Folha de São Paulo 05/02/11
A publicidade do governo boliviano diz que “folha de coca não é droga”. E que droga é sua transformação química em cocaína. O uso da folha de coca vem de longe. Nem sempre seu uso foi considerado assim, trivial.
Bartolomé Arzáns em seu “Relatos de la Villa Imperial de Potosí” (Plural Editores, Bolívia), escrito no início do século 18, num capítulo, destaca a folha de coca e seus efeitos, (“1674 – Da erva chamada coca”, pág. 353).
Potosí pertencia ao vice-reino do Peru. Sua montanha de prata financiou a Europa por uns cem anos. Arzáns fala do “enorme mal que afeta o Peru: possuir a erva chamada coca, que usam os ministros do diabo para seus vícios”.
Cita Pedro Cieza, que dizia (“Crônica del Peru”) que, em todo lado que ia, via os índios se deleitarem em trazer nas bocas a erva de coca, em pequenos bolos de onde sacam uma certa mistura. “Trazem essa coca na boca desde a manhã até dormir”. Cieza perguntou aos índios qual a razão e eles disseram que, com isso, “não sentem fome e ganham grande força e vigor”.
Arzáns diz que a coca no Peru é “apreciada” pelo menos desde 1548 e “hoje” em Cuzco, La Paz e La Plata. E que na Espanha se enriquece vendendo coca. Por acabar com a fome e dar grande força e vigor, nenhum índio entra em uma mina ou faz obras “sem levá-la na boca, mesmo que reduza a sua vida”. Índio não podia entrar em mina sem estar mascando folha de coca.
Arzáns diz que experimentou e sua língua ficou “gorda, áspera e abrasada”. Essa erva tira o sono dos índios, segue Arzáns, e com ela não sentem frio, fome ou sede. Os índios não podem trabalhar sem ela.
“Moída e em água fervendo, abre os poros, esquenta o corpo e abrevia o parto”. Mas seu uso vira vício e o “demônio, que é o inventor dos vícios, faz notável colheita de almas”.
A coca é usada pelas feiticeiras. “Os que se viciam se perdem e vivem de esmolas para manter esse infernal vício, que lhes priva do juízo, como bêbados, e lhes dá terríveis visões”. Usá-la dá excomunhão. A famosa feiticeira Claudia a aplica e faz um homem deitar com uma velha pensando que é uma jovem, conta Arzáns. E que um espanhol rico foi morar com Claudia e comeu tortas pensando que eram as de sua terra.
Um músico convidado para uma casa viu que serviam coca em bandeja de prata e para, não falar sobre os viciados que vira, esses lhe suplicaram que a usasse. O músico saiu à 19h, vagando, e só chegou em casa à meia-noite. E segue contando Arzáns: “Um enfermo, ao beber a erva com licor, ficou bom. Mas morreu um ano depois. Uma mulher pediu a criada que lhe desse coca. Com a negativa, ela levantou-se furiosa e meteu um punhado da erva na boca e, dizendo disparates, caiu morta”. Nem tão trivial assim.