12 de abril de 2022

POPULISTAS DE DIREITA ESTÃO PROSPERANDO!

(Fareed Zakaria – Washington Post/Estado de SP, 09) Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, inúmeros comentaristas acreditaram que ao menos uma coisa boa decorreria dessa nuvem de catástrofe. O ataque de Vladimir Putin contra a ordem liberal, esperavam eles, exporia e deslegitimaria forças iliberais populistas que têm surgido há anos.

Um deles especulou que a guerra na Ucrânia poria fim à era do populismo. Outro, o acadêmico Francis Fukuyama, considerou o episódio uma oportunidade para as pessoas finalmente rejeitarem o nacionalismo de direita. Contudo, passadas seis semanas do início deste conflito, tais noções parecem ilusões otimistas.

ELEIÇÕES. Na Europa, duas eleições cruciais – na Hungria e na França – revelam a verdade. Até poucos dias atrás, era possível sugerir, como o fez um artigo da Atlantic, que a guerra na Ucrânia estava “agitando a política europeia” ao expor registros iliberais e próPutin da líder francesa de extrema direita Marine Le Pen e do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán.

Esses especialistas foram citados afirmando que Orbán “estava tentando desesperadamente reformular os acontecimentos da guerra” e prevendo que os franceses veriam o presidente, Emmanuel Macron, neste momento, “provavelmente como a única pessoa capaz de liderá-los através desta crise”.

Na realidade, Orbán acaba de ser reeleito – e para o quarto mandato consecutivo – por uma margem conveniente, com sua coalizão obtendo cerca de 53% dos votos e os opositores, aproximadamente 34%. No mesmo dia, eleitores da Sérvia reelegeram um presidente populista, convictamente próPutin, que venceu de lavada.

LE PEN. Na França, onde o primeiro turno da eleição presidencial ocorre amanhã, pesquisas sugerem que a liderança de Macron tem evaporado e Le Pen cresceu significativamente. Conforme afirmou a manchete do New York Times: “Mesmo antes de a França votar, a direita francesa é a grande vencedora”. Na Europa, pelo menos, o populismo de direita continua a prosperar.

Isso não significa que as ações da Rússia na Ucrânia sejam populares, mas elas não dominam a visão de mundo das pessoas. As reputações de políticos pró-putin não sofreram com a guerra da maneira que muitos esperavam.

Frustrado com o líder húngaro se aconchegando com Putin, Volodmir Zelenski apostou num ataque direto a Orbán, afirmando que ele é “virtualmente o único na Europa a apoiar Putin abertamente”. Isso não funcionou.

Nos EUA, é possível observar forças similares em ação, apesar de não serem tão fortes. Nas primeiras semanas da guerra, o Partido Republicano parecia ter revertido sua histórica belicosidade em política externa. Muitos republicanos da velha-guarda são veementemente anti-putin e próUcrânia.

Mas essa posição não descreve as opiniões do homem que continua sendo o líder mais popular do partido: Donald Trump, que tem elogiado Putin desde o início da invasão. O âncora mais graduado da Fox News, Tucker Carlson, que mais de dois anos atrás declarou que estava do lado da Rússia em sua batalha contra a Ucrânia, passou recentemente a repetir propaganda russa a respeito da existência de supostos laboratórios de armas biológicas na Ucrânia.

VANTAGENS. Vale notar alguns matizes. Orbán manipulou a democracia da Hungria de maneiras que lhe proveram vantagens estruturais. Em 2010, ele se movimentou para conceder cidadania a 2,4 milhões de húngaros étnicos que viviam no exterior e se retratou como o único defensor de seus direitos, o que lhe garantiu amplo apoio desses novos eleitores. Ele esmagou quase todos os meios de comunicação independentes.

O governo húngaro promove a imagem de Orbán, distribuindo pôsteres financiados com dinheiro público. Esse tipo de prática levou a Freedom House a classificar a Hungria como o único país da Europa que é “parcialmente livre”.

POPULISMO. Mesmo assim, o populismo de direita é genuinamente popular na Hungria e em outros países. Ainda que Le Pen tenha tirado vantagem da inflação em alta, culpando o governo de Macron por todo e qualquer aumento de preços, o magnetismo fundamental dela emana de seu estridente nacionalismo cultural. Orbán, Le Pen e outras personalidades da direita vociferam constantemente contra imigrantes, multiculturalismo e “lacração”, a nova palavra que aflora na França.

Ao mesmo tempo, esses líderes deixam de lado a economia de livre mercado da velha direita. Le Pen criticou muitas das reformas neoliberais de Macron e abraçou antigas políticas estatizantes da esquerda, como jornada de trabalho de 35 horas e aposentadoria antecipada. Ela especulou publicamente que poderia trazer membros da esquerda que concordem com suas ideias a respeito de protecionismo e política industrial. Orbán tem praticado há muito tempo um tipo de populismo estatizante que distribui generosos subsídios estatais para grupos que seu partido favorece.

Na França, Marine Le Pen, de extrema direita, subiu nas pesquisas às vésperas das eleições

ULTRAJES. Nos EUA, Carlson gasta pouco tempo com a guerra na Ucrânia, preferindo em vez disso colocar o foco de seu programa num cardápio diário de ultrajes contra políticas lacradoras e a cultura do cancelamento. Republicanos proeminentes, como o governador da Flórida, Ron Desantis, fazem o mesmo. Se você ouvisse a direita americana, você acreditaria que os temas mais prementes do mundo atual são diretorias de escolas que doutrinam crianças com ideias de fluidez de gênero.

É verdade que essas ideias atraem apenas parte do eleitorado – especialmente os eleitores mais velhos, mais rurais e menos educados. Mas já deveria estar claro que esses eleitores são numerosos o suficiente e apaixonados o suficiente para vencer eleições – nos dois lados do Atlântico.

11 de abril de 2022

QUAL É O FUTURO DOS BRICS APÓS GUERRA DA UCRÂNIA – E COMO BRASIL SE EQUILIBRA NO BLOCO?!

(BBC News Brasil, 05) Quinze anos depois de ser criado, o bloco de países emergentes formado por Brasil, Rússia, China, Índia e, mais tarde, África do Sul, e conhecido pela sigla Brics, está numa encruzilhada.

A Guerra da Ucrânia, iniciada por um de seus cinco membros, pode forçar o grupo a cumprir um dos destinos que analistas internacionais apontam como o futuro da instituição: de um lado, virar um “bloco zumbi”, sem impactos práticos para seus membros; de outro, se fortalecer a ponto de representar uma força alternativa ou antagonista a grupos dos países ricos como o G7 (composto por Canadá, França, Alemanha, Japão, Reino Unido, Itália e EUA).

Especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil se dividem sobre qual será o destino dos Brics mais de um mês após os tanques russos adentrarem as fronteiras com a Ucrânia, em uma guerra que já gerou milhares de mortos e mais de 4 milhões de refugiados na Europa.

“Instituições não somem e por isso os Brics devem seguir funcionando, mas com pouca relevância em termos de definições de posicionamentos e de peso geopolítico. O bloco flerta com a condição de zumbi, não há coesão ideológica e seus membros devem seguir com planos independentes paralelamente ao bloco”, afirmou à BBC News Brasil Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro do Policy Center for The New South, que acompanhou a formação e o desenvolvimento dos Brics.Manjari Chatterjee Miller, pesquisadora sênior para Índia, Paquistão e Sul da Ásia do Council on Foreign Relations, discorda do prognóstico de Canuto. Segundo ela, nos quase 16 anos de existência, os Brics permitiram a seus membros compartilhar informação (não só econômica, mas estratégica, como dados de segurança) e tirar do papel planos compartilhados, como a criação do banco do bloco, o New Development Bank (NDB).

O NDB, composto por cotas de 20% de cada um dos países membros, financia projetos em países emergentes a juros mais baixos e em moeda local, uma forma de proteger as economias desses países das oscilações do dólar.

No começo de março, o banco informou que, por decisão “técnica”, suspendeu as operações com a Rússia, depois que parte significativa do sistema bancário russo foi alvo de sanções e de exclusão do sistema internacional de transações financeiras, o Swift.

“Tudo isso foi feito em um espaço que excluía países ocidentais e os Estados Unidos. E foi muito importante para todos os seus membros porque fomentou a cooperação e permitiu a liderança. Duvido que veremos uma desintegração do Brics em breve, mesmo que haja bloqueios e recuos pontuais atualmente, como no caso do NDB, que suspendeu todas as novas transações na Rússia por causa da crise na Ucrânia”, disse Manjari à BBC News Brasil.

07 de abril de 2022

ENTREVISTA DE RODRIGO MAIA AO ESTADÃO (05/04) – PARTE II!

(O Estado de S.Paulo, 05) Ex-presidente da Câmara, deputado licenciado defende que tucanos se assumam como principal contraponto ao PT e busca experiência fora do Legislativo.

O antipetismo deixou de ser então o grande eleitor que foi em 2018?

O antipetismo é a mola mestra do presidente Bolsonaro, mas ninguém deu uma alternativa que o ocupe o lugar dele na centro-direita democrática. Temos que derrotar o Bolsonaro com uma candidatura que defenda aquilo que motivou o eleitor em 2018: um Estado moderno, eficiente, bom prestador de serviço e que segurança jurídica para o setor privado investir.

Qual a sua leitura sobre esse debate no PSDB sobre uma possível revogação das prévias pela convenção do partido e qual o valor dessa carta que o Bruno Araújo, presidente do partido, escreveu validando o resultado da consulta interna?

O governador Doria venceu um modelo de prévias que em tese era favorável ao governador Eduardo Leite. Ele (Doria) mesmo assim se dispôs a disputar. Não foi um voto para cada eleitor, mas com pesos diferentes para os líderes políticos. O melhor modelo era ser um voto para cada filiado ao PSDB. O processo escolheu de forma democrática o Doria e foi legitimado pelos adversários. Isso certamente tem muito mais valor que uma convenção. Mas não tenho nenhum interesse em participar desse debate, até porque isso pode enfraquecer o partido. O PSDB é o principal partido de contraponto ao PT, para não usar o termo centro direita, que alguns tucanos não gostam. Reclamam comigo quando eu uso. A gente devia ajudar o governador Doria a se viabilizar. Se lá em julho isso não acontecer, ele vai certamente construir uma solução. O nosso campo, que tem uma linha mais pró-mercado, está fora do debate. O debate está sendo feito entre valores conservadores – e muitas vezes reacionários – e por outro lado liberais demais com o PT e seus aliados.

Por que o sr. não encaminhou o processo de impeachment contra o Bolsonaro quando era presidente da Câmara?

Porque não havia apoio político. Uma vitória de Bolsonaro poderia fortalecer demais o presidente e organizar uma narrativa contra as instituições democráticas.

Avalia que a campanha do Rodrigo em São Paulo deve ser casada com a do Doria para presidente?

O governador Rodrigo precisa primeiro mostrar a sua história e sua experiência com 5 governadores e defender o Governo de São Paulo, que teve grandes acertos. Ele tem que ser o governador do Estado de São Paulo. Não tenho dúvida que ele chega ao 2° com pelos menos 25% dos votos.

Por que João Doria tem uma rejeição incompatível com a aprovação do governo?

Todos os políticos que se colocam no centro terão uma rejeição alta. Se você projetar a rejeição do Eduardo Leite e da Simone Tebet sobre o que eles têm hoje de imagem positiva e negativa, e o alto desconhecimento, eles chegarão a uma rejeição parecida a do governador Doria. Ele fez o enfrentamento a máquina bolsonarista, o que gera uma rejeição grande. Eles operam unidos. Não é à toa que o Tarcísio cresce rapidamente.

O sr não gosta do termo terceira via?

Não tem terceira via. O Tony Blair se dizia terceira via, mas não era. Eram os trabalhistas contra os conservadores. Depois de um ciclo longo com os conservadores no poder o partido trabalhista estava mofado. Tony Blair modernizou o partido e criou o termo terceira via apenas para sair isolamento da esquerda e caminhar para o eleitor de centro, que existe. O eleitor de centro pode decidir a eleição, mas não é majoritário no processo eleitoral em nenhuma democracia do mundo. Se você olhar as eleições no Brasil vai ver que sempre sobram os dois. Em 2002 Roseana (Sarney) foi alternativa e caiu. Depois veio o Lula disputar contra o Serra, que era o candidato do governo. Em 2018 o Bolsonaro ocupou o lugar do PSDB na polarização contra o PT. A polarização comandou o processo político brasileiro desde 1994.

A tendência então é a polarização se repetir esse ano?

Se nós não entendermos que o nosso campo é à direita do Lula, estaremos fora do segundo turno. Não é fácil ocupar esse espaço porque estamos no campo da direita com o Bolsonaro à nossa direita. Precisamos buscar esse 1/3 do eleitor do presidente Lula que não sairá com ele sendo agredido.

06 de abril de 2022

ENTREVISTA DE RODRIGO MAIA AO ESTADÃO (05/04) – PARTE I!

(O Estado de S.Paulo, 05) Depois de seis mandatos consecutivos no Congresso e de presidir a Câmara duas vezes, o deputado federal licenciado Rodrigo Maia (PSDB), 51, desistiu de concorrer novamente ao Legislativo e abriu caminho para sua irmã gêmea, Daniela Maia (PSDB), que deixou a presidência da RioTur.

Maia chegou a se licenciar do governo paulista na semana passada para cumprir o prazo a Justiça Eleitoral, mas na segunda feira, 4, reassumiu o cargo de secretário de Projetos e Ações Estratégicas.

Em entrevista ao Estadão no seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes, o ex-presidente da Câmara, que vai assumir a presidência da federação formada por PSDB e Cidadania no Rio de Janeiro, contou que segue como coordenador do plano de governo de João Doria e vai se dedicar a política fluminense nos finais de semana.

Após ser apontado como presidenciável no início dos debates sobre a sucessão de 2022 e visto como principal interlocutor entre os poderes nas crises provocadas por Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia mergulhou de cabeça no projeto do governador Rodrigo Garcia e decidiu ficar fora das brigas internas de sua nova legenda no plano nacional.

O ex-presidente da Câmara prega que o PSDB se assuma como um partido de centro-direita e rejeita o rótulo de terceira via. “O eleitor de centro pode decidir a eleição, mas não é majoritário. O PSDB é o principal partido de contraponto ao PT, para não usar o termo centro-direita, que alguns tucanos não gostam. Reclamam comigo quando eu uso”, afirmou.

Maia disse, ainda, que se Lula e Bolsonaro forem para o segundo turno, votaria no petista. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

Por que o sr. desistiu de tentar o 7° mandato como deputado federal?

Eu fui tudo na Câmara dos Deputados e quero agora uma experiência fora do Legislativo. Tive a experiência com Doria e agora com o Rodrigo (Garcia), que é de fato o meu grande amigo, e vejo a possibilidade de ajudar no governo dele esse ano. E com a provável reeleição nos próximos quatro anos também. Ser deputado a carreira inteira não é ruim, mas quem chegou à presidência da Câmara já ocupou quase todas as posições na Casa. O político tem que estar sempre aprendendo. Talvez esse seja um dos problemas da política brasileira: as pessoas acabam se acomodando no papel de parlamentar. Quero cumprir um ciclo no executivo e me reciclar. Quero aprender mais sobre gestão e orçamento público para que no futuro eu possa ter outros desafios na política ou até no setor privado.

O sr. segue também como coordenador do plano de governo de João Doria. Acredita que vai haver de fato sinergia entre a campanha dele e a do Rodrigo Garcia à reeleição em São Paulo?

Na campanha do João eu coordeno o plano de governo. Quero me restringir a isso. Entrei no PSDB, mas existem muitos conflitos no PSDB dos quais eu não quero participar. O que me dá prazer na política hoje é aprender. Sou cristão novo no PSDB. Já em relação ao Rodrigo Garcia, é uma eleição diferente. Ele é meu amigo. Na eleição nacional vou me ater aos temas técnicos para construir um plano transformador da vida das pessoas.

O sr. vai estar na campanha do Rodrigo também?

Vou ajudar o Rodrigo no que ele precisar.

Como avalia o cenário no PSDB?

Como deputado e um filiado que acabou de entrar no PSDB, acho esse conflito muito estranho, mas não quero participar disso. Esse conflito vem de antes da minha entrada no partido. Teve prévias e foram questionar. Foi uma votação com 44 mil pessoas. Isso deve ser tratado por quem está no partido há mais tempo. Doria se viabilizou como candidato. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o PSDB tem um problema de aceitar que está à direita do Lula. O PSDB precisa aceitar isso. É assim que a sociedade nos vê. A gente fez pesquisas por muitos anos. Se a sociedade entende que o Lula é esquerda, então o adversário tem que estar no outro polo. Precisamos resgatar o nosso eleitor e mostrar que nesse campo existe um caminho a ser ocupado.

Como o sr. avalia os encontros de tucanos como FHC, Aloysio Nunes e outros com Lula?

Como todos foram para a oposição ao Bolsonaro, que é considerado uma direita não democrática, isso confundiu a cabeça do eleitor. Se você olhar o cruzamento de pesquisas na avaliação positiva do governador João Doria, vai ver que o Lula tem 40% das intenções de voto. No cenário de São Paulo, o candidato hoje que tem os votos com perfil tucano é o Fernando Haddad, e não o Rodrigo Garcia ainda. Naturalmente o Haddad vai para a oposição e nós vamos ocupar aquele espaço da boa avaliação que o governo tem hoje. Nacionalmente, o nosso eleitor tem hoje mais restrição ao Bolsonaro do que vontade de apoiar uma candidatura fora da polarização. Um terço dos votos do Lula está no antibolsonarismo. O Churchill tem uma passagem muito interessante. Um jovem deputado chegou para ele no início da legislatura, olhou para o lado dos opositores e disse: ‘Primeiro-ministro, lá na frente eles serão nossos inimigos’. Churchill respondeu: ‘Não, lá na frente eles serão nossos adversários. Nossos inimigos estão aqui atrás’. É um pouco do que acontece hoje no PSDB e no nosso campo. Se conseguirmos ocupar um espaço, será tirando a vaga do Bolsonaro.

Qual deve ser o discurso para o PSDB entrar nesse jogo?

Não deve ser atacar o presidente Lula. Eu disse isso ao governador João Doria. Temos que dizer aos eleitores que se decepcionaram com Bolsonaro que temos uma alternativa que não seja a volta ao passado e o PT. A esquerda acha que se reduz desigualdade intervindo no Estado. Nós acreditamos que vamos redistribuir renda estimulando o setor privado.

05 de março de 2022

OS INIMIGOS DO LIBERALISMO MOSTRAM O QUE ISSO SIGNIFICA!

(O Estado de S. Paulo, 05) “Após duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo). Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Ele se refere ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola,

Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita – e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

ORIGENS. O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo.

O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo, envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e zomba da tradição. O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal.

Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.

01 de abril de 2022

PENSANDO A UCRÂNIA!

(Renato L. R. Marques, embaixador do Brasil na Ucrânia entre 2003 e 2009 – Revista CEBRI, 28) A ofensiva armada da Rússia contra a Ucrânia é a face visível de uma operação muito mais complexa e articulada, que envolveu uma longa campanha prévia de desinformação e fakenews, destinada a desviar a opinião pública do que seria a maior operação bélica na Europa no século XXI, em total desconsideração aos princípios do direito internacional, à letra da Carta das Nações Unidas e a compromissos como os expressos no Memorando de Budapeste, de 1994. Naquela ocasião, a Rússia, os EUA e o Reino Unido ofereceram garantias de respeito à soberania e à integridade do território ucraniano, no contexto da devolução à Rússia, pelo regime de Kiev, do arsenal nuclear soviético existente no país.

Apesar disso, boa parte da comunidade internacional preferiu, no início, levar às últimas consequências o princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, em que pese a óbvia ameaça contra a integridade territorial e a independência da Ucrânia, em franca contradição ao art. 2.4 da Carta da ONU. Preferiu debater os inúmeros e variados argumentos manipulados por Putin para “justificar” sua programada invasão da Ucrânia e revisão do mapa geopolítico da Europa. Campanha que, coerente com os propósitos de uma “guerra híbrida”, teve o mesmo efeito que os decoys lançados por aviões quando invadem o espaço aéreo inimigo, ao promover uma interferência magnética capaz de embaralhar a leitura do radar e impossibilitar a identificação do alvo. A atenção do planeta esteve, assim, praticamente hipnotizada pelo discurso do líder russo, embora parecesse impossível ignorar que a mobilização e estacionamento, em níveis sem precedentes, de tropas e material bélico na fronteira com a Ucrânia, representava, por si só, um instrumento efetivo de intimidação e coação do país vizinho.

O mundo perdeu um tempo precioso discutindo alegações descabidas, como as infantis acusações de ameaças ucranianas à Rússia (o que lembra a fábula do Lobo e do Cordeiro), a caracterização do governo Zelensky como “nazista” (quando sabidamente ucranianos e russos são oriundos da mesma matriz étnica eslava) e as notórias deturpações históricas do tortuoso e insinuante discurso de Putin, de 12 de julho de 2021, sobre a existência de um “estado trino”, integrado por Rússia, Ucrânia e Belarus. Uma “guerra de narrativas” aparentemente impossível, ante o grande arsenal de informações hoje ao alcance de todos e a ampla cobertura midiática dos acontecimentos. Algo que, para ser minimamente compreensível, teria que ser estudado contra o pano de fundo da formação de seu principal ator, indiscutivelmente o Presidente Putin, egresso da KGB no período soviético. Daí se poderia depreender seu apego à prática da “soberania limitada”, imposta a ferro e fogo aos países da Europa Oriental à época, cujos “desvios de conduta” (como o levante anticomunista na Hungria, em 1956, e a Primavera de Praga, em 1968) acionariam o “dever internacionalista de intervenção” da URSS (rótulo com que mascarou guerras de repressão e expansão). Agregue-se a isso a permanência, ainda que subliminar, da mentalidade imperial, perceptível no discurso de Catarina, a Grande, para quem “a única maneira de defender minhas fronteiras é as expandindo” (à que a voz corrente acrescentou “a Rússia termina lá onde termina o idioma russo”). Nesse sentido, a veemente contestação, por Putin, da existência da Ucrânia é também coerente com a doutrina do Kremlin de combate sistemático à ideia de “nação”, na medida em que operava contra os interesses do internacionalismo soviético e, em última instância, da hegemonia russa. Sintomas detectados pelo diplomata e estrategista americano George Kennan, em sua passagem pela embaixada em Moscou, em 1946, quando afirmou, em seu Longo Telegrama, que a URSS não poderia manter “uma coexistência pacífica permanente com o Ocidente”, como resultado de sua “visão neurótica dos assuntos mundiais” e do “instintivo sentimento russo de insegurança”.

Nesse contexto, a reivindicação de recuar a OTAN às suas posições anteriores a 1997 faz supor que o presidente russo busca reativar os entendimentos alcançados em Ialta, em fevereiro de 1945, por Stálin, Roosevelt e Churchill, para definir zonas de influência entre os vitoriosos, em circunstâncias radicalmente distintas das atuais. Hoje, depois de consolidado o novo quadro geopolítico, com a incorporação dos países da Europa Oriental e bálticos à OTAN, sem que disso tenha resultado nenhuma ameaça real à segurança da Rússia, a proposta soa extemporânea e revanchista. Mais ainda quando é estendida, inopinadamente, à Finlândia e à Suécia, o que revela, sem meios tons, que a intenção é aplicar o conceito de “soberania limitada” aos países que considera em sua “esfera de influência”, condenados, pela lógica de Putin, a se tornar “estados tampões” entre a Rússia e a Europa. A neutralidade da OTAN, tanto agora quanto nos episódios da independência de províncias da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 2014, reafirma o caráter defensivo da Aliança. Seu erro terá sido o de anunciar uma “política de portas abertas”, e de com isso induzir a população e os governos interessados a alimentar expectativas infundadas e a avaliar equivocadamente os riscos de eventuais ações militares. Ucrânia e Geórgia tinham, desde o início, chances muito frágeis de se tornarem membros da OTAN, por se manterem em estado de guerra não-declarada com o vizinho, por terem áreas de seus territórios contestadas e, por último, por um desafortunado fatalismo geopolítico. No caso da Ucrânia, acrescente-se, a presença de uma base militar estrangeira (a base naval russa de Sebastopol, na Criméia).  

Da mesma forma, no tocante à UE, a Ucrânia teria que cumprir com os requisitos básicos enunciados em Copenhague em 1993, que incluem a problemática estabilidade de suas instituições políticas e econômicas no day after e sua capacidade de incorporar e cumprir com o acervo jurídico comunitário. De quebra, a Ucrânia colocaria em cheque o funcionamento de um dos cimentos da unidade europeia, a onerosa Política Agrícola Comum (PAC), ao incorporar um dos países mais competitivos neste setor. O ingresso no atraente clube econômico está assim comprometido por interesses potencialmente afetados dos próprios europeus e pelos elevados suprimentos energéticos russos à Europa (que tenderão a recuperar importância política, quando a opinião pública se desmobilizar, por ação do tempo e na presunção de que a Alemanha e seus parceiros não encontrem fontes alternativas confiáveis no médio prazo). A preservação da economia ucraniana na esfera de influência russa a condenará à estagnação e praticamente anulará suas oportunidades de recuperação. Com o agravante que, ao contrário da época da antiga Guerra Fria, a Rússia não oferece à Ucrânia atrativos do ponto de vista político, nem ideológico nem econômico, por abrigar um regime crescentemente autoritário, com grande intervenção do Estado na estrutura produtiva e por sua condição de exportador de commodities energéticas e agrícolas (onde são concorrentes).

Isto posto, quem se debruçar sobre a história da região, identificará, sem maiores esforços, que a Rússia “nasceu” da diáspora de contingentes do maior estado da Europa medieval, entre os séculos IX a XIII, a Rus de Kiev. Esse principado, que teve seu apogeu com Vladimir, o grande (980-1015), implantou o cristianismo ortodoxo ainda vigente na Ucrânia e na Rússia. Após a morte de seu filho, Iaroslav, o sábio (1019-1054), a Rus de Kiev passou por um longo período de lutas internas e invasões mongóis. Como resultado, seus nobres se deslocaram para outras regiões, como Moscou, que se tornou o novo centro hegemônico. Ou seja, a Rus de Kiev, com seus belos mosteiros do século XI e XII, tem uma incontestada precedência histórica sobre os demais e teve sua existência reconhecida (e não “inventada”) por Lênin, como sugerido por Putin. Por outro lado, a necessidade de proteger “grupos étnicos russos” na Ucrânia é um jogo de palavras, tendo em vista que o Velho Continente, tradicional área de emigração, adota o jus sanguinis, pelo qual a cidadania é determinada pela nacionalidade dos ascendentes paternos ou maternos das novas gerações (ao contrário do Brasil e do Novo Mundo, que adotam o jus soli, que considera nacional os nascidos no país). A russificação imposta pelo Império Russo a seus domínios desde o século XVIII e a localização de russos no leste da Ucrânia – na esteira do vazio demográfico provocado pela “Grande Fome” de 1932-1933 (Holodomor), imposta por Stálin, para promover a coletivização forçada da agricultura – tornam inevitável a presença de “russos étnicos” na região (tanto quanto de “portugueses étnicos” no Brasil). Esse argumento não teria, entretanto, o peso que tem se, desde os anos 2003-2009, não tivesse a Rússia, segundo reiteradas denúncias do governo ucraniano à época, promovido frequentes “missões consulares” para oferecer passaporte e nacionalidade russa aos locais, em preparação para o presente cenário de guerra.

Qualquer que seja o desfecho da guerra, a invasão russa já provocou impacto e efeitos previsíveis no relacionamento internacional. No campo político, expôs novamente os limites da ação da ONU, em decorrência do poder de veto das cinco potências nucleares. A ONU foi, entretanto, importante como caixa de ressonância da consciência mundial, como comprova a condenação maciça da Rússia como “país agressor”. A crise promoveu um surpreendente consenso entre os países europeus, que alcançou áreas pouco suscetíveis de acordo no passado recente, como a decisão de restringir as importações de gás e petróleo da Rússia e a concordância da Alemanha em deixar inoperante o gasoduto Nord Stream 2, que proveria mais combustíveis ao seu território e vizinhos. Como resultado, é de se esperar uma aceleração da busca de fontes alternativas de energia, em consonância com os objetivos já acordados em matéria de política ambiental. Também a OTAN, que chegara a ser ameaçada de retirada de tropas e de corte de contribuições pelo governo americano, à época de Trump, atuou com uma única voz e recuperou seu prestígio como instrumento de defesa coletiva. Mas traz, em contrapartida, um renovado clima de belicismo e o rearmamento da Alemanha. A ação militar russa desviou, por sua vez, o foco dos EUA de suas divergências com a China, que assinou uma aliança com a Rússia de alcance ainda desconhecido. A China tem interesses econômicos que transcendem, no curto prazo, seus ganhos com a desestruturação da segurança na Europa, seu mercado preferencial. No âmbito econômico, a ruptura das grandes cadeias de fornecimento estimulam o offshoring por razões de segurança e, subsidiariamente, tenderá a reforçar correntes desenvolvimentistas favoráveis a velhas políticas, como a de substituição de importações e o relançamento dos mesmos “campeões nacionais” de sempre. Em que pese o impacto atual dessas tendências, deve-se supor que ao final prevalecerá a lógica econômica e a globalização retomará, mesmo que com dificuldades, seu curso anterior. Enquanto isso, o mundo sofrerá com aumento dos preços das commodities, inflação e menor crescimento econômico. Finalmente, o grande fluxo de refugiados deverá forçar a Europa a redimensionar seu programa de apoio e a buscar a difícil acomodação desses novos contingentes à sua estrutura produtiva.

Tudo somado, a ofensiva russa ainda tem que mostrar até onde pretende avançar. O estrago já realizado não deixa margem a dúvidas quanto aos objetivos expansionistas da iniciativa. Tal como se encontra o quadro atual, pode-se apenas descartar a hipótese de manter o país inteiro sob ocupação, dado seu alto custo militar, econômico e político, ante a exacerbação inevitável dos sentimentos nacionalistas e a recusa dos ucranianos em abandonar sua assumida vocação europeia. As fricções daí decorrentes levariam a uma grave instabilidade política, com riscos de atentados, ações de guerrilha e outras formas de autodefesa. Como as forças russas não são suficientes para assegurar a terceira etapa de uma invasão, o controle da população civil, a alternativa mais provável seria a instalação de um governo fantoche, de imprecisa duração. Não está claro onde a Rússia traçará os limites de eventuais novas anexações que, mesmo se restritas ao leste, provocariam uma radical desestruturação da base industrial do país (posto que ali se concentram suas minas de carvão, usinas siderúrgicas, fábricas de turbinas, altos-fornos, tratores, indústria espacial). Se abranger os portos de Mariupol (no Mar de Azov) e de Odessa (no Mar Negro), por onde escoam as exportações de aço, fertilizantes, trigo e produtos alimentícios, estaria estrangulando a economia e inviabilizando o país. O que será aceitável para as duas Partes, quando sentarem à mesa de negociação, tendo em vista que Putin não pode abrir mão do papel de vitorioso e Zelensky não pode fazer concessões que deem a entender que todo o esforço de resistência foi em vão? Qualquer que seja o desfecho, terá um alto custo em vidas inocentes, defensores de seu torrão natal e de capital humano para o futuro. Para concluir: a generosa ajuda que vem sendo oferecida ao país pelo Ocidente está destinada a que “Ucrânia”?

30 de março de 2022

ILUSÃO DE INTIMIDADE!

(Cesar Maia – Folha de SP, 08/08/2009) Numa consulta em 1992, Glorinha Beuttenmüller disse que a TV produzia uma intimidade entre expectador e “ator”. E que isso valia para os políticos. Portanto, estes, no contato pessoal, deveriam retribuir esta intimidade.

Nestes cinco anos, o impacto da TV na política diminuiu: menos TVs ligadas, zapeamento, troca com a internet, pela sensação de uma novela já vista várias vezes. No Brasil, isso foi sentido em 2004; nos EUA, demonstrado na eleição de 2008. O uso crescente da internet na política é causa e efeito disso. Vale a pena retornar ao auge da TV na política e a seus pesquisadores, comparando aos dias atuais.

Destaco aqui um clássico dessa época: “The Reasoning Voter” (1991), de Samuel Popkin (traduzido para circulação restrita). Popkin dizia que o eleitor usava atalhos para obter informações e, com esses, decidia. Hoje há uma excitação do fator emocional em campanhas. A questão dos “atalhos” de Popkin pode ajudar a entender melhor o processo de formação de voto, sem abusar da emoção.

Popkin dizia que o crescimento na audiência dos noticiários da TV produziu uma guinada histórica em direção a uma política centrada no candidato. Esse jornalismo político mostrou-se mais nacional e mais centrado nos políticos individualmente do que nas instituições. As questões regionais foram perdendo força. A intensidade maior é na pessoa do presidente, mesmo quando se trata de assunto econômico, o que faz os eleitores relacionarem a maior parte dos fatos ao próprio presidente. A TV ressalta o presidente como um politico sempre em eleição.

O uso da TV pelos candidatos ao Congresso reforça essa regra: na hora do voto, quanto mais dinheiro se gasta em mídia, mais os fatores pessoais predominam sobre os fatores partidários. As considerações políticas são mero pano de fundo sob o qual se desenrolam as questões pessoais.

O noticiário na TV retrata a política como conflitos entre pessoas, e não entre instituições ou princípios. Os debates tornaram-se uma espécie de seriado universal. E conclui com Scott Keeler (texto do mesmo nome, 1987) afirmando: a TV cria uma “Ilusão de Intimidade”.

Desse ponto, voltemos à percepção recente de que a TV perdeu impacto sobre a política. É verdade, muito menos pela comunicação em si e muito mais pelas novas interveniências. O texto de Popkin continua atual. Só que hoje o mesmo impacto da TV na política sofre interferências de outros meios, seja por alternativa, seja por espalhamento, seja por interação.

A mesma TV, com os mesmos elementos, só produzirá o mesmo impacto se usar bem essas relações. 

29 de março de 2022

É PRECISO PARAR DE SUBESTIMAR OS UCRANIANOS!

(O Estado de S. Paulo, 29) Os EUA tinham boas informações sobre o plano russo de invadir a Ucrânia, mas não sabiam como a invasão se sairia. No início da guerra, Kiev cairia em dois dias. Isso foi há mais de um mês. O erro é a imagem espelhada dos

EUA no Afeganistão, onde os americanos foram surpreendidos pela velocidade do colapso.

Contratempos da Rússia mudaram essa visão, mas ainda parece haver a suposição de que, mais cedo ou mais tarde, ela esmagará a resistência ucraniana. No entanto, embora os russos tenham demonstrado disposição para cometer crimes de guerra, não há indicação de que estejam vencendo.

Os ucranianos mostraram habilidade e estão tirando o máximo das armas ocidentais. Eles recuaram para as cidades, onde o poder aéreo e dos blindados russos é dissipado, e começaram a fustigar comandantes e linhas de suprimentos.

A Rússia, com seu sistema de comando centralizado e suboficiais inexperientes, demorou a responder. Os russos, aparentemente, não têm um único comandante encarregado da guerra. Suas unidades estão espalhadas por um país maior do que a França e muitas vezes operam com objetivos opostos.

Agora, a Ucrânia partiu para a ofensiva, libertou Irpin e empurrou os russos por mais de 32 quilômetros. Forças ucranianas retomaram Trostianets, reabriram a estrada para Sumy e avançam para aliviar a pressão sobre Kharkiv.

Além de não atingir seus objetivos, a Rússia vem sofrendo perdas: mais de 300 tanques, um navio de desembarque, de 7 mil a 15 mil soldados, segundo a Otan, e até 30 mil homens feridos ou capturados – muito perto das perdas soviéticas em 10 anos de guerra no Afeganistão. Entre as baixas estão sete generais e muitos oficiais. Enquanto

isso, o moral está tão baixo que um chefe de brigada russo teria sido atropelado e morto por seus homens.

Este não é o retrato de um país que está prestes a derrotar a Ucrânia. Em vez disso, a Rússia pode estar reduzindo suas ambições, ao dizer que a missão é capturar Donbas. O que não faz sentido. Analistas dizem que Kiev era o principal objetivo, mas a manobra pode dar a Putin uma saída do atoleiro. Toda a invasão foi caótica, construída sobre mentiras e sabotada por incompetência. Isso não vai mudar. Por isso, chega de superestimar os russos e subestimar os ucranianos.

28 de março de 2022

UM ALERTA OPORTUNO E NECESSÁRIO!

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 26) Como se não bastassem a pandemia, a crise econômica e uma eleição presidencial que se afigura problemática, estamos há um mês vivendo a agonia de uma guerra alucinada, decorrente da agressão da Rússia à Ucrânia.

A pandemia, em particular, teve o efeito de entorpecer nossa sociedade, e nem poderia ser diferente, em razão do caráter altamente transmissível da covid-19. Penso que a guerra acabará causando um efeito semelhante, quiçá pior, por seu impacto na economia mundial e, queira Deus que não, pela ampliação da beligerância. Mas o destino não nos concede a opção de ficarmos sentados chorando. Temos de sair do marasmo e pensar em nosso país, em nosso futuro, externando nossas preocupações e mobilizando a sociedade para o debate.

Esta semana a Academia Paulista de Letras divulgou um alerta oportuno e necessário, pondo em relevo as debilidades que há muitos anos se vêm acumulando. Intitulado Brasil, País Vulnerável, o documento destaca com veemência as vulnerabilidades de nosso país em diversas áreas estratégicas. Tal manifestação tem a chancela da instituição, contando, pois, com o consenso de todos os acadêmicos. Não farei, aqui, um comentário rente ao texto, mas à margem dele, ressaltando alguns pontos sobre os quais tenho me manifestado individualmente.

Os problemas que já vêm dificultando a retomada do crescimento econômico e a criação de empregos, e outros que poderão se agravar em razão da guerra, indiscutivelmente configuram um quadro de riscos crescentes, tornado mais preocupante pela virtual ausência de uma visão de médio e de longo prazos no debate público. Peço desculpas aos leitores por martelar uma tecla que já abordei em artigos anteriores, mas, realmente, causa-me espanto a indiferença generalizada em relação ao fato de sermos um país aprisionado no que os economistas denominam “armadilha do baixo crescimento”. Essa expressão designa um grupo de países, dos quais o Brasil é um exemplo chocante, que conseguem superar até com certa facilidade a primeira etapa do crescimento econômico, basicamente incorporando num nível algo mais produtivo uma vasta mão de obra cuja produtividade era até então pateticamente baixa. Nessa fase, as tecnologias necessárias são medíocres, portanto compatíveis com o quase analfabetismo que caracterizava o referido contingente de mão de obra. O problema é como prosseguir, assimilando tecnologias mais difíceis de serem adquiridas e operadas, elevando o nível médio de educação e, ao mesmo tempo, a oferta de empregos, uma vez que, sem esta, aquele não é uma solução cabal. Este, no essencial, é o significado da expressão “armadilha de baixo crescimento”. É, pois, imperativo robustecermos a espinha dorsal de nossa economia – até porque a competição internacional tende a se acirrar – e ao menos duplicarmos nossa renda anual per capita. No atual ritmo de crescimento da economia, esse modesto objetivo pode custar-nos algo como 30 anos. Uma geração, ou mais.

Convém lembrar que nenhum país pega no tranco, como diz o ditado popular. Para robustecer e apressar o crescimento da economia, devemos ter sempre em mente a lição do general De Gaulle: d’abord, la politique, ou seja, primeiro, a política. É lógico que o presidente francês não se referia à pequena política, àqueles espíritos gregários que adoram se encontrar em Brasília, mas a lideranças corajosas e lúcidas, além, é claro, de um sistema político funcional. Sabe-se lá por que, o Brasil está vivenciando um período desastroso nesses dois aspectos, logo agora que, não tendo superado a pandemia e o marasmo econômico, poderemos estar a cada dia mais sujeitos aos efeitos da guerra.

No que toca a lideranças, talvez até possamos crer na sorte, pois lideranças de calibre têm mais chance de surgir quando os problemas se agigantam do que no remanso de um prolongado marasmo. Observem, porém, que esse raciocínio é inútil no que toca à disfuncionalidade de nosso sistema político. Nesse particular, a modorra a que chegamos é de tal ordem que já ninguém se atreve a falar em reforma política, talvez para evitar a vergonha de discursar para ouvidos moucos. Antes isso, porque tentar uma reforma nas atuais condições, e no atual vazio de lideranças, é uma hipótese que chega a dar calafrios.

Por último, cabe dizer algo sobre as alternativas que as urnas nos oferecerão em outubro. Desde logo se vê que nossa proverbial fartura de partidos não consegue sequer nos livrar da opereta que ouvimos em 2018. O que se avizinha é, outra vez, uma polarização populista. Os eleitores adversos a Lula serão forçados a votar em Bolsonaro. Os adversos a Bolsonaro terão de votar em Lula. Quer dizer, representação não há mais. O enredo é previsível. Em 2002, Lula nos brindou com a Carta ao Povo Brasileiro. Repetir a fórmula seria inócuo, por isso a novidade, agora, será o vice, o ex-governador Geraldo Alckmin. Bolsonaro dirá que tem uma “nova política” no bolso da cartola, e fará o possível para nos convencer de que o Centrão é exatamente isso. Uma nova política.

25 de março de 2022

XI, PUTIN, TRUMP E A LOUCURA DOS AUTOCRATAS!

(O Estado de S. Paulo, 24) Os últimos cinco anos têm sido uma aula magna de política comparada, porque algo que jamais havíamos visto aconteceu ao mesmo tempo: os três líderes mais poderosos do mundo – Vladimir Putin, Xi Jinping e Donald Trump – deram passos para aferrar-se ao poder além de seus mandatos. Um deles fracassou. Dois se saíram bem. E jaz aí uma anedota que diz muito a respeito do nosso mundo atual.

Trump fracassou por uma razão muito simples: as instituições, leis e normas americanas o forçaram a entregar o poder após quatro anos de mandato – por um fio –, apesar de seu esforço para desacreditar os resultados eleitorais e de ele ter incitado apoiadores a intimidar legisladores para que eles revertessem sua derrota nas urnas. Putin e Xi se saíram melhor – até agora. Sem ser contido por instituições e normas democráticas, eles instauraram novas leis para fazer de si mesmos presidentes vitalícios.

Deus sabe que as democracias têm seus problemas, mas elas ainda têm algo que falta às autocracias: a capacidade de mudar de rumo, alternando líderes com frequência, e a capacidade de examinar e debater publicamente ideias alternativas antes de adotar um curso de ação. Esses atributos são valiosos numa época de aceleradas mudanças tecnológicas e climáticas, quando há pouca chance de que alguém com quase 70 anos – como Putin e Xi – venha a tomar decisões cada vez melhores, se isolando conforme envelhece.

Ainda assim, Putin subjugou sua Duma em 2020, fazendo-a eliminar o limite de seu mandato, o que lhe permite concorrer novamente à presidência em 2024 e lhe dá a chance de permanecer na presidência até 2036. Em 2018, Xi induziu seus legisladores a mudar a Constituição da China e abolir o limite de mandatos, permitindo que ele possa permanecer na presidência por toda a vida.

Deng Xiaoping impôs um limite de dois mandatos consecutivos à presidência da China, em 1982, por uma razão: evitar o surgimento de outro Mao Tsé-tung, cuja liderança autocrática e culto à personalidade colaboraram para manter a China pobre, isolada e sob um caos sanguinário. Xi atropelou essa barreira e se considera indispensável e infalível.

O desempenho de Putin na Ucrânia é um alerta feroz sobre os perigos de um presidente vitalício, que se crê indispensável e infalível. A Ucrânia é a guerra de Putin, e ele errou feio: superestimou o poder de suas Forças Armadas, a determinação dos ucranianos e se equivocou a respeito da disposição ocidental, tanto de governos quanto de empresas, em apoiar a Ucrânia.

Ou Putin ouviu besteiras de conselheiros com medo de lhe dizer a verdade ou passou a estar tão certo de sua infalibilidade que jamais chegou a questionar a si mesmo, nem preparou seu governo e sua sociedade para uma guerra econômica “sem precedentes”, aberta pelo Ocidente. Só o que sabemos com certeza é que ele baniu toda crítica e tornou impossível para os russos puni-lo nas urnas por sua insensatez.

A China é um país mais sério, tirou da pobreza extrema 800 milhões de habitantes desde os anos 70. E Xi é um homem mais sério que Putin. No entanto, os perigos da autocracia têm se revelado. Xi não se mostrou disposto a fazer uma investigação séria a respeito da maneira que o coronavírus emergiu, nem compartilhou suas descobertas com o mundo, temendo que pudesse prejudicar sua liderança. Sua confiança numa estratégia de lockdowns e nas vacinas chinesas, menos eficazes do que outras contra a variante Ômicron, está pressionando a economia.

E a aposta de Xi numa aliança com a Rússia se deteriorou rapidamente. Quando os dois se encontraram, em 4 de fevereiro, na abertura dos Jogos de Inverno na China, emitiram um comunicado declarando que a amizade entre os dois países não tinha limites e não havia áreas proibidas de cooperação”.

O fato de que Putin interpretou essa amizade ilimitada como um sinal verde para invadira Ucrânia deixou Xi atordoado e desconfortável. A China é um grande importador de petróleo, milho e trigo da Rússia e da Ucrânia – e a invasão elevou os custos dessas commodities e de outros alimentos, ao mesmo tempo que colaborou para uma baixa no mercado de ações chinês.

A invasão também forçou a China aparecer ind ife renteà selvageria russa, tensionando as relações de Pequim coma União Europeia, a maior parceira comercial da China. O fato de que um dos mais banais clichês em política externa esteja se revelando uma besteira me consola. Os líderes chineses e russos são sagazes e sempre jogam o xadrez da geopolítica como mestres, enquanto os americanos estúpidos só sabem jogar damas.

Na verdade, parece que Putin não tem jogado xadrez, mas roleta-russa – e a sorte dele acabou, após disparar um tiro certeiro no coração da economia russa. E Xi parece paralisado, incapaz de definir seu jogo. Seu coração quer se opor ao Ocidente, mas sua cabeça lhe diz que ele não aguentaria. Então, a China permanece neutra diante dos maiores crimes de guerra na Europa desde a 2.ª Guerra.

Enquanto isso, Sleepy Joe (Biden) está em seu canto brincando com Legos – juntando os bloquinhos, aliado após aliado, ligados por valores e ameaças em comum, e construindo uma coalizão para administrar acrise. Em suma, as tumultuadas democracias, com suas alternâncias de poder, estão passando aperna nos presidentes vitalícios, que precisam estrangulara dissidência.

O contraste não poderia vir em melhor hora – no momento em que a democracia tem empacado por todo lado. É necessário considerara evolução da democracia pelo planeta desde a 2.ª Guerra como um processo com diferentes fases, segundo Larry Diamond, especialista de Stanford.

Depois da 2.ª Guerra, os EUA e seus aliados ganharam um impulso impressionante. A democracia começou a se espalhar pelo planeta, até atolar na Guerra Fria e entrar em retrocesso nos anos 60, como resultado de uma onda de golpes de Estado militares e civis na África, na Ásia e na América Latina.

Mas uma nova onda de democracia começou em meados da década de 70, após a derrocada das ditaduras em Portugal, Espanha e Grécia. Posteriormente, a queda do Muro de Berlim, em 1989, desencadeou outra onda de democracia no Leste Europeu e na Europa Central – e na Rússia.

Mas, a partir de 2006, com o enfraquecimento dos EUA por causa de duas guerras no Oriente Médio e da crise financeira de 2008 – e da estarrecedora ascensão da China –, a democracia entrou em “recessão global”, disse-me Diamond. “E China e Rússia propagaram implacavelmente a narrativa de que as democracias são fracas e decadentes, moralmente e politicamente, e não conseguem realizar nada. O autoritarismo é o futuro.”

A questão agora, disse Diamond, é a seguinte: a declaração de 4 de fevereiro, de Xi e Putin, “desvelando as razões pelas quais seus sistemas eram superiores às democracias liberais”, atesta o auge de suas autocracias? Porque uma coisa é clara, segundo Diamond. “Os recentes passos em falso de Putin e Xi estão queimando o filme do autoritarismo.”

Mas, para a onda autoritária ser revertida, duas coisas são necessárias. Uma delas é a selvageria de Putin na Ucrânia fracassar. Isso poderia fazê-lo perder poder. Certamente uma Rússia sem Putin poderia não mudar para melhor – poderia até piorar. Mas, se a Rússia mudasse para melhor, com um líder decente, o mundo inteiro ficaria melhor.

A segunda coisa é ainda mais importante: os EUA demonstrarem que são bons não apenas em forjar alianças no exterior, mas que também são capazes de construir coalizões domesticamente. Nossa capacidade de fazer isso no passado foi o que nos garantiu estima do mundo e nos tornou exemplo. Já fomos assim e podemos ser assim novamente.

Se assim for, minhas estrofes favoritas do musical Hamilton se tornarão relevantes. São do trecho em que George Washington explica para Alexander Hamilton por que ele está entregando o poder voluntariamente, em vez de concorrer ao terceiro mandato: Washington: “Se acertarmos nisso, lhes ensinaremos a dizer adeus.” Hamilton responde: “Senhor presidente, eles dirão que o senhor é fraco”. E Washington conclui: “Não, eles verão que nós somos fortes”.

24 de março de 2022

A TEORIA IMPERIAL DA GUERRA DE PUTIN!

(O Estado de S. Paulo, 23) Objetivo da Rússia, com sua guerra brutal, é reconstruir seu império – e o limite não ficará restrito à Ucrânia.

O sangrento ataque de Vladimir Putin à Ucrânia, que amanhã completa um mês, ainda parece inexplicável. Foguetes caindo sobre edifícios residenciais e famílias em fuga tornaram-se a face da Rússia para o mundo. O que poderia ter induzido o governo russo a dar um passo tão fatídico, qualificando-se para se transformar em um Estado pária?

Esforços para compreender a invasão tendem a recair sobre duas escolas de pensamento. A primeira tem como foco o próprio Putin – seu estado mental, seu entendimento da história ou seu passado na KGB. A segunda evoca desenvolvimentos externos à Rússia, principalmente a expansão da Otan para o leste após o colapso da União Soviética, em 1991, como fontes subjacentes do conflito.

Mas, para entender a guerra na Ucrânia, devemos ir além de projetos políticos de líderes Ocidentais e da psique de Putin. O ardor e o conteúdo das declarações de Putin não são novidades para ele, nem singulares. Desde os anos 90, planos para reunir a Ucrânia e outros Estados pós-soviéticos numa potência transcontinental têm sido tramados na Rússia. Uma teoria revitalizada sobre um império eurasiático guia todas as manobras de Putin.

O fim da URSS deixou as elites russas desorientadas, despindo-as do status especial que mantinham num imenso império comunista. O que fazer? Para alguns, a resposta foi ganhar dinheiro, do modo capitalista. Nos anos selvagens que se seguiram a 1991, muitos russos foram capazes de reunir enormes fortunas em conluio com o indulgente regime. Mas, para outros, que haviam estabelecido objetivos sob as condições soviéticas, riqueza e uma economia de consumo vibrante não eram suficientes. Egos pós-imperiais sentiram a perda de status e significância da Rússia.

Com a perda de impulso do comunismo, intelectuais buscaram um princípio distinto sobre o qual o Estado russo poderia ser organizado. Suas explorações tomaram forma de partidos políticos – incluindo raivosos movimentos nacionalistas e antissemitas – e surtiram um efeito mais duradouro no reavivamento da religião enquanto fundação da vida coletiva.

EURÁSIA. Mas, enquanto o Estado atropelava a política democrática, na década de 90, novas interpretações sobre a essência da Rússia se estabeleceram, dando consolo e esperança para pessoas que aspiravam recuperar o prestígio do país no mundo.

Um dos conceitos mais cativantes foi o eurasianismo. Emergindo do colapso do Império Russo, em 1917, essa ideologia postula a Rússia como uma entidade política eurasiática formada por uma profunda história de intercâmbios culturais entre povos turcomanos, eslavos, mongóis e originados em outras partes da Ásia.

Em 1920, o linguista Nikolai Trubetzkoi – um dos vários intelectuais emigrados da Rússia que desenvolveram o conceito – publicou a obra Europa e humanidade, uma crítica incisiva ao colonialismo ocidental e ao eurocentrismo. Ele conclamava os intelectuais russos a libertarem a si mesmos de sua fixação na Europa e ter como base o “legado de Gengis Khan” para a criação de um imenso Estado russo eurasiático continental.

O eurasianismo de Trubetzkoi

Os ucranianos deveriam se unir aos russos em torno da fé cristã-ortodoxa que compartilham

foi a receita para uma recuperação imperial sem o comunismo – que, em sua visão, era importado do Ocidente. Em vez disso, Trubetzkoi enfatizava a capacidade de uma ortodoxia cristã russa revigorada enquanto provedora de coesão por toda a Eurásia, com um respeito solícito aos adeptos das outras fés praticadas nessa enorme região.

Suprimido por décadas na URSS, o eurasianismo sobreviveu nas sombras e irrompeu publicamente durante o período da “perestroika”, no fim dos anos 80. Lev Gumiliov, um geógrafo excêntrico que passou 13 anos em prisões e campos de trabalho forçado, emergiu como um aclamado guru do reavivamento eurasiático na década de 80.

Gumiliov enfatizava a diversidade étnica enquanto farol da história global. De acordo com seu conceito de “etnogênese”, um determinado grupo étnico teria a capacidade, sob a influência de um líder carismático, de evoluir para uma “superetnose” – um poder que abrange uma ampla área geográfica que poderia se chocar com outras unidades étnicas em expansão.

INFLUÊNCIA. As teorias de Gumiliov ressoaram entre muitas pessoas que estavam tentando encontrar seu rumo em meio aos caos dos anos 90. Mas o eurasianismo foi injetado diretamente na corrente sanguínea do poder russo na forma de uma variante desenvolvida pelo pretenso filósofo Aleksander Dugin.

Após intervenções malsucedidas em partidos políticos pós-soviéticos, Dugin desenvolveu sua influência onde era relevante – entre militares e formuladores de políticas. Com a publicação, em 1997, de sua cartilha de 600 páginas, garbosamente intitulada Os fundamentos da geopolítica: o futuro geopolítico da Rússia, o eurasianismo avançou para o centro da imaginação política de estrategistas.

Segundo o ajuste do eurasianismo às condições atuais feito por Dugin, a Rússia tem um novo oponente – não apenas a Europa, mas todo o mundo “atlântico” liderado pelos EUA. E o eurasianismo de Dugin não é anti-imperialista, mas o oposto disso: a Rússia sempre foi um império, o povo russo sempre foi um “povo imperial” e, após a Rússia se vender nos anos 90 ao “eterno inimigo”, ficando incapacitada, a nação seria capaz de ressuscitar, numa nova fase de combate global, e se tornar um “império mundial”. No fronte civilizacional, Dugin ressaltou a ancestral conexão entre a Igreja Ortodoxa e o Império Russo. O combate cristãoortodoxo contra o cristianismo ocidental e a decadência do Ocidente poderiam ser explorados na futura guerra geopolítica.

UCRÂNIA.

Geopolítica eurasiática, ortodoxia cristã russa e valores tradicionais, estes objetivos forjaram a autoimagem da Rússia sob Putin. Temas como glória imperial e vitimização ocidental foram propagados por todo o país. Em 2017, eles retumbaram domesticamente com a monumental exposição Rússia, minha história. As telas da mostra exibiam a filosofia eurasiática de Gumiliov, o martírio sacrificial da família Romanov e os males que o Ocidente havia infligido à Rússia.

E como a Ucrânia figura nesse reavivamento imperial? Como obstáculo, desde o início. Trubetzkoi argumentou em seu artigo Sobre o problema ucraniano, de 1927, que a cultura da Ucrânia era uma “individualização da cultura plenamente russa” e ucranianos e belarussos deveriam se unir aos russos em torno do princípio da fé cristãortodoxa que compartilham.

Dugin simplificou as coisas: a soberania ucraniana representa um “enorme perigo para toda a Eurásia”. Total controle militar e político sobre toda a costa norte do Mar Negro é um “imperativo absoluto” para a geopolítica russa. A Ucrânia tem de se tornar um “setor puramente administrativo do Estado russo centralizado”.

Putin levou a sério a mensagem. Em 2013, ele declarou que a Eurásia é uma importante zona geopolítica, onde o “código genético” da Rússia e de seus vários povos seria defendido contra “o liberalismo extremista de estilo ocidental”. Em julho de 2021, ele afirmou que “russos e ucranianos são um só povo” e descreveu a Ucrânia como uma “colônia sob um regime fantoche”, em que a Igreja Ortodoxa está sob assalto e onde a Otan prepara um ataque contra a Rússia.

Essas atitudes – queixas sobre a agressão do Ocidente, exaltações de valores tradicionais em detrimento de direitos individuais, asserções sobre o dever da Rússia de unir a Eurásia e subordinar a Ucrânia – foram produzidas no caldeirão dos ressentimentos pósimperiais. Neste momento, elas infundem a visão de mundo de Putin e inspiram sua guerra brutal. O objetivo é o império. E seu limite não ficará restrito à Ucrânia.

22 de março de 2022

COMO ‘BRASILEIRO MENOS PREOCUPADO COM CORRUPÇÃO’ PODE INFLUENCIAR ELEIÇÕES?!

(BBC News Brasil, 21) As pesquisas de intenção de voto sobre as eleições presidenciais indicam que a disputa deste ano deverá ser acirrada, mas com uma diferença significativa em relação aos últimos anos: o nível de preocupação da população brasileira em relação à corrupção. Após o turbilhão político causado pelas revelações da Operação Lava Jato, especialmente entre os anos de 2014 e 2018, diversos institutos mostram uma tendência de que o eleitorado já não vê mais a corrupção como o principal problema do Brasil.

Mas como isso ocorreu? E quais as consequências disso para as eleições deste ano?

Cientistas políticos e diretores de institutos de pesquisa de opinião entrevistados pela BBC News Brasil afirmam que isso aconteceu por um conjunto de fatores que incluem a “saturação” do tema junto ao público, a crise econômica e o temor em relação à saúde intensificado pela pandemia de covid-19. Eles dizem que os eleitores continuam considerando a honestidade importante na hora de escolher um candidato ou candidata, mas que o peso dado a isso na definição do voto deverá ser menor em função da emergência de outros fatores.

Corrupção: ascensão e queda
As pesquisas que indicam que a corrupção caiu no ranking dos principais problemas do eleitor são baseadas em entrevistas que fazem, basicamente, a mesma pergunta: qual é o principal problema do país? Elas visam identificar qual é a importância que os entrevistados dão para determinados temas.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, tradicionalmente, a corrupção não figurava como a principal preocupação do brasileiro, posto que ficava com temas como saúde ou economia.

O cenário mudou, porém, com a Operação Lava Jato, quando o tema assumiu protagonismo, e voltou a cair a partir de 2018, em um período em que a operação entrou em baixa.

Os dados do Datafolha mostram esse fenômeno.

Em 2011, a corrupção estava em sexto lugar no ranking dos principais problemas do país, com apenas 3%. Na época, saúde era a líder.

Entre junho de 2013 e dezembro de 2014, o tema estava em terceiro lugar. A mudança acontece no contexto dos protestos de 2013 e das primeiras revelações da Operação Lava Jato, deflagrada no ano seguinte.

À época, as investigações revelavam esquemas de corrupção em estatais como a Petrobras e o envolvimento de agentes políticos de diversos partidos.

O tema continua a subir de importância e, em novembro de 2015, passa a ser apontado como o maior problema do país, segundo o Datafolha.

Em março de 2016, às vésperas do impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), 37% dos brasileiros classificam a corrupção como a maior preocupação do país.

Até dezembro de 2018, o tema oscilou entre a primeira e segunda colocações. A partir de então, inicia sua trajetória de queda.

Ao longo do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), o tema foi caindo no ranking até que, em dezembro de 2021, apenas 4% dos entrevistados achavam que o principal problema do Brasil era a corrupção. Saúde é o líder, com 24%.

A tendência de ascensão e queda também foi identificada pela Corporação Latinobarômetro, que monitora o ambiente político na América Latina.

De acordo com pesquisa de 2011, a corrupção estava em quarto lugar (7,1%) na lista de principais problemas do país. Em 2015, com a Lava Jato em campo, o tema assumiu a liderança do ranking, com 22,4%.

Em 2018, o tema caiu para o segundo lugar, com 15,7%. Em 2020, ano da pesquisa mais recente, o assunto voltou para a quarta colocação, com 6,1%, percentual inferior ao registrado em 2011.

A pesquisa mais recente de outro instituto de pesquisas, o Ipespe, reforça a ideia de que a corrupção não estaria no topo das preocupações do eleitorado atualmente.

Segundo o levantamento de novembro de 2021, o assunto estava em sexto lugar na lista dos temas mais importantes a serem tratados pelo próximo presidente, com apenas 5%.

Crise, covid e decepções
Mas o que poderia explicar essa queda?

Alguns podem dizer que uma possível resposta seria dizer que, talvez, o brasileiro se preocupa menos com corrupção porque o país ficou menos corrupto. Acadêmicos que estudam o assunto, porém, afirmam que é praticamente impossível aferir o quão um país é corrupto com precisão.

“Esse tipo de pesquisa é muito difícil de fazer porque a corrupção acontece de forma velada. Não é possível mensurar toda a corrupção de um país de uma forma sistemática”, afirma a cientista política e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Nara Pavão.

Além disso, a pesquisa mais conhecida sobre percepção de corrupção no mundo, que é realizada pela organização não-governamental Transparência Internacional, mostra que a posição do Brasil no ranking piorou entre 2014, ano de deflagração da Lava Jato, e 2021.

A pesquisa é feita a partir de entrevistas com empresários e agentes públicos que respondem sobre como eles percebem o ambiente de um país em relação à corrupção.

Em 2014, o Brasil estava na 69ª posição de um total de 174 países. Em 2021, o Brasil está em 96º entre 180 nações. Os primeiros colocados no ranking dos países percebidos como mais íntegros são: Nova Zelândia, Dinamarca e Finlândia.

Nara Pavão diz que a queda da corrupção no ranking de preocupações do Brasil é uma “volta ao normal”.

Ela afirma que, historicamente, o tema nunca esteve entre as principais preocupações manifestadas pelos brasileiros, exceto durante o auge das investigações da Operação Lava Jato.

“A gente voltou à normalidade. Hoje, o peso dado à corrupção é muito parecido com o peso que a gente atribuía antes da Operação Lava Jato”, afirma.

Segundo ela, a principal causa para essa queda seria a “saturação” do tema junto ao público, uma espécie de efeito colateral das investigações.

“Os temas eleitorais se saturam porque eles não são estáticos ao longo do tempo, com exceção da economia. A gente passou muito tempo preocupado com a corrupção por causa da Lava Jato e passamos por um momento de demonização da política que fez com que os eleitores não conseguissem mais usar o tema da corrupção como critério de escolha. Basicamente, (corrupção) virou um tema inútil para a gente conseguir diferenciar os políticos”, explica.

Para o cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Leonardo Avritzer, a queda da corrupção no ranking é resultado de dois fatores: desgaste da Operação Lava Jato e o agravamento da crise econômica.

“O brasileiro tem uma decepção com os resultados da Operação Lava Jato por dois motivos principais. O primeiro é um conjunto de revelações daquilo que hoje no Brasil se chama de Vaza Jato, que levaram à anulação de diversos processos – inclusive alguns contra o ex-presidente Lula. O segundo é a ideia de que o país não melhorou ao longo desse processo. Pelo contrário, a economia brasileira está estagnada”, disse.

Vaza Jato é como ficaram conhecidas as revelações feitas inicialmente pelo portal The Intercept Brasil que mostraram o conteúdo de conversas mantidas entre procuradores da Operação Lava Jato e o então juiz do caso, o agora ex-ministro da Justiça e pré-candidato à Presidência da República, Sergio Moro.

O diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, por sua vez, diz que os principais motivos para que a corrupção não figurasse mais entre as principais preocupações do brasileiro são a crise econômica e os efeitos da pandemia de covid-19.

“Os eleitores passaram a se preocupar mais com a saúde e com as consequências da pandemia que são o desemprego e a inflação. Não é que o brasileiro tenha deixado de prestar atenção na corrupção, mas o agravamento de outros temas fez com que o brasileiro ficasse mais pragmático”, explica.

Os dados mostram que mais de 656 mil pessoas morreram no Brasil vítimas da covid-19. Na economia, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechou 2021 em 10,06%, maior valor desde 2015. Ainda na esfera econômica, o desemprego medido em janeiro medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é de 11,2%, atingindo 12 milhões de pessoas. O PIB de 2021 cresceu 4,5%, mas a expectativa para este ano é de 0,49%.

Já o cientista político Antônio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe, afirma que o principal motivo para a mudança de prioridades teria sido a percepção de que o combate à corrupção não melhorou o quadro econômico.

“A crise econômica continua e os problemas já não são mais debitados na conta das administrações petistas ou aos fatos investigados pela Lava Jato. A população começou a se perguntar até que ponto a corrupção, sozinha, explica as dificuldades econômicas de um país como o Brasil”, diz.

Relativização da corrupção
Mas se as pesquisas indicam que a corrupção não está entre as principais preocupações do brasileiro neste ano, isso significa que os eleitores vão deixar de avaliar o currículo dos candidatos neste quesito?

Antônio Lavareda, Nara Pavão e Mauro Paulino dizem que não. Lavareda, por exemplo, afirma que, segundo dados do Ipespe, honestidade é o principal atributo procurado pelos eleitores em um candidato ou candidata.

Eles afirmam, no entanto, que a escolha dos seus candidatos vai passar pela avaliação de outros critérios.

Citando a invasão russa na Ucrânia, Lavareda sugere uma analogia.

“Na Ucrânia, há problemas de vários tipos como corrupção e educação. Mas se você chegar lá hoje e perguntar para um ucraniano qual é o principal problema do país ele vai dizer, logicamente, que é a invasão russa. O brasileiro está às voltas com ausência de crescimento, desemprego elevado e inflação. Num cenário desses, como esperar que ele não veja a economia como um problema maior que a corrupção?”, diz.

Novo normal
E em meio a esse contexto, quais das principais pré-candidaturas à presidência poderiam ser mais ou menos prejudicadas ou beneficiadas?

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que aquelas candidaturas que ainda se focarem na bandeira do combate à corrupção, como a de Sergio Moro, enfrentarão mais dificuldades para decolar.

Isso ocorre porque o percentual da população para quem a bandeira da corrupção é definidora de voto tem se mostrado reduzida.

“As pesquisas incluindo Sergio Moro em dezembro mostraram que esse discurso (anticorrupção) não faz com que ele se destaque como opção de terceira via. Para conquistar o eleitor e ter viabilidade eleitoral, os candidatos precisam dar uma resposta a essas questões mais urgentes”, afirmou Mauro Paulino, do Datafolha, referindo-se a temas como desemprego e inflação.

“Se a corrupção continuasse a capitanear o ranking das preocupações nacionais, Sergio Moro estaria liderando as pesquisas, mas não é isso que acontece”, explica Antônio Lavareda.

Nara Pavão, por sua vez, acredita que a mudança no ambiente eleitoral favorece aqueles candidatos que, eventualmente, tenham ou tiveram seus nomes ligados a denúncias de corrupção como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que foi alvo da Lava Jato, e o presidente Jair Bolsonaro (PL), cujos filhos são investigados pela suposta prática de “rachadinha”.

“Os estudos mostram que há um cálculo estratégico feito pelo eleitor que faz com que ele faça outras considerações além da corrupção. Então, mesmo que a saliência (proeminência) da corrupção seja alta, a gente vê que quem é petista e gosta do PT vai relevar as acusações de corrupção que pesavam sobre o partido da mesma forma que quem gosta de Bolsonaro vai relativizar as suspeitas de corrupção contra ele”, diz.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil disseram acreditar que é difícil que o tema da corrupção seja “reativado” como principal tema das eleições de 2022.

“Acho muito difícil isso acontecer nestas eleições porque o tema está extremamente saturado”, afirma Nara Pavão.

Antônio Lavareda afirma que não há “condições objetivas” para que o assunto volte a ter, até outubro deste ano, a relevância que teve nas eleições passadas.

“É impossível fazer isso porque as condições concretas e objetivas que havia em 2014, 2016 e 2020 não existem mais. Naquele momento, tínhamos uma operação Lava Jato em curso e muito prestigiada no noticiário. Não vejo como reativar isso nestas eleições”, afirma.

21 de março de 2022

POR QUE AS AUTOCRACIAS FRACASSAM!

(David Brooks – O Estado de S. Paulo, 19) Joe Biden argumenta corretamente que a luta entre democracia e autocracia é o conflito que define o nosso tempo. Então, qual sistema desempenha melhor sob pressão? Ao longo dos últimos anos, as autocracias pareceram ter tido vantagem.

Na autocracia, o poder é centralizado. Líderes são capazes de responder a desafios rapidamente, deslocar recursos decisivamente. A China mostrou que as autocracias são capazes de produzir prosperidade em massa. A autocracia avançou globalmente, e a democracia segue em declínio.

Em democracias, por outro lado, o poder é descentralizado, com frequência polarizado e paralítico. O sistema político americano ficou desacreditado e disfuncional. Um pretenso autocrata local conquistou a Casa Branca. Acadêmicos escreveram livros populares com títulos do tipo Como as Democracias Morrem.

FRAQUEZAS. Ainda assim, as semanas recentes têm sido reveladoras. Ficou claro que, quando se trata das funções mais importantes do governo, a autocracia apresenta fraquezas graves. Não é hora de triunfalismo democrático; é hora de analisar realisticamente a inépcia do autoritarismo e sua possível instabilidade. Quais são essas fraquezas?

A sabedoria de muitos é melhor do que a sabedoria de megalomaníacos. Em qualquer sistema, uma característica essencial é: como flui a informação? Em democracias, a formulação de políticas é normalmente feita, em maior ou menor medida, em público e milhares de especialistas apresentam fatos e opiniões.

Muitos economistas afirmaram, no ano passado, que a inflação não seria um problema, mas Larry Summers e outros afirmaram que seria – e provou-se que eles estavam certos. Ainda cometemos erros, mas o sistema aprende.

Em autocracias, as decisões com frequência são tomadas dentro de um pequeno e restrito círculo. Fluxos de informação são deturpados pelo poder. Ninguém fala para o homem no comando o que ele não quer escutar. O fracasso da inteligência russa em relação à Ucrânia foi estarrecedor. Vladimir Putin não tinha nenhuma ideia a respeito da vontade do povo ucraniano, não sabia como os ucranianos lutariam, nem como seu Exército estava arruinado por corrupção e cleptocratas.

As pessoas almejam grandes realizações. Os seres humanos de hoje querem viver vidas plenas, ricas e aproveitar totalmente seu potencial. O ideal político liberal é que as pessoas devem ser livres o quanto possível para construir o próprio ideal.

FUGA. Autocracias restringem a liberdade em nome da ordem. Por isso, muitos dos melhores e mais brilhantes russos estão fugindo da Rússia agora. O embaixador americano no Japão, Rahm Emanuel, aponta que Hong Kong está sofrendo uma devastadora fuga de cérebros. Segundo noticia a Bloomberg: “Os efeitos da fuga de cérebros em áreas como educação, assistência médica e até mesmo finanças deverão ser sentidos pelos moradores nos próximos anos”.

Instituições americanas possuem agora quase tantos pesquisadores de alto nível em inteligência artificial vindos da China quanto naturais dos EUA. Quando têm chance, pessoas talentosas rumam para onde jaz a plenitude.

O executivo vira gângster. Quem ascende na autocracia serve implacavelmente à firma, à burocracia. Essa implacabilidade o faz consciente de que outros poderão ser ainda mais implacáveis e manipuladores, então ele se torna paranoico e despótico. E, com frequência, personaliza o poder, para que ele seja o próprio Estado, e o Estado seja ele. Qualquer dissidência é tomada como afronta pessoal. Ele pode praticar o que estudiosos classificam como “seleção negativa”. Ele não contrata os mais inteligentes e mais qualificados, essas pessoas podem ser ameaçadoras. Ele contrata os mais obtusos e medíocres. E forma um governo de incapazes – vide os comandantes do Exército russo.

EQUILÍBRIO. O etnonacionalismo é autoinebriante. Todo mundo cultua algo. Numa democracia liberal, o culto à nação (que é particular) é equilibrado com o amor aos ideais políticos liberais (que são universais). Com o desaparecimento do comunismo, o autoritarismo perdeu uma grande fonte de valores universais. A glória nacional é perseguida com fundamentalismo inebriante.

“Acredito na teoria da ‘passionaridade’”, declarou Putin, no ano passado. Ele continuou: “Temos um código genético infinito”. A passionaridade é uma teoria criada pelo etnologista Lev Gumilyov, que sustenta que cada nação possui um nível próprio de energia mental e ideológica, um espírito expansionista próprio.

Putin parece acreditar que a Rússia é excepcional em front após front e está “em marcha”. Esse tipo de nacionalismo tresloucado ilude as pessoas, fazendo-as perseguir ambições muito além de sua capacidade. Governar contra o povo é uma receita para o declínio. Líderes democráticos, pelo menos em teoria, servem aos seus eleitores. Líderes autocráticos, na prática, servem ao próprio regime e à sua longevidade no poder, mesmo que isso signifique negligenciar seu povo.

Thomas Bollyky, Tara Templin e Simon Wigley ilustram como a expectativa de uma vida melhor diminuiu em países que viraram autocracias recentemente. Um estudo sobre mais de 400 ditadores de 76 países, de Richard Jong-a-pin e Jochen Mierau, constatou que, a cada ano que a idade do ditador aumenta, o crescimento do país diminui 0,12%.

Quando a União Soviética caiu, soubemos que a CIA havia superestimado a economia soviética e o poderio militar soviético. É simplesmente difícil demais administrar uma sociedade grande por meio de um poder centralizado.

ESTRATÉGIA. Para mim, a lição é que, mesmo ao confrontarmos autocracias até aqui bemsucedidas, como a China, deveríamos aprender a ser pacientes e confiar no nosso sistema democrático liberal. Ao confrontarmos agressores imperiais, como Putin, deveríamos confiar nas maneiras que estamos respondendo agora. Se constantemente, pacientemente e implacavelmente intensificarmos a pressão econômica, tecnológica e política, a fraqueza inerente ao regime crescerá cada vez mais

18 de março de 2022

BERLIM PODE SE LIBERTAR DO GÁS RUSSO?!

(Paul Krugman – O Estado de S. Paulo, 18) A Alemanha é uma das maiores nações comerciais do mundo. Em 2019, importou US$ 1,2 trilhão em mercadorias de todo o planeta. Apenas 2% desse total vieram da Rússia. Na verdade, a Federação Russa, com cerca de 144 milhões de habitantes, era só um pouco mais importante no comércio alemão do que a Irlanda, com cerca de 5 milhões de pessoas. Normalmente, então, você não esperaria que uma ruptura das relações econômicas com a Rússia tivesse um grande efeito na economia alemã.

Infelizmente, a Rússia é um importante fornecedor de um bem que a Alemanha terá dificuldade para substituir: o gás natural. Quase todo o consumo de gás natural da Alemanha é importado por meio de gasodutos, e cerca de 55% dele vem da Rússia.

Sucessivos governos dos EUA, desde Ronald Reagan, alertaram a Alemanha para não se tornar tão dependente de um regime despótico. Presenciei algumas dessas discussões durante meu breve período no governo, entre 1982 e 1983. Mas aqui estamos. E, enquanto as nações democráticas impuseram uma ampla gama de sanções econômicas ao regime de Putin, as restrições às vendas de gás russo permanecem fora da lista.

CÁLCULO POLÍTICO. Mas as atrocidades russas – e, para ser honesto, a surpreendente incompetência dos militares russos – vêm mudando rapidamente o cálculo político da resposta do Ocidente. Três semanas atrás, parecia inconcebível que os políticos alemães se dispusessem a impor qualquer aflição significativa a seus eleitores em resposta à agressão de Vladimir Putin. Agora, há sérias discussões sobre se e até que ponto a Alemanha pode se libertar do gás russo.

Uma pequena redução no consumo de gás não deve ser difícil de alcançar. Exatamente porque o gás tem sido barato, parte dele está sendo queimado em questões de baixa prioridade, facilmente desencorajadas com preços moderadamente mais altos ou uma regulamentação branda. Mas grandes reduções são outra questão.

Coloque desta forma: um novo estudo importante de um grupo de economistas alemães (são nove autores, então vou me referir a ele como Bachmann et al.) estima que eliminar as importações de gás da Rússia exigiria um corte no consumo de gás de 30%, de cerca de 900 terawatts-hora (TWh) para cerca de 600 TWh. Por que não 55%, a parcela russa do gás alemão? Porque a Alemanha, provavelmente, pode obter um pouco mais de gás de outras fontes e limitar o uso de gás para geração de eletricidade, contando mais com o carvão e a energia nuclear.

Sim, o carvão deve ser eliminado para nos salvar da catástrofe climática, mas não no meio de uma guerra.

No entanto, mesmo uma queda de 30% no consumo será difícil de alcançar no curto prazo. Cortar o consumo de 900 para 800 TWh pode não ser tão caro; a redução de, digamos, 700 para 600 TWh seria muito mais dolorosa.

Economistas alemães se concentram em um conceito econômico-chave chamado elasticidade de substituição – a grosso modo, o quanto a demanda por gás natural diminui a cada 1% de aumento em seu preço.

Se essa elasticidade for baixa, o valor que os alemães estariam dispostos a pagar por um pouco mais de gás quando o consumo já tiver sido substancialmente reduzido é grande, o que significa que o custo econômico de novas reduções também é grande.

SUBSTITUIÇÃO. Infelizmente, estimativas empíricas sugerem que a elasticidade de substituição do gás natural é pequena, pelo menos no curto prazo. Não é zero: em razão dos altos preços do gás, as famílias baixam os termostatos, os consumidores param de comprar bens cuja produção exige a queima de muito gás natural e assim por diante. Ainda assim, o melhor palpite é que estamos falando de uma elasticidade de aproximadamente 0,18, o que por sua vez significa (se estou fazendo a conta certa) que o preço do gás natural teria de subir cerca de 600% para reduzir a demanda em 30%. Isso parece muito – e Bachmann et al. usaram deliberadamente uma elasticidade estimada ainda mais pessimista, de 0,1.

Mas, mesmo com essas suposições pessimistas, eles concluem que a Alemanha poderia de fato dispensar o gás natural russo, precisamente porque o país hoje gasta tão pouco em importações russas. Os custos seriam graves: a renda real alemã poderia cair cerca de 2%, o equivalente a uma recessão moderada. Mas não seria o fim do mundo.

Uma ação tão drástica teria sido inconcebível um mês atrás. Mas Putin parece estar no processo de realizar uma coisa notável: lembrar às democracias do mundo o que elas representam. Ele já arruinou a reputação da Rússia como superpotência militar. Agora, também está no processo de reduzir qualquer poder econômico que ela tivesse.

17 de março de 2022

APÓS APOSTAS ERRADAS, BIDEN ACERTA NA UCRÂNIA E REUNIFICA OCIDENTE EM TORNO DOS EUA!

(Guga Chacra – O Globo, 13) A experiência em política externa de Joe Biden ao assumir a Presidência era bem superior à dos seus antecessores. Bill Clinton e George W. Bush, que haviam sido governadores, não lidavam com temas internacionais. Barack Obama, senador em seu primeiro mandato quando venceu as eleições presidenciais, tampouco havia estado envolvido com as grandes crises mundiais. Donald Trump, um empresário controverso e uma estrela de TV, entrou na política diretamente como presidente.

Já o currículo de Biden incluía cerca de três décadas como senador. Presidiu a Comissão de Relações Exteriores do Senado entre 2001 e 2003 e depois entre 2007 e 2009, quando assumiu como vice-presidente. No final dos anos 1990, era líder da minoria democrata na comissão. De origem irlandesa, teve atuação importante nas negociações para a paz na Irlanda do Norte. Foi peça fundamental para a estratégia de Bill Clinton nos Bálcãs, tendo sido um dos articuladores dos bombardeios da Otan contra a Sérvia na Guerra de Kosovo. Apoiou a invasão de Bush ao Afeganistão depois do 11 de Setembro.

Uma das maiores manchas em seu currículo é o voto a favor da Guerra do Iraque. Como presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, deveria ter uma ideia mais profunda de que os argumentos do governo Bush para o conflito eram falsos — o Iraque não tinha armas de destruição em massa, e Saddam Hussein não tinha ligação com a rede terrorista al-Qaeda. Além disso, a queda do ditador levaria ao fortalecimento automático de seu maior inimigo, o Irã.

Ironicamente, Biden fora contrário à Guerra do Golfo, que em 1991 expulsou o Iraque do Kuwait e foi um dos raros sucessos militares americanos nas últimas décadas, no governo de Bush pai. Nos últimos anos como senador, chegou a ser criticado por defender a divisão do Iraque em uma federação de três regiões — uma xiita, uma árabe sunita e uma curda sunita.

Com todo esse histórico, Biden ainda ocupou o cargo de vice-presidente, onde ambicionava uma participação mais ativa na política externa de Obama, embora algumas vezes tenha sido deixado de lado pelo então presidente. Com um filho veterano de guerra, posicionou-se contra o aumento das tropas no Afeganistão, ao contrário de Hillary Clinton. A posição da então secretária de Estado prevaleceu, e Obama enviou dezenas de milhares de jovens para uma guerra que havia sido deixada de lado por Bush, mais focado no seu atoleiro no Iraque. Também considerava arriscada a ação para matar Osama bin Laden, mas Obama acabou agindo e as forças americanas conseguiram eliminar o fundador da al-Qaeda.

Ao assumir a Presidência, Biden desfrutava de respeito na área de política externa, apesar de o tema estar longe das prioridades da população americana naquele momento. O foco estava na pandemia e em questões internas, como a retomada da economia.

Para secretário de Estado, o escolhido foi Antony Blinken, que trabalhara no governo Obama, tendo sido um dos arquitetos da fracassada Guerra da Líbia e do fracassado armamento de opositores de Bashar al-Assad na Síria que acabou indiretamente fortalecendo milícias jihadistas. Para assessor de Segurança Nacional, a opção foi o jovem Jake Sullivan, visto como brilhante nos meios de política externa em Washington.

O objetivo de Biden era restabelecer o multilateralismo e retomar a aliança com os europeus depois do isolacionismo de Trump. As mudanças climáticas e a rivalidade com a China eram vistas como os grandes desafios externos. Apesar de ser um árduo defensor de Israel, não demonstrou ambição de tentar uma nova negociação entre israelenses e palestinos, e pouco interferiu quando mais uma guerra eclodiu em Gaza. Pretendia retornar ao acordo nuclear com o Irã, abandonado por Trump, e retirar as tropas do Afeganistão. Este último tópico nem sequer gerava discórdia nos EUA, já que a maioria da população apoiava a retirada negociada por Trump com o Talibã depois de 20 anos de conflito. Cabia a Biden apenas a implementação. Como o mundo todo viu, foi um fiasco total, com aquelas cenas de desespero no aeroporto de Cabul .

Os EUA foram humilhados, e Biden perdeu o respeito. Sua popularidade despencou dez pontos percentuais e nunca mais voltou a subir. Todo o processo foi desastrado, incluindo a falta de comunicação com os aliados europeus e os erros da Inteligência. Biden ordenou o ataque com drone contra o que seria uma célula do Estado Islâmico em Cabul — era uma família inocente, e sete crianças morreram.

Esta imagem de Biden incompetente e fracassado em política externa era a que prevalecia até os dias anteriores à invasão da Rússia à Ucrânia. O presidente, porém, não queria repetir os erros do passado. Insistiu diversas vezes, assim como seu secretário de Estado, com base em informações de inteligência, que a Rússia invadiria a Ucrânia. Muitos questionavam essas informações devido aos erros no passado, mas o presidente insistiu. Desta vez, estava correto.

Depois da invasão, Biden conseguiu unir o Ocidente e coordenar uma gigantesca resposta à agressão russa. As sanções foram duras, bem diferentes das impostas por Obama depois da anexação da Crimeia. Até a Alemanha, dependente do gás russo, e a Hungria, governada por um aliado de Putin, ficaram do lado dos Estados Unidos. O líder russo foi transformado em um pária e isolado internacionalmente. A Otan se fortaleceu.

Mesmo que todas essas ações tenham sido insuficientes para conter o ataque da Rússia, elas têm obtido sucesso em punir Putin. Biden reposicionou os EUA como líderes do Ocidente num mundo em que cresce a força geopolítica da China. Até seus adversários republicanos no Senado evitam críticas e consideram positiva a resposta do presidente americano. Ao trumpismo, restou dizer que Putin não invadiria a Ucrânia se ele fosse presidente. Talvez, mas não mencionam que isso ocorreria devido ao isolacionismo de Trump, suas críticas à Otan e a sua admiração pelo autocrata russo, a quem ele chamou de “gênio” até depois da invasão.

Ainda há, porém, riscos pela frente. A imposição de um embargo ao petróleo russo deve aumentar ainda mais a inflação nos EUA, que já está no seu nível mais alto em quatro décadas. Preços mais altos afetam negativamente a popularidade de qualquer presidente, mesmo com uma taxa de desemprego baixa como a atual. Embora sua estratégia no pós-invasão tenha sido pouco criticada, está longe de ser considerada uma vitória. Putin ainda está na Ucrânia, suas tropas seguem avançando e pessoas continuam morrendo.

Das metas de Biden quando assumiu, vemos que as tropas saíram do Afeganistão, mas em processo caótico; conseguiu retomar a aliança ocidental, mas depois de uma agressão de Putin à Ucrânia; negocia o retorno ao acordo nuclear com o Irã, ainda sem sucesso; voltou ao Acordo do Clima de Paris , mas não aprovou seu pacote de combate às mudanças climáticas no Congresso; e, claro, a China segue cada vez mais fortalecida, e agora tem a própria Rússia em suas mãos.

16 de março de 2022

OS LUSÍADAS’: A OBRA QUE ‘FUNDOU’ A LÍNGUA PORTUGUESA HÁ 450 ANOS!

(BBC News Brasil, 12) “As armas e os barões assinalados,/ Que da ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados, / Mais do que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram/ Novo reino, que tanto sublimaram.”

Assim começa a obra que pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões (nascido provavelmente no ano de 1524 e morto provavelmente em 1580) é formada por dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos, todos em oitavas decassilábicas, sempre arranjados em um esquema rímico fixo.

Trata-se do poema épico Os Lusíadas, que narra a descoberta, pelo navegador português Vasco da Gama (1469-1524), da rota marítima para a Índia — um marco nas relações comerciais e exploratórias do século 15 e, de certa forma, a consolidação de um momento historicamente relevante para Portugal.

Ao longo de seu texto, o poeta, que se dirige ao rei Sebastião I (1554-1578), evoca episódios da história lusitana de forma épica, sempre buscando glorificar o povo português.

Mas a grandeza de Os Lusíadas não se resume ao engenhoso e esmerado formato adotado por Camões, nem pelo grande número de versos, tampouco pelas próprias histórias de heroísmo ali narradas.

Os Lusíadas se tornou um marco pelo uso da língua portuguesa — na época chamada apenas de “linguagem”, quase como de modo pejorativo quando comparada ao jeito culto de se expressar por escrito, ou seja, o latim.

E, protagonista e fruto de um momento histórico de valorização de tais identidades, a obra é reconhecida como uma espécie de literatura fundadora do idioma hoje oficialmente praticado em Portugal e em outros oito países, inclusive o Brasil.

Doutor em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua, o professor Emerson Calil Rossetti situa Os Lusíadas como “a maioridade e a identidade poética da língua portuguesa”.

“Constituem de fato uma referência para e sobre a língua portuguesa. Não somente por ser uma obra-prima, o que é hoje consensual, mas por ser a primeira produção do idioma que alcança prestígio para além das fronteiras de Portugal ou dos países lusófonos”, argumenta ele.

“Camões captou com precisão o espírito da Renascença, tomando como base as epopeias antigas e construindo seu longo poema com soluções estéticas típicas da perfeição formal da época mas a partir das possibilidades expressivas da nossa língua, como jamais se havia visto”, analisa Rossetti.

“É o caso, por exemplo, do ritmo bem marcado e regular dos decassílabos heroicos e, num universo repleto de alusões históricas, mitológicas e cristãs, as combinações de rimas que caracterizarão, igualmente, as 1102 estrofes da epopeia.”

Professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), onde é pesquisadora do Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas, a linguista Marcia Maria de Arruda Franco contextualiza a obra como parte de um momento de “dignificação da língua portuguesa como língua de cultura”.

“Até o século 16, era muito raro que um autor em Portugal escrevesse em português. E mesmo ao longo do século 16, as línguas de cultura preferidas dos letrados, tanto os humanistas puros que usavam o latim, como os impuros que usavam as línguas vulgares, era o castelhano em vez do português”, esclarece ela.

Arruda lembra que esse movimento vinha sendo experimentado por alguns escritores, como é o caso de Sá de Miranda (1481-1558), “que ousavam essa aventura de descobrir o valor letrado da língua portuguesa, de trabalhar sobre sua elocução, de escrever em português”.

“Ao longo do século 16, vários vão levar a cabo essa tarefa de escolher a língua portuguesa como língua de cultura. Não só no discurso poético, mas também no discurso histórico. [O idioma está presente] nos cronistas que escrevem sobre as grandes descobertas, quando a língua portuguesa é a preferida”, conta ela.

Vale ressaltar que já desde o reinado de Manuel I (1469-1521), médicos portugueses eram obrigados a efetuar suas prescrições em língua portuguesa. “Em ‘linguagem’, como eles diziam. Naquela língua falada, que todo mundo entendia”, comenta a professora.

Era um período de ebulição acadêmica, na qual os linguistas se propunham a entender e explicar a organização daquilo que se falava. “Começa a surgir a filologia portuguesa, uma série de gramáticas em defesa da língua portuguesa como língua de cultura, e não mais apenas como ‘linguagem'”, contextualiza Arruda. “‘Os Lusíadas’ culminam esse processo, fazem com que esse processo se consolide.”

“Porque ‘Os Lusíadas’ são escritos em gênero épico, sublime. Relaciona-se às épicas da cultura clássica ocidental, da cultura antiga, que era modelizada pelos renascentistas. ‘Os Lusíadas’ estão em linha direta com outras épicas, de Homero [da Grécia Antiga] e de Virgilio [da Roma Antiga]”, diz a linguista.

Para o escritor Ênio César Moraes, professor de língua portuguesa e assessor pedagógico do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, a importância de Os Lusíadas pode ser dividida entre os aspectos literário e histórico.

No primeiro quesito, o mérito recai sobre “o fato de se tratar de uma epopeia, obra épica que, no plano artístico-literária, põe Portugal ao lado de nações como Grécia e Roma”. Moraes observa que, não à toa, o próprio narrador do poema “afirma, altaneiro”: “Cessa tudo o que a Musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta”. “[Está] enaltecendo a temática da obra, em comparação às produções grega e romana”, interpreta.

Já o segundo ponto está no fato de que o texto de Camões é a “narrativa de grandes feitos do povo português, na pessoa de Vasco da Gama, à época das grandes navegações”.

“Virgílio [o poeta romano] é o grande interlocutor de Camões. E com esse trabalho [‘Os Lusíadas’], ele engrandeceu o português e o consolidou como língua de cultura. Fez isso graças ao seu trabalho de escrever com tropos, figuras, imagens, um todo. Realizou um trabalho sobre a prosódia dos versos, escolhendo os decassílabos, a oitava para urdir o seu poema, sua épica… Trabalhou a elocução da língua portuguesa”, complementa Arruda.

A obra garantiu a Camões o mesmo lugar na língua portuguesa ocupado por William Shakespeare (1564-1616) no inglês, Dante Alighieri (1265-1321) no italiano, François Rabelais (1494-1553) no francês, e France Prešeren (1800-1849) no esloveno. Em suma, cada língua considerada moderna tem no trabalho de um grande escritor a consolidação de suas bases e a matriz de suas normas.

“Camões representou esse movimento de defesa e ilustração das línguas ditas vulgares, faladas no dia a dia. Que foi geral na Europa, quando todas as línguas nacionais dos reinos passaram a ser utilizadas também na língua de cultura, em detrimento do latim”, diz a linguista Arruda.

“Em Portugal, havia a opção entre duas línguas vulgares: o castelhano e o português. Mas cada vez mais os letrados preferiram escrever em português”, acrescenta ela.

Camões mesmo já havia escrito poemas em espanhol. Decidiu utilizar o português para Os Lusíadas e, logo em seguida, sua obra também foi traduzida — ainda no século 16, ganhou três traduções para o castelhano e pelo menos uma publicação em latim, conforme pesquisas de Arruda.

“Do ponto de vista da história da evolução da língua, o português atinge seu estágio moderno exatamente no século 16”, ensina Rossetti. “É quando o idioma se uniformiza e adquire as características básicas que ainda hoje se reconhecem nas nossas gramáticas.”

“A obra de Camões assimila essa nova feição e legitima as potencialidades da nossa língua como expressão poética de temas universais e aspectos atemporais acerca da condição humana. Por meio dos recursos fônicos, morfológicos e sintáticos, o escritor confirma o potencial também inventivo: a natureza literária do idioma. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se, pela sua pena, uma herança cultural, modelo de possibilidades de exploração criativa”, diz ainda o professor. “Por isso, Camões é patrimônio, como também Shakespeare e Dante.”

Rossetti lembra que a partir das letras de Camões abriu-se um “espaço para outros gênios do pensamento ocidental” em língua portuguesa. “É um novelo de muita linha, e a primeira ponta desse fio se chama Camões”, resume.

Professor Moraes ressalta que a época em que o poeta viveu, o Renascimento, foi marcada por efervescência científica e artístico-cultural. Assim, com Os Lusíadas, ele “deu visibilidade ao povo português, ao ressaltar feitos grandiosos do presente, as grandes navegações” e também garantiu “importante referência para os estudos filológicos e linguísticos promovidos nos séculos seguintes”.

“Como sabemos, a língua é um dos principais elementos de identidade nacional, e o excelso caráter nacionalista da sua narrativa exalta, para além do conteúdo, a língua portuguesa. Não é à toa que, até hoje, o poeta português figura como um dos maiores nomes da literatura lusófona”, pontua ele.

Quatrocentos e cinquenta anos depois, por que vale a pena ler Os Lusíadas ainda hoje? Para os especialistas, não se trata apenas de uma obra “para o vestibular” — o livro pode e deve ser lido como cultura geral, principalmente por pessoas lusófonas.

“[Seus versos] são uma aula de retórica. Quem quiser aprender retórica que leia ‘Os Lusíadas’, entenda toda aquela estrutura persuasiva”, defende Arruda.

“Sua estrutura persuasiva, ele [o poeta-narrador] quer convencer o rei [português] de alguma coisa, convencê-lo a continuar essa aventura, essa luta dos portugueses para manter seu império”, explica a linguista.

“Bem, os clássicos são os clássicos. E isso responderia à questão [sobre as razões para se ler Camões hoje] de forma simplista mas eficiente”, acrescenta Rossetti. “Para ser, então, mais exato e pontual, diria que obras como ‘Os Lusíadas’ têm a ver com a nossa história: a cultura, as crenças, as reflexões, os valores, a memória.”

Para o professor, “não se pode construir um projeto futuro sem o conhecimento e a devida compreensão do passado, sobretudo quando ele ainda faz tanto sentido nos dias de hoje”. “Afinal, continuamos seres desbravadores, vibramos com as conquistas que ampliam os limites da geografia e do conhecimento, sentimos emoção diante das histórias de amor ainda que com cores trágicas”, analisa.

Além disso, ele ressalta a questão da lusofonia. “Principalmente, falamos a mesma língua e precisamos, provavelmente mais que no século 16, de exemplos inteligentes, admiráveis e sensíveis: necessitamos sempre de boa poesia, de qualquer período, visto que os clássicos não envelhecem”, conclui.

Moraes defende que “ter contato com os clássicos” é fundamental para a “construção do repertório artístico-cultural do indivíduo”. “Nenhuma obra se torna um clássico por mero trabalho de marketing”, argumenta.

“No caso das epopeias, ainda mais”, compara. “Como se não bastasse a magnitude da forma, tem-se a maravilha do conteúdo, que nos conduz ‘por mares nunca dantes navegados’. Ademais, propicia o estudo do passado histórico, sob a perspectiva poética. Inclusive, pode proporcionar um interessante trabalho comparativo entre os ofícios do historiador e do escritor-artista.”

Problematizações contemporâneas também são possíveis, é claro. E, se compreendidas dentro de cada contexto histórico, podem gerar reflexões sem cair em anacronismos. Arruda frisa que não se pode esquecer que, em seu conteúdo, Os Lusíadas “sublinham essa coisa que a gente considera horrível: a ideologia imperialista, cruzadista”.

“É um monumento ao poder e não deixa de ser um pouco chocante para nossos ouvidos, por exemplo, o modo preconceituoso como os mouros são apresentados na obra”, exemplifica. “Isso não é do poeta. É do gênero [épico] e é da época. Por isso que a crítica contemporânea brasileira apresenta uma leitura de ‘Os Lusíadas’ que salienta sua contradição, justamente o elogio e o questionamento da posição invicta e hegemônica portuguesa.”

Por outro lado, também é importante ressaltar que a obra é um retrato daquilo que pode ser considerada a primeira globalização. “Essas ‘descobertas’ dos navegadores se tornaram importantes como a primeira ligação planetária da Terra, a primeira vez que todas as culturas entram em contato e se tem essa visão do globo. Isso vai ser sempre importante”, diz Arruda.

“Podemos dizer que são questionáveis, já que no encontro de culturas a diversidade acabou esquecida e apagada, reprimida pelo eurocentrismo que doutrina o mundo… Mas ‘Os Lusíadas’ vão sempre ter a importância de relatar esse primeiro contato entre culturas, ainda que em confronto de poder entre o europeu hegemônico e os outros povos subjugados.”

15 de março de 2022

A ‘RESTALINIZAÇÃO’ DA RÚSSIA!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 13) Quando Vladimir Putin ordenou a invasão da Ucrânia, sonhava em restaurar a glória do império russo. Mas acabou restaurando o terror de Josef Stalin. Não apenas porque desencadeou o mais violento ato de agressão injustificada na Europa desde 1939, mas também porque, como resultado, está se transformando em ditador – um Stalin do século 21, recorrendo a mentiras, violência e paranoia.

Para entender a escala das mentiras de Putin, veja como a guerra foi planejada. O presidente da Rússia pensou que a Ucrânia entraria em colapso rapidamente, e não preparou seu povo para a invasão nem seus soldados para sua missão – na verdade, ele assegurou às elites que nada disso aconteceria.

Após duas semanas no campo de batalha, ele ainda nega estar travando o que pode se tornar a maior guerra da Europa desde 1945. Para sustentar essa mentira, Putin fechou quase toda a mídia independente, ameaçou jornalistas com 15 anos de na prisão se não repetirem falsidades oficiais e prendeu milhares de manifestantes antiguerra. Ao insistir que a operação militar está “desnazificando” a Ucrânia, a TV estatal está “restalinizando” a Rússia.

ACORDO.

Para entender o apetite de Putin pela violência, veja como a guerra está sendo travada. Depois de falhar em obter uma vitória rápida, a Rússia tenta semear o pânico, deixando as cidades ucranianas famintas e as atacando cegamente. No dia 9 de março, atingiu uma maternidade em Mariupol. Se Putin está cometendo crimes de guerra, é porque está pronto para infligir um massacre em casa.

E, para avaliar a paranoia de Putin, imagine como a guerra termina. A Rússia tem mais poder de fogo do que a Ucrânia. Ainda está fazendo progressos, especialmente no sul. E pode capturar a capital, Kiev. No entanto, mesmo que a guerra se prolongue por meses, é difícil ver Putin como vencedor.

Suponha que a Rússia consiga impor um novo governo. Os ucranianos estão agora unidos contra o invasor. O fantoche de Putin não conseguiria governar sem uma ocupação, mas a Rússia não tem dinheiro nem tropas para guarnecer nem metade da Ucrânia. A doutrina do Exército americano diz que, para enfrentar uma insurgência, os ocupantes precisam de 20 a 25 soldados por cada mil pessoas. A Rússia tem pouco mais de 4.

Se, como o Kremlin pode ter começado a sinalizar, Putin não impuser um governo fantoche – porque não consegue –, então, ele terá de fazer concessões à Ucrânia nas negociações de paz. No entanto, ele enfrentará dificuldades para cumprir qualquer acordo desse tipo. Afinal, o que Putin fará se a Ucrânia do pós-guerra retomar sua deriva para o Ocidente. Invadir?

A verdade é que, ao atacar a Ucrânia, Putin cometeu um erro catastrófico. Destruiu a reputação das Forças Armadas da Rússia, que se mostraram taticamente ineptas contra um oponente menor e menos armado, porém mais motivado. A Rússia perdeu equipamentos e sofreu milhares de baixas, quase tantas em duas semanas quanto os EUA no Iraque desde a invasão, em 2003.

SANÇÕES.

Putin submeteu o país a sanções ruinosas. O Banco Central não tem acesso à moeda forte de que necessita para sustentar o sistema bancário e estabilizar o rublo. Marcas que defendem a abertura, como Ikea e Coca-Cola, fecharam as portas. Alguns produtos estão sendo racionados. Os exportadores ocidentais estão retendo componentes vitais, ocasionando paralisações de fábricas. Sanções sobre energia – por enquanto, limitadas – ameaçam reduzir as divisas de que a Rússia precisa para pagar por suas importações.

GUERRA.

E, assim como Stalin, Putin está destruindo a burguesia, o grande motor da modernização da Rússia. Em vez de serem enviados para o gulag, os empresários estão fugindo para cidades como Istambul, na Turquia, e Yerevan, na Armênia. Aqueles que optam por ficar no país estão sendo amordaçados por restrições à liberdade de expressão e livre associação. Serão atingidos pela alta inflação e pela instabilidade econômica. Em apenas duas semanas, eles perderam o país.

Stalin presidiu uma economia em crescimento. Por mais assassino que tenha sido, ele se baseou em uma ideologia concreta. Mesmo cometendo coisas ultrajantes, ele consolidou o império soviético. Após ser atacado pela Alemanha nazista, foi salvo pelo inacreditável sacrifício de seu país, que fez mais do que qualquer outro para vencer a guerra.

Putin não tem nenhuma dessas vantagens. Ele não apenas está fracassando em vencer a guerra enquanto empobrece seu povo: seu regime carece de um núcleo ideológico. O “putinismo”, tal como é, mistura nacionalismo e religião ortodoxa para uma audiência de TV. As regiões da Rússia, espalhadas por 11 fusos horários, já estão murmurando que esta é uma guerra de Moscou.

FRACASSO.

À medida que a escala do fracasso de Putin ficar mais clara, a Rússia entrará no momento mais perigoso desse conflito. As facções do regime se voltarão umas contra as outras em uma espiral de culpa. Com medo de sofrer um golpe, Putin não confia em ninguém e talvez tenha de lutar pelo poder. Talvez também tenha de mudar o curso da guerra, aterrorizando seus inimigos ucranianos e expulsando seus apoiadores ocidentais com armas químicas ou até mesmo ataque nuclear.

Enquanto observa, o mundo precisa limitar o perigo que surge no horizonte. Precisa derrubar as mentiras de Putin e promover a verdade. As empresas de tecnologia ocidentais estão erradas em fechar suas operações na Rússia, porque estão entregando ao regime o controle total sobre o fluxo de informações. Os governos que acolhem os refugiados ucranianos também devem acolher os russos.

A Otan pode ajudar a moderar a violência de Putin – na Ucrânia, pelo menos – continuando a armar o governo de Volodimir Zelenski e o apoiando se ele decidir que chegou a hora de entrar em negociações sérias. Também pode aumentar a pressão sobre Putin avançando mais rápido e mais fundo com sanções energéticas, embora com um custo para a economia mundial.

LIBERDADE.

E o Ocidente pode tentar conter a paranoia de Putin. A Otan deve declarar que não atirará nas forças russas, desde que elas não ataquem primeiro. E não deve dar a Putin uma razão para atrair a Rússia para uma guerra mais ampla, declarando uma zona de exclusão aérea que precisaria ser reforçada militarmente. Por mais que o Ocidente queira um novo regime em Moscou, deve declarar que não irá arquitetálo diretamente. A libertação é uma tarefa para o povo russo.

À medida que a Rússia afunda, o contraste com o presidente vizinho é gritante. Putin está isolado e moralmente morto. Zelenski é um homem comum e corajoso que uniu seu povo e o mundo. Ele é a antítese de Putin – e talvez sua nêmesis. Pense no que a Rússia pode se transformar quando se libertar de seu Stalin do século 21.

14 de março de 2022

O APAGÃO DO ENSINO MÉDIO!

(Simon Schwartzman – O Estado de S. Paulo, 11) Levantamento recente da Secretaria de Educação de São Paulo mostra o impacto da pandemia no ensino médio do Estado, que já não vinha bem. Em Língua Portuguesa, em 2019, os alunos que terminavam o ensino médio já estavam, em média, 3,83 anos atrasados em termos do que haviam aprendido, ou seja, sabiam menos do que o esperado no 9.º ano do ensino fundamental. Em 2021, este atraso havia aumentado para 4,24 anos. Em Matemática, o atraso, que era de 5,14 anos, aumentou para 6,53 anos, ou seja, tinham o nível próximo ao esperado no 5.º ano. É provável que, no resto do País, o impacto tenha sido maior.

É assim que estes estudantes estão entrando, em 2022, no novo ensino médio, estabelecido em 2017. Pela lei, os estudantes que entram no ensino médio como um caminho para o ensino superior deveriam escolher as áreas de estudo de sua preferência; para a maioria, sobretudo da rede pública, que não irá além do nível médio, seria possível obter uma qualificação profissional valorizada no mercado de trabalho.

E, para todos, haveria mais espaço para fortalecer as competências básicas gerais, como os conhecimentos essenciais de linguagem e raciocínio matemático. A intenção foi boa, mas a lei ficou confusa, e caberia ao Ministério da Educação liderar a transição para o novo sistema, resolvendo as ambiguidades e apoiando as redes neste processo. O ministério se omitiu, e cada Estado está tratando de fazer as mudanças como pode.

A omissão do governo federal tem que ver com a incompetência e hostilidade do governo Bolsonaro em relação aos temas de ciência, cultura e educação, mas também com uma forte resistência do establishment educacional aos dois objetivos da reforma. Esta resistência se deu e ainda se dá em dois níveis, o das ideologias e concepções e o das dificuldades práticas que a reforma acarreta, que me parece o mais importante.

A oposição à diferenciação de trajetórias se manifesta muitas vezes na forma de defesa do direito à educação, que seria afetado se o estudante tivesse um currículo mais direcionado. Ela veio, também, associada ao temor de que a flexibilização dos currículos afetaria a rotina e o emprego de professores de filosofia, sociologia, educação física, religião e tantos outros que têm asseguradas suas horas de ensino nos currículos tradicionais. O resultado foi aumentar, na lei, o tamanho e os conteúdos da parte de formação comum do ensino médio, e adotar, para os diferentes itinerários de formação, uma classificação formal e arbitrária de áreas de conhecimento (linguagem, Matemática, ciências da natureza, ciências sociais), ao invés de temas mais próximos das áreas de formação profissional (tecnologia e engenharia, ciências da saúde, profissões sociais, humanidades), como se dá no resto do mundo.

Nem tudo estava perdido, porque é o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que define o que fazem, na prática, as escolas do ensino médio. Pensando nisso, o Conselho Nacional de Educação (CNE) desenvolveu uma proposta para um novo Enem, que consistiria em duas partes, a primeira de competências gerais, semelhante ao Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), e a segunda com opções nas quatro áreas de formação profissional.

Mas o Ministério da Educação, com o apoio de associações como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), acabou adotando um projeto diferente. São, também, duas partes, a primeira juntando todo o conteúdo da parte geral e a segunda com quatro módulos diferentes à escolha dos alunos, combinando as diferentes áreas formais de conhecimento. É uma proposta confusa, carregada de linguagem pretensiosa (“intervenção social”, “articulação de competências”, “interdisciplinaridade”, etc.), tecnicamente duvidosa e que mal esconde a resistência à inovação.

O principal argumento ideológico contra a reforma do ensino técnico é de que ele estaria subordinando a educação ao mercado de trabalho (horror!), abandonando o ideal gramsciano de “politecnia”. Esta reforma deveria ter sido acompanhada de uma política efetiva de fortalecimento dos vínculos entre as redes estaduais e os sistemas de formação profissional existentes, como os do sistema S e o sistema Paula Souza, em São Paulo, e da implantação progressiva de um sistema nacional de certificações de competências profissionais, em parceria com o setor produtivo, que pudesse dar rumos e valorizar as carreiras vocacionais.

Além disso, deveria haver um esforço de ampliação e qualificação de um sistema moderno de aprendizagem profissional e do ensino superior de curta duração, que dariam continuidade à formação técnica de nível médio. Ao invés disso, o que se viu foi uma preocupação em manter o ensino técnico integrado ao currículo tradicional, como uma formação elitista só possível para os poucos institutos tecnológicos federais que, na prática, selecionam e preparam seus estudantes para as carreiras universitárias.

É este o apagão do ensino médio brasileiro em 2022: uma reforma confusa, sem ter quem a lidere e com alunos prejudicados por dois anos de escolas fechadas. Seria um bom tema para as campanhas eleitorais, se os políticos realmente se interessassem por educação.

11 de março de 2022

EM 1917, O CZAR NÃO ENTENDEU NADA!

(Folha de SP, 05) Não se sabe o que acontece no Kremlin, muito menos o que se passa na cabeça de Vladimir Putin. Passados 105 anos, sabe-se bem o que acontecia nos palácios do czar Nicolau 2º em 1917.

No dia de hoje pelo calendário gregoriano, a Rússia Imperial estava em guerra contra a Alemanha e ia mal. A vida doméstica de Nicolau ia pior. Uma de suas filhas e o príncipe herdeiro Alexei estavam doentes (era sarampo).

A czarina Alexandra ainda não havia se recuperado do assassinato, em dezembro, do monge Rasputin, curandeiro de seu garoto hemofílico. Ela vivia chapada por tranquilizantes. A corte russa era um serpentário de intrigas e pensava-se até num golpe. Num desses planos, Alexandra seria mandada para um mosteiro.

Nos últimos dois anos, além de Rasputin a Rússia tivera quatro primeiros-ministros, cinco ministros do Interior, três chanceleres, outros três ministros da Guerra e quatro da Agricultura.

Bailava-se nos palácios, mas faltava comida em São Petersburgo e formavam-se longas filas diante das lojas num inverno que levava a temperatura a -15ºC. Como aconteciam alguns protestos e greves, Alexandra aconselhou ao marido: “Eles precisam aprender a ter medo de você. O amor não basta”.

No dia seguinte, 8 de março, o tempo estava bom (-5ºC) e dezenas de milhares de trabalhadores, a maioria mulheres, tomaram as ruas de São Petersburgo. Se o negócio era botar medo, veio um mau sinal: os soldados relutaram em reprimir a manifestação. Muita gente cantava a “Marselhesa”.

Nada a ver com os bolcheviques, que eram poucos. Lênin estava na Suíça, Trotsky em Nova York e Stálin na Sibéria. Essa data de março marca o início da Revolução de Fevereiro. Era o dia 23 pelo calendário juliano, vigente à época na Rússia.

As greves alastraram-se, paralisando 200 mil trabalhadores e começaram casos de confraternização de soldados com operários. Com novas manifestações, dessa vez com cerca de 200 mil pessoas, a czarina disse ao marido que aquilo era coisa de desordeiros e, se a temperatura caísse, eles ficariam em casa.

Um chefe bolchevique da cidade achava coisa parecida: bastaria que houvesse mais pão. O czar descansava a cabeça lendo Júlio César. Nisso, adoeceu mais uma filha e na cidade saqueavam-se padarias, mas os teatros funcionavam.

Nicolau mandou atirar e morreram 200 pessoas. Três regimentos de elite da cidade amotinaram-se, varejaram o arsenal, levaram 40 mil rifles e seguiram para a cadeia onde estavam os presos políticos, libertando-os. Um general que passava de carro a caminho de um almoço no palácio ficou a pé. Indo para a costureira, a poeta Ana Akhmatova reclamava porque não conseguia um táxi. São Petersburgo foi tomada pela revolta, o chefe de polícia foi morto.

A bailarina Mathilde Kschessinska, que muitos anos antes tirara a virgindade de Nicolau, foi avisada que a coisa ia mal, juntou algumas coisas e abandonou seu palacete. No dia seguinte a casa foi saqueada. (Meses depois ela veria uma bolchevique com seu casaco de arminho.)

No dia 12 de março (27 de fevereiro pelo calendário juliano), os motins tomaram conta dos quartéis. Segundo o historiador Richard Pipes, esta deveria ser a data da Revolução de Fevereiro. Quando a notícia chegou a Nicolau, ele disse que eram maluquices que “nem me incomodei de responder”. Sua mulher achava que estavam acontecendo “coisas terríveis” e passou pela sepultura de Rasputin. Ele previra que, se morresse ou se o czar o abandonasse, perderia a coroa em seis meses.

Passaram-se apenas dois meses e o regime caíra. Os ministros foram presos e levados para uma fortaleza, escoltados por um rebelde que lá estivera preso.

Na noite de 15 de março, Nicolau 2º abdicou. Como não havia entendido o que acontecia, passou a coroa para um irmão, achando que mais tarde iria para a Inglaterra. Nada disso aconteceu.

Stálin chegaria a São Petersburgo em março, Lênin em abril e Trotsky em maio. Em outubro, com um golpe, os bolcheviques tomaram o poder e a Revolução de Fevereiro ficou fora de moda.

09 de março de 2022

UNIÃO CONTRA GUERRA PODE VIRAR MODELO CONTRA OUTRAS AMEAÇAS! 

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 07) Durante meses, Vladimir Putin disse que não tinha nenhuma intenção de invadir a Ucrânia, mas em 24 de fevereiro fez exatamente isso. Desde então, surpresas tornaram-se a norma. O próprio Putin foi surpreendido, já que é óbvio que as coisas não saíram conforme ele antecipava. O ditador superestimou a eficácia de suas Forças Armadas e subestimou as da Ucrânia, que ofereceram uma inesperada resistência. Um devastador ataque cibernético, por exemplo, ainda não se produziu, e a Marinha de Putin dá inesperados sinais de desordem e improvisação.

Também surpreendeu Volodmir Zelenski, o presidente que se converteu em exemplo de valentia e liderança. Por sua vez, o povo ucraniano demonstrou com ações o que significa defender a pátria das investidas de um ditador sanguinário.

Lamentavelmente, tudo o que já ocorreu não permite supor que os ucranianos repelirão o ataque russo. A desproporção entre as forças militares da Rússia e da Ucrânia é enorme. Cabe esperar, entretanto, uma prolongada insurreição da pátria ucraniana contra seus invasores, a qual contará com simpatia do mundo e apoio militar de EUA, Europa e outras potências.

Putin não apenas se equivocou em relação aos ucranianos, mas também subestimou as democracias do mundo. Esta foi a maior surpresa que este conflito nos trouxe até agora. A União Europeia respondeu de maneira unida e coordenada, com seus políticos e burocratas reagindo rapidamente e tomando decisões até pouco tempo atrás inimagináveis.

Os EUA aliaram-se com a Europa e outros países para impor custos proibitivos sobre as agressões de Putin. As democracias do mundo reagiram com velocidade incomum e, em alguns casos, desfizeram pilares fundamentais do que havia sido sua política externa. A Alemanha, por exemplo, decidiu aumentar seu gasto militar e enviar material bélico para as Forças Armadas ucranianas.

A Suíça abandonou o que já foi um fator definidor de sua política externa e até de sua identidade nacional: neutralidade frente a conflitos internacionais. As severas sanções adotadas pela aliança internacional desconectaram a Rússia da economia mundial. Assim, Putin condenou sua população à pobreza e ao isolamento. Tristemente, também veremos mais terror e repressão dirigidos aos russos que se atreverem a exigir um futuro melhor. À medida que a situação piorar, o Kremlin se sentirá mais ameaçado pelos russos que protestam nas ruas e praças do que por democratas de outros países.

Ao mesmo tempo que se aprofunda o isolamento da Rússia, as democracias têm mostrado uma inédita capacidade de se unir e agir conjuntamente em defesa dos valores que compartilham. Projetar e impor as sanções mais severas jamais vistas e coordenar sua adoção entre muitos e muito diferentes países foi muito difícil, mas se conseguiu. Este é um dos mais bem-vindos efeitos colaterais da invasão de Putin: descobrir que as democracias trabalhando juntas são capazes de enfrentar grandes problemas com êxito. Esta experiência pode servir de guia para enfrentar outras perigosas ameaças globais.

Por coincidência, quatro dias depois da invasão à Ucrânia, um painel composto por proeminentes cientistas publicou um relatório que alerta para inéditos danos humanos e materiais que as mudanças climáticas estão causando e para a alarmante velocidade desses danos. O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) tem como base pesquisas de milhares de cientistas de todo o mundo.

A principal conclusão é que as catástrofes produzidas pelas mudanças climáticas estão batendo recordes em frequência e custos humanos e materiais. Segundo o relatório, corremos risco de que vastas áreas do planeta tornem-se inabitáveis, incluindo algumas das zonas urbanas mais povoadas.

A crise climática de que o planeta padece é tão ou mais ameaçadora que Vladimir Putin. A invasão é um crime inaceitável, que não pode ser ignorado, e é preciso apoiar aqueles que enfrentam o tirano russo. Mas o mundo deve desenvolver capacidade para responder a mais de uma crise por vez. A Ucrânia não deve ser abandonada, mas a luta contra o aquecimento global também não. Esta última é muito difícil, mas agora sabemos que, agindo em conjunto, o mundo pode alcançar coisas difíceis.

Os líderes das democracias do mundo mostraram que, frente a uma ameaça existencial, as políticas as podem mudar decisiva e rapidamente. É hora de usarem com valentia o superpoder que a crise na Ucrânia lhes ajudou a descobrir para atacar a outra grande crise que a humanidade enfrenta