Cesar Maia fala sobre prisão e exílio durante a ditadura

COMO O SENHOR AVALIA O IMPACTO DA DITADURA MILITAR NA VIDA BRASILEIRA HOJE?

Primeiro, vamos contextualizar. Não houve golpe no Brasil, houve golpe em todos os países da América Latina, com raríssimas exceções. Portanto, se vivia uma conjuntura e, em algum momento da Guerra Fria, se entendeu que as ditaduras militares impediriam que o comunismo entrasse nos países e na América Latina, essa é a justificativa. No caso do Brasil, especificamente, não chegaria a nenhuma conclusão. Temos que pensar dentro desse contexto. Os militares brasileiros participaram na Bolívia, no Uruguai, na Argentina, no Chile. Você tem que toar o conjunto. Os governos populistas vão dos anos 40 até os anos 50, você começa a ter a ruptura nos anos 1960. O último foi o Chile, em 1973, e a própria Argentina.

COMO O SENHOR AVALIA O IMPACTO DA DITADURA MILITAR NA VIDA BRASILEIRA HOJE?

Primeiro, vamos contextualizar. Não houve golpe no Brasil, houve golpe em todos os países da América Latina, com raríssimas exceções. Portanto, se vivia uma conjuntura, e, em algum momento da Guerra Fria, se entendeu que as ditaduras militares impediriam que o comunismo entrasse nos países e na América Latina, essa é a justificativa. No caso do Brasil, especificamente, não chegaria a nenhuma conclusão. Temos que pensar dentro desse contexto. Os militares brasileiros participaram na Bolívia, no Uruguai, na Argentina, no Chile. Você tem que toar o conjunto. Os governos populistas vão dos anos 40 até os anos 50, você começa a ter a ruptura nos anos 1960. O último foi o Chile, em 1973, e a própria Argentina.

Quais seriam as consequências se isso não tivesse ocorrido, é uma pergunta que não cabe. Porque não se trata de que havia condições de não ser assim: foi assim. O curioso é que o golpe de 1964 produziu uma expectativa, já que havia uma base social para o golpe, e basta lembrar da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que foi em SP, e talvez tenha sido a maior do Brasil em todos os tempos, proporcionalmente, havia a expectativa de que a ditadura não precisaria chegar ao ponto que chegou, em 1968, com o AI-5. Pra você ter uma ideia, o JK votou no Castelo Branco. Os primeiros políticos que chegaram na sala do Ranieri Mazzilli, depois que caiu o governo do Jango, foram o Nelson Carneiro, Ulysses Guimarães, e o José Bonifácio. Então a expectativa desses políticos, que foram os gestores da transição democrática, era de que havia a necessidade de fazer alguma coisa naquele momento.

O QUE OS MILITARES TINHAM CONTRA JANGO?

Era aquilo que se dizia na América Latina toda. Os militares, inspirados pela Guerra Fria e pelos Estados Unidos, que a democracia estava levando a desordem, ao comunismo, que o Brasil viraria uma República Sindicalista. Então os golpes eram sempre justificados em função do temor ao comunismo, que era a justificativa geral. O fato é que a ditadura militar tinha a expectativa de ser suavizada. Havia a expectativa de eleições em 1965. O JK e o Lacerda tinham conversado com o Castelo Branco, e tinham a convicção da eleição em 65. Quando se decide que não haverá eleição em 65, há uma reação do JK e do Lacerda, que terminam cassados, e eles eram a favor do que acontecia naquele momento. Mas esse processo vai gerando resistência, e começou a surgir dos sindicatos, movimento estudantil, intelectuais, e gera uma forte ruptura em 1968. O AI5, basicamente, torna o governo de um poder só. Com o AI5, a ditadura poderia legislar, julgar, havia um poder só.

O curioso é que a geração desse momento passou, anos depois, a ter o poder no Brasil. A geração de 68, 69, 70, é a do Lula, da Dilma, minha, José Dirceu, do Genoíno, Aldo Rabelo. Essa geração que foi presa, torturada, ou pro exílio, se capacita, se qualifica. O exílio qualificou muita gente, essa é que a verdade. Ao qualificar, ajudam a construir a democracia no Brasil, até que viram poder.

O SENHOR TINHA QUANTOS ANOS EM 64?

Nasci em 45, tinha 19 anos. Não vivi 64 como militante. 65 em fui estudar engenharia em Ouro Preto, e minha militância e base política começam lá. Fui para uma república de estudantes de socialistas e comunistas, e a minha militância entra, de forma sistemática e ideológica, durante a minha ida para Ouro Preto. Enfim, essa ditadura vive o seu momento de clímax entre 13 de dezembro de 68 e 1976, quando se inicia um ciclo de redemocratização por parte dos próprios militares. Em 1974, se reabre a televisão para oposição, que ganha quase todas para o Senado. Em 1975, o Golbery do Couto e Silva retira a censura presente dos meios de comunicação, passa ser uma espécie de autocensura.

Em 1976, em função da derrota do governo no Senado, faz-se a lei dos senadores biônicos, para não alterar a maioria do congresso, que escolhia o presidente da República, e em 1978, o ministro Petrônio Portela baixa o AI 11, e desenha todo o processo de ação democrática. O curioso no Brasil, é que diferente de outros países, é que o desenho do processo democrático foi feito pelos próprios militares. Portela seria o presidente do Brasil, e houve a disputa na Arena para ver quem seria o presidente do Brasil, Mario Andreazza ou Paulo Maluf. Aí, nessa conjuntura grotesca, uma parte do PDS se separa e vira o PFL, liderado pelo Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Jorge Bornhausen, o que dá maioria para que a oposição apresente um candidato que seja mais digerível. E o Tancredo Neves foi esse candidato, absorvido pelos militares nesse processo de transição.

79 vem a lei de anistia, 82 eleição para governo do estado, livre e aberta, e 85 vem a eleição para capitais e municípios de segurança nacional, 86 é a eleição de constituinte, 88 a constituinte publica, e 89 é a eleição para presidente. O distinto do Brasil é que em geral a democratização, inclusive países da Europa do sul, como Grécia, Portugal, fizeram a constituinte primeiro. A escolha do novo governo é o processo que inicia a transição. No caso do Brasil, a constituinte vem depois de um ciclo de transição, e a escolha do presidente é quase a parte final desse ciclo.

Uma outra coisa importante é que a Argentina, que realizou há três, quatro anos uma reunião sobre Comissões da Verdade, o Brasil não tinha ainda. Ali se fez um questionamento ao representante do Lula, ministério da Justiça, porque achavam que a violência se media por mortos e desaparecidos. Argentina teve 26 mil mortos, Chile 4 mil, Brasil 350. Esse número não diz respeito aos que sobreviveram a tortura. Nesses países, a tortura levava a morte. Por que no Brasil, a tortura, bárbara, não produziu a mortalidade de outros países.

O SENHOR FOI TORTURADO?

Eu fui… Preso antes do AI5. Eu apanhei muito, mas antes do AI5 os advogados tinham acesso. Antes do AI5 não tinha cadeira do dragão, pau de arara. Se tinha aquele esquema clássico, que era do bonzinho e do mauzinho. Você apanhava pra burro do mauzinho, o bonzinho vinha, pedia para você falar alguma coisa, para não apanhar de novo, enfim, era o esquema anterior. Eu fui preso em 66, 67, 68. Eu fui preso umas 4, 5 vezes. Em Ibiúna foi a última, que aí eu consegui sair e fui para o Chile com minha mãe.

DE 19 ANOS EM OURO PRETO, ATÉ SER PRESO E IR PARAR NO CHILE.

Em Ouro Preto, fiquei na república pureza, que fazia parte, até 64, do que eles chamam de urso: república socialistas ouro pretanas, que eram as repúblicas de esquerda de Ouro Preto. Os líderes das repúblicas eram o Nelson Maculano, que foi ministro da educação, UFRJ, COPPE, e o Sérgio Maculan, primo dele. Ali, basicamente, você tinha uma célula do partido comunista. Filiei depois, fui candidato dentro de uma chapa de esquerda ao Diretório Acadêmico, fui eleito, o presidente era o Nico, eu era o diretor financeiro. Dali, houve o recrutamento, e eu comecei a militar no Partido Comunista, numa época muito interessante.

Era a época da discussão interna sobre qual era o caminho para resgatar a democracia, se chegar ao socialismo… E aí você tinha a luta armada de um lado, do outro lado você tinha o Partidão, que achava que este tinha que ser um processo gradual… Eu estava ao lado da luta armada.

O SENHOR PEGOU EM ARMAS?

Mais ou menos…

MAIS OU MENOS COMO?

Mais ou menos, enfim, vamos continuar aqui. Você não vai querer que eu diga para você o que eu disse no interrogatório.

MAS NÃO SOU INTERROGADORA

Por isso né. Na minha ficha do Dops não consta nada disso, porque eu vou criar uma ficha nova agora. Quando eu morrer, alguém faz a minha biografia, ta guardado ta escrito…

Aí vieram as dissidências. Vieram as dissidências do partido comunista, e o grande congresso, em 66, quando começou a ruptura. E aí estamos falando de Mário Alves, Marighella, líderes todos, que formaram partidos ou dissidências. Foram formados partidos na Guanabara, no Rio Grande do Sul, São Paulo, foi criada a POLOP. José Dirceu no começo era POLOP, depois foi dissidência de São Paulo. Em Minas, se chamava Corrente, que era o meu caso, liderada pelo Chuchu, trocado pelo Embaixador Americano. O PCBR, que era a tendência do Mário Alves, e o Marighella que criou a ALN, que orientou a todos os grupos, e orientou aos grupos que não se justassem, se conectando pelas direções.

O livrinho base de todos esses grupos era de um escritor francês, que cobriu a guerrilha em Cuba e na Bolívia, que se chamava “A Revolução da Revolução”, e inspira o Marighella e outros grupos que operavam. Eu já era dirigente da corrente, e acontece essas coisas na nossa vida. Eu participei do Congresso da Une, em BH, em Campinas, que foi bem clandestino, feito pelos padres franciscanos num convento, em 1967, e já estava fora do movimento estudantil, pois já estava profissionalizado pelo partido. Vim para escola de engenharia do Rio, para ter o registro daqui, trabalhava aqui e militava em BH.

Já estava fora do movimento estudantil quando o Chuchu me chama e diz que o nosso representante, que ia para o Congresso da UNE em Ibiúna tinha se borrado. Não vou dizer o nome dele. Mas eu, que vinha do movimento estudantil, ele pediu que eu o substituísse.

O SENHOR NÃO TEVE MEDO DE MORRER?

Não, mas é ruim isso né. É péssimo, porque os que não tem temor, não tem precaução e morrem. Aí substituí o fulano, um homem, e vou para o Congresso de Ibiúna. Eu já tinha sido preso umas 3 ou 4 vezes, já era veterano nisso, e a minha primeira prisão maior, foi organizando o Congresso de Ibiúna. Meu advogado foi o Sobral Pinto – aliás, isso está no livro dele. Tem um livro sobre os casos de Sobral Pinto, porque meu caso, não foi pela coincidência, foi pela gravidade, eu fui o primeiro habeas corpus negado em base a Lei da Segurança Nacional, que eliminava o Habeas Corpus para soltar preso.

MAIOR PRISÃO POR QUE?

Porque foram 3 ou 4 meses. Antes, era 1 ou 2 dias, preso na passeata, preso não sei onde, na tomada da escola, era solto dois dias depois, e essas coisas iam acumulando na ficha das pessoas. Na Ibiúna, os militares cercaram, as pessoas saíram correndo, e eu fiquei sentado. Era uma espécie de ribanceira, transformada em arquibancada. Aí eu pensei, bom, aqui não tem jeito, vou me preparar para prisão. Comecei a pegar aquelas coisas abandonadas, mochilas, e tal, e ver o que eu precisaria para ficar na prisão, e o que eu precisava, alguma coisa para comer, um cobertor, trouxe para mim, guardei, e fiquei esperando a polícia voltar com todo mundo preso. Todo mundo preso, e alguns eles destacaram, como o Vladimir Palmeira, Luiz Travassos, José Dirceu, uns 4 ou 5 separados.

Fomos para o Carandiru, que eram prisões de salas grandes. As famílias começaram a aparecer lá embaixo, foram tirando fotos de cada um de nós. Foram presos 800 e pouco. Desses, 20 permaneceram na prisão. 8 desse grupo seleto, e 12 de Minas, que era o meu caso. Os outros 780 foram liberados, e nós ficamos, pois já tínhamos antecedentes, prisão, etc. Eu tinha vários vários nomes falsos: Castro, Ferreira… Você não mantinha. Então, nós fomos para o Dops, que eu já conhecia, eles fizeram uma seleção, e fui para quarta companhia do exército, que ficava a meia hora de BH, e fui interrogado no Colégio Militar. Os padres dominicanos estavam sendo interrogados na hora que eu cheguei lá. E eles chegaram, quando eu fui para o lugar deles, e nessa coisa de prisão, você acha que as coisas são muito mais altas do que são.

E os dominicanos arrebentados, sangrando. Deitei na cama de um deles e estava lá: o Novo Testamento marcado com as coisas mais revolucionárias, e tal. Esses sim, vieram uns caras, deviam ser uns espanhóis, que diziam “Filhos de puta”, “Filhos de puta”, um homem gigantesco que tinha arrebentado eles, e eles davam o dedo. Eu pensava, uns tampinhas desses com essa coragem, eu não posso ficar pra trás.

Aí eu fui interrogado, apanhei muito, né. E voltei, eles sabem como bate. Não sei porque os padres sangraram tanto. Porque bate com toalha molhada, bate em local que não fica marca… Enfim, tudo isso antes do AI – 5. Depois, é que a gente estava vendo por aí, tecnologia adquirida pelo Exército Brasileiro durante a Guerra da Argélia.

ONDE ENTRA A CIA?

A CIA era o cotidiano. Preparavam os militares para ideologia deles, e tal, no EUA, mas eu não me lembro de ter lido sobre a preparação lá, de torturadores. Não quer dizer que eles não estivessem por trás. Pode ser desinformação minha.

FICA PRESO QUANTO TEMPO DEPOIS DE IBIÚNA?

Fico preso de outubro até junho, mais um tanto que eu tive para trás, deve dar uns 2 anos. O interessante é que você pega uma sala pequena igual a essa, coloca 12, 13 homens, com uma entradinha pequena igual essa, de banheiro de soldado. Se você não tiver uma disciplina séria, você não funciona. É a hora de aguardar, de fazer os exercícios. Fazia ginástica canadense, que era moda. Depois cada um ia para o banho, tinha a reunião de doutrinação, e cada um falava de um tema. Todo mundo era da luta armada e de esquerda. De grupos de esquerda, como o Colina, tínhamos o Edgar da Mata Machado, o Edson Soares, vice presidente da UNE, que foi prefeito…

E ali nós ficamos presos, e eu fui mandado para São Paulo. Fui mandado para o Batalhão de Guardas, era um inferno, porque o Lamarca tinha fugido de lá. Eles faziam um cerco, com metralhadora de pé. De noite, com tudo apagado. Quando eu entrei, tinham dois numa cela, e eu numa outra. E me passaram a instrução, pois cada carro que passava eles ficavam desesperados e davam tiro. Quando derem tiro, me disseram para rolar em direção ao banheiro, porque o soldadinho ia ficar apavorado também. Aí, tinha que dizer “eu tô aqui com medo dos tiros também, que aí ele fica calmo”.

Então a gente ia… A família visitava e era um terror. As mães ficavam nuas, tinha exame de vagina, era um troço horroroso. A gente ficava nu também. Ali, você tem um sargento, um oficial, não tinha como passar nada, era só para tirar a moral da gente. O banho de sol eu consegui negociar, porque eu conseguia colocar a metralhadora de pé, e ficavam apontando para gente.

Um dia, chamei o tenente e disse: “fala para eles apontarem a metralhadora para o nosso pé, e tirarem o dedo do gatilho. Uma hora dessas, um garoto desses treme, olha o que vai acontecer com a gente”. Ele concordou, fez isso, e a gente passou a ter. Mas aí teve um acidente. Um soldado que tomava conta de mim e dos japoneses… Tava passando Beto Rockefeller. Eles pediam aos soldados para contar o capítulo da novela. Eu aprendi, naquela época, a ler o livro em voz alta, que a minha mãe levava, uma boa técnica de retórica. Eu selecionava, e tem um monte. Eu li quase todo o teatro do Nelson Rodrigues. Não implicavam com o Nelson.

Aí, estava andando lendo, e o garoto se apavorou, apertou o gatilho do fuzil e deu um tiro. O tiro bateu na grade, estilhaçou na grade. Aí, estilhaçou na grade e pegou em mim os estilhaços, aqui, aqui, e saia muito sangue. Comecei a gritar: seu filha da puta, quer me matar, quer me matar, até chegar gente. Os oficiais chegaram, me levaram para enfermaria e tiraram aqueles estilhaços com pinça. O maior eles tiveram que fazer um buraquinho maior, colocar um esparadrapo.

O SENHOR TEM MARCA DISSO?

Não, eu tive durante muitos anos. A pele vai crescendo, vai ficando gordo, e a pele vai arrastando, a marca fica superficial, meio cinza, roxa, e deve estar em algum lugar por aí.

Eles quiseram abrir um Inquérito Policial Militar, mas eu disse que “de jeito nenhum”. O garoto deve ter se assustado, tem nada contra mim, nunca teve nada, sempre foi sério e correto…

E aí eu voltei para o Carandiru, no prédio que era da administração. Ficavam presos políticos que tinha alguma coisa. Fui para lá com o Valdo Silva, que era de Minas, e lá estava o Hélio Navarra, um deputado federal que estava preso, que namorava a filha do Franco Montoro. Estava lá um delgado que tinha falsificado dinheiro, e um detetive que estava junto com ele.

Também estavam lá o Alemão, da greve de Osasco, e o Pacheco, um grande líder comunista, ainda de 1964. O Hélio Navarra não gostava de mim, trocou de cela. Porque ele queria fazer o horário dele, era muito besta. Acho que até morreu, de morte morrida. Ele foi para outra cela menor, eu e o Valdo ficamos, e mais o delegado e o detetive. Nos demos muito bem, contavam como faziam o negócio do dinheiro, porque fazia política.

POR QUE VOCÊ FAZIA POLÍTICA?

Já te contei… Aí eu fui julgado, condenado, pelo General, que determinou 8 meses de prisão, mas disse que eu tinha a pena cumprida, e me deu a ordem de libertação. E eu nem voltei para o Carandiru, e meu pai me levou para o Rio. Meu advogado à época era o Heleno Cláudio Fragoso e o Nilo Batista, que era um jovem advogado. Aí a gente fez um passaporte falso num Fléxi Pacheco no Leblon, fui lá como se fosse um aleijado, passei na frente da fila e fiz.

Minha mãe e eu fomos de ônibus para Buenos Aires, e naquela época, cada polícia tinha sua área de atuação, Marinha Exercito, Dops, e todas queriam ser os heróis que prendiam os mais importantes. Até o AI5, não tinha nenhuma unificação. Até lá, nós tivemos o caso de um preso com a gente na quarta companhia, que tinha um duplo nome, era Luis Carlos Santos Espaia, e ele usava um outro outro. Na primeira seleção do Dops, onde ele estava preso, liberaram ele.

O Dops não saiba que ele militava em São Paulo. Mas depois unificaram, acabou a brincadeira, mas eu passei pela fronteira e cheguei em Buenos Aires direto para o aeroporto. O passaporte estava no meu nome, Cesar Epitácio Maia, mas eu não tinha o direito de tirar nem carteira de identidade. Não tinha documento nenhum. O Fragoso conseguiu,e no Chile meu pai tinha um grande amigo, fui para casa dele.

Dali, fui estudar economia, casei com a Mariangeles…

A MARIANGELA, SUA ESPOSA, ERA DE MOVIMENTO TAMBÉM?

Não, era irmã da Carmem, que namorava um brasileiro, Ricardo Varzea, que ta na prefeitura até hoje. Na universidade, já estava tentando a militar, tentamos formar um grupo remanescente da corrente de são Paulo no Chile. Pai desse rapaz que é deputado federal… Foi um político importante. Formou junto com a Sônia e com o Élson, que era do partidão, depois foi da nossa corrente. Quando morreu o Marighella, quem assumiu o lugar dele foi o Joaquim Ferreira dos Santos, era Toledo o nome de guerra dele, e foi também morto.

O terceiro da hierarquia era o Elson Pereira Fortes, ele sumiu, e foi assassinado em Cachambi,onde hoje é o Norte Shipping. A mulher dele fugiu, a Soninha, que se chamou tendência leninista, em Santiago, uma meia dúzia de brasileiros. Era só prática teórica, acabamos não mantendo, e continuamos nas mesmas correntes do partidão. Nessa condição, fui trabalhar no Comitê, e fui trabalhar no comitê de elementos da construção, fazendo política de preço.

E COMO A CONHECEU?

Bem, eu conheci a Mariangeles, irmã da Carmem, casamos depois de um mês e meio, eu tinha alugado um apartamento, com o dinheiro que o papai tinha me dado. Os filhos nasceram dessa fusão, no apartamento de cima. Só foi saber no finalzinho que eram gêmeos. A barriga cresceu tanto, que não tinha jeito.

E O SENHOR SENTIU O QUE, EXILADO COM GÊMEOS?

O problema todo foi que a minha esposa ficou internada, e eu levei os dois pra casa, contratei uma enfermeira, e fiz isso durante dois meses. O senhor tem opção: não dormir nunca ou ficar louco e dormir. Se der a mamadeira ao mesmo tempo, elas dormem ao mesmo tempo….

A minha mãe sugeriu que as crianças viessem para o Rio, e ela veio para o Brasil. Aí eu estudei, minhas crianças nasceram muito pequeninhas…

ACREDITA EM DESTINO

Não sei… Aconteceu. Se isso é destino, é destino. Faria tudo de novo. Quem se exilou, levou vantagem, pois quem ficou aqui, ficou sem poder dizer o que pensava, as escolas estavam mediocrizadas. Fui para o centro da inteligência da AMÉRICA Latina, que era CEPAL, Fao, Onu que estava ali. Os professores de lá eram da UFRJ, USP, eram monumentais. O que a gente ganhou de vantagem por estar exilado é muito grande. O exílio tem toda uma parte sentimental, abandono da pátria… Mas já que foi, me deu uma vantagem.

DITADURA INIBIU A FORMAÇÃO DE LÍDERES NO BRASIL?

Inibiu e estimulou. A repressão estimulou. Não apenas a formação de líderes, mas a formação de líderes, que tem que ter uma capacidade de resistir ao sofrimento, se qualificar, e tem que estudar, se preparar, porque não estão enfrentando qualquer um. Você pega um 38, um cara com o fuzil desse tamanho, se resiste, se prepara, e ascende.

POR QUE NÃO MAIS DE ESQUERDA?

Depois do muro de Berlim, esquerda e direita se aproximaram ao centro. O que é o governo do Lula, é um governo Social-Liberal. O Bolsa Família é clássico disso, é você igualar o ponto de partida. O sindicalismo do setor privado, CUT, automobilística, da mesma maneira.

O SENHOR GOSTA DE LENIN, POR QUE?

Eu li basicamente toda a literatura clássica. Porque na Escola de economia eles dividiram em duas partes: escola marxista e neoclássica. E vinha de leitura desde estudante. Para participar de um Congresso da UNE, você não podia citar porque outro dizia: “contextualiza! Onde você leu isso? Que livro? Que parte?”. Não podia pegar frasesinha e fazer. O Lênin se desenvolveu praticamente no exílio, e desenvolveu a ideia de que o partido tinha que ser um partido de quadros, e não de massas. Eram os quadros qualificados que iam conduzir o processo. Aprendi muito naquela cartilha, pensando o básico a partir de quadros.