22 de dezembro de 2021

BRASIL, AINDA UMA DEMOCRACIA?

(Albert Fishlow, economista e cientista político, professor emérito nas universidades de Columbia e da Califórnia em Berkeley – O Estado de S. Paulo, 19) Com o início do recesso parlamentar, depois de o Congresso preparar a votação do Orçamento federal, um ano decisivo de eleições presidenciais acaba de começar. Bolsonaro conseguiu garantir um novo partido político para apoiá-lo e, também, elevar o déficit federal projetado para o dobro do nível de 2021, aumentando os benefícios para os pobres, assim como a isenção do Imposto de Renda para aqueles com receitas mais altas.

Agora, ele só precisa se preocupar com a enorme liderança de Lula nas pesquisas e com a insistência do Supremo Tribunal Federal (STF) em manter os princípios eleitorais democráticos. Com o surgimento de novas informações nos EUA sobre as tentativas fracassadas de Trump de se manter no cargo presidencial ilegalmente, Bolsonaro e os filhos talvez queiram passar as férias lendo em vez de relaxar ou dirigir motos.

Lula, por outro lado, já está tentando se definir mais como centrista do que esquerdista. Ele também procurou enfatizar seu compromisso com uma política climática positiva na Amazônia, o que diverge de sua posição anterior. A decisão dele de oferecer a vice-presidência a Geraldo Alckmin, duas vezes candidato à presidência pelo PSDB, foi uma jogada inteligente. Desta forma, ele busca atrapalhar as esperanças de João Doria, governador de São Paulo.

Sérgio Moro também entrou na disputa. Sua fama é resultado de seu papel central na Lava Jato. A Operação também levou à prisão de Lula, que, posteriormente, foi anulada após revisão de um tribunal superior. Moro foi ministro da Justiça durante o primeiro ano de mandato de Bolsonaro, de quem se afastou mais tarde depois de pedir demissão. Por isso, ele se define, naturalmente, como opositor de ambos os principais candidatos.

A vitória de Lula proporcionará a faísca de inovação que o Brasil tanto precisa? O PT conseguirá reconstruir o Brasil afastando-se de seu forte compromisso atual de apenas gastar mais, em vez de alocar melhor?

Os problemas econômicos enfrentados pelo País são graves, e dificilmente serão resolvidos pela liderança de Paulo Guedes, cujo simples compromisso com o setor privado não funciona tão perfeitamente quanto ele acredita. As projeções econômicas para o futuro imediato são ruins.

Este padrão exige mudança. O compromisso com a inovação regular é a única solução. O Brasil deve se integrar ao mundo de forma mais eficaz, com menos dependência do nacionalismo e do populismo. Isso não é fácil. Tal estratégia não é completamente centrada no Estado, nem dependente de sinais de lucro privado. A democracia permite que ela funcione.

20 de dezembro de 2021

INDIGNADOS!

(Cesar Maia – Folha de SP, 11/06/2011) Manuel Castells apresentou, em 2009, seu livro “Comunicación y Poder” numa conferência na Universidade Complutense de Madri (ver no YouTube). Trata da mudança da política pela transformação da comunicação.

A construção do poder é a capacidade de atores sociais influenciarem outros, de maneira a reforçar o seu poder. Onde há poder existe contrapoder ou resistências às relações institucionalizadas.

A batalha pelas mentes se joga na comunicação. Não é o Estado, e sim a comunicação, o instrumento básico de construção do poder. Castells diz que a emoção fundamental é o medo, que elimina o espírito crítico e foca, nos indivíduos, a busca por proteção.

A informação que reforça o que uma pessoa pensa tem seis vezes mais probabilidade de ser registrada. Por isso, a imprensa vai atrás da opinião que as pessoas já têm. A comunicação cria o campo das mudanças na opinião pública. Isso não quer dizer que se siga a mídia -que constrói os espaços públicos. As pessoas opinam sobre o que é divulgado.

Informações omitidas pela mídia restringem o espaço público do debate. A audiência é ativa, mas se dá no espaço público do que é divulgado. Grave é o que a mídia omite.

Política sem comunicação de massa não chega ao público. A mídia não é detentora de poder, mas formadora dos espaços onde se constrói o poder. A comunicação política requer mensagens simples e poderosas. O mais simples é o rosto humano. O mais poderoso é a confiança.

A estratégia fundamental na disputa pelo poder é destruir a confiança numa pessoa ou num partido. Quem não participa de tal jogo não está na política.

Essa disputa é a política do escândalo. São batalhas pelo poder simbólico onde se joga reputação e confiança. Mas o excesso gera fadiga do escândalo que termina igualando a todos e desprestigiando o sistema político. A correlação entre corrupção percebida e descrédito nos políticos é clara.

Hoje, o jogo do poder depende também das novas mídias, via internet e celular, que são redes horizontais ou autocomunicação de massa.

O sistema se abre a mensagens de todo tipo, individuais e de movimentos sociais. Estes atuam sobre valores sem objetivar o poder, e estão fora da sociedade civil organizada.

Aqui surgem práticas políticas insurretas, movimentos espontâneos dos indignados, que até desestabilizam governos. Passam por cima dos partidos e das regras do jogo. É a cultura da indignação. Os indignados que não atuavam na política entram no jogo.

O espaço público está sendo reconstituído fora das instituições. As condições de mudança se produzem nesse novo espaço da comunicação. É a sociedade fora dos partidos e dos sindicatos. Esse é o mundo do poder e da mudança.

17 de dezembro de 2021

ANTIPOLÍTICA NO CHILE!

(João Vitor Cardoso, pesquisador do Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social e doutorando pela Universidad de Chile – Folha de S. Paulo, 04) Devido ao marco eleitoral definido pela ditadura (o dito ‘sistema binominal’), no Chile se estabeleceram duas grandes coalizões políticas: por um lado, a ‘Concertación’, abrangendo os partidos de esquerda; e, por outro, a ‘Alianza por Chile’, com a direita. Apesar de outras coligações também se estruturem ao longo do tempo, como a ‘Frente Amplio’, do candidato presidencial esquerdista Gabriel Boric, este sistema gerou no país duas identidades políticas tradicionais.

Em 2015, houve uma reforma que pôs fim a tal sistema e, entre outras medidas, obrigou os partidos a apresentar 40% de candidaturas femininas. Antes, em 2012, o voto passou a ser facultativo e, desde então, a tendência de participação eleitoral apresentou baixa considerável. Em suma, nas últimas décadas, os presidentes foram sendo eleitos graças ao voto de aproximadamente um terço do eleitorado. A mobilização deste terço em cada banda ideológica vai provocando o espelhamento da representação política em duas minorias – enquanto, ao mesmo tempo, o grupo de pessoas que não se identifica com o sistema eleitoral cresceu nos últimos anos.

Esse processo acompanha a redução da identificação partidária que vem ocorrendo na América Latina. O Chile, depois da Guatemala, é o país da região onde as pessoas menos se identificam com um partido político. Para além da polarização direita-esquerda, como o cientista político Carlos Meléndez observa, a orientação negativa em relação aos partidos políticos é um previsor importante da intenção de votos.

Essa ‘anti-identificação’ com os partidos revelou-se no primeiro turno das eleições presidenciais com o sucesso do candidato outsider Franco Parisi, que abraçou uma identidade ‘antissistêmica’ e ficou em terceiro lugar. Neste gradual abandono da identificação partidária, as pessoas ‘apartidárias’, que aparentemente recusavam qualquer politização, agora parecem tender ao populismo.

Vale lembra que, em outubro de 2019, os levantes populares, conhecidos como ‘Estallido Social’, ecoaram a crise do modelo de ‘soluções privadas para problemas públicos’ estabelecido pela Constituição de 1980, como sintetiza o constitucionalista Javier Couso. Com efeito, observa-se uma tensão entre eficácia econômica e legitimidade política na medida em que esta última está ancorada na promessa de expansão do consumo e ascensão social das classes médias.

Assim, em um contexto de estancamento econômico, aumento nas tarifas de serviços básicos, alta concentração de renda, avanço da criminalidade, intenso movimento imigratório e profunda deslegitimação do sistema político, o modelo socioeconômico constitucionalizado pela ditadura colapsa.

Enquanto a desorganização da economia gera convulsão social, esta desorganiza o sistema político. Um ano depois, em outubro de 2020, 78% dos chilenos votaram a favor de abrir um processo constituinte, em plebiscito que teve a maior participação eleitoral da história do país desde a instituição do voto facultativo.

Os candidatos presidenciais que chegaram ao segundo turno colocam-se em polos opostos diante desse fenômeno: o ultradireitista José Antonio Kast chamou a população a votar pelo ‘recuso uma nova Constituição’ e reduziu a convulsão social a uma questão de segurança pública; já Boric estava na mesa de negociações do acordo multipartidário que abriu caminho para a institucionalização do processo constituinte.

Caso este resista às eleições, o Chile terá a primeira Constituição paritária do mundo, graças a um mecanismo de correção de resultados destinado a assegurar que nenhum sexo esteja super-representado no organismo que está redigindo a nova Carta do país. Aos representantes dos povos originários também foram garantidos 17 assentos, distribuídos de acordo com a prevalência de cada grupo étnico.

Na eleição do próximo dia 19 de dezembro, o exemplar processo constituinte, com regras eleitorais inovadoras, pode estar em jogo. Por um lado, as consequências da crise social abriram caminho para uma atuação crescente de grupos, setores e classes emergentes, culminando na Constituinte; por outro, observa-se uma pane na classe média, que acaba se deixando levar por populismos que prometem segurança e estabilidade na base da força.

16 de dezembro

CICLOS POLÍTICOS!

(Cesar Maia – Folha de SP, 16/10/2010) Há certa tendência do eleitorado em dar, aos governos, um prazo maior que o de um mandato para mostrar a que vieram. A reeleição é percebida como um mandato de oito anos, com ‘recall’ no quarto.

Só um governo desastrado – penso assim – não consegue a reeleição.

Mesmo aqueles com avaliação regular tendem a conseguir o segundo mandato, projetando expectativas a partir do tempo que precisam. E do uso da máquina. Nos regimes parlamentaristas, estes ciclos costumam ir além dos oito anos, mas raramente acima de 12 anos. Helmut Kohl, na Alemanha, foi uma exceção: governou 16 anos.

As razões para o esgotamento dos ciclos decenais são conhecidas. As expectativas excedem, e vem um julgamento muito mais enérgico que no primeiro mandato. O eleitorado muda, com a inclusão dos que eram jovens sem direito a voto antes. É o conhecido ‘desgaste de material’ que o exercício do poder impõe.

‘Desgaste de material’ é quando o governante passa a ter a intimidade do eleitor e perde a capacidade de criar expectativas e de surpreender.

A sensação de que as mudanças, ou mais mudanças, não virão estimula o eleitorado a buscar a alternância.

No entanto, nada disso é automático, e menos ainda compulsório. Depende da oposição. Quando uma força política, ou uma coligação, vê seu ciclo terminar e toma isso como fracasso seu, e não como a alternância de ciclos, produto da tendência natural do eleitor, se precipita e passa a se autoflagelar. E, assim, transforma em desastre uma derrota natural e previsível.

O novo ciclo, que poderia ser mais curto, termina sendo mais longo, pela fragilização da oposição. A entrada de um novo ciclo político exige das forças políticas que estão fora da nova onda paciência e talento. Paciência para entender esse processo e não ter crises de ansiedade. Talento para encurtar a duração da nova onda.

Em 2002, a percepção da oposição era que o governo que assumia produziria um desastre. Ficou esperando. O desastre não veio, e uma expansão mundial lhe deu até conforto. No ‘mensalão’ de 2005, a palavra de ordem que prevaleceu foi ‘deixar sangrar’. A sangria passou rapidamente, com umas demissões, o crescimento econômico e a intensificação dos programas assistenciais.

Por aqui, um novo ciclo atrai políticos de um lado para outro. Nos países em que o voto é distrital ou em lista, com poucos partidos, isso não ocorre. Num país federado e continental como o Brasil, esses ciclos se dão também em nível regional. E o que se vê, país afora, é uma ingênua e imprudente autoflagelação dos perdedores. Paciência e talento aos perdedores.

15 de dezembro de 2021

ESCÂNDALOS ASSOMBRAM CASTILLO!

(O Estado de S. Paulo, 10) O presidente do Peru, Pedro Castillo, sobreviveu a uma tentativa do Congresso de impedilo, mas apenas por agora. Na noite de terça-feira, Castillo provavelmente sentiu algo próximo a um alívio. Depois de horas de deliberação, o Congresso votou contra a abertura de um processo de impeachment para removê-lo da presidência, duas semanas depois de um grupo de parlamentares de direita apresentar a moção.

Até segunda-feira, a situação parecia ruim para o desgastado presidente e não apenas por causa da agressiva oposição que ele tem enfrentado de virtualmente todos os campos políticos – incluindo de seu próprio partido, o Perú Libre – desde o primeiro dia de seu governo. Enquanto uma série de escândalos chegava às manchetes ao longo do mês passado, parecia que a oportunidade para a direita se livrar de Castillo finalmente havia chegado, enquanto até partidos mais centristas, como Acción Popular e Alianza por el Progreso, consideravam publicamente a possibilidade.

Mesmo assim, a moção pela abertura dos procedimentos fracassou, aparentemente porque a oposição não obteve o coup de grâce que esperava para o fim de semana. Uma reportagem aguardada, que revelaria o teor de gravações de áudio que implicariam Castillo em um caso de suborno, não foi publicada, por fim.

Mas isso não importa. Apesar de seus erros, a oposição encontrará uma outra chance, porque ao que tudo indica Castillo logo lhe proverá um novo motivo para sua remoção. Apenas quatro meses após iniciar o mandato, múltiplas alegações de corrupção emergiram no entorno do presidente. Um ex-comandante do Exército acusou Castillo, seu ministro da Defesa e seu chefe de gabinete, Bruno Pacheco, de pressioná-lo para promover oficiais próximos a Castillo indevidamente.

O ex-comandante alega que foi aposentado compulsoriamente quando se recusou. O diretor da agência de tributos e aduana do Peru também acusou Pacheco de pressioná-lo para favorecer certas empresas com impostos atrasados, o que ocasionou uma investigação. Poucos dias depois, Pacheco, que desde então se demitiu do cargo, foi encontrado com US$ 20 mil escondidos no banheiro de seu escritório. Ele alega que o dinheiro era de sua poupança.

Para piorar as coisas, em 28 de novembro, um programa jornalístico mostrou imagens de Castillo encontrando-se secretamente, tarde da noite, com uma mulher, em um edifício não destinado a assuntos oficiais do governo. A mulher foi posteriormente identificada como Karelim López, lobista de uma empresa que recentemente venceu uma licitação do governo oferecendo seus serviços por exatos 27 centavos a menos do que sua competidora. Foi essa série de eventos que motivou parlamentares dos partidos Renovación Popular, Avanza País e Fuerza Popular a apresentar a moção de impeachment.

Num discurso ao país, Castillo declarou que o encontro com López foi “pessoal” e que houve uma tentativa de desacreditá-lo por parte de pessoas que não conseguem aceitar um presidente camponês. Em um anúncio paralelo, a respeito de esforços para coletar dinheiro para crianças órfãs, Castillo afirmou que explicaria a fonte dos recursos para o projeto “muito em breve”. A respeito da suposta interferência nas forças armadas, Castillo disse apenas que respeita a instituição.

Escândalos estão obscurecendo qualquer avanço em políticas que o governo possa estar promovendo. A principal proposta de Castillo, mudar a Constituição, parece mais improvável que nunca. Houve muito pouca resposta em relação aos relatórios a respeito dos poderes legislativos que o Executivo pediu ao Congresso no começo de novembro.

A vice-presidente, Dina Boluarte, a primeira na linha de sucessão, também enfrenta significativa hostilidade da oposição e dentro do Perú Libre. A atual primeira-ministra de Castillo, Mirtha Vásquez, tem se dedicado principalmente a apagar incêndios que parecem atingir diariamente o palácio presidencial – incluindo seu próprio anúncio a respeito do fechamento de quatro minas em Ayacucho, do que teve de voltar atrás dias depois após muitas críticas do setor privado.

Em um aparente esforço para negociar sua sobrevivência, Castillo chamou para conversar os líderes de todos os partidos no Congresso antes de terça-feira, sem especificar a agenda. Os dois maiores de direita, Fuerza Popular e Renovación Popular, não atenderam ao convite.

Sua reunião com Vladimir Cerrón e seu ex-primeiro-ministro Guido Bellido, membros da facção radical do Perú Libre, que por fim não apoiou a moção para impedi-lo, provocaram especulação de que Castillo voltará a se inclinar para a extrema esquerda por causa da determinação da direita em removê-lo do cargo.

Mas isso não aumentará seu poder nem o enfraquecerá. O verdadeiro problema de Castillo parece ser que ele, aparentemente, está pouco interessado em governar e, em vez disso, parece ter o foco em usar sua posição para favorecer seus aliados e talvez a si mesmo. Seus defensores argumentariam que isso não o diferencia em relação a presidentes peruanos anteriores, mas a questão é precisamente essa: longe de trazer uma mudança real, Castillo está dando continuidade aos mais tradicionais aspectos da política peruana.

Enquanto isso, os opositores darão tempo ao tempo. Eles se contiveram nessa ocasião, mas não por alguma preocupação verdadeira pela estabilidade democrática, nem, evidentemente, por qualquer apoio tácito a Castillo. A direita simplesmente aprendeu uma lição com o impeachment e a remoção do cargo do ex-presidente Martín Vizcarra, em 2020: enquanto o presidente tem algum apoio, tentativas de destituí-lo resultarão numa significativa reação contrária. Isso não quer dizer que os recentes eventos não estão prejudicando os índices de aprovação de Castillo.

Ele tem atualmente 25% de aprovação, em comparação a 35% em outubro, segundo o instituto de pesquisa IEP, mas 55% da população ainda é contra sua remoção do cargo – provavelmente porque o Congresso tem uma taxa de aprovação ainda pior, de 21%. Então, a direita vai esperar e acompanhar os desdobramentos. Com base em seu comportamento até este ponto, Castillo dará oportunidade para a direita lhe impingir o golpe mortal mais cedo que tarde.

14 de dezembro

TRAGÉDIA ANUNCIADA NA EDUCAÇÃO!

(O Estado de S. Paulo, 12) A pandemia de covid-19 está longe de ser uma tragédia superada, mas é inegável que o avanço da vacinação no Brasil tem diminuído as infecções e o número de mortes. Nada trará de volta as mais de 615 mil vítimas do novo coronavírus. O luto das famílias deve ser respeitado e o surgimento de novas variantes deve manter todos em alerta. Ao mesmo tempo, o País precisa voltar os olhos para o futuro antes que o retrocesso promovido pelo desgoverno nos últimos três anos seja irreversível. É urgente, portanto, conter o avanço da evasão escolar.

A partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, o movimento Todos pela Educação conseguiu traduzir em números uma catástrofe mais do que anunciada. Cerca de 244 mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e 14 anos estavam fora da escola no segundo trimestre deste ano, um crescimento de 171,1% em relação ao mesmo período de 2019. Isso significa que 1% deles não estava matriculado em nenhuma instituição, ante 0,3% em 2019. É a maior taxa dos últimos seis anos. No Ensino Fundamental ou Médio, a taxa de atendimento dos estudantes recuou de 98% em 2019 para 96,2% neste ano, a pior desde 2012.

Mesmo com o retorno presencial das aulas em todo o País, a expectativa para os últimos meses deste ano não é de melhora. O líder de Políticas Educacionais do Todos pela Educação, Gabriel Corrêa, explicou ao Estado que o fechamento prolongado das escolas criou um preocupante desengajamento, principalmente entre os alunos mais pobres. O resultado dessa mazela social é evidente. Basta frequentar as ruas para perceber onde estão essas crianças: trabalhando para tentar ajudar suas famílias a trazer comida para dentro de suas casas. Na Bahia, por exemplo, a quantidade de pedidos para estudar à noite disparou, já que os interessados assumiram outras atividades econômicas durante o dia.

A evolução do porcentual de jovens fora da escola escancara a marca de irresponsabilidade do governo Jair Bolsonaro. A evasão, que caiu ano a ano entre 2012 e 2019, subiu de forma consistente nos últimos três anos. Há também muitas crianças atrasadas na trajetória de ensino. Mais de 700 mil daquelas com idade entre 6 e 14 anos estão matriculadas na pré-escola, etapa voltada para aquelas entre 4 e 5 anos.

O Banco Mundial já havia alertado, em março deste ano, para o grave quadro educacional que se desenhava na América Latina e no Caribe. A instituição financeira estimava que o abandono escolar poderia aumentar 15% na pandemia e que a região teria a segunda maior alta mundial absoluta de pobreza de aprendizagem – na época, um em cada dois alunos já era incapaz de ler e compreender um texto simples ao fim do Ensino Fundamental. O custo econômico agregado das perdas em capital humano e produtividade somaria US$ 1,7 trilhão, conforme o banco.

No Brasil, porém, o governo fez ouvidos moucos às previsões e continua a ignorar indicadores que apenas confirmam essa calamidade. A única preocupação do presidente Jair Bolsonaro na área de Educação era excluir do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) questões não alinhadas à pauta conservadora e promover um revisionismo histórico por meio do qual o golpe militar de 1964 seria tratado como revolução. Enquanto isso, o exame, que completou 23 anos e é a principal porta de entrada de universidades públicas, teve o menor número de inscritos desde 2005.

Depois de três péssimos ministros, cortes em verbas para bolsas e demissões coletivas em órgãos vinculados à pasta, a dúvida que remanesce é quando a crise na Educação brasileira encontrará o fundo do poço, de forma que o estrago possa finalmente começar a ser revertido. É mais do que necessária uma articulação entre União, Estados e municípios para promover a busca ativa dos estudantes e trazê-los de volta para a sala de aula, tarefa que hoje tem sido desempenhada apenas por professores e diretores. É algo desafiador e que, no caso das crianças carentes, passa pelo básico: oferecer refeições àquelas que têm fome.

13 de dezembro de 2021

GANGUES DISPUTAM CONTROLE DE CIDADES DA RIVIERA MAIA E ASSUSTAM TURISTAS NO MÉXICO!

(O Estado de SP, 06) Os mexicanos mais saudosistas ainda se lembram do paraíso que era o balneário de Acapulco, cantado na voz doce de Frank Sinatra – hoje, uma cidade tomada pela violência. Para não ver o pesadelo se repetir na Riviera Maia, o governo do Presidente Andrés Manuel López Obrador mandou para a região um batalhão de elite da Guarda Nacional, treinado especificamente para a segurança dos turistas. No fim de semana, homens fortemente armados começaram a patrulhar as praias de água azul turquesa.

O envio de um grupo de elite da Guarda Nacional foi anunciado por López Obrador em novembro após uma onda de violência tomar conta da Península de Yucatán. No dia 20 de outubro, um confronto entre gangues no bar La Malquerida, em Tulum, deixou dois turistas mortos – uma alemã e uma indiana – e três feridos.

No dia 4 de novembro, em Puerto Morelos, um lugarejo localizado entre Cancún e Playa del Carmen, um comando fortemente armado tomou de assalto a praia do hotel Hyatt Ziva Riviera com a intenção de assassinar dois traficantes de um grupo rival – ambos disputavam o ponto de venda de drogas. O confronto terminou com a morte de dois traficantes e cenas de pânico, com turistas e funcionários correndo em desespero em busca de proteção.

Na semana passada, documentos revelados pela agência EFE mostraram uma operação confusa da polícia do Estado de Quintana Roo, no dia 1º de outubro. Homens mascarados e fortemente armados invadiram o hotel El Pez, em Tulum, causando pânico entre os hóspedes. O governo estadual garante que foi uma missão de busca e apreensão, mas muitos turistas acabaram roubados – alguns foram até expulsos do lugar sob a mira de fuzis automáticos.

No México, há um excesso de forças policiais. Além de duas polícias federais e 31 estaduais, cada município também tem uma. No total, são mais de duas mil corporações diferentes. Apenas o Distrito Federal – Cidade do México – tem quatro forças policiais.

A ponta mais frágil da cadeia são os policiais municipais, que quase não têm direito a férias. A maioria, cerca de dois terços, ganha menos do que um salário mínimo e todos pagam pela munição que utilizam. Ao mesmo tempo, são eles que enfrentam mais de 90% dos crimes comuns cometidos e estão na linha de frente dos cartéis, portanto, mais vulneráveis à corrupção.

Por isso, a ideia de López Obrador é tentar federalizar a segurança pública, investindo nessa força de elite da Guarda Nacional. Ao todo, cerca de 1,5 mil integrantes foram enviados para a Riviera Maia, distribuídas entre as localidades de Benito Juárez, Isla Mujeres, Solidaridad, Puerto Morelos e Tulum.

De acordo com especialistas, quatro grandes cartéis disputam o domínio do tráfico de drogas nas praias de Quintana Roo – Los Zetas, Jalisco Nueva Generación, Golfo e Sinaloa. Essas quatro organizações estão ligadas a gangues locais, que não se importam em disparar contra qualquer um em plena luz do dia. Uma delas é conhecida como ‘Cartel de Cancún’, que é formado por ex-integrantes dos Zetas.

As receitas dos cartéis, no entanto, não se resumem ao tráfico de drogas. Segundo Edgardo Buscaglia, especialista da Columbia Law School, de Nova York, as organizações criminosas mexicanas complementam a renda com contrabando, falsificação de dinheiro, de documentos, fraudes, homicídios por encomenda, roubo, pirataria, prostituição, sequestro, tráfico de armas e de seres humanos.

No caso da Riviera Maia, a extorsão é uma importante fonte de recursos das organizações criminosas. Nos últimos meses, hotéis, restaurantes, pizzarias e até um shopping center sofreram violentos ataques associados à cobrança por proteção, o que levou muitos estabelecimentos a fecharem suas portas. ‘As investigações apontam que a violência é causada, principalmente, por células do cartel de Sinaloa que disputam o território entre si’, disse o governador do Estado, Carlos Joaquín González.

10 de dezembro de 2021

CARTAS EM TUPI TRADUZIDAS PELA 1ª VEZ MOSTRAM VISÃO INDÍGENA SOBRE FORMAÇÃO DO PAÍS!

(Reinaldo José Lopes – Folha de SP, 04) “Aîmondó benhe xe nhe’enga”, ou, em português, “Envio de novo minhas palavras”: assim começa um dos documentos mais preciosos do Brasil colonial, parte de um conjunto de seis cartas no idioma tupi escritas entre agosto e outubro de 1645.

A pequena coleção de mensagens, que acaba de ser integralmente traduzida pela primeira vez, é o único registro de indígenas colocando sua própria língua no papel durante os primeiros séculos da colonização do país.

Os textos são, além disso, testemunhos de uma guerra civil que dilacerou tanto o Nordeste como um todo quanto a tribo dos potiguaras, cujo idioma materno era o tupi. Essa etnia vivia em um território litorâneo que ia da Paraíba ao Ceará, e pertenciam ao grupo os autores e os destinatários das missivas.

As cartas foram traduzidas por Eduardo Navarro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e um dos principais especialistas em tupi antigo do país.

A pesquisa de Navarro sobre os textos deve ser publicada em breve em artigo no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. “Graças a Deus terminei”, brinca ele. “Creio que dei conta de resolver 99% dos desafios dos textos, se não todos.”

As cartas foram escritas durante a Insurreição Pernambucana, revolta organizada pelos colonos de origem portuguesa no Nordeste contra a ocupação holandesa da maior parte do litoral da região, que já durava 15 anos.

Ao longo desse período, alguns dos chefes potiguaras tinham se aliado à Holanda e se convertido ao protestantismo, enquanto outros permaneciam fiéis a Portugal e à Igreja Católica. As mensagens documentam a tentativa do segundo grupo, que contava entre seus líderes o militar Antônio Felipe Camarão (1600-1648), de convencer os demais potiguaras a abandonar a aliança com os holandeses.

Os documentos foram preservados pela Companhia das Índias Ocidentais, espécie de multinacional do comércio holandês que se apossara do Nordeste. Armazenadas na Biblioteca Nacional de Haia, as cartas são conhecidas dos historiadores brasileiros desde o fim do século 19, mas só uma delas já tinha sido traduzida integralmente até hoje.

Parte do mistério tem a ver com o fato de que, durante muito tempo, o conhecimento sobre o tupi antigo no Brasil tinha sido precário, com pouco acesso aos documentos a respeito da língua produzidos na época colonial (em geral por missionários jesuítas, como José de Anchieta) e poucos estudos sistemáticos, conta Navarro, ele próprio autor do “Dicionário de Tupi Antigo”.

“A ortografia também era instável, já que era uma língua usada quase sempre oralmente, no cotidiano. Algumas palavras que deveriam ser escritas juntas estão separadas, e vice-versa. O lado paleográfico [os maneirismos da escrita da época, como letra, abreviações e pontuação] também oferece algumas dificuldades”, explica.

Outro desafio é que os autores das cartas —além de Felipe Camarão, a lista inclui Simão Soares, Diogo da Costa e Diogo Pinheiro Camarão— não devem ter sido alfabetizados em tupi, mas provavelmente em português.

Isso significa que, na hora de escrever, eles parecem ter registrado seu idioma materno “de ouvido”, usando uma ortografia puramente fonética (imagine alguém que só conhece a forma falada do português escrevendo “táxi” como “tácsi” ou “táquissi”, por exemplo).

Por que, então, adotar esse método improvisado? “Porque era a língua deles, eles pensavam em tupi”, diz Navarro. Além disso, os destinatários das mensagens, como Pedro Poti, tinham sido alfabetizados em holandês (Poti chegou a passar cinco anos na Holanda antes de voltar para o Brasil com a frota que conquistou o Nordeste).

Não adiantaria, portanto, escrever para eles em português, mas o tupi continuava a ser um meio comum de comunicação entre os dois lados da guerra civil potiguara. Ironicamente, as respostas de Pedro Poti e dos demais potiguaras aliados da Holanda não foram preservadas nos arquivos portugueses.

Em suas mensagens, não por acaso, Felipe Camarão tenta apelar para o senso de identidade comum entre todos os potiguaras. “Por que faço guerra com gente de nosso sangue, se vocês são os verdadeiros habitantes desta terra? Será que falta compaixão para com nossa gente?”, questiona ele.

“Nossas antigas terras, nossos velhos ritos, nossos parentes paraibanos, os de Cupaguaó, os de Uruburema, os de Jareroí, os de Guiratiamim, todos os antigos filhos dos habitantes da caatinga, tudo e todos estão sob as leis dos insensatos holandeses, assim como seu corpo e sua alma também estão”, declara Camarão em outra carta. “Eu novamente farei vocês estarem bem, perfeitamente de acordo com seu modo de vida de antigamente”, promete.

Além de permitir enxergar os detalhes do cenário histórico pela perspectiva dos indígenas, as cartas também são uma janela para entender a evolução linguística do tupi.

Um exemplo é o uso do gerúndio em construções equivalentes a “estou falando” em português. Navarro conta que o padrão original do tupi era inverter essa lógica. Dizia-se “falo estando”, com o mesmo significado de “estou falando”.

Nas cartas, porém, aparece uma construção seguindo o padrão da língua portuguesa, possivelmente por influência do idioma europeu.

09 de dezembro de 2021

A METÓDICA RUÍNA DO ENSINO PÚBLICO!

(O Estado de S. Paulo, 05) A exemplo do que ocorreu com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), a demissão de mais de 50 técnicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), entre coordenadores, assessores e pesquisadores, evidencia que há um método no desmanche da educação pública no País. A maioria dos demissionários é da área de ciências exatas.

A crise começou a ser gerada no início do governo Bolsonaro, quando os órgãos das áreas de fomento à ciência e ensino superior, como a Capes, que fiscaliza o sistema brasileiro de pós-graduação, passaram a ter seus respectivos orçamentos congelados. Ela aumentou no ano seguinte depois que o então ministro Abraham Weintraub passou a desqualificar as universidades públicas, classificando-as como “locais de baderna e de maconheiros”. Atualmente, 80% dos programas de pós-graduação estão nessas universidades, que são responsáveis por quase toda a pesquisa acadêmica desenvolvida no País.

A crise evoluiu quando, em junho de 2019, ao discursar no XII Congresso Brasileiro de Ensino Superior Particular, Weintraub defendeu o fortalecimento do ensino superior privado, prometeu “mais liberdade para sua atuação” e voltou a criticar o ensino público. Ele deixou o cargo em 2020, mas a equipe de seu sucessor – oriundo de uma universidade presbiteriana – se mostrou simpática a um afrouxamento nas regras de fiscalização da pós-graduação e à adoção de um sistema de autoavaliação e certificação de qualidade expedido por entidades privadas. A tese é defendida há tempos pelas universidades particulares, que acusam a Capes de ser muito rigorosa ao avaliar os cursos de pós-graduação que oferecem.

Em abril de 2021, a presidência da Capes passou a ser exercida por Cláudia Toledo, reitora de um centro universitário particular de Bauru com pouca expressão educacional e científica, cujo curso de mestrado em “sistemas constitucionais” foi descredenciado na última avaliação quadrienal, por ter recebido uma nota baixa. Esse centro, no qual o ministro da Educação se formou, pertence ao pai da reitora. Cinco meses após sua posse, ela destituiu os integrantes do Conselho Técnico-Científico, o órgão responsável pelas avaliações quadrienais, e mudou sem comunicação prévia os parâmetros da avaliação em andamento, o que levou a Justiça a suspendê-la, em caráter liminar.

O pedido de exoneração de mais de 50 assessores e pesquisadores da Capes não causou surpresa. Há meses eles vinham acusando Cláudia Toledo de pressioná-los a liberar uma “expansão desmedida” dos cursos de mestrado integralmente a distância, ignorando os pareceres contrários dos coordenadores de área e consultores do órgão.

Seguindo um roteiro semelhante ao da crise do Inep, a crise da Capes é mais uma implosão – concebida com foco e rigor – de um órgão fundamental do sistema de ensino superior. É com base nesse método que o governo Bolsonaro vem destruindo o que resta do aparato de políticas educacionais que o País construiu, com êxito, nas três últimas décadas.

08 de dezembro de 2021

RESPONSABILIDADE FISCAL E CUSTO DA DÍVIDA!

(Affonso Celso Pastore, ex-presidente do BC e sócio da A.C. Pastore e Associados – O Estado de S. Paulo, 05) A aprovação da PEC do Teto, em 2016, deu início a uma redução simultânea da taxa neutra real de juros e da taxa de juros implícita da dívida bruta, que é o quociente entre os juros pagos em um ano e o estoque da dívida. A taxa implícita caiu de 16%, em 2016, para 7% em 2021.

Uma das consequências mais nefastas da destruição da âncora fiscal foi o aumento da taxa de juros e a queda do crescimento econômico. O rompimento da regra do teto de gastos gerou prêmios de risco que depreciaram o real, iniciando um surto inflacionário e elevando as taxas no ramo longo da curva de juros. A inflação mais alta obrigou o Banco Central a reagir com aumentos sucessivos da taxa básica de juros, que se propagou para o ramo curto da curva de juros, mas devido ao prêmio de risco decorrente da indisciplina fiscal aumentou ainda mais as taxas no seu ramo longo.

Atualmente, as taxas de juros em todas as operações, de um a dez anos, estão próximas de 12% ao ano. No Brasil, a dívida pública bruta (do Tesouro mais as compromissadas) tem um prazo médio de vencimento em torno de 3 anos, o que significa que em 2022 o governo terá de rolar um pouco acima de 30% da dívida. Ou seja, em 2022 títulos que atualmente pagam em média 7% ao ano terão de ser substituídos por títulos que pagam 12% ao ano.

Uma conta “nas costas de um envelope” mostra que, com um resultado primário nulo, a rolagem da dívida que vence em 2022 elevará a taxa de juros da dívida em 1,5 ponto porcentual. Se nada mais for feito para baixar os riscos, em dois anos essa taxa terá se elevada em mais de 3 pontos porcentuais, retornando próximo ao nível de antes da aprovação do teto de gastos.

Erro mais grave seria aumentar ainda mais os gastos para estimular a economia. Maiores gastos elevam o déficit primário, com o aumento dos prêmios de risco, depreciando o real e elevando a inflação. O Banco Central teria de aumentar ainda mais a taxa Selic, o que, devido ao prêmio de risco, seria acompanhado do aumento de todas as taxas, nos ramos curto e longo da curva de juros.

Taxas de juros mais altas reduzem a taxa de crescimento e pioram a dinâmica da dívida, elevando ainda mais os prêmios de risco. Gera-se um círculo vicioso que somente pode ser rompido com o retorno à disciplina fiscal. Mas como é possível ter disciplina fiscal quando, para aprovar transferências aos necessitados, os deputados cobram do governo o aumento das emendas do relator e de outros gastos primários?

07 de dezembro de 2021

A CRIMINALIZAÇÃO DAS EMENDAS!

(Adriana Fernandes – Estado de SP, 11) Com a suspensão pelo Supremo Tribunal Federal das emendas de relator, os caciques do Congresso correm para lançar uma operação de contenção de danos e barrar a sangria aberta pela PEC dos precatórios.

Eles buscam a reversão da decisão com a promessa de garantir transparência às emendas. Mas essa articulação trabalha também para segurar o processo de aceleração da criminalização da velha política. Na véspera das eleições, é prato cheio para uma renovação maior do Congresso.

Essa onda já vem sendo surfada pelos aliados no Congresso do ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, que se filiou ao Podemos e fala como pré-candidato à Presidência em 2022. A luz amarela acendeu depois que o Senado aprovou nesta semana a criação da Frente Parlamentar de Defesa da Responsabilidade Fiscal, que teve como idealizadores os senadores Oriovisto Guimarães (Podemos) e Alessandro Vieira (Cidadania).

Os dois condenam a PEC e o espaço aberto para aumentar os recursos das emendas de relator com o furo do teto de gastos. A chamada ‘bancada da Lava Jato’ vota contra a PEC no Senado com o discurso renovado pela repercussão altamente negativa da votação do texto na Câmara, baseada em ameaças, chantagem e pagamento de R$ 15 milhões por voto.

A votação da PEC dos precatórios expôs para a opinião pública esse mostrengo Foi a criminalização da ‘velha política’, com o mote eleitoral do fim do ‘toma lá, da cá’, que deu gás para a eleição do Presidente Jair Bolsonaro em 2018. Com o controle do seu governo pelos caciques do Centrão, Bolsonaro já não pode mais se apegar a essa narrativa nas eleições de 2022.

Emendas parlamentares são instrumentos legítimos de negociação no Congresso, porém, a distorção criada com as emendas de relator, que (no máximo) deveriam ser algo residual, as carimbou com a marca da negociata, da maracutaia e, em alguns casos, até da corrupção. A votação da PEC expôs esse mostrengo para a opinião pública. Muitas pessoas não entendem e continuam sem entender direito como funciona o processo orçamentário. Mas sabem que as emendas de relator cheiram mal.

A saída para as lideranças é garantir transparência com a revelação do CPF do parlamentar que indicou. Isso não basta. Terão de diminuir os seus valores. O Senado vai fazer essa depuração na votação da PEC. Um nome já é alvo: o relator do Orçamento de 2021, o senador do Acre, Márcio Bittar. Aquele que indica e que abriu a porteira do Orçamento para as emendas bolsonaristas. Nos últimos tempos, ninguém viu, ninguém ouviu falar dele. Por onde anda o relator?

06 de dezembro de 2021

BRASIL EM RECESSÃO TÉCNICA: VEJA COMPARATIVO COM DESEMPENHO DE OUTROS PAÍSES!

(G1, 02) O Brasil aparece mais uma vez perto da ‘rabeira’ no ranking de desempenho econômico entre os países. Segundo o IBGE, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro caiu 0,1% terceiro trimestre, após cair 0,4% nos três meses anteriores, segundo dados revisados.

Com o crescimento da economia negativo nos últimos dois trimestres, o país ficou na retaguarda entre países com desempenho já divulgado.

De acordo com a Austin Rating, o PIB do Brasil no terceiro trimestre ficou abaixo do índice registrado na China, Colômbia, Chile, Espanha e Estados Unidos. Já o Japão registrou taxas inferiores no período.

Relatório divulgado pelo Banco Mundial aponta que a América Latina deve crescer 6,3% em 2021, uma recuperação “confiável”, mas ainda “insuficiente” para que a maior parte da região retorne aos níveis pré-pandemia — como é o caso do Brasil. Mas há diferenças entre os países:

“No topo, a Guiana registrou novamente altas taxas de crescimento do PIB [trimestrais], impulsionadas pela exploração de grandes descobertas de petróleo. Entre os demais países com melhor desempenho, Belize, Chile, República Dominicana, Panamá e Peru devem atingir taxas de crescimento superiores a 9% [em 2021]. A Argentina e a Colômbia devem avançar 7,5% e 7,7%, respectivamente, enquanto Brasil e o México devem apresentar taxas acima de 5%”, informou a instituição financeira.

Na avaliação do economista Silvio Campos Neto, da consultoria Tendências, o país conseguiu recuperar o patamar pré-pandemia no início do ano, mas perdeu fôlego a partir do segundo semestre com a instabilidade política do governo Bolsonaro, além do fim dos programas de auxílio, crise fiscal, aumento desenfreado da inflação e alto índice de desemprego.

“O PIB do Brasil caiu menos que os demais países durante a pandemia. Mas isso não alivia a situação porque, quando se olha no horizonte de curto prazo, não há nenhum alento, já que a inflação cresceu muito e a atividade econômica caiu”, afirmou ele.

Cláudio Considera, pesquisador do FGV IBRE, destaca também que a visão dos investidores estrangeiros sobre o Brasil piorou nos últimos meses, fazendo com que eles retirem recursos do país.

“As incertezas que estamos tendo no governo Bolsonaro nos levou a ter esse resultado. Ninguém coloca dinheiro onde imagina que pode não dar certo”, disse.

De acordo com o Banco Central, os investimentos estrangeiros diretos na economia brasileira somaram US$ 45,788 bilhões nos dez primeiros meses deste ano, com alta de 33,3% na comparação com o mesmo período do ano passado (US$ 34,352 bilhões). Somente em outubro, porém, os investimentos somaram US$ 2,493 bilhões, o menor patamar desde junho deste ano (US$ 693 milhões).

Entre os latino-americanos, Considera afirma que o desempenho econômico do Chile e do Uruguai está acima da média da região, mas pondera que os dois países são pequenos em termos geográficos e têm menor complexidade que o Brasil, por exemplo.

Segundo o Banco Mundial, houve aumento da inflação nos países da América Latina que investiram em programas de transferência de renda durante a pandemia — principalmente o Brasil, com o Auxílio Emergencial, destacado no relatório.

“Em 2021, a incerteza diminuiu, embora permaneça elevada. A incerteza sobre a inflação deverá permanecer acima dos níveis normais até que a pandemia seja controlada e a defasagem entre oferta e demanda seja resolvida”, destacou a instituição.

A Argentina não ficou de fora: tem uma inflação (50,4%) que é quase cinco vezes a do Brasil (10,7%), e mais de oito vezes a do México (6,2%), de acordo com os indicadores oficiais para outubro.

“No Brasil, a questão cambial e o custo da energia elétrica e do combustível agravaram o cenário. Na Argentina, a inflação sempre foi um problema histórico. A própria condução da economia tem sido um erro há anos”, afirmou o economista.

A redução dos pedidos de auxílio-desemprego nos Estados Unidos indica que o país está acelerando o processo de retomada econômica e deve crescer 6% em 2021 e 5,2% em 2022, segundo estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI).

As previsões otimistas dos EUA, no entanto, geram apreensão aos emergentes, que temem que a redução dos estímulos da potência leve à saída de capital de seus países e à desvalorização cambial, afirmou Campos Neto, da Tendência.

A China, por sua vez, deve crescer 8% em 2021 e 5,6% em 2022, taxas que, embora altas, indicam que o país asiático perde fôlego. No terceiro trimestre deste ano, em relação ao período anterior, a potência registrou um crescimento de 0,2%. Nos três meses imediatamente anteriores, o avanço foi de 1,3%.

“A China negligenciou alguns aspectos, como ambientais, bolhas e alavancagem excessiva. Agora ela começa a lidar com esses desafios e enfrenta um crescimento menor, segurando a produção de aço para controlar as emissões de carbono, por exemplo”, explicou o economista.

02 de dezembro de 2021

NOVOS VENTOS NA ALEMANHA!

(O Estado de S. Paulo., 27) Após 16 anos de gestão conservadora dos democratas-cristãos de Angela Merkel na Alemanha, a coalizão dos vitoriosos nas eleições de setembro inicia um novo governo. Apelidado de “semáforo”, será liderado por Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (vermelhos), em conjunto com os verdes e liberais (amarelos).

Em sua agenda “modernizante”, a coalizão promete tornar a cidadania alemã mais inclusiva, incrementar direitos LGBT, legalizar drogas leves, dinamizar procedimentos parlamentares e desburocratizar serviços públicos.

Dadas as disparidades, especialmente entre os liberais e os outros aliados, a coalizão estava longe de ser óbvia. Mas a arte da negociação prevaleceu, e o governo nasce concatenado.

Os social-democratas garantiram o aumento do salário mínimo sacrificando aos liberais seus planos de novos impostos. Já estes concordaram em flexibilizar a ancoragem da dívida pública e capitalizar o banco de desenvolvimento para gerar um espaço de ¤ 50 bilhões para investimentos e gastos sociais.

A corrida pela descarbonização será liderada pelos verdes, mas os social-democratas cuidarão para que ela seja socialmente sustentável e os liberais, para que seja dinamizada por investimentos em inovação.

Nas políticas migratórias, há a intenção de facilitar o ingresso de trabalhadores e a reunificação das famílias de exilados, mas também de agilizar deportações. A mudança em relação à política externa acomodatícia e transacional de Merkel transparece nas críticas incisivas aos abusos humanitários de parceiros como China e Rússia.

Numa era de erosão democrática, a República alemã dá um exemplo de alternância de poder sem polarização e de renovação sem ruptura. Com efeito, os social-democratas integraram o último governo; Scholz foi ministro das finanças e se vendeu na campanha como sucessor de Merkel. Enquanto os verdes e liberais trarão novas ideias e práticas ao governo, a experiência da oposição pode ser rejuvenescedora para os conservadores.

Muitos analistas apontam no governo “semáforo” um excesso de pragmatismo e falta de ambição. Mas quando se olha para as tensões exacerbadas por emoções extremistas e antipolíticas em países latinoamericanos, como o Chile, ou, nos EUA, para as guerras culturais entre os partidos e no interior de cada um, afastando-os cada dia mais da unidade prometida por Joe Biden, ou para a beligerância eleitoral na França, ou ainda para a crise existencial da Inglaterra pós-brexit, o que se vê é excesso de ambição e falta de pragmatismo.

Hoje, o presidencialismo de coalizão brasileiro – em meio às transações obscuras do Executivo com o Legislativo, à manipulação demagógica da arquitetura fiscal ou às intransigências à direita e à esquerda – parece uma caricatura do parlamentarismo alemão.

O teste da realidade logo chegará. A Alemanha está na iminência de uma quarta onda de covid e tem suas próprias dificuldades com a inflação. Mas, ao menos em tese, a principal economia da Europa se mostra um ponto de equilíbrio e uma fonte de vigor democrático no volátil teatro global.

01 de dezembro de 2021

VIKINGS MUDARAM O MUNDO COM SUAS VIAGENS, DIZ ARQUEÓLOGO!

(Reinaldo José Lopes – Folha de SP, 23) Basta uma rápida olhada nos mapas que documentam as incursões vikings durante a Idade Média para concluir que os guerreiros escandinavos eram capazes de meter o bedelho em praticamente qualquer lugar da Europa e da bacia do Mediterrâneo.

O alcance global dos vikings começou como uma mistura despretensiosa de pirataria e comércio, mas seu efeito ao longo de três séculos transformou a geopolítica da região de maneiras que ainda influenciam o mundo moderno.

A Inglaterra e a Rússia, por exemplo, provavelmente não teriam surgido sem um empurrãozinho viking, e o mesmo talvez valha para a França. Descendentes dos piratas nórdicos também tiveram papéis de relevo na política da Itália medieval e nas Cruzadas. Nada mal para habitantes de um cantinho remoto e economicamente marginal do continente europeu.

Os detalhes das mudanças operadas pelos viajantes escandinavos estão descritos em ‘Vikings: A História Definitiva dos Povos do Norte’, livro do arqueólogo britânico Neil Price, que chegou recentemente ao Brasil.

Price, que é professor da Universidade de Uppsala, na Suécia, afirma que o ingrediente secreto por trás da influência histórica dos aventureiros nórdicos é a sua tremenda adaptabilidade e capacidade de tirar vantagem das diferentes situações em que se encontravam – um ‘jeitinho viking’, digamos.

‘O efeito colateral não pretendido disso é que eles deixavam legados de longo prazo aonde quer que fossem’, explicou Price à Folha. ‘O ponto-chave é que esses legados, na prática, tomavam formas diferentes de lugar para lugar’.

Considera-se que a chamada Era Viking vai de 793 d.C. a 1066 d.C. Ambas as datas têm a ver com acontecimentos na Inglaterra: no início, o primeiro ataque de piratas escandinavos a um monastério cristão, na ilha de Lindisfarne; no fim do período, a derrota do rei norueguês Harald Hardrada na batalha de Stamford Bridge – Harald tinha tentado tomar para si o trono inglês e foi morto em combate.

O alcance geográfico das viagens e ataques vikings, no entanto, foi muito mais amplo. Cidades e reinos foram fundados em território inglês e também na Irlanda, na Escócia, na França e em diversas áreas da atual Europa Oriental. Cidades costeiras da Espanha e da Itália foram atacadas, e contatos diplomáticos e comerciais foram estabelecidos com representantes do mundo islâmico.

Aliás, um dos mais interessantes relatos sobre um funeral viking, incluindo detalhes sanguinolentos acerca de sacrifícios humanos, foi escrito pelo viajante e erudito Ahmad ibn Fadlan, enviado pelo califa de Bagdá à bacia do Rio Volga, na atual Rússia, no ano 921.

Os fatores que desencadearam a Era Viking são múltiplos, e ainda há considerável debate acerca deles. O historiador britânico Peter Heather, da Universidade de Oxford, aponta que o fim do século VIII da Era Cristã foi uma época de recuperação econômica para diversas regiões portuárias do norte da Europa.

Ao mesmo tempo, algumas décadas antes, os moradores da Escandinávia já tinham dominado a tecnologia dos barcos vikings, bastante confiáveis em mar aberto, mas também capazes de subir rios rumo ao interior.

Com isso, juntava-se a fome com a vontade de comer. ‘Várias regiões da Escandinávia, principalmente na Jutlândia – península da Dinamarca –, tinham mercados consolidados, com rotas e pontos de contato por todo o mar do Norte’, explica o historiador Johnni Langer, diretor do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (Neve) da Universidade Federal da Paraíba.

Os escandinavos podiam aproveitar a prosperidade crescente dessas regiões para fortalecer sua atuação mercante – ou para se transformarem em piratas.

Aliás, esse é mais ou menos o significado original de ‘viking’, que não é uma designação étnica, mas sim uma espécie de termo ocupacional, que também podia ser usado como verbo (o sujeito ‘ia vikingar’, ou seja, ia fazer incursões ou pilhagens por mar).

Além dos ricos mercados do mar do Norte, os piratas nórdicos descobriram que havia uma concentração considerável de metais preciosos dando sopa, sem defensores militares, nos monastérios e igrejas da região. E, por ainda não terem se convertido ao cristianismo, não tinha prurido algum de se apoderarem dessa riqueza.

Outro ingrediente importante que impulsionou cada vez mais os ataques, segundo Langer: a pulverização política nas regiões sob assédio.

‘Os séculos VIII e IX foram caracterizados pela situação de enfraquecimento de poderes centralizadores, originando o início do feudalismo na Europa, como na França e Inglaterra. Esses poderes políticos regionais eram frágeis e por muito tempo acabaram recebendo influências escandinavas’, explica o historiador.

É preciso levar em conta, por exemplo, o fato de que o território inglês não correspondia a um reino unificado, estando dividido em pequenas monarquias como as de Mércia (região central), Wessex (oeste do país) e Nortúmbria (região norte).

Esse é o cenário da Europa Ocidental, mas é preciso considerar também o que acontecia no extremo leste do continente. Enquanto vikings dinamarqueses e noruegueses avançavam pelos atuais Reino Unido e França, piratas e mercadores suecos começaram a controlar as rotas de comércio que passavam pelo interior da Rússia, da Ucrânia e da Belarus.

Eles passaram a ser conhecidos como ‘Rus’’, nome que provavelmente deriva do termo nórdico para ‘remadores’ e que acabaria originando o próprio nome da Rússia. Por fim, alguns se incorporaram ao exército do Império Bizantino, formando a famosa Guarda Varangiana, ferozmente leal ao imperador.

‘Eles também passaram a atuar como parceiros econômicos cruciais, como estimuladores da economia, mercenários e, às vezes ironicamente, como defensores do Estado’, resume Price.

No leste, os reinos fundados por vikings se cristianizaram, uniram-se à população eslava local e acabariam dando origem à Rússia imperial. Na Inglaterra, foi a reação às invasões escandinavas que levou ao surgimento de um reino unificado (o qual, no começo do século XI, chegou a ser dominado por Canuto, o Grande, rei dinamarquês que governou também a Noruega).

E, em solo francês, um acordo da monarquia local com os invasores levou à criação do ducado da Normandia, dominado pelos vikings e batizado com o nome deles (‘normando’ significa ‘homem do Norte’).

A história aventuresca dos normandos nos séculos seguintes mostrou que eles tinham ‘puxado’ seus ancestrais escandinavos. Guilherme, o Conquistador, duque da Normandia, tomou para si a Inglaterra em 1066, enquanto outros militares da região forjaram reinos na Sicília e até na Síria durante as Cruzadas.

30 de novembro de 2021

PODERES E DEMOCRACIA!

(Cesar Maia – Folha de SP, 26/02/2011) O Brasil é um país democrático.

Bem…, mais ou menos.

As imperfeições são esperadas para uma democracia de apenas 20 anos. E o tempo vai aperfeiçoando o regime. Mas há vetores institucionais que vêm regredindo. O mais importante deles é a independência entre os Poderes.

Há uma crescente invasão de competência entre eles. A começar pelo hiperpresidencialismo, a cada dia mais presente na América Latina. Invasões de competência tornaram-se uma rotina no Brasil.

Legislar por medida provisória é quase tão grave quanto os decretos-leis do regime autoritário. Mal se disfarça leis delegadas com justificativas esfarrapadas. O Orçamento, eixo fundacional da relação entre o Executivo e o Legislativo, desde o século 13 na Inglaterra, tornou-se inócuo.

O Executivo nem se preocupa mais com sua aprovação, pois abre o Orçamento quando quer, por meio do canhestro expediente dos bilionários restos a pagar, que chegam a ser trianuais. E de créditos adicionais por medida provisória.

Fazer Orçamento por decreto e por convênio é a rotina do Executivo, que se jacta disso dando nome a essa prática: PAC. O presidente pré-assina acordos e tratados com outros países, na certeza de que o Congresso os vai coonestar.

O Ministério da Fazenda invade competências constitucionais do Senado por meio de portarias de seu segundo escalão. Não dá a mínima para a fixação, pelo Senado, das regras de endividamento.

Atribui-se um poder substituto do conselho da LRF, alegando sua não regulamentação. Interpreta dispositivos federativos em relação a despesas vinculadas com educação e saúde. O Senado, passivo, vê suas atribuições em relação à Federação se desintegrar. A presença de governadores no Senado é cada vez mais rara, quando ali deveria ser o centro do debate de seus problemas.

O Congresso se agacha. Esse silêncio, quanto a suas prerrogativas constitucionais, é substituído pelo alarido em relação a emendas parlamentares e cargos. Não há necessidade de ler nenhum compêndio de ciência política para saber que um refluxo do Poder Legislativo corresponde a um avanço do Poder Judiciário sobre suas prerrogativas, no que os manuais chamam de jurisdicialização da política.

Ou de outra forma: na política não há vácuo. O Legislativo se retrai e suas funções são ocupadas pelos demais Poderes. Assim foi na fixação do piso previdenciário, na fidelidade partidária, na cláusula de barreira, na definição de limites pessoais de ocupação de cargos em comissão etc.

Por clamor popular, terminou se abrindo campo para que o Judiciário legislasse. Na abertura de uma nova legislatura, na qual mais uma vez se debate reformas que o país precisa, a mais importante de todas é o Legislativo se colocar de pé e defender suas prerrogativas constitucionais.

29 de novembro de 2021

KAST, BORIC E O PARADOXO DA POLÍTICA CHILENA!

(O Estado de S. Paulo., 25) O segundo turno da eleição presidencial do Chile será uma corrida em direção ao centro, já que a maioria dos eleitores quer mudanças, mas sem radicalismos. Algum dos candidatos conseguirá isso?

Em um primeiro olhar, algo parece inexplicável: apenas um ano depois de 80% dos eleitores terem comparecido às urnas para pedir uma nova Constituição, e seis meses depois de escolherem a Assembleia Constituinte encarregada de redigir a nova Carta, com clara maioria à esquerda, no domingo, os chilenos demonstraram pluralidade no primeiro turno, ao votar em José Antonio Kast, um ex-deputado conservador que se opõe à nova Constituição e tem minimizado violações de direitos humanos cometidas pela ditadura militar.

Com um evidente impulso a seu favor, Kast tem agora chance real de se tornar o próximo presidente do Chile, no segundo turno que será realizado em 19 de dezembro. Estarão os eleitores chilenos se comportando de maneira errática? Estarão arrependidos do processo de redação da nova Constituição?

Eu argumentaria que não, que não há nenhum tipo de confusão nem arrependimento. No ano passado, a maioria dos chilenos queria – e continua querendo até hoje – mudanças pragmáticas e moderadas em políticas sociais e inclusão econômica, mas sem jogar a criança fora com a água do banho. Ainda que os chilenos queiram uma nova Constituição, que lhes conceda mais direitos sociais, eles também querem manter muitos aspectos do modelo econômico que levou seu país a tanta prosperidade ao longo das três décadas recentes. Querem que a nova Constituição garanta mais direitos sociais, mas também um governo que siga a lei e a ordem. A disputa pela presidência deverá ser vencida pelo candidato que articular melhor esse equilíbrio.

RUMO AO CENTRO. Conforme esperado, Kast e Gabriel Boric, esquerdista e deputado no segundo mandato, acabaram em primeiro e segundo lugar no primeiro turno das eleições presidenciais. Kast e Boric receberam, respectivamente, 28% e 25,7% dos votos – em linha com as previsões das pesquisas. Já que os outros 46% dos eleitores optaram por outros candidatos, a corrida para vencer o segundo turno obrigará Kast e Boric a conquistar esses eleitores.

Com um comparecimento às urnas pouco abaixo de 50%, o primeiro turno não atraiu mais eleitores do que as disputas presidenciais anteriores, colocando em dúvida a alegação de que os chilenos estão altamente polarizados e mais interessados em política do que nos pleitos anteriores.

É improvável que o comparecimento às urnas seja muito maior no segundo turno. Por isso, os candidatos terão de conquistar os eleitores cujas primeiras escolhas já não estão na disputa. Será mais fácil para Kast atrair eleitores que votaram no primeiro turno em Sebastián Sichel (12,7%), candidato do atual presidente, Sebastián Piñera. Por sua vez, será mais fácil para Boric atrair quem votou em Yasna Provoste (11,6%), candidata do Novo Pacto Social, de centro-esquerda (coalizão que ocupou o poder na maior parte do período dentre 1990 e 2018), e nos candidatos de esquerda Marco Enríquez-ominami (7,6%) e Eduardo Artés (1,5%).

Mas o grande trunfo serão os eleitores que votaram no candidato que surpreendeu a todos, terminando em terceiro lugar, com 12,9% dos votos: o economista Franco Parisi, que vive nos EUA e fez campanha somente pela internet (já que estava alegadamente impossibilitado de viajar ao Chile em razão de um processo que sofre por falta de pagamento de pensão alimentícia dos filhos). Ele já havia disputado a presidência anteriormente, em 2013, com uma plataforma populista de direita e amigável ao mercado.

Desta vez, Parisi fez campanha como candidato antissistema. Alguns desses eleitores poderão se abster, mas Kast tentará atraí-los com uma mensagem de igualdade de condições no capitalismo e respeito à lei e à ordem, enquanto Boric deverá tentá-los com segurança social e uma agenda moralmente progressista.

Em seu discurso de vitória, Kast falou diretamente com o eleitor médio, enquanto Boric colocou foco mais nos eleitores de esquerda e no grande desafio adiante. Ainda que inflamar as bases seja mais importante para Boric, ele também precisará do apoio de eleitores mais moderados, que se preocupam com sua falta de experiência, pouca idade (35 anos) e suas propostas radicais. Por sua vez, Kast precisará convencer eleitores de que é sensato e precisará abandonar propostas mais populistas de direita (como isenções fiscais e aumentos de gastos).

O campo político de Kast tentará transformar as eleições em uma escolha entre democracia e comunismo, enquanto o campo político de Boric tentará transformá-las numa escolha entre democracia e fascismo. Como ambos tentarão apavorar os eleitores em relação ao rival, veremos muita campanha negativa.

Como em outros segundos turnos de eleições presidenciais, os candidatos buscarão apresentar a si mesmos como moderados e qualificar o rival como radical. A população poderá acabar escolhendo entre o menor dos males e, quando o próximo presidente assumir, sua aprovação poderá despencar rapidamente, à medida que os eleitores se desapontarem com as prioridades de um presidente que não foi sua primeira escolha.

O próximo Congresso também será um ambiente difícil para aprovar reformas, com ambas as Casas tendendo um pouco à esquerda como resultado da votação do domingo, mas sem nenhuma maioria clara para os candidatos.

MENSAGEM. Como os candidatos de ambos os extremos ideológicos foram para o segundo turno, alguns podem se ver tentados a afirmar que os chilenos estão polarizados. Mais eleitores, porém, votaram em candidatos moderados – apesar do apoio fragmentado ter impedido que algum deles passasse para o segundo turno. Além disso, os chilenos sabem que todos os candidatos precisam adotar posições mais moderadas no segundo turno.

O país teve disputas em segundo turno em todas as eleições realizadas desde 1999.

Os chilenos também sabem que o impacto da eleição presidencial deste ano será mais limitado, já que uma nova Constituição está sendo redigida. Se a nova Carta realizar mudanças grandes o suficiente no sistema político, novas eleições poderão ser convocadas quando (e se) a Constituição for aprovada num referendo a ser realizado no segundo semestre de 2022. Colocado de outra maneira: o mandato tanto de Kast quanto de Boric poderia ser encurtado, e o Chile poderia adotar, por exemplo, um sistema parlamentarista.

Isso explica por que o impacto que a Assembleia Constituinte surtirá nas instituições políticas chilenas será muito maior do que qualquer prioridade política que o governo seja capaz de levar adiante. Na realidade, se a Assembleia Constituinte e o novo governo discordarem a respeito de prioridades, a Assembleia Constituinte terá a última palavra, já que completará a redação da nova Constituição meses depois de o novo governo ser empossado.

Como um conflito entre um novo governo que avance com suas prioridades e a Assembleia Constituinte, que tem prioridades próprias, parece possível, os chilenos poderão querer introduzir provisões de pesos e contrapesos votando por um governo capaz de restringir o ímpeto fundamental da Assembleia Constituinte.

De fato, quatro meses após iniciadas suas deliberações, mais chilenos rejeitam do que aprovam o trabalho que a Assembleia Constituinte está realizando. Assolada por escândalos e controvérsias em razão de comentários exagerados de alguns de seus integrantes (como mudar o nome do país ou alterar sua bandeira), a Assembleia Constituinte está começando a causar preocupações entre os que temem que a nova Constituição possa trazer mudanças demais.

Ainda assim, o crescente descontentamento em relação à Assembleia Constituinte não deve ser confundido com uma rejeição à nova Constituição. Da mesma maneira que pais descontentes com a escolha de seus genros, mas animadíssimos com o fato de que serão avós, os chilenos ainda adoram a ideia de ter uma nova Constituição que tornará seu país um lugar mais justo.

IGUALDADE. Mesmo sabendo também que redução de desigualdade de renda e mais oportunidades para todos dependem de uma economia forte, os chilenos parecem ter sinalizado na eleição de 21 de novembro que, agora que a Assembleia Constituinte está colocando o foco nas maneiras de distribuir melhor a riqueza, eles querem um governo que coloque o foco em fazer a economia crescer novamente e priorize a lei e a ordem.

Enquanto a campanha para o segundo turno está só começando, e Boric e Kast precisam duplicar a quantidade de votos que tiveram no primeiro turno para se tornar o próximo presidente do Chile, ainda é cedo demais para sabermos o nome do próximo líder. O que bem sabemos é que os chilenos recompensarão quem fizer um bom trabalho em convencer os eleitores moderados.

26 de novembro

O STF E A TRANSPARÊNCIA DO ORÇAMENTO!

(Celso Lafer – O Estado de S. Paulo, 21) A transparência do processo orçamentário, que diz respeito à aplicação de recursos financeiros do Estado, está na ordem do dia do debate político. Sua prática vem sendo questionada em razão dos procedimentos das emendas do relator-geral do Orçamento no Congresso e das implicações, não republicanas, do seu sigiloso uso político para a obtenção, em conjugação com o Executivo, de apoio parlamentar.

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu um julgamento sobre a matéria, a partir do substancioso e qualificado voto da relatora, ministra Rosa Weber. A questão é de grande alcance. Transcende os aspectos técnicos. Merece, no seu rescaldo e possíveis desdobramentos, discussão e exame.

A decisão do STF analisa o princípio da publicidade que constitucionalmente rege a administração pública no País e os atos do governo em todas as suas instâncias. O princípio é um dos pressupostos da democracia, que se baseia no exercício em público do poder comum, na límpida formulação de Norberto Bobbio. Com efeito, o público, por ser o comum a todos numa República, deve ser do conhecimento de todos.

Transparência e visibilidade do poder dão à cidadania a condição de controle da ação dos governantes e dos seus atos. O que se mascara e se esconde põe em questão o chão da vida política democrática. Enseja o poder invisível de um bobbiano “cripto” e “sotto” governo.

A publicidade tem a alargada dimensão adicional de ser um critério de justiça e ética, reveladora do ilícito. Todas as ações relativas ao direito de outros homens que não forem compatíveis com a publicidade são injustas, afirma Kant ao formular o conceito transcendental de direito público no Projeto da Paz Perpétua.

Uma ação conduzida em segredo não é apenas injusta em relação a terceiros que são por ela afetados. Explicita o potencial de uma transgressão. Qual agente público pode afirmar com desfaçatez, em público, sem escandalizar, que usará dinheiro do contribuinte para atender a seus interesses privados? É o caso, por exemplo, das “rachadinhas”.

O empenho no ocultamento de ação usualmente tem como objetivo esconder o ilícito de uma transgressão ética. É por essa razão de alcance geral que Rosa Weber, no seu voto, relembrou a afirmação do juiz Louis Brandeis, da Corte Suprema dos EUA: “A luz solar é o melhor dos desinfetantes”.

Numa democracia, voltada para a res publica, as boas leis e os seus princípios, como o da publicidade da administração pública, positivada no artigo 37 da Constituição, devem ser conjugados com os bons costumes. Expor à luz do sol os maus costumes inerentes às emendas do relator-geral do Orçamento foi do que tratou o STF na sua decisão, ao exercer a sua função precípua da guarda da Constituição.

Apontou que as emendas do relator não seguem os procedimentos previstos para outras emendas parlamentares. Ampliaram-se, em comparação ao exercício financeiro anterior, na quantidade (aumento de 523%) e nos valores consignados (374%). Não guardam relação com os propósitos originários do papel das emendas do relator, voltadas apenas para erros e omissões de ordem técnica e legal e à organização sistemática das despesas conforme suas finalidades.

Daí a decisão, expressa no voto de Rosa Weber: “Constatação objetiva da ocorrência de transgressão em postulados republicanos da transparência da publicidade e impessoalidade no âmbito da gestão estatal dos recursos públicos. Práticas institucionais condescendentes com a ocultação dos autores e beneficiários das despesas decorrentes de emendas do relator do orçamento federal. Modelo que institui inadmissível exceção ao regime da transparência no âmbito dos instrumentos orçamentários”.

O STF assentou a existência de descumprimento de preceito constitucional fundamental. Consignou, assim, um efetivo limite ao poder do que o Congresso pode chancelar em matéria de emendas do relator.

Não cabe alegar que o trâmite destas emendas obedecem ao regimento interno do Congresso. O STF não assumiu função que cabe ao Congresso. Definiu que as normas do seu regimento interno devem estar conformes aos preceitos constitucionais da publicidade e da transparência. As normas do regimento que permitem as emendas do relator não estão em conformidade com estes requisitos. Por isso não são válidas. Ensejam os maus costumes que corroem a boa lei dos princípios constitucionais da administração pública e dos atos do poder e do governo em todas as instâncias, inclusive o Poder Legislativo.

Padre Antônio Vieira trata dos pecados de omissão e os de consequência. Os primeiros são os que mais frequentemente se cometem. Os segundos são os que, depois de acabados, ainda duram, por isso são pecados de consequência. O STF, na linha do preciso voto de Rosa Weber, não incidiu na facilidade de um pecado de omissão jurídica. Suspendeu todas as consequências do pecado jurídico de descumprimento de um princípio fundamental da Constituição – o da publicidade e transparência da ação governamental numa democracia.

25 de novembro de 2021

ÓPERA POPULAR!

(Cesar Maia – Folha de SP, 05/03/2011) Seria difícil imaginar um auditório com 60 mil pessoas assistindo a uma ópera, mesmo num palco a céu aberto.

Mas não numa ópera popular.

Nesta, o palco é móvel e múltiplo. Os atos são móveis e múltiplos. Cada ato desliza com seu cenário e seus figurantes nesse palco móvel.

O libreto conta o enredo que é cantado por um coro de milhares de vozes junto aos tenores populares, em carro próprio de som.

Assim é o desfile das escolas de samba: uma ópera popular. Mas esse foi um processo de mais de 30 anos, desde as rodas de samba dos anos 1920 e 1930. As escolas de samba ganharam identidade, passaram a ter nome e se diferenciaram umas das outras com cores e bandeiras próprias. No início dos anos 1930, passaram a se apresentar no Carnaval, desfilando.

O prefeito Pedro Ernesto deu cidadania a elas e, em 1935, oficializou o desfile.

Adotou o nome de escolas de samba, para dar cobertura legal aos subsídios.

Não havia carros nem enredo. As fantasias eram improvisadas. Desde a origem dos desfiles, a bandeira era protegida pela porta-estandarte e pelo mestre-sala.

O Carnaval, diversificado com corsos, carros, blocos, foliões, grupos de samba, frevo etc., cada um de forma autônoma, foi sendo assimilado pelas escolas de samba.

Os desfiles passaram a escolher histórias e os sambas a contar este enredo.

A incorporação dos carros alegóricos se deu de forma progressiva: muito pequenos em 1960, quase como uma marca, os carros alegóricos, como cenografia das alas com figurantes em cima, só vieram depois. A atração de cenógrafos, coreógrafos e figurinistas deu ao desfile outro glamour.

A partir daí, o desfile vai entrando numa espiral de transformação com enredo, ordenamento de suas alas, fantasias, alegorias, coreografia, samba, bateria, transformando-se em uma ópera popular.

O desfile passa a ter todos os elementos da ópera, de uma ópera popular e única.

O libreto, a orquestra com seus naipes, o maestro, os atos com suas alas, coreografias e cenografias próprias, os cantores, o coro.

Imagine-se numa arquibancada e fixe-se num cone de visão. Os atos passam na frente do público, com suas alas, carros alegóricos, fantasias e coreografias. A bateria se fixa num ponto e sua música vai para todo o desfile. Um coro geral cantando o samba-enredo, dois tenores populares puxando o samba.

Toda a apresentação é articulada. Todo o público assiste à mesma ópera esteja onde estiver, pois os palcos são móveis e correm paralelamente ao público. Em cada ponto de visão o palco é fixo. Um espetáculo único no mundo.

22 de novembro de 2021

CANDIDATOS DE ULTRADIREITA GANHAM FORÇA E DISPOSIÇÃO EM ELEIÇÕES DA AMÉRICA LATINA!

(Sylvia Colombo – Folha de SP, 13) Políticos no Chile, na Argentina e no Uruguai têm agenda antiglobalista e anti-imigração em comum.

Ao fundo, bandeiras dos EUA, do Brasil e da Argentina. À esquerda da imagem, o ex-presidente americano Donald Trump; à direita, o brasileiro Jair Bolsonaro; no centro, em destaque, o argentino Javier Milei, que neste domingo (14) tem boas chances de ser eleito deputado pela cidade de Buenos Aires.

O cartaz era vendido por ambulantes no parque Lezama, onde ocorreu o comício de encerramento da campanha do economista de 51 anos. Milei chegou ovacionado por um público majoritariamente masculino e jovem. De jaqueta jeans, confundia-se com seus apoiadores, que agitavam bandeiras da Argentina e de Gadsden, com uma cobra, hoje um símbolo do ultraconservadorismo nos EUA.

Embora ainda seja um fenômeno limitado à capital, a ascensão dos chamados ‘libertários’ vem chamando a atenção ao roubar votos da centro-direita e turbinar as críticas ao peronismo que comanda o país.

Sob a inspiração de Trump e Bolsonaro, outros nomes se projetam no cenário eleitoral da América Latina. No Chile, o pinochetista José Antonio Kast, 55, lidera as pesquisas com uma agenda antiglobalista, anti-imigração e focada na segurança – a maior preocupação dos chilenos, segundo o instituto Pulso Cidadão.

A ascensão de Kast parece surpreendente num país onde grandes protestos iniciados em 2019 pediram a troca do modelo político-econômico neoliberal e um plebiscito definiu a reformulação da Constituição.’ O que estamos vendo é a reação de chilenos que resistem a uma mudança profunda no Chile’, afirma o analista político Fernando García Naddaf. ‘Tinha um mal-estar no país havia mais de uma década, parecia que nada mudava, mas agora estamos vendo que uma transformação tectônica está ocorrendo. Como toda transformação gera medo e inquietação, Kast responde a esse setor da sociedade.’

Kast foi candidato em 2017 e não chegou ao segundo turno, obtendo 7,9% dos votos. Na época, ficou conhecido por evocar o ex-ditador chileno ao afirmar que, se estivesse vivo, Pinochet votaria nele.
Católico, posiciona-se contra o aborto e a diversidade sexual. Nos últimos meses, alcançou a liderança das sondagens para o pleito presidencial que ocorre no próximo dia 21, com mais de 25% das intenções de voto. Segundo projeções recentes, deve disputar o 2º turno com o esquerdista Gabriel Boric.

Em discursos e debates, Kast destaca o apoio a uma política de segurança linha-dura contra os grupos indígenas mapuche, que defendem a soberania dos povos originários do Chile e, por vezes, provocam protestos violentos. Assim como Trump, o candidato quer a construção de um muro, desta vez para tentar deter a entrada de imigrantes venezuelanos e haitianos pelo norte do país, na fronteira com a Bolívia.

‘Num mundo em que o trabalho está escasso, impactado pela pandemia, esse discurso atrai uma classe média mais conservadora, que tem medo de perder dinheiro’, afirma o analista Cristóbal Bellolio.

No Uruguai, o general da reserva Guido Manini Ríos, 63, hoje senador, representa um dos importantes apoios políticos do governo de Luis Lacalle Pou. De uma família com tradição na política, com avós e tios que ocuparam cargos em governos do Partido Colorado, Ríos é o fundador do Cabildo Abierto, legenda que reivindica o legado do herói da Independência, José Artigas.

Depois de uma carreira militar, atuando em missões no Irã, no Iraque e em Moçambique, foi escolhido pelo ex-presidente José “Pepe” Mujica em 2015 para comandar o Exército. Desde então, começou a construir seu perfil mais radical à direita, defendendo anistia a militares e desencorajando buscas por desaparecidos e julgamentos de responsáveis pela repressão na ditadura uruguaia (1973-1985).

A curiosa relação de Ríos com a esquerda dos Tupamaros, agrupação da qual Mujica foi parte, é nebulosa, mas passa pela história da luta armada, que teve início antes mesmo do regime militar.

Num período de extrema violência, no começo dos anos 1970, tupamaros e membros de grupos como os Tenentes de Artigas, da qual o hoje senador fazia parte, cultivavam um profundo sentimento nacionalista.

As agendas, porém, eram bem diferentes: os tupamaros queriam uma revolução socialista, enquanto os militares chegaram ao poder por meio de um golpe.

Católico, Ríos é contra os avanços em políticas de direitos civis promovidos pelos governos da Frente Ampla (2005-2020), como a lei do aborto, da regulamentação da maconha e do casamento homossexual.

Em 2019, foi candidato à Presidência e obteve 11,04% dos votos no primeiro turno. No segundo, apoiou o atual líder do Uruguai, Lacalle Pou, de centro-direita, contra o frente-amplista Daniel Martínez.

Mais recentemente, esse fenômeno deu as caras também no Peru, onde o empresário evangélico Rafael López Aliaga, 60, quase conquistou os votos necessários para ir ao 2º turno.

Celibatário desde os 19 anos, Aliaga fez da luta contra a chamada “ideologia de gênero” e a corrupção sua principal bandeira, defendendo a expulsão da empreiteira brasileira Odebrecht do país. Acabou em terceiro lugar, com 11% dos votos, atrás do atual presidente, o esquerdista Pedro Castillo, e de Keiko Fujimori.

19 de novembro de 2021

CONHEÇA A HITÓRIA DE MARIA ODÍLIA TEIXEIRA, MÉDICA NEGRA PIONEIRA NO BRASIL!

(Folha de SP, 17) Era 1909 e as mulheres nem sequer tinham o direito de votar no país. A Lei Áurea, que marcou o fim da escravidão na letra da lei, sem qualquer tipo de reparação, tinha apenas 21 anos desde sua promulgação.

Em meio a uma turma com outros 47 colegas, todos homens, a presença daquela mulher negra entre os formandos da Faculdade de Medicina da Bahia era o improvável.

Baiana nascida em 1884 em São Félix, na época um dos principais entrepostos comerciais do Recôncavo baiano, Maria Odília Teixeira é a mais antiga médica negra que se tem registro historiográfico no Brasil.

Era filha de José Pereira Teixeira, um médico branco que não tinha posses, mas era respeitado na cidade, e de Josephina Luiza Palma, mulher preta cuja mãe havia sido escravizada e depois alforriada.

Com 13 anos, deu o seu primeiro passo de enfrentamento em um país racista e hostil ao protagonismo da mulher. Deixou a cidade de Cachoeira e foi para Salvador, onde se matriculou no Ginásio da Bahia, espaço de formação das elites de homens brancos de então da capital baiana.

Saiu de lá bacharela em ciências e letras, formação para quem na época seguiria a carreira no magistério. Os estudos, segundo relato de familiares, tornaram Maria Odília uma mulher culta. Dominava francês, grego e latim.

Mas ela decidiu ir além e, seguindo os passos do pai e os de um dos irmãos, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1904.

“Havia uma espécie de projeto familiar. Não que ela fosse predestinada a ser médica, mas o caminhar dentro das letras mostra que ela teve essa escotilha, essa possibilidade que obviamente só foi acessada por ser filha de um médico branco”, explica Mayara Santos, mestre em história pela Universidade Federal da Bahia que estudou a vida de Maria Odília.

Na faculdade, Maria Odília foi a única mulher entre os 48 alunos da turma, um padrão que se repetiu com todas as mulheres que ingressaram na Faculdade de Medicina da Bahia até os anos 1920. ​

Também era comum entre as pioneiras que fossem contemporâneas na faculdade de algum parente que servia como espécie de tutor das alunas mulheres nas salas de aula. Maria Odília foi tutorada pelo irmão, Joaquim Pereira Teixeira, que havia ingressado no curso dois anos antes.

Ela foi a sétima mulher a se formar em medicina na Bahia, a primeira no século 20 –as outras seis pioneiras concluíram o curso ainda no século 19. Formou-se em 1909 após desenvolver uma tese sobre a cirrose —tema incomum entre as médicas mulheres que a antecederam na Bahia, que em geral apresentavam estudos nas áreas de pediatria e ginecologia.

O estudo foi apresentado em um momento em que estavam em alta as teses ancoradas na eugenia e no racismo científico. Doenças como a cirrose, associadas ao consumo de bebidas alcoólicas, eram encaradas como moléstias ligadas à tese racista de uma suposta degeneração dos negros.

“Foi estudo pioneiro não só sobre o tema, mas pela forma como ela discute. A tese de Maria Odília tratou da cirrose, mas passou ao largo desse debate. Ela não adotou o caminho mais fácil na época que era recorrer ao racismo científico”, afirma a historiadora Mayara Santos.

Depois de formada, Maria Odília voltou para Cachoeira, onde começou a atuar como médica. No início, muitos dos atendimentos eram tutelados pelo pai, o irmão ou algum outro médico. Com o passar do tempo, passou a trabalhar sozinha, tendo uma clientela majoritariamente feminina.

Na época, não raro aparecia em notas de colunas de jornais da região, quase sempre com agradecimentos de pacientes.

Em 1914, cinco anos depois da formatura, foi convidada a voltar para Salvador e lecionar clínica obstétrica. Retornou e se tornou a primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia. As aulas práticas eram na Maternidade Climério de Oliveira, que existe até hoje no bairro de Nazaré, em Salvador.

“Imagine o que era uma mulher negra, que não era rica, e de repente se torna livre-docente em obstetrícia. Ela tinha muita capacidade profissional”, conta o médico José Leo Lavigne, 99 anos, um dos dois filhos de Maria Odília.

A experiência na docência, contudo, não durou muito tempo. Segundo relatos da família, o pai de Maria Odília estava com a saúde deteriorada e, por isso, ela voltou para Cachoeira em 1917. A família, então, mudou-se para Irará, no sertão baiano, em busca de uma melhora na saúde do patriarca.

Foi nesta época que ela conheceu seu futuro marido, Eusínio Lavigne, advogado de uma família tradicional de cacauicultores de Ilhéus, sul da Bahia. Casaram-se em Irará na casa de Tertuliano Teixeira, rábula que era irmão da Maria Odília e que ajudou a custear os seus estudos.

Quando se casaram, os dois tinham 37 anos, idade considerada avançada para o casamento de mulheres na época. Para completar, Eusínio era um homem branco –quando mandou avisar à família que casaria com uma mulher negra, acharam que era mentira.

A família de Eusínio morava em Ilhéus e não compareceu ao casamento. Quando desembarcou na cidade, Maria Odília não tardou a sentir o preconceito da família do marido e da sociedade ilheense.

“Minha avó desmaiou quando viu meu pai chegando de braços dados com uma mulher negra. Quando acordou, disse: ‘Meu Deus, ela é negra mesmo’. O preconceito na época era enorme, mas depois as duas se tornaram amigas”, afirma José Leo Lavigne.

Depois do casamento, Maria Odília decidiu deixar a medicina para se dedicar à família. Teve dois filhos e não praticou mais o ofício para o qual estudou.

Em 1930, Eusínio Lavigne entrou para a política inspirado por ideias comunistas. Como tinha família influente, tornou-se intendente de Ilhéus. Mesmo no posto de primeira-dama da cidade, Maria Odília permaneceu sofrendo preconceito

“Os relatos familiares apontam que ela sofreu muito racismo nesta época. Sempre olhavam torto quando os dois iam a um evento ou entrava em um café, mesmo ele sendo prefeito. Mas ela sempre se manteve altiva”, afirma Mayara Santos.

Eusínio ficou no cargo de intendente até 1937, quando foi deposto e preso após criticar o golpe dado pelo governo Getúlio Vargas, que instaurou a ditadura do Estado Novo.

Após o imbróglio político, a família mudou-se para Salvador, onde Maria Odília permaneceu com a família até o fim da vida. Nos anos 1950, escreveu uma carta defendendo o legado do pai, cuja história inspirou o livro “Teixeira Moleque”, do então deputado e médico Rui Santos.

Maria Odília morreu em 1970, aos 86 anos. Deixou na família filhos, netos e bisnetos que também se tornaram médicos.

Para a historiadora Mayara Santos, a importância de Maria Odília Teixeira vai além da sua história em si: serve como uma lente para entender o Brasil do período pós-abolição.

Também resgata a memória de uma mulher negra na medicina, área que até hoje é um espaço predominantemente branco na sociedade brasileira.

Os próximos passos da pesquisa, diz, é tentar confirmar se Maria Odília é, de fato, a primeira médica negra do Brasil. Antes dela, 16 mulheres se formaram em medicina do brasil, mas só foram descobertos até o momento os dados raciais sobre 12 delas.

“É muito importante que a gente faça essa volta à trajetória de mulheres negras. A população negra do Brasil precisa desses exemplos. É um direito que nos foi tirado na história eurocêntrica branca. A Maria Odília é essa grande força que dá à população negra a possibilidade de sonhar.”