29 de março de 2021

VERDADEIRO DESASTRE PARA A AMÉRICA LATINA PODE VIR EM 2021!

(Brian Winter – Americas Quarterly – O Estado de S. Paulo, 28) Em toda a América Latina, 2021 ainda está sendo saudado como um ano de recuperação. Depois que a região foi responsável por 28% das mortes confirmadas de covid no mundo, no ano passado, e sofreu sua pior contração econômica anual (-7,4%) desde 1821, no contexto das guerras pela independência, a maioria dos políticos e líderes empresariais acreditam que o pior já passou.

Sim, surtos recentes no Brasil, no Chile e em outros países causaram um novo aumento nas mortes e lockdowns. Mas, teoricamente, o ritmo da vacinação deve se acelerar ao longo do ano. A maioria dos governos viu sua popularidade se manter estável ou até aumentar, e há poucos sinais dos protestos em massa que sacudiram a região antes que a pandemia expulsasse as multidões das ruas. “Acho que estamos muito perto da linha de chegada”, um político me disse recentemente. “Poderia ter sido bem pior.”

Mas vários estudos publicados este mês contam uma história bem diferente: a covid-19 abalou a América Latina em um grau maior do que muitos imaginam, e a sensação de condescendência pode estar condenando a região pelos próximos anos. Esses estudos mostram a gravidade com que a pandemia atingiu grupos vulneráveis, como mulheres, negros e trabalhadores informais, e alertam que a recuperação provavelmente os deixará ainda mais para trás.

Os bancos da América Latina podem estar mais frágeis do que geralmente se reconhece, e a conversa animada sobre a transferência das cadeias de suprimentos da Ásia após a crise até agora continua sendo só uma conversa. As escolas ainda ficarão fechadas em maior número do que em qualquer outro lugar do mundo, arriscando criar uma verdadeira “geração perdida” – e deixando as economias sem um motor mais claro de crescimento, pois a região envelhecerá rapidamente nas décadas de 20 e 30.

É verdade que as coisas poderiam ter sido piores. Auxílios emergenciais na forma de transferências em dinheiro chegaram a 61% dos latino-americanos em 2020, quase o triplo do porcentual de pessoas que recebiam tais pagamentos antes da pandemia, de acordo com um novo relatório da Cepal, a comissão econômica da ONU para a América Latina.

O tamanho e a duração dos auxílios variaram muito e desafiaram os estereótipos ideológicos: os governos de direita do Brasil e do Chile ofereceram o apoio mais generoso, mais que o dobro em termos relativos do que seus colegas de México, Argentina e Bolívia. No todo, a pobreza na região aumentou “apenas” cerca de 3 pontos porcentuais, para 33,7% da população, o nível mais alto desde 2006 e uma tragédia por si mesma. Mas a Cepal calculou que, sem os programas de ajuda, a pobreza teria mais que dobrado.

Logo abaixo da superfície, no entanto, existem disparidades vastas e crescentes naquela que já era a região mais desigual do mundo. Em 2020, o quintil mais rico dos latino-americanos viu sua renda cair apenas 7%, em média, e seu desemprego quase não aumentou. Já o quintil inferior viu sua renda cair impressionantes 42% e seu desemprego crescer 5 pontos porcentuais.

As mulheres abandonaram a força de trabalho a taxas maiores do que os homens em 9 dos 12 países estudados pela Cepal, que também descobriu que os negros no Brasil tinham apenas metade da probabilidade dos brancos de continuar trabalhando de suas casas.

É provável que o maior desastre de todos tenha sido enfrentado por mais da metade dos trabalhadores latino-americanos que trabalham no chamado mercado informal. Em países como México, Brasil e Costa Rica, mais de 70% da perda total de empregos em 2020 ocorreu nesse setor. Esses trabalhadores já tinham pouca ou nenhuma rede de segurança – e imediatamente enfrentaram a fome, a falta de moradia ou algo ainda pior.

E é aí que o trem da recuperação realmente começa a descarrilar. Tanto a Cepal quanto o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em seu recémpublicado relatório macroeconômico anual, destacam a probabilidade de que, caso se mantenham as tendências atuais, a recuperação econômica seja fraca – e a maioria dos empregos futuros seja criada no setor informal. Isso significa uma vida mais precária para milhões de latino-americanos e taxas de pobreza que ficarão insistentemente altas.

Enquanto isso, a maioria dos governos, incluindo o do Brasil, reduziu ou eliminou os programas de ajuda de 2020, deixando milhões sem proteção, em grande parte por causa do medo de agravamento de uma crise fiscal. Os temores são reais: a dívida pública média da região disparou de 58% para 72% do PIB no ano passado, e o cenário básico do BID é que continue a aumentar, chegando a 76% até 2023.

É importante notar que os EUA estariam enfrentando um cenário igualmente desolador se não fossem abençoados pela moeda de reserva mundial – e, portanto, a capacidade (aparente?) de imprimir trilhões de dólares sem grandes consequências. Mas a América Latina, com sua longa história de credores rígidos, está sob uma rédea mais curta do que a maioria das outras regiões. Ainda não está claro se isso resultará em uma onda de inadimplência da dívida soberana, como na década de 1980; mas o relatório do BID trouxe uma seção que faz uma retrospectiva daquela “década perdida”, argumentando essencialmente que, se for necessário fazer reestruturações, quanto mais cedo melhor.

O BID também advertiu sobre uma “falsa sensação de segurança” no sistema financeiro da região, citando vários sinais de alerta nos últimos meses, apesar dos balanços aparentemente saudáveis. A inflação está aumentando em alguns países, mesmo com as economias ainda estagnadas. O Brasil subiu as taxas de juros recentemente pela primeira vez desde 2015, em 0,75 ponto porcentual.

Por fim, tem a tragédia em curso nas escolas. Cerca de 114 milhões de alunos na América Latina e no Caribe, ou cerca de 80% do total, ainda não podem frequentar a escola presencialmente, de acordo com um relatório divulgado na quarta-feira pelo Unicef. É de longe o maior número do mundo, e a expectativa é que pelo menos 3 milhões desses estudantes – e possivelmente muitos mais – nunca mais voltem às salas de aula. Apenas uma fração dos alunos conseguiu frequentar efetivamente a escola pela internet, e os estudos sugerem que milhões de jovens no ensino fundamental já perderam as habilidades básicas de leitura e matemática.

Isso está revertendo uma das grandes histórias de sucesso (e motores de crescimento econômico) da região nos últimos 30 anos: o crescimento da educação primária, secundária e universitária. O Banco Mundial calculou que a crise educacional poderia reduzir cerca de 10% dos ganhos futuros dos latino-americanos, um valor insondável de US$ 1,7 trilhão.

Como sempre na América Latina, é importante não cair na armadilha do fatalismo. A história mostra que este sempre foi um lugar de altos e baixos. É possível que a recente alta nos preços do petróleo, cobre e outras commodities impulsione as economias exportadoras da América do Sul e um boom econômico pós-estímulo nos EUA dê um impulso imediato ao México e à América Central.

Alguns governos parecem compreender a magnitude dos desafios, enquanto algumas pessoas no setor privado, na sociedade civil e na mídia continuam cobrando mudanças. Mas, em face dessa inércia avassaladora, praticamente todas as outras razões para esperança que citei no ano passado se erodiram, especialmente a educação.

Na verdade, é difícil escapar das seguintes conclusões: 1) muitas elites latino-americanas, por terem passado pela covid mais ou menos ilesas, não estão conseguindo entender que 2021 não é o momento de relaxar e declarar a vitória sobre a pandemia; 2) a maioria dos presidentes da região e outros líderes políticos, tanto à esquerda quanto à direita, parecem satisfeitos em simplesmente reciclar ideias fracassadas das décadas de 60 e 70 ou focar nas próximas eleições, em vez de pressionar com urgência as reformas modernizadoras que poderiam impulsionar o investimento e a criação de empregos de qualidade; 3) os mais vulneráveis da região, relativamente blindados em 2020, agora podem estar abandonados à própria sorte.

O crescimento na América Latina ficou estagnado durante anos, mesmo antes da pandemia, e a renda per capita já caiu aos níveis de meados dos anos 2000, segundo a Cepal. É uma região que não está pegando fogo – pelo menos não por enquanto –, mas que mais parece um sonâmbulo andando em direção ao abismo na renda e na qualidade de vida. Se seus líderes não acordarem – e rápido – podemos muito bem olhar para as decisões tomadas e não tomadas durante 2021 como algo ainda mais desastroso do que os eventos de 2020.

03 de março de 2021

SAÍDAS DA CRISE PARA A AMÉRICA LATINA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 01) “Hoje nos encontramos ante um enorme paradoxo: não há dúvida de que a pandemia teve grandes efeitos destrutivos”, constatou o ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento Luis Moreno, “mas também levou a uma enorme aceleração da inovação e da transformação digital.” Para Moreno, “temos duas grandes tendências no mundo de hoje: um movimento rumo a uma economia mais digital e o eixo do mundo, em termos econômicos, cada vez mais orientado para a Ásia”. Neste cenário, quais os desafios da América Latina para a saída da pandemia? A questão serviu de alavanca a um debate entre Moreno e Fernando Henrique Cardoso, promovido pela Fundação FHC.

A pandemia atingiu uma economia latino-americana debilitada. Se em 2020 a economia global encolheu cerca de 3,5% e, em 2021, deve crescer cerca de 5,5%, na América Latina a contração foi de quase 8% e o crescimento deve ser de 3,5%. A dívida pública da região, que no início de 2020 estava em torno de 60%, agora chega a 70%. “Ou seja”, constatou Moreno, “boa parte de todo o estímulo fiscal foi feita com dívida.” E ainda que estes estímulos tenham aliviado momentaneamente a pobreza, ela crescerá – em alguns casos nos níveis de duas décadas atrás.

Some-se a isso o fato de que a transformação do mercado de trabalho promovida pela revolução digital foi acelerada pela pandemia. Estima-se que em oito meses o comércio eletrônico, por exemplo, avançou o equivalente a três ou quatro anos. Mas nos países desenvolvidos o avanço foi maior e menor nas regiões em desenvolvimento, como a América Latina. Segundo Moreno, enquanto nos EUA o comércio eletrônico saltou algo entre 50% e 80%, no Brasil foram cerca de 40% a 50%.

Nestas condições, “não creio que a recuperação será em V, temo que será em U”, constatou FHC. “Será difícil, porque as mudanças na tecnologia produtiva são muito grandes e as pessoas não estão capacitadas para isso.” De resto, sobre o cenário político, FHC pontuou: “O sistema partidário não se deu conta do salto que está se produzindo na consciência das pessoas sobre a política”. Neste estado de desagregação, “pode haver um agravamento do populismo”.

Nem por isso, os latino-americanos imbuídos de espírito cívico podem renunciar à “grande questão”, segundo Moreno: “Como aproveitamos esta crise para gerar mudanças profundas na América Latina?”.

De pronto, há algum esteio econômico com as perspectivas para a exportação agrícola – sobretudo ante o desempenho econômico da China. Mas isso nem de longe será suficiente para um crescimento sustentável e muito menos para “desnaturalizar a desigualdade”, nas palavras de FHC. Ao contrário, sem reformas estruturais do “contrato social”, a desigualdade e, logo, as rupturas sociais podem aumentar.

Entre essas reformas, os debatedores deram especial destaque à educação, um setor no qual o desempenho latino-americano já era ruim antes da pandemia e foi agravado por ela. As taxas de paralisação das escolas na região foram em geral maiores do que nos países desenvolvidos, e o acesso a meios digitais, mais escassos.

A capacitação para novas tecnologias é essencial. Moreno citou alguns casos exemplares de capacitação por parte da iniciativa privada. Contudo, “não há políticas públicas que cheguem a milhões de pessoas”. O avanço “exigirá uma conversa público-privada muito mais profunda”. Analogamente, do ponto de vista político, Moreno citou experiências exitosas de governadores e prefeitos na resolução de problemas imediatos em nível local. Mas, para que esses exemplos se enraízem, ramifiquem e frutifiquem, também será necessária uma educação capaz de fomentar nos latinoamericanos o espírito cívico e forjar lideranças comprometidas com a coisa pública.

Ante a recessão econômica, o desgoverno político e o avanço precário da vacinação na América Latina, a curto prazo “não se pode olhar adiante com muitas expectativas”, disse com franqueza FHC. Mas, a longo prazo, as soluções para a crise econômica, cívica e política da América Latina passam todas pela educação.