18 de março de 2019

RUY BARBOSA!

(Celso Lafer – Estado de S.Paulo, 17) Ruy Barbosa, que nasceu há 170 anos, usufruiu generalizado reconhecimento como ícone intelectual, admirado orador e advogado, homem de notável cultura e excepcional conhecimento da língua portuguesa. Seu legado permanece atual, cabendo destacar sua atuação em prol da criação do espaço público democrático em nosso país.

Na Oração aos Moços, discurso de paraninfo da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – seu testamento político –, escreveu que estava encerrando seus trabalhos de vida sem os meios e as manhas do político tradicional. “Em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os costumes da liberdade e à República as leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam a sociedade e honram as nações.”

Entre seus serviços à Nação realço a ativa participação na campanha abolicionista. Sublinhou que a escravidão era a questão das questões, a que todas as outras se subordinavam, pois, “encarna em si o começo da solução de todas as demais”.

O Direito representou para Ruy o caminho do seu empenho político. Este foi o de ser “o mais irreconciliável inimigo do governo do mundo pela violência, o mais fervoroso predicante do governo dos homens pelas leis”, característica do civilismo que norteou suas duas campanhas presidenciais. A autonomia do jurista em relação ao poder é um traço marcante da sua personalidade e do sentido apostolar do seu percurso. Ele engloba na missão do advogado uma espécie de magistratura: a da justiça militante. Nisso inclui “não transfugir da legalidade para a violência”; “não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínios a estes contra aqueles”; não “quebrar da verdade ante o poder”; não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade”; “não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas.”

Sua posição em defesa da inocência de Dreyfus, cuja relevância anteviu no calor da hora, repercutiu favoravelmente na diplomacia aberta, caracterizadora da Conferência de Haia de 1907, o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral no século 20 e momento inaugural da presença brasileira nos grandes foros internacionais.

Nela, como chefe da delegação do Brasil, Ruy contestou a igualdade baseada na força e sustentou, no âmbito do Direito Internacional Público, a igualdade dos Estados. Foi a primeira formulação brasileira da tese da democratização do sistema internacional e uma contestação ao exclusivismo, até então preponderante, do papel da gestão da vida internacional atribuído às grandes potências.

Ele manteve em Haia a posição independente do Brasil em relação aos EUA quando estes, potência em ascensão, se alinharam à grandes potências. Em A imprensa e o dever da verdade, disse: “Não quero, nem quererá nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra dos EUA. Não acho que devemos nos entregar de olhos fechados à sua política internacional, se bem haja entre ela e a nossa interesses comuns bastante graves e legítimos, para nos ligarem na mais inalterável amizade, e nos juntarem intimamente em uma colaboração leal na política do mundo”.

Na sua avaliação dos resultados de Haia, fez uma observação que antecipou o tema soft power, que é de grande relevância para um mundo interdependente: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.

Outra ação diplomática de Ruy foi a Embaixada em Buenos Aires, em 1916, onde representou o Brasil no centenário da República Argentina. Ali destacou a relevância do potencial de cooperação entre Brasil e Argentina numa vasta construção na ordem política, na ordem econômica e na ordem jurídica. É, assim, um dos importantes patronos da parceria argentino-brasileira, que veio a ser um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.

Ruy foi desde o Império um defensor do federalismo. Entendia que o sistema federativo era o único adaptável ao Brasil. Avaliou que a autonomia federativa dos Estados republicanizava o País mais depressa e mais seriamente do que se imaginava, substituindo a inércia das antigas províncias. Daí a importância do seu papel na modelagem jurídica do federalismo em nosso país.

A criação e o papel do Supremo Tribunal Federal tiveram em Ruy seu grande patrono. Guiou-se pelo seu tema recorrente de “sujeitar à legalidade os governos, implantar a responsabilidade no serviço à nação” e opor-se “à razão de estado” como a “negação virtual de todas as constituições”.

Na Oração, aponta que “entre as leis ordinárias e a lei das leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem”. Também recomendou aos alunos que iriam ser magistrados “não perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito”; não cortejar a popularidade; não transigir com as conveniências.

Ruy teve grande papel na construção do alargamento da doutrina brasileira do habeas corpus como garantia constitucional, que inspirou mais adiante o mandado de segurança.

Também promoveu a separação da Igreja do Estado e a laicidade do Estado, consagrada na Constituição de 1891 e nas subsequentes. Essa sua contribuição está voltada para conter o muito presente risco do indevido transbordamento da religião para o espaço da res publica.

Concluo com uma das grandes lições de Ruy: “Os que madrugam no ler convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

15 de março de 2019

“SURGE UMA NOVA ESQUERDA LIDERADA PELOS MILLENNIALS”! 

(The Economist/Estado de S.Paulo, 14) Um novo tipo de doutrina esquerdista está surgindo, mas não é uma resposta para os problemas do capitalismo.

Após o colapso da União Soviética, em 1991, a disputa ideológica do século 20 parecia encerrada. O capitalismo havia vencido e o socialismo tornou-se sinônimo de fracasso econômico e opressão política. Hoje, 30 anos depois, o socialismo está de novo na moda. Nos EUA, Alexandria Ocasio-Cortez, deputada recém-eleita que se denomina socialista democrata, tornou-se sensação. Na GrãBretanha, Jeremy Corbyn, o líder de linha dura do Partido Trabalhista, ainda pode se tornar premiê.

O socialismo avança porque estabeleceu uma crítica incisiva sobre o que deu errado na sociedade ocidental. Enquanto os políticos de direita desistem da batalha das ideias e recuam em direção ao chauvinismo e à nostalgia, a esquerda se concentra na desigualdade, no meio ambiente e em como investir os cidadãos de poder, e não as elites. No entanto, embora renascida e tendo acertado algumas coisas, o pessimismo da esquerda em relação ao mundo moderno vai longe demais. Suas políticas sofrem de ingenuidade sobre orçamentos, burocracia e empresas.

A vitalidade renovada do socialismo é notável. Nos anos 90, os partidos de esquerda mudaram para o centro. Da mesma forma, líderes de Grã-Bretanha e EUA, Tony Blair e Bill Clinton, afirmaram ter encontrado uma “terceira via”, uma acomodação entre Estado e mercado. “Este é o meu socialismo”, disse

Blair, em 1994, ao abolir o compromisso do trabalhismo com as estatais. Ninguém foi enganado, especialmente os socialistas.

A esquerda hoje vê a terceira via como um beco sem saída. Muitos dos novos socialistas são millennials. Cerca de 51% dos americanos entre 18 e 29 anos têm uma visão positiva do socialismo, diz o Gallup. Nas prévias de 2016, mais jovens votaram em Bernie Sanders do que em Hillary Clinton e Donald Trump juntos. Quase um terço dos eleitores franceses com menos de 24 anos, em 2017, votou no candidato da extrema esquerda.

Nem todos os objetivos dos socialistas millennials são radicais. Nos EUA, uma das políticas é a defesa do sistema de saúde universal, o que é normal em outras partes do mundo rico. Os radicais à esquerda dizem querer preservar as vantagens da economia de mercado. E, tanto na Europa quanto nos EUA, a esquerda é uma coalizão ampla e fluida, como são os movimentos com ideias em fermentação.

Mas existem temas comuns. Os socialistas millennials acham que a desigualdade saiu do controle e a economia é manipulada em favor de interesses pessoais. Eles acreditam que o público deseja que a renda e o poder sejam redistribuídos pelo Estado. Eles acham que a miopia e os lobbies levaram os governos a ignorar a crescente probabilidade de uma catástrofe climática. E eles acreditam que as hierarquias que governam a sociedade e a economia não servem mais aos interesses das pessoas comuns.

Parte disso é inquestionável, incluindo a praga do lobby e a negligência com o meio ambiente. A desigualdade no Ocidente realmente disparou nos últimos 40 anos. Nos EUA, a renda média do 1% superior subiu 242%, seis vezes o aumento para os intermediários. Mas a “nova” esquerda também deixa que partes importantes de seu diagnóstico estejam erradas – e suas prescrições também.

Comecemos pelo diagnóstico. É errado pensar que a desigualdade deve continuar a crescer inexoravelmente. A desigualdade de renda entre americanos caiu, entre 2005 e 2015, após o ajuste de impostos e transferências. A renda familiar média aumentou 10% em termos reais em três anos até 2017. Dizem que os empregos são precários, mas, em 2017, havia 97 empregados tradicionais em tempo integral para cada 100 americanos com idades entre 25 e 54 anos, em comparação com apenas 89, em 2005. A maior fonte de precariedade não é a falta de empregos estáveis, mas o risco econômico de outra recessão.

Os socialistas millennials também erram no diagnóstico sobre a opinião pública. Eles estão certos de que as pessoas sentem que perderam o controle sobre suas vidas e as oportunidades murcharam. O público também se ressente da desigualdade. Os impostos sobre os ricos são mais populares que os impostos sobre todos cidadãos. No entanto, não existe um desejo de redistribuição radical. O apoio dos americanos à redistribuição não é mais elevado do que era em 1990 e o país recentemente elegeu um bilionário que prometeu cortes de impostos corporativos.

Se o diagnóstico da esquerda é muito pessimista, o verdadeiro problema está em suas prescrições, que são perdulárias e politicamente perigosas. Tome-se a política fiscal. Alguns à esquerda propagam o mito de que vastas expansões de serviços governamentais podem ser pagas por impostos mais altos sobre os ricos. Na realidade, à medida que a população envelhece, é difícil manter os serviços sem aumentar os impostos sobre a classe média.

Ocasio-Cortez propôs uma taxa de imposto de 70% sobre rendimentos mais elevados, mas uma estimativa plausível situa a receita extra resultante em apenas US$ 12 bilhões, ou 0,3% do total de impostos arrecadados. Alguns radicais vão mais longe, defendendo uma “moderna teoria monetária”, que diz que os governos podem tomar emprestado livremente para financiar novos gastos, mantendo baixas as taxas de juros. Mesmo que os governos tenham recentemente conseguido emprestar mais do que muitos formuladores de políticas esperavam, a noção de que empréstimos ilimitados não colocam uma economia em dia é uma forma de charlatanismo.

A desconfiança nos mercados leva os socialistas millennials a conclusões erradas sobre o meio ambiente também. Eles rejeitam impostos de carbono neutros em termos de receita como a melhor maneira de incentivar a inovação do setor privado e combater as mudanças climáticas. Eles preferem planejamento central e amplos gastos públicos em energia verde.

A visão dos socialistas millennials de uma economia “democratizada” dissemina o poder regulador, em vez de concentrá-lo. Isso tem algum apelo para os interessados na priorização dos temas locais, mas o “localismo” precisa de transparência e responsabilidade, não dos comitês facilmente manipulados, favorecidos pela esquerda britânica.

O incentivo para democratizar se estende aos negócios. Os socialistas millennials querem mais trabalhadores em conselhos e confiscar ações de empresas e entregá-las aos trabalhadores. Países como a Alemanha têm tradição de participação dos funcionários. Mas o desejo dos socialistas de maior controle sobre a empresa está enraizado em uma suspeita das forças remotas desencadeadas pela globalização. Capacitar trabalhadores para resistir à mudança engessaria a economia. Menos dinamismo é o oposto do que é necessário para o renascimento da oportunidade econômica.

Eles acham que a desigualdade saiu do controle e a economia é manipulada em favor de interesses pessoais

Em vez de proteger as empresas e os empregos, o Estado deve garantir que os mercados sejam eficientes e os trabalhadores sejam o foco da política. Em vez de ficarem obcecados com a redistribuição, os governos fariam melhor se reduzissem a busca por renda pessoal, submetendo políticas públicas aos seus interesses (“rent-seeking”), melhorassem a educação e aumentassem a concorrência.

A mudança climática pode ser combatida com uma mistura de instrumentos de mercado e investimento público. Os socialistas millennials têm uma revigorante disposição de contestar o status quo. Mas, como o socialismo antigo, sofrem de uma fé na incorruptibilidade da ação coletiva e de uma suspeita injustificada do poder individual. Os liberais deveriam ser contra isso.

14 de março de 2019

COMO A RELAÇÃO RUSSO-AMERICANA AFUNDOU!

Artigo  adaptado do livro “The Back Channel: Uma Memória da Diplomacia Americana e a Razão para Sua Renovação” de William J. Burns, que trabalhou nos governos George H. W. Bush, Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama em cargos como secretário adjunto de Estado e embaixador na Rússia.

Depois de um último telefonema como líder dos EUA com o presidente George H. W. Bush, Mikhail Gorbachev renunciou em 25 de dezembro e seu país deixou de existir. Apenas algumas semanas depois, em janeiro de 1992, fui com o secretário de Estado James Baker a Moscou. Nós nos encontramos com Boris Yeltsin no Kremlin, onde a bandeira tricolor russa tremulava. Foi surreal.

O poder e a diplomacia americanos estavam no auge naquele momento. As esperanças russas se agitaram com a incerteza e a persistente humilhação. Este foi o prólogo da história emaranhada e repetitiva das relações pós-Guerra Fria entre os dois países, em que os problemas nunca foram exatamente preordenados, mas reapareceram com uma regularidade deprimente. E foi, nesse sentido, que a história da interferência russa na eleição presidencial dos EUA em 2016 começou. Eu desempenhei uma variedade de papéis neste relacionamento turbulento, na embaixada americana em Moscou e em cargos seniores em Washington.

Cheguei a Moscou como diretor-executivo da embaixada dos EUA em 1994, cerca de dois anos e meio depois do colapso da União Soviética. O senso de possibilidade já estava desaparecendo, e as dificuldades de construir algo novo para substituir o antigo sistema soviético estavam se tornando aparentes.

A mudança para uma economia de mercado não apagou os profundos problemas econômicos e sociais do país. A produção industrial havia caído pela metade desde 1991. A produção agrícola também estava caindo. Pelo menos 30% da população vivia abaixo da linha da pobreza, e a inflação eliminou as poucas economias dos aposentados. O sistema de saúde pública entrou em colapso e doenças contagiosas, como a tuberculose e a difteria, ressurgiram.

O presidente Bill Clinton se esforçou para administrar o transtorno de estresse pós-traumático da Rússia, mas seu esforço para a expansão da OTAN ao leste reforçou os ressentimentos russos. Quando saí de Moscou depois da minha primeira passagem, no início de 1996, fiquei preocupado com o eventual ressurgimento de uma Rússia fervilhando em suas próprias queixas e inseguranças. Eu não tinha ideia de que isso aconteceria tão rapidamente, ou que Vladimir Putin – então um burocrata obscuro – emergiria como a personificação daquela peculiar combinação russa de qualidades.

No início de seu mandato no Kremlin, Putin testara, com o presidente George W. Bush, uma forma de parceria adequada à sua visão dos interesses e prerrogativas russos. Ele imaginou uma frente comum na Guerra do Terror pós 11 de setembro, em troca da aceitação da influência especial da Rússia na antiga União Soviética, sem influência da OTAN além do Báltico e sem interferência na política interna da Rússia. Putin fundamentalmente interpretou mal os interesses e a política dos EUA. O governo Bush não desejava – e não via motivo – para trocar qualquer coisa por uma parceria russa contra a al-Qaeda. Tinha pouca inclinação a conceder muito a um poder em declínio.

Em pouco tempo, os excessos do Putinismo começaram a consumir seus sucessos. A corrupção se aprofundou, à medida que Putin procurava lubrificar o controle político e monopolizar constantemente a riqueza dentro de seu círculo. Suas suspeitas sobre os motivos da América também se aprofundaram. A promoção da democracia era, para ele, um cavalo de Troia projetado para promover os interesses geopolíticos americanos às custas da Rússia e erodir a esfera de influência que ele via como um direito de grande poder. Quando a Revolução Laranja na Ucrânia e a Revolução das Rosas na Geórgia derrubaram líderes pró-russos, a neuralgia de Putin se intensificou.

Com Medvedev no Kremlin, Obama teve dificuldades de manter contato com Putin, cujas suspeitas nunca diminuíram, e que ainda estava inclinado a pintar os EUA como uma ameaça para legitimar sua tendência repressiva em seu país. Nós chegamos a uma série de realizações tangíveis: um novo tratado de redução de armas nucleares; um acordo de trânsito militar para o Afeganistão; uma parceria sobre a questão nuclear iraniana. Mas as revoltas da Primavera Árabe enervaram Putin; há relatos de que ele assistiu ao vídeo horripilante da morte do líder líbio Muammar Kadafi – apanhado escondido em uma tubulação de esgoto e morto por rebeldes apoiados pelo Ocidente – repetidas vezes. Internamente, à medida que os preços do petróleo caíam e sua frágil economia dependente de commodities diminuía, ele temia que fosse difícil sustentar seu antigo contrato social, pelo qual exercia controle total sobre a política em troca de garantir padrões de vida crescentes e certa prosperidade.

Quando Putin decidiu voltar à presidência após o término do mandato de Medvedev em 2012, ele foi surpreendido por grandes manifestações de rua, o produto do ressentimento da classe média pelo agravamento da corrupção e das eleições parlamentares fraudulentas. Em um discurso na Europa, a então secretária de Estado Hillary Clinton criticou duramente o governo russo. “O povo russo, como pessoas de todos os lugares”, disse ela, “merece o direito de ter suas vozes ouvidas e seus votos contados”. Putin levou isso para o pessoal e culpou Clinton publicamente por enviar “um sinal” que levou os manifestantes às ruas. Putin tem uma capacidade notável de guardar insultos e ofensas, e reuni-los para encaixar em sua narrativa de que o Ocidente tenta manter a Rússia por baixo. As críticas de Clinton ficaram no topo de sua litania – e ajudariam a gerar um animus que levou diretamente a intromissão de Putin contra sua candidatura na eleição presidencial dos EUA em 2016.

O arco do relacionamento entre os EUA e a Rússia já estava se dobrando em uma direção familiar, assim como, após momentos de esperança, durante o governo Bush e a administração de Bill Clinton antes disso. Em 2014, a crise na Ucrânia arrastou-o para novas profundidades. Depois que o presidente pró-russo da Ucrânia fugiu durante protestos generalizados, Putin anexou a Crimeia e invadiu o Donbass, no leste da Ucrânia. Se ele não podia ter um governo deferente em Kiev, ele queria arquitetar a próxima melhor coisa: uma Ucrânia disfuncional. Durante vários anos, Putin havia desafiado o Ocidente em lugares como a Geórgia e a Ucrânia, onde a Rússia tinha uma participação significativa e um alto apetite por risco. Em 2016, um ano depois de eu deixar o governo, ele viu uma oportunidade para um desafio mais direto ao Ocidente – um ataque à integridade de suas democracias.

Quem perdeu a Rússia? É uma discussão antiga que não entende o ponto. A Rússia nunca foi nossa para perdê-la. Os russos perderam a confiança em si mesmos após a Guerra Fria, e só eles poderiam refazer seu estado e sua economia. Na década de 1990, o país estava em meio a três transformações históricas simultâneas: o colapso do comunismo e a transição para uma economia de mercado e democracia; o colapso do bloco soviético e a segurança que proporcionara à historicamente insegura Rússia; e o colapso da própria União Soviética, e com ela um império construído ao longo de vários séculos. Nada disso poderia ser resolvido em uma única geração, muito menos em alguns anos. E nada disso poderia ser resolvido por pessoas de fora; um maior envolvimento americano não teria sido tolerado.

A sensação de perda e indignidade que veio com a derrota na Guerra Fria era inevitável, não importando quantas vezes nós e os russos tivéssemos dito que o resultado não tinha perdedores, apenas vencedores. Dessa humilhação e da desordem da Rússia de Yeltsin, cresceu a profunda desconfiança e a agressividade latente de Putin.

O padrão nas relações entre os EUA e a Rússia algumas vezes indicava a imutabilidade histórica, como se fossemos obrigados à uma rivalidade e à uma suspeita interminável. Essa visão pode conter um quê de verdade; a história é importante e é difícil de se escapar. Mas a verdade toda é mais complicada e mais prosaica. Cada um de nós teve suas ilusões. Os Estados Unidos pensavam que Moscou acabaria por se acostumar a ser nosso parceiro júnior e, relutantemente, acomodaria a expansão da OTAN até a fronteira com a Ucrânia. E a Rússia sempre assumiu o pior em relação aos motivos americanos e acreditava que sua própria ordem política corrupta e economia não reformada eram uma base sustentável para o poder geopolítico real. Nós tendíamos a alimentar as patologias do outro. Muitas vezes falávamos algo diferente pensando falar a mesma coisa.

Hoje, é claro, o relacionamento americano com Moscou é mais bizarro e mais problemático do que em qualquer outro momento desde o fim da Guerra Fria. Em Helsinque, no verão passado, o presidente Donald Trump esteve ao lado de Putin, absolveu-o da interferência eleitoral e duvidou publicamente das conclusões dos serviços de inteligência e policiais dos Estados Unidos.

O narcisismo de Trump, o desprezo desconcertante pela história, e o desarmamento diplomático unilateral são um triângulo trágico em um momento em que a Rússia representa ameaças inimagináveis há um quarto de século. Ele parece alheio à realidade de que “se dar bem” com rivais como Putin não é o objetivo da diplomacia, onde é tudo sobre a promoção de interesses tangíveis.

Gerenciar as relações com a Rússia será um longo jogo, conduzido dentro de uma faixa relativamente estreita de possibilidades. Navegar por uma rivalidade de grande poder exige diplomacia com tato – manobrando na área cinzenta entre a paz e a guerra; demonstrando uma compreensão dos limites do possível; construindo influências; explorando motivos em comum onde podemos encontrá-los; e pressionando com firmeza e persistência onde não podemos.

O caminho à frente com a Rússia ficará mais tortuoso antes de ficar mais fácil. Devemos percorrê-lo sem ilusões, atentos aos interesses e sensibilidades da Rússia, sem culpa de nossos valores e confiantes em nossas próprias forças duradouras. Não devemos ceder a Putin – ou desistir da Rússia além dele.

13 de março de 2019

“VOX”: A NOVA DIREITA NA ESPANHA!

(Lucas Neves – Folha de S.Paulo, 11) Fundado em 2013 com um discurso anti-imigrantes, em prol do Estado mínimo e da recentralização do poder em Madri (em oposição à delegação de prerrogativas às comunidades autônomas), o Vox assentou acampamento em uma espécie de terra de ninguém do espectro espanhol. Depois de estrear no Parlamento andaluz, deve conquistar cadeiras no Legislativo federal pela primeira vez em abril.

Para o cientista político Pablo Simón, professor na Universidade Carlos 3º (Madri), o Vox surfa na onda da insatisfação de uma parcela do eleitorado conservador com a maneira como o Partido Popular (PP), que encarna o establishment de direita na Espanha e estava no poder central em 2017, conduziu a crise secessionista catalã.

“Esse grupo acha que o PP foi muito brando, teria gostado de um pulso mais firme [com movimento de independência]”, afirma ele. “Por outro lado, quando os socialistas voltam ao governo [em junho de 2018], depois de aprovarem uma moção de censura contra o premiê Mariano Rajoy com a ajuda dos separatistas, reabrem o diálogo com estes, o que também melindra os direitistas mais radicais.”

A réplica não tardou. Em dezembro passado, os 400 mil votos do Vox na eleição da Andaluzia se traduziram em 12 deputados no Legislativo regional e, mais importante, no fim de uma hegemonia socialista de 36 anos no comando local. O neófito agora dá suporte à dobradinha governista PP-Cidadãos (centro), mas não é parte integrante da gestão andaluza.

O fiel escudeiro não é assim tão fiel. Uma pesquisa realizada após o pleito regional mostrou que mais de 50% dos eleitores do Vox haviam votado no PP nas eleições gerais (nacionais) de 2016. Outros 23% tinham escolhido o Cidadãos dois anos antes.

Em outros países europeus, a chegada maciça de imigrantes no meio da década tem sido apontada como mola para agremiações de ultradireita. Mas os analistas divergem sobre o peso desse fator na Espanha.

“Cabe lembrar que o Vox teve seus melhores desempenhos na Andaluzia nas áreas em que há mais imigrantes”, aponta Peres. “Voltamos a ver barcos desembarcarem às praias espanholas coalhados de migrantes. Pedro Sánchez [premiê socialista] até recebeu embarcações para as quais outros países, como a Itália, tinham fechado seus portos.”

Simón discorda. “A Espanha é a porta de entrada, mas não o destino final de muitos dos migrantes, que seguem até a Europa central. A imigração não ocupa lugar de destaque no debate público. Trata-se de um tema de verão, quando a imprensa está sem assunto.”

Além disso, segundo ele, a maior parte dos viajantes vem da América Latina, região que inspira no Vox certa “simpatia cultural, que passa pela identificação com o reacionarismo católico”.

Onde os dois comentaristas convergem é na avaliação de que a situação econômica do país (que cresceu 3% em 2017 e 2,5% em 2018, níveis invejáveis no circuito europeu) não influi no ganho de musculatura da ultradireita ibérica. O programa do Vox nessa rubrica, aliás, é enxuto, consistindo basicamente na promessa de redução da carga tributária.

“O eleitor padrão do partido é de classe média, classe média alta, ou seja, não está nos grupos mais atingidos pela crise iniciada em 2008, ao contrário do que vemos em outros países em que a direita radical cresce”, explica Simón. “Na Espanha, os mais afetados tendem a votar nos socialistas e no Podemos [esquerda radical].”

Nos costumes, a legenda mira reverter as leis que permitiram o aborto e o casamento gay, além de colocar em questão o espaço ocupado na sociedade espanhola pelo debate em torno da igualdade de gênero, que seria dominado por um feminismo sectário de viés esquerdista—o Vox, por sinal, não se associou às manifestações, na sexta (8), pelo Dia Internacional da Mulher.

No fim de fevereiro, a dois meses da eleição que deve garantir seu ingresso na Câmara de Deputados madrilena, o partido oscilava entre 10% e 12% das intenções de voto, segundo a pesquisa. Aparecia atrás de socialistas, PP, Cidadãos e Podemos, nesta ordem.

Mas tudo indica que terá papel central na nova legislatura, seja pautando o endurecimento da oposição a uma eventual coalizão governista de esquerda, seja na pele de aliado providencial de uma frente conservadora. Não vai faltar voz ao Vox.

12 de março de 2019

THEODORE ROOSEVELT!

(Marcos Lisboa, presidente do Insper – Folha de S.Paulo, 10) No fim do século 19, os Estados Unidos viviam entre o céu e o inferno. Havia uma democracia consolidada, com eleições regulares e independência do Judiciário. Ao mesmo tempo, a corrupção se disseminara e os partidos eram financiados por razões nada republicanas.

A riqueza proporcionada pelo capitalismo contrastava com as degradantes condições de trabalho da grande maioria.

Entre 1880 e 1910, houve muitas reformas. Foram aprovadas normas para regular os contratos de trabalho, proibiu-se a nomeação política de servidores públicos e passou-se a combater as práticas anticoncorrenciais das grandes empresas.

Theodore Roosevelt foi um dos protagonistas desse período. Filho de um rico comerciante de Nova York, republicano e conservador, adorava colecionar animais abatidos em caçadas. Secretário-adjunto da marinha, foi o principal instigador da guerra contra Espanha, tornando-se celebridade pela sua participação no conflito em Cuba.

Roosevelt sintetiza as contradições da época. O caçador contumaz também foi um eficaz defensor da preservação do meio ambiente e dos animais em extinção. Governador eleito com o apoio da máquina partidária contaminada, combateu a corrupção com arte e porrete.

Para desespero dos reformistas, negociava com as lideranças da política tradicional. Por vezes, porém, encurralava com maestria a cúpula partidária e aprovava medidas que limitavam o poder das corporações ou que protegiam os trabalhadores. “Gritos e ameaças” não teriam conseguido dez votos, afirmou.

Roosevelt fazia questão de estar próximo da imprensa. Governador, organizava reuniões semanais para apresentar seus objetivos e as razões da sua escolha. Ele impressionava por conhecer detalhadamente os temas em debate. Eventuais divergências não o incomodavam.

“Não preciso dizer-lhe que nenhuma crítica sua pode alterar em nada minha estima por você… Sei que discorda porque honestamente acredita que deva fazê-lo”, escreveu a um jornalista.

Certa vez, um colunista fez uma resenha irônica e devastadora do seu livro sobre a guerra em Cuba. O governador reagiu com um convite: “Lamento declarar que minha família e amigos íntimos estão encantados com a sua resenha… Acho que você me deve uma; e vou cobrar que venha me visitar… Há muito queria ter a chance de conhecê-lo”.

Roosevelt tornou-se presidente dos EUA e continuou sua agenda de reformas. Negociou o fim da guerra entre Rússia e Japão e recebeu o Nobel da Paz, não sem controvérsias.

Teddy —ele detestava o apelido— podia ser valentão, mas conhecia o ofício da política, dialogava com a imprensa e sabia do que falava.

11 de março de 2019

AFINAL, O QUE É A VIDA?

(BBC, 07) Essa pergunta é tão antiga que parece estranho que alguém dos dias de hoje consiga uma resposta tão radicalmente inovadora a ponto de influenciar áreas do conhecimento tão díspares como a neurociência, a sociologia, a informática, a literatura e a filosofia.

O biólogo chileno Humberto Maturana conseguiu. Sua teoria, desenvolvida há quase 50 anos com seu ex-aluno e compatriota Francisco Varela, chama-se “autopoiesis” e influenciou muita gente.

“A pergunta básica que me fiz foi o que é estar vivo e o que é estar morto, o que precisa acontecer em sua interioridade para que eu, olhando de fora, possa decidir o que é um ser vivo”, disse Maturana à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

Sua teoria, publicada em uma série de trabalhos no início da década 1970, foi “revolucionária porque deu uma solução para uma pergunta que até então não tinha resposta”, diz.

Não à toa, Maturana foi um dos 23 pesquisadores convidados pela Fundação Nobel para uma conferência há duas semanas, em Santiago do Chile.

Maturana foi ovacionado quando subiu ao palco. O neurocientista Anil Seth, com quem o chileno dividia o painel, agradeceu a oportunidade de estar perto do “lendário biólogo”.

“Li suas obras pela primeira vez há mais de 20 anos, quando fazia doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra, e me inspirei em seu trabalho desde aquela época, como muitos outros cientistas no mundo”, disse Seth.

O trabalho de Maturana, afirmou, “é um maravilhoso exemplo do legado da ciência chilena”.

Crie a si mesmo

A obra de Maturana se concentra em um termo que ele cunhou unindo duas palavras gregas: “auto” (para si mesmo) e “poiesis” (criação).

“Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares, ou seja, sistemas moleculares que se autoproduzem, e a realização dessa produção de si mesmo como sistemas moleculares constitui a vida”, afirmou o biólogo.

Segundo sua teoria, todo ser vivo é um sistema fechado que está continuamente se transformando, recuperando-se e se mantendo igual quando necessita.

Uma alegoria mais simples para essa ideia seria a de uma ferida que se cura sozinha.

A prestigiada Enciclopédia Britânica, que lista a autopoiese como uma das seis principais definições científicas para a vida, explica assim a teoria dos chilenos: “Ao contrário das máquinas, cujas funções de controle são inseridas por projetistas humanos, os organismos governam a si próprios”.

“Os seres vivos”, acrescenta, “mantêm sua forma mediante o contínuo intercâmbio e fluxo de componentes químicos”, que são criados pelo próprio corpo.

Além de uma definição para a vida, Maturana e Varela também explicam o que é a morte.

A autopoiesis, diz Maturana à BBC, “tem de ocorrer continuamente, porque quando ela para, nós morremos”.

O cientista filósofo

“Antes, se você perguntasse a um biólogo o que é um ser vivo, ele não sabia o que responder”, diz Maturana. No entanto, depois da teoria, “viver passou a ter uma explicação”.

“É um fenômeno de uma dinâmica molecular que constitui entidades discretas que são os seres vivos”, diz o biólogo, que também se define como filósofo.

De fato, as palavras de Maturana muitas vezes parecem mais uma reflexão intelectual sobre a vida do que uma definição científica e objetiva dela.

O eixo de sua obra aborda um tema tão amplo que falar com Maturana necessariamente implica exceder o estritamente científico e entrar em questões bastante filosóficas.

Sobre a educação, ele opina: “O fundamental na educação é a conduta dos adultos em relação às crianças, não somente no espaço relacional e material, mas também no psíquico”. Ele também explica seu pensamento sobre a linguagem: “Não é um sistema de comunicação ou transmissão de informações, mas um sistema de coexistência na coordenação de desejos, sentimentos e ações”.

Maturana também dá consultorias de recursos humanos e relações interpessoais para empresas e indivíduos por meio do Instituto de Formação Matríztica, que há algumas décadas ele fundou com a professora Ximena Dávila.

É justamente essa diversidade e combinação de saberes de Maturana que atraíram a simpatia do Dalai Lama.

‘Você tem razão’

Há cinco anos, Maturana e a Ximena Dávila visitaram o Dalai Lama, líder religioso e político que vive na Índia, cuja extensa oposição à ocupação do Tibet por parte da China lhe rendeu o prêmio Nobel da Paz em 1989.

Em seu site, Dalai Lama descreve Maturana como um “cientista cuja santidade sempre cito, uma pessoa que disse preferir não se ater apenas ao seu campo de pesquisa porque atrapalha a objetividade”.

Embora tenham conversado sobre temas variados como o funcionamento do cérebro, a linguagem e os sentimentos de plantas e animais, Maturana lembra de um diálogo particular sobre a vida.

“A conversa foi essencialmente sobre como vivemos, que tipo de vida estamos levando e como estamos atuando como seres humanos”, contou. “Nesse sentido, foi uma conversa filosófica e também biológica”.

Maturana detalhou: “Ele disse que havia aprendido comigo o tema do desprendimento, porque em algum momento havíamos conversados sobre isso”.

“Com Ximena mostramos que, nas relações humanas, o fundamental é ouvir um ao outro, mas para isso temos que deixar o outro aparecer sem prejulgar preceitos, premissas ou exigências. Isso é desprendimento, segundo o Dalai Lama”, explicou.

De acordo com o biólogo, o líder tibetano lhe disse: “Você tem razão”. E, em caráter filosófico, ainda acrescentou: “A coisa central na coexistência é ouvir um ao outro para poder fazer as coisas juntos com respeito mútuo.”

08 de março de 2019

POR UM RENASCIMENTO EUROPEU!

Emmanuel Macron, Presidente da República francesa, dirige-se aos cidadãos europeus num artigo publicado em vários jornais, nas mais diversas línguas, incluíndo o Diário de Notícias, em exclusivo para Portugal, e também, entre outros, o britânico Guardian, o alemão Die Welt e o espanhol El País.

Emmanuel Macron
04 Março 2019

Cidadãos da Europa, se tomo a liberdade de dirigir-me diretamente a vós, não é somente em nome da história e dos valores que nos unem. É porque a situação é de urgência. Dentro de algumas semanas, as eleições europeias serão decisivas para o futuro do nosso continente.

Nunca desde a Segunda Guerra mundial se afigurou tão necessária a Europa. No entanto, nunca a Europa esteve em situação tão perigosa.

O Brexit é o símbolo desse perigo. Símbolo da crise da Europa, que não soube responder às necessidades de proteção dos povos face aos grandes choques do mundo contemporâneo. Símbolo, também, da armadilha europeia. Não é a pertença à União europeia que é a armadilha; são a mentira e a irresponsabilidade que a podem destruir. Quem disse a verdade aos Britânicos sobre o seu futuro após o Brexit? Quem lhes falou da perda do acesso ao mercado europeu? Quem evocou os riscos para a paz na Irlanda com a reposição da fronteira do passado? O recuo nacionalista nada propõe; apenas rejeita, não projeta. E esta armadilha ameaça toda a Europa: os exploradores da ira, sustentados pelas falsas informações prometem mundos e fundos.

Face a essas manipulações, devemos manter-nos de pé. Orgulhosos e lúcidos. Dizer, antes de mais, o que é a Europa. É um sucesso histórico: a reconciliação de um continente devastado, num projeto inédito de paz, de prosperidade e de liberdade. Nunca o esqueçamos. E esse projeto continua a proteger-nos hoje: que país pode enfrentar, sozinho, as estratégias agressivas de grandes potências? Quem pode almejar ser soberano sozinho perante os gigantes do setor digital? Como resistiríamos às crises do capitalismo financeiro sem o euro, que é uma força para toda a União? A Europa significa também milhares de projetos do quotidiano que transformaram a face dos nossos territórios: este liceu renovado, aquela estrada construída, o acesso rápido à Internet a chegar, por fim. Este combate exige um compromisso a cada dia, pois a Europa e a paz não são dados adquiridos. Em nome da França, travo este combate sem descanso para fazer progredir a Europa e defender o seu modelo. Mostrámos que aquilo que era considerado inalcançável, a criação de uma defesa europeia ou a proteção dos direitos sociais, era possível.

Mas é preciso fazer mais, mais depressa. Pois existe a outra armadilha, a do status quo e da resignação. Perante os grandes choques do mundo, os cidadãos tantas vezes nos dizem: “Onde está a Europa? O que faz a Europa?”. Para eles, ela transformou-se num mercado sem alma. Ora, a Europa não é meramente um mercado, é um projeto. Um mercado é útil, mas não deve fazer esquecer a necessidade de fronteiras que protegem e de valores que unem. Os nacionalistas enganam-se quando afirmam defender a nossa identidade com o recuo da Europa, pois é a civilização europeia que nos reúne, que nos liberta e nos protege. Contudo, aqueles que não querem que nada mude também se enganam, pois negam os receios que os nossos povos sentem, as dúvidas que assolam as nossas democracias. Estamos a viver um momento decisivo para o nosso continente; um momento em que, coletivamente, devemos reinventar política e culturalmente as formas da nossa civilização num mundo em transformação. Chegou a hora do Renascimento europeu. Por isso, resistindo às tentações do recuo e das divisões, proponho-vos construirmos, juntos, este Renascimento em torno de três ambições: a liberdade, a proteção e o progresso.

Defender a nossa liberdade

O modelo europeu assenta na liberdade humana, na diversidade das opiniões, da criação. A nossa liberdade primeira é a liberdade democrática, a de escolher os nossos dirigentes apesar de potências estrangeiras procurarem, a cada eleição, influenciar os nossos votos. Proponho a criação de uma Agência europeia de proteção das democracias que providenciará peritos europeus para cada Estado membro para proteger o seu processo eleitoral contra os ciberataques e as manipulações. Neste espírito de independência, também devemos proibir o financiamento dos partidos políticos europeus por potências estrangeiras. Devemos banir da Internet, com regras europeias, todos os discursos de ódio e de violência, pois o respeito pelo indivíduo é o alicerce da nossa civilização de dignidade.

Proteger o nosso continente

Fundada com base na reconciliação interna, a União europeia esqueceu-se de olhar para as realidades do mundo. Nenhuma comunidade é capaz de suscitar um sentimento de pertença se não possuir limites que ela protege. A fronteira representa a liberdade com segurança. Logo, devemos repensar o espaço Schengen: todos os que querem ser parte desse espaço devem cumprir obrigações de responsabilidade (controlo rigoroso das fronteiras) e de solidariedade (a mesma política de asilo, com as mesmas regras de acolhimento e de recusa). Uma polícia de fronteiras comum e um serviço europeu de asilo, estritas obrigações de controlo, uma solidariedade europeia para a qual contribui cada país, sob a autoridade de um Conselho europeu de segurança interna: acredito, face às migrações, numa Europa que protege ao mesmo tempo os seus valores e as suas fronteiras.

As mesmas exigências devem aplicar-se à defesa. Foram realizados importantes progressos nos últimos dois anos, mas precisamos de um rumo claro: um tratado de defesa e de segurança deverá definir as nossas obrigações indispensáveis, em cooperação com a OTAN e os nossos aliados europeus: aumento das despesas militares, cláusula de defesa mútua operacionalizada, Conselho de segurança europeu associando o Reino Unido para preparar as nossas decisões coletivas.

As nossas fronteiras também devem garantir uma concorrência equitativa. Que potência no mundo aceita continuar as suas trocas com quem não respeita nenhuma das suas regras? Não podemos suportar sem nada dizer. Devemos reformar a nossa política de concorrência, repensar a nossa política comercial: punir ou proibir na Europa as empresas que prejudicam os nossos interesses estratégicos e os nossos valores essenciais, como as normas ambientais, a proteção dos dados e o justo pagamento do imposto; e assumir, nas indústrias estratégicas e nos nossos concursos públicos, uma preferência europeia, tal como o fazem os nossos concorrentes americanos ou chineses.

Resgatar o espírito de progresso

A Europa não é uma potência de segunda categoria. A Europa toda é uma vanguarda: sempre soube definir as normas do progresso. Por isso, ela deve propugnar um projeto de convergência mais do que de concorrência: a Europa, onde foi criada a segurança social, deve construir, para cada trabalhador, de Leste a Oeste e de Norte a Sul, um escudo socialque garanta a mesma remuneração no mesmo local de trabalho e um salário mínimo europeu, adaptado a cada país e discutido coletivamente a cada ano.

Resgatar o progresso significa também liderar o combate ecológico. Como poderemos encarar os nossos filhos se não reduzirmos também a nossa dívida climática? A União europeia deve determinar a sua ambição – 0 carbono em 2050, reduzir para metade os pesticidas em 2025 – e adaptar as suas políticas a essa exigência: um Banco europeu do clima para financiar a transição ecológica; uma força sanitária europeia para reforçar os controlos dos nossos alimentos; contra a ameaça dos lobbies, uma avaliação científica independente das substâncias perigosas para o ambiente e a saúde… Esse imperativo deve nortear toda a nossa ação; desde o Banco central até a Comissão europeia, desde o orçamento europeu até o plano de investimento para a Europa, todas as nossas instituições devem inserir o clima no âmago do seu mandato.

O progresso e a liberdade significam poder viver dos proventos do seu trabalho: para criar empregos, a Europa deve antecipar. Por isso é que ela deve, não só regulamentar os gigantes do setor digital, com a criação de uma supervisão europeia das grandes plataformas (sanções aceleradas em caso de violação da concorrência, transparência dos seus algoritmos…), mas também financiar a inovação dotando o novo Conselho europeu da inovação com um orçamento comparável ao dos Estados Unidos, para conduzir as novas ruturas tecnológicas, como a inteligência artificial.

Uma Europa que se projeta no mundo deve estar voltada para África, com a qual devemos formar um pacto de futuro. Assumindo um destino comum, apoiando o seu desenvolvimento de maneira ambiciosa e não defensiva: investimento, parcerias universitárias, educação das raparigas…

Liberdade, proteção, progresso. Devemos construir sobre esses alicerces um Renascimento europeu. Não podemos deixar os nacionalistas sem solução explorar a ira dos povos. Não podemos ser os sonâmbulos de uma Europa amolecida. Não podemos permanecer na rotina e nas proclamações. O humanismo europeu é uma exigência de ação. E por toda parte os cidadãos exigem participar na mudança. Até ao fim do ano, com os representantes das instituições europeias e dos Estados, organizemos uma Conferência para a Europa a fim de propor todas as mudanças necessárias para o nosso projeto político, sem tabu, nem mesmo a revisão dos tratados. Esta Conferência deverá associar painéis de cidadãos, auscultar os académicos, os parceiros sociais, os representantes religiosos e espirituais. Definirá um roteiro para a União europeia traduzindo em ações concretas essas grandes prioridades. Haverá divergências, mas será melhor uma Europa parada ou uma Europa que progride por vezes em ritmos diferentes, mas permanecendo aberta a todos?

Nesta Europa, os povos reassumirão verdadeiramente o controlo do seu destino; nesta Europa, o Reino Unido, tenho a certeza, encontrará o seu devido lugar.

Cidadãos da Europa, o impasse do Brexit é uma lição para todos. Devemos sair dessa armadilha e dar um sentido às eleições vindouras e ao nosso projeto. Cabe-vos, a vós, decidirem se a Europa, os seus valores de progresso, devem ser mais do que um parêntese na história. Eis a escolha que vos proponho, para traçarmos juntos o caminho rumo a um Renascimento europeu.

07 de março de 2019

COLAPSO CHAVISTA ARRASTA CASAL DE DITADORES ASSOCIADOS NA NICARÁGUA!

(Editorial de O Globo, 05) Derretimento da Venezuela de Maduro corta oxigênio de Daniel Ortega e de Rosario Murillo

O colapso da ditadura venezuelana tem reflexos diretos na Nicarágua. Sem o fluxo de petrodólares mantido por Caracas, durante duas décadas, e cercado pelas sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, o casal Daniel Ortega, presidente, e Rosario Murillo, vice, esgotou as possibilidades de continuar com seu regime despótico e, comprovadamente, corrupto.

As punições ao casal de ditadores foram adotadas como resposta à ferocidade da polícia e de grupos paramilitares na repressão aos protestos de civis em todo o país, nos últimos dez meses. Contam-se mortos às centenas, presos aos milhares — muitos torturados, segundo a Igreja Católica e organizações de direitos humanos. Uma estudante brasileira foi fuzilada na capital nicaraguense.

Ortega e Murillo perderam não apenas o rumo, e agora tentam uma saída negociada com a oposição, algo que vinham rechaçando.

Eles transformaram a Nicarágua, um dos países mais pobres, em Estado falido. A administração opera com alto nível de corrupção. O sistema financeiro se deixou contaminar por suspeitas de lavagem de dinheiro vinculado ao narcotráfico.

Há um déficit fiscal estimado em 15% do PIB. Desapareceram os suprimentos de petróleo e de dólares chavistas. Estão bloqueadas as fontes externas de financiamento, inclusive as do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Ao governo Ortega-Murillo restou a alternativa de um apelo por socorro a Taiwan. Conseguiram crédito de US$ 100 milhões, o que é absolutamente insuficiente para cobrir o rombo fiscal deste ano.

Até agora, a família, que administra o país como se fosse uma de suas fazendas, sustentava o poder — e o visível enriquecimento — com base na “cooperação financeira” venezuelana. Receberam um total de R$ 4,9 bilhões nos últimos 11 anos. Foi o preço pago por Hugo Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro pelo alinhamento da Nicarágua, como coadjuvante, no jogo de influência de Caracas na América Central.

Esses recursos fluíram para os cofres da Alba de Nicarágua S.A. (Albanisa), empresa binacional de petróleo e derivados. A fortuna do casal Ortega-Murillo se multiplicou na apropriação de parte dos lucros da revenda de óleo bruto e de combustíveis no mercado caribenho.

As sanções à Venezuela congelaram US$ 11 bilhões em exportações do governo Maduro. Imobilizaram a PDVSA, a filial americana Citgo e a subsidiária nicaraguense Albanisa. O castelo de cartas chavista desmorona, arrastando o casal de ditadores associados Ortega-Murillo.

06 de março de 2019

ESCOLAS DE SAMBA!

Artigo de Cesar Maia para Folha de S.Paulo em 13/02/2010.

As rodas de samba do Rio, no início dos anos 30, eram discriminadas como caso de polícia, por estarem dentro de favelas e pela proximidade com o jogo do bicho. O plano Agache (arquiteto francês que cunhou “urbanismo”) para o Rio (1928-32) considerava as favelas provisórias.

Pedro Ernesto (1931-36) foi o primeiro prefeito a subir uma favela. E institucionalizou as rodas de samba. A legislação não permitia subsidiá-las. Pedro Ernesto pediu que todas elas mudassem o nome para uma nomenclatura comum: Grêmio Recreativo Escola de Samba…. A adoção do termo “escola” permitiu a Pedro Ernesto subsidiá-las, e elas passaram a contar com recursos públicos para o seu desenvolvimento. O primeiro desfile oficial, com julgamento, foi em 1935.

Vencido pela Portela, teve como porta-bandeira uma menina prodígio: Dodô. Dodô faleceu em 2015, com 95 anos.

Os desfiles nos carnavais eram basicamente uma apresentação da classe média, com os corsos, os ranchos e as alegorias. O Carnaval incluía enorme diversidade de expressões, como o frevo, o maracatu, as pessoas fantasiadas nas ruas, os blocos de sujos, o concurso de fantasias, os bailes nos clubes e nos teatros…

No início dos anos 60, com a entrada da equipe de Fernando Pamplona no Salgueiro, iniciou-se um processo de radical transformação dos desfiles. O samba enredo era sincopado, os passistas desfilavam soltos, sem alas agrupadas, não havia carros alegóricos, os destaques desfilavam no chão…

A partir daí, as demais expressões do Carnaval começaram a ser incorporadas às escolas de samba e foram desaparecendo. Assim foi com os superblocos (Bafo da Onça, Cacique de Ramos), que rivalizavam com as “escolas”. Corsos, ranchos, fantasias de luxo e alegorias passaram a integrar os grandes carros alegóricos. Os enredos históricos foram abertos.

As “escolas” passaram a desfilar como ópera popular (alas e seus carros como atos, coro dos que desfilam, os atos móveis, apresentados na frente da plateia num auditório latitudinal).

Com a ascensão de Joãozinho Trinta (da equipe de Pamplona, depois na Beija Flor), as “escolas” ganham a característica que têm hoje. As alas desfilam agrupadas como blocos. O samba-enredo passa a ser samba-marcha. E se invertem os papéis. Antes, os corsos, onde o povo olhava a classe média desfilar. Agora desfila o povo, e a classe média assiste.

A venda de ingressos, nos dois dias de desfile e das campeãs, equivale a três anos de venda de ingressos no estádio de futebol brasileiro que mais fatura.

01 de março de 2019

O GLOBO (28/02) ENTREVISTA O PRESIDENTE DA CÂMARA, DEPUTADO RODRIGO MAIA!

P: Os governadores têm pedido um projeto de ajuda aos estados. É possível?

RM: Acho que dá para construir uma grande pactuação na votação da Previdência para que, dentro dela, a gente organize o sistema previdenciário próprio também dos estados, e que a gente possa construir com os governadores uma saída de fluxo de caixa. Vai ter que se chegar a um acordo entre partidos de direita e partidos de esquerda. Eles querem um fundo onde eles possam antecipar receitas futuras. Até 2022, tenho certeza que todo mundo está de acordo. Mas eles precisam ser sócios do Parlamento e do governo na aprovação da Previdência.

P: Pode ser uma proposta votada junto com a reforma?

RM: O que for de emenda constitucional pode ser até dentro. O projeto está pronto. A crítica começou a ser feita. Está na hora de, depois do Carnaval, procurar os governadores e ver em que condições eles querem participar. E temos que discutir no Parlamento e no Executivo se as condições são possíveis de viabilizar ou não.

P: O senhor almoçou hoje (ontem) com Paulo Guedes. Passou a ele a preocupação dos deputados com a votação?

RM: Tenho feito isso publicamente, para que todos tenham a informação correta e ninguém possa dizer que levou um susto se algo fora do planejamento acontecer. Os parlamentares ainda não conseguiram compreender nesse quebra-cabeça qual é o papel deles para que, depois, se possa pensar em projetos de investimento em todas as áreas. Às vezes, as pessoas ficam olhando cargo, orçamento, e não é isso. Tem uma coisa muito maior, como ‘Onde é que eu estou dentro desse projeto de país que o Bolsonaro começou a construir a partir de primeiro de janeiro?’.

P: O que passa na reforma?

RM: O que gera insegurança são pontos muito claros: o Benefício de Prestação Continuada e a aposentadoria rural. E do servidor público há dois grandes debates que vão ser feitos: a não transição dos servidores que entraram antes de 2003 e as alíquotas progressivas. Acho que a alíquota progressiva tem apoio da sociedade. Mas esses são os quatro pontos que mobilizam mais.

P: Nos casos de BPC e aposentadoria rural, já há consenso de que não passa?

RM: Tem que discutir se o impacto fiscal dessas medidas compensa a contaminação da reforma. Do ponto de vista político, é um grande risco, sem dúvida nenhuma. Do BPC eu tenho quase certeza de que o impacto é pequeno porque o Leonardo Rolim já disse. Agora, a aposentadoria rural tem que pegar os números.

P: O senhor acha que o regime de capitalização será aprovado?

RM: A capitalização é um sistema que não tem desequilíbrio, há um futuro melhor para as próximas gerações. Há alguns economistas que dizem que esse sistema não pode ser um sistema de capitalização puro, porque alguns não conseguirão nunca ter uma renda mínima. Mas essa é uma equação que a gente vai ter que discutir, os técnicos vão ter que nos apresentar formulações.

P: O governo já respondeu quando chega o projeto dos militares?

RM: Vai chegar nos próximos dias, depois do Carnaval.

P: Não se discute nada antes de chegar?

RM: Isso os líderes já avisaram. É um dado da realidade.

P: O ministro Paulo Guedes está tendo um choque de realidade?

RM: O ministro nunca tinha tido a oportunidade no setor público, que tem regras diferentes do setor privado. Se você é dono de uma empresa, você implementa um projeto no tempo que você quiser. Para ganhar ou perder. Ele tem uma agenda liberal, eu tenho uma agenda liberal, mas você não tem 308 deputados que chegaram ao parlamento com uma agenda liberal.

P: Há inexperiência do governo em lidar com o parlamento?

RM: O Brasil viveu uma mudança de ciclo, precisamos perceber que a sociedade mandou um recado muito claro. Tudo que representa um momento novo é um aprendizado para todos. O presidente ganhou a eleição com uma narrativa. Ele não pode da noite para o dia dizer que aquela narrativa estava errada. Ele está imobilizado nesta narrativa. E não está errado de estar assim. Ele precisa fazer a narrativa virar realidade, compreendendo que todos os 513 deputados também estão legitimados pelo voto como ele está. E que o governo, para fazer grande reformas, precisa governar com o parlamento.

P: É possível pautar a desvinculação total do Orçamento como quer o ministro Paulo Guedes?

RM: Não estou defendendo a proposta dele porque não está no papel. Mas a ideia de mudar o pacto federativo e inverter a pirâmide, ter um orçamento com mais liberdade, não sei se para a União, mas talvez para estados e municípios, é um debate que fortalece o parlamento.

P: O senhor pretende apresentar o projeto de reforma do serviço público?

RM: Acho que cabe ao Executivo apresentar, pois tem mais servidores. Mas temos que debater. Servidor público, no meu ponto de vista, não tem que ter gratificação. Ele precisa ter carreira. Mas hoje nas carreiras mais importantes do Estado brasileiro, após cinco a oito anos, quase todos os servidores já estão no teto. Aí, o que os estimula são as gratificações. O objetivo de um servidor público nunca pode ser ganhar acima do teto. No Exército, qual é o grande estímulo para um soldado? É chegar a ser general de quatro estrelas. O Itamaraty ainda tem um pouco disso. Mas, fora eles, não tem.

P: É uma discussão mais difícil do que a Previdência?

RM: Eu não acho, porque eu sempre trato daqui pra frente, para construir um estado menos custoso para a sociedade e mais eficiente.

P: Executivos da OAS acusam o senhor de ter recebido caixa dois. Recebeu?

RM: Não recebi. Mas a vida do homem público é assim, nunca pode ficar incomodado quando algum delator, para se salvar, tenta usar a nossa reputação. Cabe a cada um de nós fazer a sua defesa e trabalhar para mostrar à sociedade e à Justiça que a informação não é verdadeira.

28 de fevereiro de 2019

“CUBA ADOTA AS REDES SOCIAIS”!

(The Economist/Estado de S.Paulo, 24) Regime cubano está tuitando, o que não o torna mais democrático ou tolerante com a dissidência.

Um dia antes de Miguel Díaz Canel se tornar presidente de Cuba, em abril, um âncora da TV estatal pediu aos cubanos que se unissem num “tuitaço”. As hashtags que ele propôs foram #PorCuba e #SomosContinuidad. O próprio Díaz-Canel criou uma conta no Twitter em agosto. Nas primeiras semanas, ele seguiu apenas Nicolás Maduro, o problemático déspota da Venezuela, e Evo Morales, primeiro presidente de esquerda da Bolívia. Em dezembro, na tentativa de tornar mais explicável para o povo a ditadura de Cuba, ele determinou aos departamentos do governo que se tornassem mais visíveis na rede social. Hoje, 24 dos 26 ministérios estão no Twitter, assim como a maioria dos ministros que os chefiam.

Um número cada vez maior dos 11 milhões de cidadãos cubanos pode tuitar de volta. Em dezembro, pela primeira vez, as redes de celulares 3G ficaram acessíveis a qualquer um na ilha comunista. Anteriormente, o principal acesso dos cubanos à internet eram os pontos públicos de wi-fi, que cobravam por hora. Apenas 37 mil residências tinham conexões com a web.

O acesso ao 3G, cobrado por megabites, está encorajando os cubanos a migrar de plataformas famintas de dados, como Facebook e Instagram, para o Twitter, menos voraz. Até o fim de janeiro, os 5,3 milhões de usuários de celular do país haviam adquirido 1,4 milhão de pacotes de 3G.

O Twitter de duas vias parece estar reduzindo a distância entre governantes e governados. Depois que um tornado se abateu sobre Havana, em janeiro, a ministra do Comércio Interior, Betsy Díaz Velásquez, tuitou uma lista de alimentos com desconto disponíveis à população da área afetada.

Quando pessoas criticaram o governo, pelo Twitter, por não cuidar daqueles que haviam perdido suas casas, a ministra ofereceu a elas comida grátis. “Um ano atrás, eu não saberia dizer o nome de um único ministro cubano”, disse em dezembro o empresário Camilo Condis. “Agora, sei os apelidos de todos eles, reconheço seus rostos e tenho até a chance de interagir com alguns.”

Ultimamente, porém, a conversação vem se tornando mais raivosa. O malestar vem da tentativa do governo de modificar a Constituição por meio de um referendo marcado para hoje. Haveria mudanças modestas, como a legalização da propriedade privada (sujeita a regulamentação pelo Estado) e o limite de dois mandatos de 5 anos para o presidente.

Os ânimos se exaltaram depois que a Assembleia Nacional anunciou, em dezembro (via Twitter), a derrubada da emenda que permitia o casamento no mesmo sexo. Em seu lugar surgiu um remendo reconhecendo o casamento como uma “instituição social e legal”, a ser definida posteriormente.

Cubanos defensores dos direitos dos gays manifestaram sua fúria usando a hashtag #YoVotoNo. A hashtag foi ampliada para incluir outras queixas, como a não permissão para os cubanos elegerem diretamente seus líderes. Poucos esperam que o referendo seja uma votação justa. A hashtag ficou tão popular que o governo se viu obrigado a contra-atacar com um #YoVotoSi.

Essa nova hashtag está colada em ônibus, mercearias estatais e quiosques de sorvete. No desfile de 28 janeiro, em honra de José Martí, herói da independência, o governo distribuiu camisetas – um luxo em Cuba – ostentando a hashtag pró-Constituição. Pessoas que discordavam mais ativamente das mudanças foram detidas e hostilizadas pela polícia. Os dirigentes de Cuba podem ter aprendido a tuitar, mas não esqueceram como se cala a população.

27 de fevereiro de 2019

BRASIL PIOR DO QUE HÁ SETE ANOS!

(Editorial do Estado de S. Paulo, 25) Com mais informalidade, mais desocupação e mais subemprego, as condições de trabalho são hoje muito piores do que eram em 2012.

Com mais informalidade, mais desocupação e mais subemprego, as condições de trabalho são hoje muito piores do que eram há sete anos, segundo o retrospecto recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A degradação do mercado de trabalho tem uma história mais longa do que em geral se imagina, quando se comparam as condições atuais com as de antes da recessão. No ano passado houve em média, no Brasil, 32,93 milhões de empregados com carteira assinada no setor privado. Em 2012, esse contingente era 34,31 milhões. Em 2014, quando o País se aproximava da recessão, o número chegou a 36,61 milhões, o maior desse período. No trimestre final de 2018, os trabalhadores com carteira, no total de 32,99 milhões, ficaram pouco acima da média anual, mas a melhora foi quase insignificante. Nada sugere, por enquanto, um breve retorno ao número de sete anos atrás. Os números são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua.

A piora em relação a 2012 é até maior do que possa parecer, porque nesse período a população em idade de trabalho cresceu seguidamente. Em termos proporcionais, portanto, o quadro é mais feio do que quando se consideram só números absolutos.

No ano passado, a parcela de empregados com carteira assinada, de 74,6%, foi menor que em 2012, quando ficou em 75,6%, e bem menor que em 2015, quando atingiu 78%. A porcentagem diminuiu em 17 unidades federativas, aumentou em 8 e em 2 foi igual à de 2012. Em São Paulo, o Estado mais industrializado e com maior Produto Interno Bruto (PIB), a proporção passou de 83,2% em 2012 para 81,4% em 2018, tendo atingido o ponto mais alto, 85,2%, em 2014. No ano passado, a menor proporção, de 50,8%, foi observada no Maranhão.

A informalidade aumentou de forma preocupante a partir da recessão, mas já era um problema grave bem antes disso. Em 2012, as taxas de emprego formal eram inferiores a 70% em 14 unidades da Federação. Em 2018, isso ocorreu em 16.

Quando se examina a desocupação, observa-se alguma melhora no último ano, mas a maior parte das novas contratações foi informal, sem garantias para o empregado e, de modo geral, sem benefícios além do salário.

O desemprego médio recuou de 12,7% em 2017 para 12,3% em 2018. A menor taxa havia sido a de 2014, quando 6,8% dos participantes do mercado de trabalho ficaram desocupados. Em 2012, a taxa nacional havia atingido 7,4%, um nível ainda distante e só atingível depois de mais alguns anos de crescimento econômico. Em todo o País, a taxa de desocupação aumentou 81% entre 2014 e 2018.

A maior deterioração ocorreu no Rio de Janeiro, onde os desempregados passaram de 6,3% para 15% da população economicamente ativa, num salto de 138%. Essa piora refletiu, certamente, um conjunto incomum de desastres, incluídas a crise política e fiscal e a interrupção de projetos importantes, como o do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj). Não só no Rio, mas de modo especial nesse Estado, o agravamento das condições do emprego foi uma das consequências de um extraordinário surto de corrupção retratado parcialmente na Operação Lava Jato.

Também piorou, nos últimos sete anos, o grau de aproveitamento da mão de obra disponível. O aumento do desemprego mostra apenas uma parte da mudança. A população subutilizada passou de 18,82 milhões em 2012 para 27,40 milhões em 2018 – números médios de cada ano.

O menor contingente, de 15,50 milhões, foi o de 2014, pouco antes do início da recessão. Os desocupados são menos de metade do contingente mais amplo. Eram 7,10 milhões em 2012, 6,74 milhões em 2014 e chegaram a 12,84 milhões em 2018. O grupo total dos subutilizados inclui também os desalentados e os ocupados por menos tempo do que gostariam.

Confiança é a primeira condição para se reduzir esse enorme desperdício de capacidade produtiva e melhorar a vida dos brasileiros. Mais que promessas, a criação dessa confiança requer bons projetos e muita competência política.

26 de fevereiro de 2019

O DISCURSO E A PRÁTICA!

(Editorial O Estado de S. Paulo, 25) O TechCrunch, site americano especializado em tecnologia, revelou que o Facebook paga US$ 20 por mês a pessoas de 13 anos a 35 anos pelo uso do aplicativo Research, que dá à empresa de Mark Zuckerberg acesso a todo o histórico de telefone e web dos usuários, incluindo atividade criptografada, mensagens e e-mails privados. O aplicativo permite também que o Facebook veja como os amigos dessas pessoas, que não consentiram em coletar seus dados, interagiram com esses usuários. Houve casos, inclusive, em que o programa pediu que os usuários compartilhassem capturas de tela de suas compras na concorrente Amazon. A descoberta do TechCrunch mostrou que o compromisso repetido nos últimos tempos pelo Facebook, de que está tentando melhorar o seu relacionamento com os usuários, dentro de um marco de maior respeito à intimidade e à privacidade, é ainda mero discurso, muito distante da realidade.

Em primeiro lugar, está o problema do frágil consentimento. Na prática, os usuários não sabem o que estão autorizando. O aplicativo Research dá acesso total às ações e informações do usuário em seu smartphone. No entanto, o contrato diz apenas que o usuário, ao aceitar as condições, está “permitindo que nossos clientes coletem informações sobre quais aplicativos você tem no seu celular, como e quando você os utiliza, atividade de navegação e até mesmo quando o aplicativo utiliza criptografia”.

“Trata-se de um programa que dá ao Facebook acesso contínuo dos dados mais sensíveis do usuário. Muitos não serão nem capazes de dar seu consentimento a esse acordo, porque não há nem como explicar toda a dimensão do poder que é entregue ao Facebook quando um contrato desses é assinado”, disse Will Strafach, especialista em segurança de dados, ao TechCrunch.

Além disso, o usuário não tem consciência de que, com o uso do aplicativo, é ao Facebook que está dando o acesso de seus dados. O programa é administrado por outras empresas, Applause, BetaBound e uTest, que prestam serviços de testes de aplicativos. Com isso, a participação da rede social no projeto de pesquisa fica oculta.

Aspecto especialmente negativo para o Facebook foi a revelação de que a empresa, ao criar o Research, praticamente replicou a infraestrutura e o código do Onavo, um aplicativo espião que já havia sido banido pela Apple, por violar suas regras. Ou seja, o Facebook deu continuidade a práticas que reconhecidamente iam muito além do razoável. Em 2017, o Wall Street Journal mostrou que o aplicativo Onavo foi essencial para o Facebook espionar a empresa Snapchat, antes de lançar ferramentas de mensagens semelhantes à da rival, como o Instagram Stories e o WhatsApp Status. A startup que criou o Onavo foi comprada, em 2013, pelo Facebook por US$ 120 milhões.

Diante da descoberta sobre o funcionamento do Research, o Facebook alegou que o aplicativo nada mais era do que um serviço de pesquisa de mercado, permitindo que a empresa detectasse ameaças competitivas. Isso não serve de desculpa, pois toda pesquisa deve respeitar a privacidade e contar com a plena anuência dos usuários. Logo após o

TechCrunch ter noticiado sobre o aplicativo, o Facebook tirou do ar a versão iOS.

Também foi revelado recentemente que o Google manteve um aplicativo de monitoramento similar ao Research, chamado Screenwise Meter. Os usuários ganhavam valecompras em troca de informações sobre o modo como usam a internet e o smartphone. O aplicativo do Google, no entanto, não tinha acesso a dados criptografados.

A tecnologia oferece muitas possibilidades para as empresas conhecerem seus clientes e concorrentes. Ponto fundamental em todo esse processo é a transparência. Só assim o usuário poderá ter a segurança de não ser transformado em peça manipulável. Sua privacidade e sua liberdade são – devem ser – fundamentais.

25 de fevereiro de 2019

POR QUE A CRISE NA VENEZUELA INTERESSA TANTO PAÍSES COMO RÚSSIA, CHINA E TURQUIA?

(Stefania Gozzer – BBC News Mundo, 24) A Venezuela de Nicolás Maduro (e antes disso, a de Hugo Chávez) é um assunto polêmico inevitável em debates eleitorais de nações tão diferentes quanto Espanha e Irã.

As notícias sobre a Venezuela ganham destaque em países muito além da América Latina. Seja no alfabeto latino, cirílico ou persa, o país sul-americano desperta interesse em todo o planeta – mesmo em Estados com os quais a Venezuela não tem laços históricos ou comerciais.

Provoca divisão, inclusive, entre parceiros políticos. Foi o que ocorreu com o Movimento 5 Estrelas e La Liga, que governam juntos a Itália, mas têm posições opostas em relação à legitimidade de Maduro como líder do Executivo – por isso, os grupos decidiram não reconhecer nem Maduro nem Juan Guaidó como presidentes da Venezuela.

Acima de tudo, a Venezuela mantém em compasso de espera as nações que não têm boas relações com os Estados Unidos.

Mas o que há de tão especial na Venezuela que atrai a atenção de tantos países?

China de olho nos seus investimentos
A razão da China para acompanhar de perto o que acontece na Venezuela tem 11 números.

O país asiático é o maior credor de Caracas. Enquanto o resto dos agentes econômicos duvidava cada vez mais da capacidade do país sul-americano de saldar suas dívidas, Pequim emprestou mais de US$ 50 bilhões para a Venezuela (alguns analistas estimam que o valor seja ainda maior, na ordem de US$ 67 bilhões).

Acredita-se que boa parte desse empréstimo já tenha sido paga pelo país sul-americano. Segundo Carlos de Sousa, especialista na América Latina da empresa de análise e previsão econômica Oxford Economics, ainda faltaria pagar pelo menos cerca de US$ 16 bilhões.

Foi justamente essa falta de transparência que fez com que a opinião pública chinesa ficasse desconfiada dos investimentos feitos na Venezuela.

Vincent Ni, analista da BBC para a China, explicou à BBC World que o governo “geralmente é muito aberto” em relação a seus investimentos no exterior. Então, o fato da China não “querer revelar quanto emprestou à Venezuela diz muito”.

Diante da censura a que está submetida a população chinesa, é preciso recorrer à internet para saber o que os chineses pensam sobre esse tema. “Basicamente, (os chineses) dizem que a China ainda é um país em desenvolvimento e que há muitas pessoas vivendo na pobreza. (Assim, como pode) estar dando tanto dinheiro a outros países?”, disse Ni. O especialista ressaltou, porém, que é difícil saber o quão representativos são comentários anônimos na internet com esse teor.

Mas a decisão chinesa de investir na Venezuela é estratégica. “(A China) sempre teve uma visão de longo prazo em relação à Venezuela: sendo este o país com as maiores reservas de petróleo do mundo, fazia sentido investir ali como uma forma de garantir uma fonte de petróleo, (produto) que é necessário para seu crescimento”, disse Carlos de Sousa, da Oxford Economics.

Russ Dallen, um dos sócios do banco de investimentos Caracas Capital Markets, disse ao canal americano CNBC que os chineses temiam que a oposição venezuelana não reconhecesse as dívidas contraídas pelo país durante os anos de Hugo Chávez – ou então que encontrariam “brechas legais” para não honrar com os pagamentos.

“Os chineses não sabem o que fazer. Os homens de Maduro não estão pagando… e a situação continua se deteriorando”, disse Dallen.

Porém, Guaidó já tentou dissipar as dúvidas e os receios chineses. “Nosso governo vai agir com respeito às leis e às obrigações internacionais (da Venezuela)”, disse Guaidó em entrevista ao jornal chinês South China Morning Post, no início de fevereiro. “Todos os acordos que foram assinados com a China de acordo com a lei serão respeitados.”

Pequim, por ora, já demostrou seu apoio a Maduro. Mas também admitiu ter falado com “todas as partes” do conflito. Mais do que fidelidade política, a prioridade chinesa é assegurar seus interesses econômicos.

“A China ainda não sabe que lado escolher”, disse Ni. “Durante a Primavera Árabe, (a China) apoiou (o falecido líder líbio) Khadafi até sua queda. Mas, quando ele caiu, (a China) mudou de lado e ninguém se importou”.

A Rússia e os dois campos de batalha
A Venezuela tem forte presença na mídia russa e até no Parlamento do país.

Para a Rússia, a Venezuela representa um interesse geopolítico “muito importante” para “neutralizar os interesses” dos Estados Unidos em áreas tradicionalmente consideradas de influência russa, explicou Carlos de Sousa.

“(O envolvimento dos EUA no confronto com a Ucrânia) foi uma situação muito incômoda para a Rússia”. Então, o governo Putin está fazendo o mesmo na Venezuela: ‘bem, agora sou eu que te incomodo’. Então, (a questão venezuelana) não é algo essencial, mas é interessante para que a Rússia tenha alguma influência no ‘quintal’ dos EUA”, acrescentou o especialista.

Para os russos, a Venezuela não apenas representa um campo de batalha externo, mas também interno.

O editor do serviço russo da BBC, Famil Ismailov, afirmou em dezembro: “Geralmente, o povo russo está cansado de ajudar governos como o sírio e o venezuelano, em vez de ver esse dinheiro investido dentro do país. Mas o governo russo tem uma máquina de propaganda muito forte”.

O presidente Vladimir Putin apoia fortemente Maduro, e a imprensa russa oficial questiona o apoio popular à oposição venezuelana.

“Também há interesses econômicos muito importantes. A Rússia investiu cerca de US$ 10 bilhões (na Venezuela)”, apontou Sousa. Alguns analistas acreditam que o número pode ser ainda superior, de cerca de US$ 17 bilhões.

“Os russos viram (a situação da Venezuela) de forma oportunista. A recessão no país e a queda na produção de petróleo já haviam começado. Então, a Rússia viu uma oportunidade de comprar ativos da indústria petrolífera a preços muito baratos”, disse o analista da Oxford Economics.

Os deputados russos questionam frequentemente sobre o futuro do dinheiro emprestado para a Venezuela. Um dos motivos é que, na Rússia, muitos pensam que esse dinheiro não vai ser recuperado.

“Quando os russos investem em um país, fazem isso pela política, não por razões econômicas. Esse dinheiro (emprestado para a Venezuela) não vai voltar. É um pagamento feito à Venezuela pelo seu apoio à causa russa”, continuou Ismailov.

“É importante mostrar para o público interno que a Rússia desempenha um papel de superpotência e tem países amigos. (A ideia então é que) vale a pena pagar por isso”.

“A oposição venezuelana já indicou tanto para a Rússia quanto para a China que quer continuar a fazer negócios com esses países no futuro, quando estiver no governo”, afirma Sousa. “Obviamente, quando a oposição assumir o governo no futuro, se assim for, toda a dívida com a China e a Rússia terá de ser reestruturada… E, sobre isso, eu não tenho a menor dúvida: todos vão perder em alguma medida.”

Irã e a ‘venezualização’
Apesar de estarem separados por mais de 12 mil quilômetros, o Irã e a Venezuela mantêm uma relação que, segundo o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, é “sagrada”. O Irã tem sido um dos poucos países a demonstrar apoio a Maduro, chamando a autoproclamação de Guaidó de “tentativa de golpe”.

Chávez e o ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad foram os responsáveis por fortalecer os laços entre os dois países. Desde então, ocorreram diversas visitas oficiais dos dois lados.

Mas a aliança entre a Venezuela e o Irã é de natureza diferente, como explica o editor da emissora persa da BBC, Ebrahim Khalili: “O governo apoia a Venezuela porque sua estratégia é ser contra tudo que os Estados Unidos são a favor. Fala abertamente que devemos estar perto dos inimigos dos nossos inimigos”.

Turquia em busca de ouro venezuelano
Maduro também é muito conhecido na Turquia. Em setembro do ano passado, por exemplo, um vídeo do venezuelano saindo de um restaurante de luxo em Istambul provocou controvérsia.

Era a quarta visita de Maduro à Turquia desde 2016, quando as relações entre as duas nações começaram a florescer. Naquele ano, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan sofreu uma tentativa de golpe, e Maduro foi um dos primeiros líderes mundiais a apoiá-lo.

Não surpreende, então, que Erdogan tenha criticado os Estados Unidos por apoiarem Guaidó.

O parlamento turco tem, inclusive, um grupo dedicado à “amizade” turco-venezuelana. Segundo seu presidente, Kerem Ali Surekli, do partido de Erdogan, “ambos os países resistem a intervenções externas, rechaçam intervenções externas e bastam a si mesmos”.

Além dos paralelos políticos, há um fator econômico que leva os turcos a manterem os olhos na Venezuela. “A Turquia é um importante produtor de jóias e um dos maiores importadores de ouro do mundo”, explica Sousa. “E, no ano passado, se tornou um dos parceiros comerciais mais importantes da Venezuela, porque compra muito ouro do país sul-americano.”

Índia teme que o petróleo encareça
A situação venezuelana não ganha muito destaque na imprensa da Índia, mas o setor econômico do país não perde um detalhe sobre o que ocorre no país latino-americano. O motivo é que, já há uma década, a Índia é o segundo ou terceiro maior comprador de petróleo venezuelano.

“A Índia provavelmente pode se beneficiar de sanções (dos Estados Unidos à estatal do petróleo venzuelana PDVSA), porque é outro mercado para o qual a Venezuela poderia redirecionar algumas das suas exportações”, afirma Sousa.

“(A Venezuela) não faria isso (redirecionar suas exportações) com a China, já que, segundo acreditamos, está atrasando pagamentos de dívidas contraídas com o país asiático desde maio de 2018. Então, se a Venezuela exportar mais petróleo para a China, seria simplesmente uma amortização mais rápida da dívida que contraiu, em vez de obter uma receita maior de petróleo. Já a Índia pagaria em dinheiro”.

Mesmo assim, Sousa acredita que a Venezuela poderá redirecionar para a Índia apenas uma fração de todas as suas exportações para os Estados Unidos.

O ministro do Petróleo e chefe da PDVSA, Manuel Quevedo, viajou em março para a Índia, onde diz ter tido “um encontro muito produtivo”. “Vamos continuar a trabalhar através da troca de petróleo”, afirmou.

O conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, reagiu no Twitter com uma advertência: “Os países e empresas que apoiarem o roubo que Maduro faz dos recursos venezuelanos não serão esquecidos”.

Para o especialista em estudos energéticos e ambientais do Conselho Indiano sobre relações globais Gateway House, Amit Bhandari, a preocupação da Índia é que a queda da produção venezuelana produza um aumento nos preços do petróleo. O país é o terceiro maior importador de petróleo bruto do mundo, atrás de China e dos Estados Unidos.

“A maior preocupação da Índia é que importamos cerca de 85% de todo o petróleo que consumimos. Se a Venezuela, com sua significante oferta de petróleo, ficar fora do mercado, o preço vai subir para todos, sejam clientes da Venezuela ou não” , considera Bhandari.

Zimbábue, a ‘Venezuela da África’
O interesse que a Venezuela desperta em outros países nem sempre deriva de fatores econômicos ou geopolíticos. É o caso do Zimbábue, que não é um importante parceiro comercial do país latino.

“Ambos os países foram prósperos no passado e tinham líderes pitorescos que desafiavam o Ocidente: Hugo Chávez e Robert Mugabe”, explica Shingai Nyoka, correspondente da BBC no Zimbábue.

Em 2008, o Zimbábue teve a segunda maior hiperinflação já registrada no mundo: 79.600.000.000%, de acordo com a Tabela de Hiperinflação Global da Hanke-Krus. Hoje, sua moeda caiu em desuso e as transações são feitas com moedas estrangeiras, especialmente dólares e randes sul-africanos.

A imprensa do Zimbábue está acompanhando de perto o que ocorre na Venezuela. O motivo é que, apesar dos países estarem tão longe um do outro e serem tão diferentes, a população zimbabueana compara a situação da Venezuela com a sua própria há anos.

“Os dois países têm problemas econômicos e políticos que incluem hiperinflação, escassez de alimentos e governos em desacordo com o Ocidente. O presidente Maduro e o ex-presidente Mugabe culpavam o ‘imperialismo’ pelos seus infortúnios”, diz Nyoka.

“Alguns chamam o Zimbábue de ‘a Venezuela da África”, completa.

Enquanto alguns pensam que a situação do Zimbábue deve servir de advertência para a Venezuela, mostrando o quão difícil pode ser “conservar um Estado falido”, outros pensam que Maduro “está sendo sabotado por países que querem o petróleo da Venezuela”.

“Eles acreditam que a crise econômica (da Venezuela) é produto de sanções e sabotagem – da mesma forma que acreditam que essas são as causas dos problemas econômicos do Zimbábue”, afirma Nyoka. “Acham que Maduro está pagando o preço por ter enfrentado o Ocidente.”

22 de fevereiro de 2019

SARTORI, “ZEBRA” DA DIREITA, AVANÇA NO URUGUAI!

(Sylvia Colombo – Folha de S.Paulo, 21) A corrida presidencial uruguaia começa a esquentar com os anúncios das pré-candidaturas. Num cenário em que os eleitores escolherão entre dar continuidade aos 14 anos de governo da esquerdista Frente Ampla ou optar pela alternância com alguma força de centro ou de direita, surge um opositor com o discurso de “correr por fora da política tradicional”.

​Já popularmente chamado pelos locais de “Bolsonaro uruguaio” ou “Macri uruguaio”, o bilionário Juan Sartori, 38, apresenta-se como um pré-candidato que promete acabar com o excesso de gastos sociais do atual governo —”um assistencialismo que nem os pobres querem”—, tornar o Mercosul mais flexível e menos ideologizado e romper com um governo de esquerda que, segundo ele, tornou a administração do país uma máquina lenta e ultrapassada para dar respostas a uma economia mundial mais moderna.

As linhas de seu discurso são ainda bastante genéricas, mas é inevitável ver semelhanças com os dos presidentes brasileiro e argentino. Como o último, Sartori pertence a uma das famílias mais ricas do país e diz, assim como prometia Macri, que não quer a Presidência “para me mostrar publicamente e depois tirar proveito para meus negócios”.

Sartori é fundador da Union Group, uma empresa de gestão de investimentos, principalmente na área agroprecuária, de onde vêm os principais produtos que o Uruguai exporta. A Union Group também atua nas áreas energética, de mineração, gás e construção de infraestrutura.

Assim como Macri, é ligado ao mundo do futebol, sendo um dos principais acionistas do time britânico Sunderland. É casado com Ekaterina Rybolovleva, filha de um magnata russo dono da empresa de fertilizantes Uralkali e do time francês de futebol Mônaco.

A cerimônia de casamento de ambos ocorreu na ilha grega de Skorpios, a mesma em que Aristóteles Onassis se casou com Jacqueline Kennedy.

Há pouco mais de dois anos, Sartori começou a dar palestras sobre o futuro da economia do Uruguai, animando o público local de investidores. Daí, saltou para a política e decidiu concorrer por um dos partidos mais tradicionais do país, o Nacional, de centro-direita.

Ali, disputará internamente com um desacreditado Luis Lacalle Pou, perdedor nas últimas eleições, nas primárias, que ocorrem em junho.

O empresário diz estar, por enquanto, financiando sua própria campanha. Ele esteve no último Fórum de Davos, para se encontrar com líderes e empresários. Também esteve com o presidente Jair Bolsonaro.

Segundo a imprensa uruguaia, Bolsonaro teria dito a Sartori que “varresse a esquerda do Uruguai”. Questionado sobre a veracidade da frase, Sartori disse que teve um “ótimo diálogo” com o brasileiro e que isso serviria para “nosso relacionamento no futuro”, pois via que ambos tinham várias semelhanças na visão da região.

Sobre a frase que teria sido dita por Bolsonaro a ele sobre a esquerda, apenas disse “não confirmo nem nego”.

Sartori tem feito sua campanha pensando em dois públicos. Um, o empresariado, com quem segue tendo encontros e dando palestras. Há duas semanas, esteve em Buenos Aires para uma série de reuniões com empresários locais.

O outro público tem sido o dos rincões do Uruguai e as classes populares. Fez atos junto a pequenos e médios agricultores, que reivindicam uma redução dos altos impostos.

Sartori tem realizado encontros com ele e feito cavalgadas ou caravanas em trator, vestindo roupas populares entre os camponeses e acompanhado da bela esposa russa, também vestida a caráter. Também tem visitado as periferias e torcedores dos times populares, como o Peñarol.

Em entrevista a um veículo argentino, Sartori disse que “os uruguaios cada vez veem menos oportunidades em seu país, enquanto o custo de vida está muito alto”. “Não estamos gerando um contexto em que as pessoas possam almejar uma melhora em seu padrão de vida.”

Sua crítica à Frente Ampla, partido do atual presidente, Tabaré Vázquez, é que as políticos do partido “geraram um Estado muito grande que hoje asfixia empresários e produtores, e também os trabalhadores, com cada vez mais impostos e com tarifas de serviço mais altos.”

Embora o alto custo de vida seja, de fato, uma das principais reclamações dos uruguaios, o desempenho macroeconômico do país nos últimos 14 anos são de dar inveja aos vizinhos Argentina e Brasil.

O Uruguai teve um crescimento ininterrupto, tendo crescido 3,4% em 2018, acima da média da região. Deve fechar 2019, segundo o FMI, com crescimento de 3,1%.

Outro ponto do discurso de Sartori é o aumento do número de homicídios e a sensação da falta de segurança, temas muito citados entre as preocupações dos uruguaios.

Em 2018, o número de assassinatos cresceu 66% em relação ao ano anterior, uma cifra altíssima para um país considerado tão pacato.

Sartori acusa a esquerda de não ter pulso forte suficiente em relação ao crime organizado, também aí com discursos sincronizados aos de Bolsonaro e Macri.

Ainda assim, a corrida acaba de começar, e há oito meses de campanha pela frente. Apesar de o nome de Sartori vir despontando, as pesquisas, ainda sem o nome dos candidatos dos partidos (que serão definidos nas primárias de junho), mostram a Frente Ampla na liderança, com 37% das intenções de voto, seguidas pelo partido Nacional, com 28%.

21 de fevereiro de 2019

POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS VERSUS NEOLIBERAIS E POPULISTAS!

(José Emílio Graglia, 13/02/2019) A política ruim (nem antiga nem nova, ruim) perdeu as chaves do tesouro. A boa política (nem nova, nem velha, boa) deveria procurá-las. Em toda a América Latina, isso é inovar a política: encontrar ou reencontrar as chaves que abrem o tesouro da confiança perdida. Nada mais, nada menos. Para isso é necessário que as democracias formais sejam, também, verdadeiras democracias, que os cidadãos votem e, com base nisso, que as pessoas melhorem a qualidade de suas vidas.

Hoje, a grande maioria dos latino-americanos desconfia do Poder Executivo (Governo) e do Poder Legislativo (Congresso ou Parlamento). Tampouco confia no Poder Judiciário de seus respectivos países. Segundo dados do Latinobarómetro (2018), apenas 22% confiam no Governo e 21% confiam no Congresso ou no Parlamento, enquanto apenas 24% confiam no Poder Judiciário. Ao que foi dito sobre a imensa desconfiança nos três ramos do Estado, deve-se acrescentar que 79% dos latino-americanos percebem que seus respectivos países são governados por alguns grupos poderosos em benefício próprio.

Do nosso ponto de vista, na América Latina, a desconfiança dos cidadãos é um dos resultados do pêndulo entre o neoliberalismo e o populismo. Os países da América Latina oscilaram de um extremo para o outro, sem interrupção. Os defeitos dos governos neoliberais dão lugar aos populistas e, por sua vez, os excessos dos governos populistas dão lugar aos neoliberais. Aqueles ajustam as despesas porque esses esbanjaram os recursos e, paradoxalmente, esses desperdiçam os recursos porque aqueles ajustaram as despesas. Essa oscilação de fracassos e frustrações tem prejudicado muito a eficiência econômica e o bem-estar social de nossos países.

A crítica do neoliberalismo não vai contra a economia de mercado. A rigor, admite duas abordagens diferentes: a economia liberal de mercado e a economia social de mercado. Uma coisa é aceitar o mercado como uma forma de organização econômica da sociedade e outra, muito diferente, é atribuir sua configuração política e social às forças de oferta e demanda de bens e serviços. Não se trata de negá-los, mas de regulá-los legalmente, para que a liberdade econômica não cause deslegitimação política ou desigualdade social. O neoliberalismo professa a economia liberal de mercado. Do humanismo cristão, por outro lado, aderimos à economia social de mercado.

Da mesma forma, a crítica ao populismo não vai contra a noção de povo. Pelo contrário, é uma reivindicação do povo. Segundo se diz, o populismo exalta as pessoas. Mas, na verdade, as deprecia. O povo é uma comunidade organizada de pessoas que, com base em suas diferenças, alcançam coincidências. Pelo contrário, para o populismo, o povo é uma massa uniforme de indivíduos que seguem um líder, condenando o resto à categoria de anti-povo. Não há coincidências e diferenças: existem eles e os outros, seus inimigos. O populismo prega o confronto militante. O humanismo cristão, ao contrário, adere à busc a do bem comum.

O neoliberalismo que criticamos promove um Estado ausente, que desconsidera as necessidades sociais, e uma sociedade individualista, que elimina a comunidade. O pragmatismo neoliberal despreza ou deprecia os valores. O neoliberalismo acredita no derrame dos ricos como uma fórmula para o desenvolvimento e na eficiência privada como a solução para todos os problemas. O formalismo neoliberal limita a representação às formas de instituições representativas republicanas, é institucionalista. Finalmente, para os neoliberais, a democracia parte do mérito dos indivíduos e acaba aceitando as desigualdades sociais como algo natural, por não garantir a igualdade de oportunidades.

O populismo que criticamos propicia um Estado onipresente, que assume as necessidades sociais, e uma sociedade corporativista, que suprime a pessoa. O dogmatismo populista impõe seus valores. O populismo depende da assistência aos pobres como uma fórmula para o desenvolvimento e no designo messiânico como solução para todos os problemas. O personalismo populista restringe a representação à vontade do chefe, que por sua vez é voluntarista. Finalmente, para os populistas, a democracia parte dos desejos ou intenções do líder ou caudilho e acaba por admitir a obsequiosidade política como algo lógico, por não garantir a liberdade das divergências.

20 de fevereiro de 2019

É A MESA DE SEIS PERNAS!

(Sonia Racy – Direto da Fonte – Estado de SP, 16) Pergunta que não quer calar: por que os mercados estão tão entusiasmados, batendo recordes de alta e movimentação, mesmo ante a dramática situação fiscal e previdenciária brasileira?

Esse otimismo, segundo se apurou ontem, não se restringe à expectativa favorável com relação à melhora da economia e à aprovação da reforma da Previdência – mesmo que ela não seja ainda a ideal.

O fato se deve também à forte influência positiva provocada pelo cenário externo.

Entretanto, nem todos fazem parte dessa manada que estourou apostando no bom caminho da economia de maneira generosa, minimizando os possíveis percalços políticos pela frente.

Para alguns integrantes da área financeira faltam peças importantes de sustentação nesse quebra-cabeça.

Segundo relata reconhecido investidor – também perspicaz observador histórico dos movimentos econômicos e políticos no Brasil –, o governo de Jair Bolsonaro tem se sustentado em uma mesa de seis pernas.

Três delas, segundo ele, teriam solidez. As formadas pelos militares e pela equipes de Paulo Guedes e Moro – grupos cujos objetivos e rumos são fáceis de entender.

As outras três pernas ele considera “temerárias” e as divide entre três forças diferentes. A primeira, batizada de “grupo dos templários”, incluiria os ministros da Educação, do Itamaraty, mais Olavo de Carvalho e seguidores – cuja lógica o investidor considera precária.

A segunda, denominada “saco de gatos”, é constituída pela base de apoio ao governo no Congresso, cujo preparo considera fraco e sem o sentido de uma coligação real.

“Cada parlamentar tem indicado que vai trilhar o caminho que acha melhor”, observa. E a terceira, no seu raciocínio, se resume ao núcleo familiar de Bolsonaro, que certamente “nunca tentou fazer uma DR efetiva”.

A mesa fica de pé só com 3 perna? “Por ora sim,mas para dar passos mínimos,precisará das outras”.

19 de fevereiro de 2019

“SOBRE A IDENTIDADE INTERNACIONAL DO BRASIL”!

(Celso Lafer – Estado de S.Paulo, 17) O tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da sua ação diplomática. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações da conduta externa mantêm o fio da continuidade que permite falar em identidade internacional.

No trato da identidade internacional do Brasil, tenho utilizado a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam “forças profundas”. São explicativas dos elementos históricos da continuidade de nossa política externa desde a independência que mantêm uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais, provenientes das contradições da vida e das ações políticas. É essa dimensão de coerência que esclarece, como mostrou Rubens Ricupero, o relevante papel da diplomacia na construção do Brasil, incluída a constituição mais pacífica da nossa escala continental, uma singularidade que nos diferencia de outros países de escala continental, como EUA e Rússia.

A política externa e a atividade diplomática têm como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar esses interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país.

Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Nesse contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto de vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, os fatores de persistência esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto de vista que resulta da memória de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva.

San Tiago Dantas esclarecia que a continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não acontece da mesma maneira em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais mudanças de rumo não têm os mesmos inconvenientes do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado: é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.

Essa dimensão de continuidade, estabilidade e coerência está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu chanceler, com impacto na credibilidade internacional do nosso país.

Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um Estado confessional. É, desde a República, um Estado laico. A Constituição veda à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa suscitar, de maneira inédita, o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para as tensões da intolerância da geografia das paixões religiosas, inserindo o nosso país numa problemática em que não precisa se envolver. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, nos termos da Constituição (artigo 225). Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta todos os que vivem na Terra. A sustentabilidade é uma exigência de uma economia internacionalmente competitiva, necessária para o comércio internacional dos produtos, incluídos os agrícolas, já que o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental.

O Brasil tem desde a Rio-92 uma construtiva e ativa participação na agenda internacional do meio ambiente, que se tornou um ingrediente de continuidade e coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nessa matéria do governo Bolsonaro comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional e põem em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais.

Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua a porosidade das fronteiras e propaga tensões difusas em todas as esferas. Para lidar com os desafios inerentes a essas tensões pelo caminho da efetivação dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil – entre eles a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (Constituição, artigo 4, IX) – é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito das quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar dessa participação a partir da rejeição autocentrada do “globalismo” ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo e não apenas estamos no mundo, mesmo em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isso, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos e da abertura à concessão de asilo político, diretrizes constitucionais da política externa.

Em síntese, esses exemplos, entre muitos outros, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu chanceler revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de esperar que no confronto com a realidade interna e externa essas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a sua identidade internacional.

Manifestações iniciais do governo Bolsonaro revelam dificuldade em orientar o País no mundo.

18 de fevereiro de 2019

“PALAVRAS DE SALVADOR ALLENDE PARA MADURO”!

(Ariel Dorfman foi assessor de imprensa e cultura do secretário-geral de Governo de Salvador Allende em 1973 – Folha de S.Paulo, 17)

Nicolás Maduro evoca frequentemente a figura incomparável de Salvador Allende, morto em Santiago do Chile em 1973 em um golpe apadrinhado pelos EUA.

Como alguém que trabalhou com o presidente socialista chileno nos últimos meses de seu governo, imagino assim os conselhos que Allende daria desde o outro lado da morte a seu colega venezuelano rebelde:

Senhor presidente Nicolás Maduro,

O senhor jurou que nunca será derrubado, como aconteceu comigo quando o general Pinochet liquidou a democracia em meu país e estabeleceu uma longa ditadura de 17 anos que deixou uma sequela de sangue, dor e injustiça.

Entendo seu desejo de enfatizar as semelhanças entre sua situação e a minha. Embora existam diferenças incômodas e constrangedoras entre nós, também há paralelos alarmantes.

Como na Venezuela hoje, o Chile revolucionário de 1973 estava fortemente dividido em dois campos beligerantes, com os líderes do Congresso chamando sediciosamente os militares a intervirem contra o governo constitucional, instigados pelos setores mais poderosos da sociedade, que não aceitavam que tentássemos construir uma sociedade que beneficiava a grande maioria dos cidadãos da pátria, em vez de interesses minoritários.

O experimento chileno —chegar ao socialismo por meios pacíficos— estava sob ataque por todos os lados, enfrentando problemas econômicos tremendos, se bem que nada que se compare ao desastre humanitário que assola a Venezuela hoje.

E, do mesmo modo como Nixon, Kissinger e as multinacionais ianques conspiraram contra o Chile em 1973, Trump, Pence, Pompeo e os consórcios petrolíferos insuflam a campanha contra a Venezuela, uma arrogante repetição das inúmeras intervenções de Washington promovidas incessantemente nos assuntos internos de países de todo o mundo.

Não obstante essas semelhanças entre o Chile em 1973 e a Venezuela em 2019, sinto que o senhor presta um desserviço à causa revolucionária ao equiparar-se comigo.

Durante toda minha vida fui defensor ardente da democracia: meu governo nunca restringiu a liberdade de reunião e de imprensa nem encarcerou opositores, se bem que alguns deles tivessem abusado dessa liberdade com atentados terroristas e mentiras descomunais, ajudados por milhões de dólares da CIA. E eu aceitei o resultado de cada eleição realizada durante meu mandato, sem levar em conta se me era favorável.

Uma disparidade adicional: o senhor conta com o apoio pródigo da Rússia e da China, enquanto eu, quando pedi ajuda à então União Soviética, ela não me emprestou um peso sequer (possivelmente uma revanche por eu ter condenado as invasões soviéticas da Hungria em 1956 e da Tchecoslováquia em 1968). Quanto à China, ela tinha reservas em relação a nossa revolução libertária, a ponto de Mao ter se recusado a romper relações com o regime de Pinochet.

Sua crise é complicada: ao mesmo tempo em que enfrenta a ameaça de uma revolta militar financiada e coordenada a partir do exterior, o senhor exibe tendências fortemente autoritárias com as quais eu definitivamente não me identifico.

O senhor tem razão ao rechaçar a interferência externa na Venezuela e tem razão ao denunciar as consequências funestas de as Forças Armadas se alçarem contra um governo constitucional. Mas erra ao subverter, com suas ações repressivas, a democracia que afirma estar protegendo e erra quando persegue cidadãos cujo patriotismo e amor pelos direitos humanos são indiscutíveis.

E quem pode questionar que seu governo exibe níveis preocupantes de corrupção e ineficiência? Preciso acrescentar que, para meus compatriotas que sofreram um exílio em massa sob Pinochet, é angustiante observar os vastos contingentes de seus próprios cidadãos que se sentem compelidos a deixar sua terra natal.

Como o senhor declara que sou seu herói e modelo, permita que lhe ofereça um conselho sobre como salvar a Venezuela de uma guerra civil e, ao mesmo tempo, conservar algumas das reformas bolivarianas que beneficiaram os setores miseráveis de seu país.

Cabe observar que muitos dos que hoje incitam um motim contra seu governo em nome do povo sofrido demonstraram no passado pouca preocupação com a situação de penúria e sofrimento dos venezuelanos mais carentes.

Quando o Chile estava paralisado por uma oposição disposta a tudo para me derrubar do poder, tomei a decisão de anunciar, em 11 de setembro de 1973, a convocação para um plebiscito para que o povo decidisse o rumo futuro da pátria. Se eu perdesse, renunciaria à Presidência e seriam realizadas novas eleições. Quando os golpistas tomaram conhecimento de minhas intenções —que surpresa!—, adiantaram o dia de seu golpe, provando que, longe de quererem proteger a democracia, desejavam destruí-la.

Não sei se o senhor está disposto a convocar um referendo como o que eu ia propor mais de 45 anos atrás no Chile, uma consulta que teria preservado tanto a democracia quanto a soberania nacional.

Além de poupar tanto sofrimento e sangue ao povo venezuelano, esse tipo de solução teria um efeito benéfico no resto da América Latina. Embora seja verdade que muitos dos problemas que assolam seu país se devam aos EUA, que vem boicotando e sabotando sua economia, como fez com a nossa, é inegável que sua má gestão do governo está prejudicando as forças progressistas do continente, onde o senhor é retratado como um bicho-papão, o homem do saco e do saque.

Vários movimentos de direita, incluindo na Colômbia, Argentina, Brasil e Chile, vêm conseguindo projetar-se como os únicos capazes de salvar suas pátrias de tornar-se “outra Venezuela”.

No Chile, essa campanha de terror chegou ao absurdo de a direita de origem pinochetista ter acusado a centro-esquerda que acabou com a ditadura de querer converter o país numa “Chilezuela”. Até Trump já afirmou, de modo ridículo e mal-intencionado, que apenas ele pode impedir que seu país caia no “socialismo” de Maduro.

Tais intrigas contribuíram para a ascensão de um populismo conservador e ultranacionalista que demoniza aqueles que lutam pelas transformações profundas das quais a nossa América continua a necessitar.

Não me surpreenderia ver que minha crença nas negociações e em uma revolução que valorizava os direitos de meus adversários levaram à minha morte e à queda do “caminho chileno ao socialismo”. Minha resposta desafiadora é que, agora, tantas décadas mais tarde, minha decisão de sacrificar minha vida pela democracia e por uma revolução pacífica é um exemplo leal e luminoso para os povos sedentos de liberdade e justiça social.

Tenho a esperança de que o senhor, ao refletir sobre minhas palavras, saiba encontrar uma saída desta crise que, além de prevenir uma conflagração fratricida, facilite a luta dos homens e mulheres de nossa Terra que buscam uma existência digna e decente, livre de miséria, opressão e mentiras, as grandes alamedas das quais falei quando me despedi deste mundo.

Desde o outro lado da morte e da história, eu o saúdo,

Salvador Allende

15 de fevereiro de 2019

COMO A CLEPTOCRACIA RUSSA CHEGOU À AMÉRICA (DEPOIS DA EUROPA)! E SEU INTERESSE NAS ELEIÇÕES DOS EUA! 

(Artigo na revista “THE ATLANTIC”) Por dois anos, no início dos anos 90, Richard Palmer serviu como chefe da CIA na embaixada dos Estados Unidos em Moscou. Os acontecimentos que se desenrolavam à sua volta – a dissolução da União Soviética e a ascensão da Rússia – eram tão caóticos, tão traumáticos e estimulantes que, em geral, escapavam à uma análise lúcida. Mas, com toda informação que passava por suas mãos, Palmer adquiriu uma compreensão cristalina da narrativa mais profunda daqueles tempos.

O resto do mundo queria gritar de alegria sobre a trajetória da história e como esta apontava na direção dos mercados livres e da democracia liberal. O relato de Palmer sobre os acontecimentos na Rússia, no entanto, não eram tão alegres. No outono de 1999, ele testemunhou perante um comitê do Congresso para dissuadir os membros do Congresso de seu otimismo e para avisá-los do que estava por vir.

O oficialismo americano, acreditava Palmer, julgara mal a Rússia. Washington depositou sua fé nas elites do novo regime; acreditou em suas palavras quando professaram seus compromissos com o capitalismo democrático. Mas Palmer tinha visto de perto como a crescente interconexão do mundo – e as finanças globais em particular – poderiam ser implantadas para o mal. Durante a Guerra Fria, a KGB havia desenvolvido uma compreensão especializada dos atalhos bancários do Ocidente, e seus chefes tornaram-se adeptos da distribuição de dinheiro a agentes no exterior. Essa proficiência facilitou a acumulação de novas fortunas. Nos últimos dias da URSS, Palmer observara seus antigos adversários na inteligência soviética despejar bilhões do tesouro em contas privadas em toda a Europa e nos EUA. Era um dos maiores assaltos da história.

Washington contou a si mesmo uma história reconfortante que minimizava a importância desse surto de cleptomania: Esses eram criminosos atípicos e aproveitadores desonestos correndo para explorar a fraqueza do novo Estado.

Os Estados Unidos, Palmer deixou claro, permitiram que se tornassem cúmplices dessa pilhagem. Sua avaliação foi implacável. O Ocidente poderia ter recusado esse dinheiro roubado; poderia ter estancado a saída para empresas-fantasma e paraísos fiscais. Em vez disso, os bancos ocidentais acenaram à pilhagem russa para seus cofres. A raiva de Palmer pretendia provocar um surto de introspecção – e alimentar a ansiedade pelo risco que a crescente cleptocracia representava para o próprio Ocidente. Afinal, os russos teriam um forte interesse em proteger seus ativos realocados. Eles iriam querer proteger essa riqueza de políticos americanos moralizadores que poderiam querer tomá-la. Dezoito anos antes do procurador especial Robert Mueller iniciar sua investigação sobre a interferência estrangeira nas eleições dos EUA, Palmer advertiu o Congresso sobre “doações políticas russas a políticos e partidos políticos dos EUA para obter influência”. O que estava em jogo poderia muito bem ser um contágio sistêmico: valores russos poderiam infectar e enfraquecer os sistemas de defesa moral da política e dos negócios americanos.

O colapso do comunismo nos outros estados pós-soviéticos, juntamente com a virada chinesa em direção ao capitalismo, só aumentaram as fortunas cleptocráticas que foram enviadas ao exterior por segurança e sigilo. Autoridades em todo o mundo sempre saquearam os cofres de seus países e acumularam subornos. Mas a globalização dos bancos fez com que a exportação de seu dinheiro ilícito fosse muito mais conveniente do que antes – o que, é claro, inspirou mais roubos. Segundo uma estimativa, mais de US $ 1 trilhão, agora, sai dos países em desenvolvimento a cada ano sob a forma de dinheiro lavado e impostos evadidos.

Como no caso russo, grande parte dessa riqueza saqueada chega aos Estados Unidos. Nova York, Los Angeles e Miami se juntaram a Londres como os destinos mais desejados do mundo para lavagem de dinheiro. Esse boom enriqueceu as elites americanas que o permitiram – e isso degradou os costumes políticos e sociais do país no processo. Enquanto todos os outros estavam anunciando um mundo globalista emergente que assumiria os melhores valores da América, Palmer vislumbrou o terrível risco do oposto: que os valores dos cleptocratas se tornariam próprios da América. Essa visão sombria está se tornando realidade.

O contágio se espalhou rapidamente, até de forma estável, em um país assombrado desde a sua fundação pelos perigos da corrupção. Nos meses seguintes ao testemunho de Palmer, o zeitgeist apontou na direção que ele pedia, pelo menos momentaneamente.

Nos dias após o colapso das Torres Gêmeas, o governo de George W. Bush vasculhou furiosamente Washington por ideias para serem colocadas no documento de 342 páginas que se tornaria o Ato Patriota. Se um banco se deparasse com dinheiro suspeito transferido do exterior, agora seria necessário relatar a transferência para o governo. Um banco poderia enfrentar acusações criminais por falhar em estabelecer salvaguardas suficientes contra o fluxo de dinheiro corrupto.

Muito do que Palmer insistiu virou, de repente, lei. Mas aninhado no Ato Patriota estava a obra de lobistas de outra indústria. Todos os distritos do Congresso no país têm propriedades imobiliárias, e os lobistas da área pediram isenção do monitoramento do Ato Patriota sobre transações internacionais duvidosas. E persuadiram o Congresso a conceder à indústria uma isenção temporária de ter que seguir a nova lei.

A isenção era uma brecha – e uma extraordinária oportunidade de crescimento para o mercado imobiliário de luxo. Apesar de toda a nova meticulosidade do sistema financeiro, estrangeiros ainda podiam comprar apartamentos de cobertura ou mansões anonimamente e com facilidade, escondendo-se atrás de empresas-fantasmas instaladas em estados como Delaware e Nevada. Grande parte do dinheiro que chegaram aos bancos antes do Ato Patriota se tornar lei agora era usado para comprar propriedades.

Com o tempo, a diferença entre as nobres intenções do Ato Patriota e a realidade suja do mercado imobiliário tornou-se ampla demais para ser ignorada. Em 2016, a administração de Barack Obama testou um programa para alinhar a indústria imobiliária com os bancos, obrigando os corretores a informar os compradores estrangeiros também. Mas então a presidência americana se revirou e um senhorio chegou ao poder. O sucessor de Obama gosta de vender condomínios para compradores estrangeiros anônimos – e pode ter se tornado dependente de seu dinheiro.

Em 2017, a Reuters examinou a venda das propriedades da Trump Organization na Flórida. Constatou-se que 77 das 2.044 unidades dos empreendimentos eram de propriedade de russos. Mas este é provavelmente um retrato incompleto. Mais de um terço das unidades foram vendidas para veículos corporativos, o que pode facilmente ocultar a identidade do verdadeiro proprietário.

O comportamento da elite americana também mudou com o tempo. Os membros das classes profissionais passaram competir para vender seus serviços aos cleptocratas. No curso dessa competição, eles atropelaram velhas proibições éticas, e a pressão aumentou para testar os limites da lei. Uma profissão como o Direito desenvolveu códigos éticos altamente desenvolvidos, mas esses códigos parecem ter recuado nos últimos anos. Mesmo as empresas de maior prestígio ficam preocupadas com a sobrevivência de seu modelo de negócios caro, que foi profundamente abalado pela crise financeira de 2008 e pelo corte de custos corporativo que se seguiu. Os impulsos gananciosos certamente sempre existiram no mundo dos “sapatos brancos”, mas o sentido da luta darwiniana e as normas de uma elite global corroeram os limites.

O conluio americano com a cleptocracia tem um custo terrível para o resto do mundo. Todo o dinheiro roubado, todos os impostos evadidos afundados em coberturas do Central Park e companhias de fachada de Nevada, poderiam de outra forma financiar a saúde e a infraestrutura. A roubalheira atropela as possibilidades de mercados viáveis e a democracia crível. Isso alimenta as suspeitas de que toda a ideia do capitalismo liberal é uma farsa hipócrita: enquanto o mundo é saqueado, os americanos hipócritas enriquecem com sua cumplicidade com os vigaristas.

Os Fundadores estavam preocupados que a venalidade se tornasse um procedimento padrão, e isso aconteceu. Muito antes de as suspeitas se acumularem sobre as lealdades de Donald Trump, grandes setores da elite americana – advogados, lobistas, corretores de imóveis, políticos em capitais estaduais que permitiram a criação de empresas-fantasmas – já haviam se provado servidores confiáveis de uma voraz plutocracia global. Richard Palmer estava certo: as elites saqueadoras da ex-União Soviética estavam longe de serem aproveitadoras desonestas. Elas auguraram um hábito cleptocrata que logo se tornaria generalizado. Uma amarga verdade sobre o escândalo da Rússia é que enquanto Vladimir Putin tentava influenciar a América, esta já se encontrava apontada na direção dele.