Eu abri a semana, na terça-feira e na quarta, com dois textos, procurando explicar a “conflitividade” que acontece principalmente no Rio de Janeiro. Muitas vezes surge um conflito, um problema e se imagina que é uma surpresa, que caiu do céu. Não é; é um processo cumulativo. A questão salarial. Até diria que, no caso da educação, não é a questão mais importante. A questão mais importante é a educação pública que está sendo atropelada, professor perder completamente qualquer autonomia pedagógica, a escola deixar de ser um universo, a sala de aula. Chegaram aqueles pacotes do Instituto Sangari, Ayrton Senna, Fundação Roberto Marinho, Abril Cultural, e aí vão levando aqueles pacotes para aplicação. Os professores não são operadores de pacotes. Eles têm a sua filosofia educacional, a sua visão do mundo, trabalham numa escola aqui que não é igual à outra. Uma escola em uma comunidade que é controlada por traficantes, a realidade dela é igual à Escola Estácio de Sá, dentro do Forte São João, igual à Escola Roma, em Copacabana? Ou à escola pública que fica dentro de Sulacap? Não é.
Eu tratei disso no segundo capítulo desses dois textos que escrevi, sobre as razões do grande aumento da delitividade no Rio de Janeiro. No capítulo 1 de ontem, dia 15, foram mostrados os elementos do projeto de ruptura com a história e a cultura do Rio, por parte do atual Prefeito e sua equipe, em relação aos vetores urbanos. Hoje, o capítulo 2 trata dos serviços públicos municipais essenciais. Os serviços públicos sociais têm, na Cidade do Rio de Janeiro, antigo município neutro do Império, depois Distrito Federal, em seguida Estado da Guanabara, e finalmente município, sua matriz e sua história. As organizações de longa duração, sejam elas públicas ou privadas, têm sua alma na cultura organizacional que desenvolvem. Não há como geri-las sem entender sua cultura organizacional, sua história, sua dinâmica. A escola pública já era uma prioridade pessoal de D. Pedro II, que assistia os exames de escolha dos professores, que ia visitar as cozinhas para ver o que os alunos estavam comendo. As escolas do Imperador, construídas a partir de 1870 — Primeiro Ministro seria a denominação que nós damos hoje, que era o Presidente do Conselho, o Visconde do Rio Branco — várias delas de pé até hoje, como a Amaro Cavalcanti, também o Centro Cultural José Bonifácio, que foi uma escola pública, aqui perto, Gonçalves Dias, Orsina da Fonseca etc. são marco fundacional da educação pública. Anísio Teixeira, com 31 anos, revoluciona a educação brasileira, como Secretário de Pedro Ernesto, desde 1931. E segue a história da educação com dimensão pública no Rio, passando, claro, por Darcy Ribeiro também.
Isso até 2009, quando se inicia o processo de implantação de um ensino descolado do social, na Prefeitura do Rio, dentro da lógica privada. Ao setor privado cabe definir um projeto pedagógico da atual Prefeitura, pasteurizar as escolas, as salas de aula e os professores, que passam a ser aplicadores desses kits. Volta a serialização e a elitização. “Idebizaram” — IDEB — a escola. Ensinar, para eles, é preparar para tirar nota no IDEB. Em seguida, vender esse pacote para outros municípios e estados, iludidos com esse critério. Agora, quando imaginavam que a exaltação desse método feito por órgãos empresarias e meios de comunicação significava o sucesso, partiram para o lance final: transformar essa ruptura em lei, em regime de urgência, a fórceps, como um decreto lei do período autoritário. E, nesse ponto, essa dinâmica levou ao estresse e explodiu nas redes sociais, nas ruas, nas greves e nas escolas. A perda de caráter público da escola bateu de frente com a história e a cultura da escola pública do Rio, que teve suporte para resistir, por exemplo, nos anos 30, ao avanço da direita católica, aliada a Vargas, nessa empreitada. Uns anos depois, estava de pé outra vez, e com facilidade. Os gestores de hoje não têm o talento daqueles que defendiam uma escola na visão da direita da Igreja Católica de 1935. Eles eram: Cardeal Paes Leme, Francisco Campos, Alceu Amoroso Lima e Getúlio Vargas. Nem eles conseguiram destruir a escola pública no Rio de Janeiro. Perderam. Agora estão implodindo, como uma martelada num biscoito de suspiro.
De nada adianta imaginarem que uma vez a Lei aprovada… E dizem que, quando levaram a hipótese de tirar o regime de urgência, uma autoridade superior da Prefeitura teria dito: “Vão! Essa Lei vai entrar a fórceps!” A fórceps?! O que nasceu disso? Nasceu a perda de autoridade do Prefeito. A desmoralização da Secretária de Educação. Principalmente, a desmoralização profissional, porque agora se sabe a quem eles servem e para que eles servem. É essa que foi a vitória da Lei aprovada.
E pode saber, Sr. Presidente, eu estou nisso há muitos anos: agora virá a resistência silenciosa — muitas vezes se chama de resistência civil. O que vai se dizer numa sala de aula, quando essa greve terminar? O que vai se dizer na escola? O que vai se conversar? O que as professoras vão conversar com as famílias? O que vão dizer que estão fazendo com os seus filhos, hoje? Talvez famílias ansiosas imaginem que é necessária a normalização, como se privatizar fosse normalizar.
Só que as crianças nascem, outras novas, e daqui a cinco, dez, oito, nove, quinze anos, nós vamos vendo essa desintegração. Espero que não seja por muitos anos. Espero que, já em 2014, o PMDB receba a primeira resposta. Em 2016, a segunda e definitiva. E que se possa reconstruir aquilo que tentaram destruir. Espero que não tenham tempo, mesmo apoiados por essa lei absurda.
Da mesma forma, a Saúde Pública, matriz dos mais importantes profissionais de Medicina no Brasil, destaques em todo o mundo, três redes foram se agregando: a da Prefeitura, criada por Pedro Ernesto e coluna vertebral da atual, a do sistema previdenciário getuliano e a rede federal. O crescimento exponencial do setor privado e com ele um mercado de trabalho binário, o desenvolvimento de tecnologia, e com este a socialização da informação, foram criando desafios e crises.
A Constituição de 1988, da qual participei, estabeleceu o SUS como cláusula pétrea, com isso afirmando a centralidade da Saúde pública, reforçada pelo perfil social de nosso povo. A explicação desses problemas veio através do facilitário da incapacidade de gestão do setor público, desculpa encontrada para privatizar a Saúde pública. Crises eventuais ajudaram, mas a defesa da dimensão pública da Saúde efetivamente pública, pelos profissionais concursados, se fez presente. Não confundiram desafios e crises com o caminho esperto da privatização da Saúde pública, para o deleite dos fornecedores de medicamentos, serviços, equipamentos, materiais e, finalmente, até pessoal.
Na Prefeitura do Rio, a partir de 2009, começa a ruptura desse processo, com a aprovação da lei das OS, organizações privadas com o nome de disfarce de OSCIP, da lavra funesta do ministro Bresser Pereira e de sua secretária executiva, atual Secretária de Educação da Prefeitura do Rio.
Sem qualquer tradição e sem a necessidade de licitação, os serviços de Saúde foram sendo assumidos por estas OS, com pessoal próprio, materiais, medicamentos e serviços comprados diretamente, sem controle e sem licitação aberta.
Eu fiz um requerimento de informação à Prefeitura, até hoje não respondido, pedindo para comparar preços comprados pela Prefeitura e preços de medicamentos, materiais e etc comprados por essas OS.
Entre 2010, quando se espalham, e o final de 2013, serão 3 bilhões de reais. Em 2013, seus custos equivalerão a toda a receita do IPTU. A receita de IPTU, este ano, vai entrar na casa de um bilhão e oitocentos, e o gasto com as Os vai se aproximar de um bilhão e setecentos. O gasto com essas OS é 25% maior do que o gasto que a Secretaria Municipal de Saúde tem com os servidores da Secretaria, mas, não satisfeitos, resolveram dar caráter privado aos consagrados hospitais públicos do Rio, constituindo — lei nesta Casa —, a empresa de Saúde com regime celetista e contratações como empresa privada.
Essa dinâmica está às vésperas de implodir. Se já não ocorreu, se deve à distração que foi oferecida para desviar a discussão, através do ‘Mais Médicos’, ou importação de médicos. Acho até que a corporação entrou nessa discussão na contramão com razões, mas produzindo um discurso que eliminava as suas razões. A população, afinal, pede médico. E não era uma questão relevante. Quantos médicos existem no setor público brasileiro? Quatrocentos mil? E quantos entram no “Mais Médicos”, se entrarem todos? Quatro mil e quinhentos? Não era tão relevante, e com isso se produziu uma distração, e o processo não implodiu, mas essa dinâmica, como eu dizia, está às vésperas de implodir. Se já não ocorreu, se deve à distração que foi oferecida para desviar a discussão, através do “Mais Médicos”, com importação de médicos. Com isso, a mobilização se inibiu, para não mesclar uma coisa com outra, mas está viva nas redes sociais, nos hospitais, nos postos de saúde. Em breve, assim como com os professores, explodirá nas ruas, num processo análogo, a luta contra a privatização da saúde pública. Na Espanha já está nas ruas. As intervenções urbanas, estuprando a história e a cultura urbanas, e a privatização dos serviços públicos essenciais da Prefeitura se encontraram no Centro do Rio, como uma pororoca, esmagando nesse encontro tal dinâmica de governar, fora da história e da cultura das organizações públicas.
O excluído agora é o servidor concursado, coluna vertebral dos serviços públicos essenciais. E é ele que resiste e atrai a solidariedade de todos os cariocas, nas casas, nos seus locais de trabalho, de moradia, nas redes e nas ruas.