis, mas no Brasil o pesadelo se completa com inflação acelerada e uma pandemia ainda muito perigosa.

Com desemprego recorde, renda escassa e inflação aquecida, milhões de famílias só têm conseguido comer graças a campanhas de solidariedade. Os cenários da fome podem variar de uma pesquisa para outra, mas são sempre muito feios. Quase um quarto dos brasileiros – 23,5% – enfrentou insegurança alimentar moderada ou severa entre 2018 e 2020, segundo estudo recente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Essa parcela foi 5,2% maior que a estimada entre 2014 e 2016. Em 2021 o quadro só pode ter piorado, com a suspensão do auxílio emergencial, o aumento do desemprego e a aceleração da alta de preços.

A atenção à fome, fato raro em Brasília, motivou a divulgação, pelo serviço de notícias do Senado, de três projetos de lei para o enfrentamento da insegurança alimentar. Os projetos, apresentados em 2019, 2020 e 2021 pelos senadores Jorge Kajuru (Podemos-GO), Plínio Valério (PSDB-AM) e Jader Barbalho (MDB-PA), coincidem ao propor esquemas de doação de comida às famílias carentes. Os detalhes variam e uma das propostas inclui a limitação da alta de preços dos alimentos durante a pandemia. A inflação geral do consumo seria o teto para o aumento dos preços da comida.

Além de tecnicamente complicado, esse tabelamento fracassaria, como já ocorreu tantas vezes, e ainda provocaria distorções. Mais sensato seria auxiliar as famílias necessitadas com a distribuição de cestas básicas e com medidas para reforçar o abastecimento, como o uso de estoques públicos e operações bem conduzidas de importação. Os desafios atuais evidenciam a urgência de maior atenção a políticas de abastecimento.

Um dos projetos determina a distribuição de cestas básicas pelo Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Esse misterioso mecanismo está subordinado à Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, do Ministério da Cidadania, atualmente ocupado pelo deputado João Roma (Republicanos-BA), precedido no posto ministerial pelos deputados Osmar Terra e Onyx Lorenzoni. O ministro Roma tem defendido o aumento do Bolsa Família, mas, depois de nomeado, já defendeu também o voto impresso e apareceu ao lado do presidente em live contra o distanciamento social na pandemia.

A redução do enorme desemprego, um dos maiores do mundo, seria o remédio mais seguro e mais eficaz contra a desnutrição, mas até agora o governo falhou nesse quesito, como têm mostrado as pesquisas – as mais completas nessa área – do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma das poucas novidades positivas, em relação ao tema da fome, é a decisão de preservar o incentivo fiscal ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), anunciada pelo relator do projeto de reforma do Imposto de Renda, deputado Celso Sabino (PSDB-PA). Pelo menos o vale-refeição deve ser salvo – uma bênção adicional para quem tiver um emprego.

02 de agosto de 2021

A ARMADILHA LATINO-AMERICANA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 30) Entre a desigualdade social e o baixo crescimento é difícil saber qual é o ovo e qual a galinha, mas ambos se reforçam mutuamente: países mais pobres são mais desiguais e vice-versa. A América Latina é a segunda região mais desigual do mundo e a mais desigual em sua faixa de renda. Não surpreende que o último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para a região se intitule Presos numa Armadilha.

Na década de 2000, o crescimento econômico, a redução da lacuna entre os salários dos empregos mais e menos qualificados e os programas de transferência de renda reduziram a desigualdade. Mas a tendência se estancou na década de 2010, que naturalmente se encerrou com uma onda de protestos em 2019, sufocados pela pandemia em 2020.

A pandemia pesou mais sobre quem já estava para trás. As perspectivas são mais tenebrosas ante o impacto desigual sobre os estudantes. A América Latina tem a menor taxa de mobilidade educativa intergeracional e a pandemia deve reforçar esse padrão ligado ao seu crescimento volátil e medíocre.

A percepção de injustiça é generalizada, não só na distribuição de renda, mas no acesso a serviços públicos e garantias legais. Para 3 em 4 latino-americanos, seus governos servem aos interesses de uns poucos poderosos. A maioria acha que a carga tributária deveria aumentar com a renda, mas o apoio é muito maior entre os 20% mais pobres e muito menor entre os 20% mais ricos – que concentram 56% da renda.

A concentração de poder político e econômico resulta em instituições débeis e políticas distorcidas, míopes e ineficazes. Os mercados latino-americanos tendem a ser dominados por um pequeno número de empresas gigantes, o que conduz a preços mais altos, incentivos para tecnologias ineficientes e baixo investimento em inovação.

O poder dos monopólios é em boa parte responsável pela baixa tributação corporativa e pela resistência a impostos progressivos. Já os sindicatos, quando não se aliam às grandes empresas para obter privilégios, com frequência trabalham para reduzir as desigualdades entre empregadores e empregados exclusivamente do seu segmento, exacerbando as disparidades nos demais.

Um fator que é perpetuado pela armadilha latino-americana é a violência. A região abriga 9% da população mundial, mas responde por 34% dos homicídios. A violência deteriora direitos e liberdades; prejudica resultados educativos e a saúde física e mental; reduz a participação no trabalho e na política; ameaça instituições democráticas; e obstrui a provisão de bens públicos aos vulneráveis.

Outro fator são os incentivos políticos a soluções demagógicas, de curto prazo, fragmentadas e ineficazes. A cisão da seguridade latino-americana entre trabalhadores formais (cobertos por programas contributivos, estabilidade de emprego e regulações de salário mínimo) e trabalhadores informais (servidos por programas não contributivos) é responsável pela baixa eficácia do sistema de proteção e impactos contraditórios sobre a desigualdade. O Pnud enfatiza a importância de uma agenda de proteções sociais universais, mais inclusivas e redistributivas, fiscalmente sustentáveis e favoráveis ao crescimento.

“Os lares pobres precisam de transferência de renda e seguridade social, não de um ou de outro.” Mas “ao invés de atuar ex ante para prevenir a pobreza, as políticas reagem apenas ex post para mitigá-las”. Em geral, as taxas de pobreza na região diminuem por programas de transferência de renda e não porque a renda dos pobres aumentou. Uma boa arquitetura social deveria não só assegurar o bem-estar das famílias vulneráveis, mas incentivar trabalhadores e empresas a melhorar sua produtividade.

À armadilha da desigualdade e do baixo crescimento subjazem engrenagens complexas, como a concentração de poder, a violência, e programas de proteção social e marcos regulatórios do mercado de trabalho ineficientes e distorcidos. Enquanto o enfrentamento a esse quadro não for igualmente complexo, os latino-americanos seguirão aprisionados em seu subdesenvolvimento.