04 de julho de 2022

POR QUE OS REPUBLICANOS FICARAM TÃO EXTREMISTAS?!

(Paul Krugman – New York Times/O Estado de S. Paulo, 01) Muito antes de os republicanos indicarem Donald Trump para concorrer à presidência – e de Trump se recusar a aceitar a derrota eleitoral –, os estudiosos do Congresso Thomas Mann e Norman Ornstein declararam que o partido havia se tornado “uma aberração insurgente”, que rejeita “fatos, evidências, a ciência” e não aceita a legitimidade da oposição.

Em 2019, em uma pesquisa, especialistas graduaram partidos de todo o mundo em relação ao seu comprometimento com princípios básicos da democracia e direitos de minorias. Constatou-se que o Partido Republicano não tem nada a ver com a centro-direita de outros países ocidentais. Ele é parecido, em vez disso, com partidos autoritários, como o húngaro Fidesz e o turco AKP.

Tais análises com frequência foram rejeitadas, classificadas como exageradas e alarmistas. Mesmo neste momento, em que republicanos expressam abertamente admiração pelo governo de partido único de Viktor Orbán, encontro pessoas insistindo que o Partido Republicano não é comparável ao Fidesz.

EXTREMISMO. Por quê? Os republicanos têm manipulado legislaturas estaduais para assegurar seu controle mesmo se perderem feio no voto popular, o que segue diretamente a cartilha de Orbán. Além disso, como apontou recentemente Edward Luce no Financial Times, “em cada encruzilhada ao longo dos últimos 20 anos, os ‘alarmistas’ dos EUA estiveram corretos”.

Nos dias recentes, recebemos ainda mais lembretes do grau de extremismo que passou a acometer os republicanos. As audiências sobre o 6 de Janeiro têm constatado, com abundante detalhe, que o ataque contra o Capitólio foi parte de um esquema maior destinado a reverter o resultado da eleição, comandado de cima.

Uma Suprema Corte cheia de republicanos tem produzido um legado de decisões partidárias sobre aborto e controle de armas. Ontem, a corte limitou a capacidade do governo de proteger o meio ambiente.

A dúvida que me incomoda – à parte a dúvida sobre a própria sobrevivência da democracia americana – é por qual motivo. De onde vem esse extremismo? Comparações com a ascensão do fascismo na Europa do entreguerras são inevitáveis, mas não muito úteis.

Primeiramente, por pior que tenha sido, Trump não foi outro Hitler, nem mesmo outro Mussolini. É verdade que republicanos como Marco Rubio rotineiramente qualificam os democratas – que são social-democratas – como marxistas, e é tentador concordar com a hipérbole. A realidade, no entanto, já é ruim o suficiente e não precisa ser exagerada.

E há outro problema com comparações com o fascismo. O extremismo de direita na Europa do entreguerras irrompeu de cinzas de catástrofes nacionais: a derrota na 1.ª Guerra – ou, no caso da Itália, uma vitória pírrica com sabor de derrota, hiperinflação e recessão.

Nada disso aconteceu por aqui. Sim, tivemos uma grave crise financeira em 2008, seguida por uma recuperação indolente. Sim, existem desigualdades com consequências terríveis – desemprego, declínio social, até suicídios e vício em drogas – nas regiões abandonadas. Mas os EUA já enfrentaram coisa pior no passado sem ver um de seus grandes partidos virar as costas para a democracia.

HISTÓRICO. A guinada dos republicanos ao extremismo começou nos anos 90. Muita gente se esqueceu da caça às bruxas e das delirantes teorias de conspiração (como a que Hillary assassinou Vince Foster); das tentativas de chantagear Bill Clinton para que ele fizesse concessões políticas. E tudo isso aconteceu em um período bom, com a maioria dos americanos indicando que o país estava no rumo certo.

É um enigma. Ultimamente, passei muito tempo procurando precedentes na história – casos em que o extremismo de direita ascendeu mesmo em face à paz e prosperidade. E acho que encontrei um: a ascensão da Ku Klux Klan nos anos 1920.

É importante perceber que, ainda que essa organização tenha tomado o nome do grupo pós-Guerra Civil, ela era um movimento novo – nacionalista branco, mas muito mais aceito do que uma organização puramente terrorista. E ela chegou ao pico de seu poder – efetivamente controlando vários Estados – em um ambiente de paz e crescimento econômico.

O que é essa nova KKK? Andei lendo The Second Coming of the KKK (“A segunda vinda da KKK”), de Linda Gordon, que retrata a “política do ressentimento”, impulsionada pela revolta dos americanos brancos, rurais e habitantes de cidades pequenas contra um país em transformação. A KKK odiava imigrantes e “elites urbanas”; caracterizava-se por “suspeitar da ciência” e por “um antiintelectualismo”. Soa familiar?

Ok, o Partido Republicano não é tão ruim quanto a KKK. Mas o extremismo republicano obtém sua energia das mesmas fontes. E, em razão de ser alimentado por ressentimento contra as coisas que tornam os EUA um grande país – diversidade e tolerância – não pode haver apaziguamento ou concessão. A única alternativa é derrotá-lo.

1º de julho de 2022

ENERGIA RENOVÁVEL É O PLANO DE PAZ PARA O SÉCULO XXI!

(António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas – O Globo, 28) Nero foi acusado de tocar lira enquanto Roma ardia em chamas. Hoje, alguns líderes estão fazendo pior. Eles estão jogando combustível no fogo. Literalmente. Enquanto as consequências da invasão da Rússia na Ucrânia se propagam pelo mundo, a resposta de algumas nações à crescente crise de energia tem sido dobrar o uso de combustíveis fósseis – despejando bilhões de dólares em carvão, gasolina e gás, o que aprofunda nossa emergência climática.

Enquanto isso, os indicadores climáticos continuam a quebrar recordes, projetando um futuro de ferozes tempestades, inundações, secas, incêndios e temperaturas inabitáveis em vastas áreas do planeta. Nosso mundo enfrenta o caos climático. Novos investimentos na exploração de combustíveis fósseis e na produção de infraestrutura são ilusórios. Combustíveis fósseis não são a resposta e nunca deveriam ser. Podemos ver os danos que estamos fazendo ao planeta e às nossas sociedades. Está no noticiário diariamente e ninguém está imune.

Os combustíveis fósseis são a causa da crise climática. Energia renovável é a resposta para limitar os distúrbios climáticos e impulsionar a segurança energética. Se tivéssemos investido mais cedo e massivamente em energia renovável, não nos encontraríamos novamente a mercê dos instáveis mercados de combustíveis fósseis. Os renováveis são o plano de paz para o século 21. Mas a batalha por uma transição energética rápida e justa não está sendo travada em campo. Investidores ainda apoiam combustíveis fósseis e governos ainda distribuem bilhões para subsidiar carvão, petróleo e gás – cerca de 11 milhões de dólares a cada minuto.

Existe uma palavra que define alívio a curto prazo em vez de bem estar a longo prazo. Vício. Ainda estamos viciados em combustíveis fósseis. Pela saúde das nossas sociedades e do planeta, precisamos parar. Agora. O único caminho verdadeiro para a segurança energética, preços de energia estáveis, prosperidade e um planeta habitável está em abandonar combustíveis fósseis poluentes e acelerar a transição para energia renovável.

Para isto, pedi que os governos do G20 desfaçam infraestrutura em carvão, eliminando-a por completo em 2030, para os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e em 2040 para os demais. Tenho apelado para que os atores financeiros abandonem o financiamento do combustível fóssil e invistam em energia renovável. E proponho um plano com cinco pontos para impulsionar a energia renovável no mundo.

Primeiro, devemos instituir a tecnologia de energia renovável como um bem público global, incluindo a remoção das barreiras de propriedade intelectual para transferência de tecnologia. Segundo, devemos melhorar o acesso global às cadeias de suprimento para componentes e materiais brutos de tecnologia de energia renovável.

Em 2020, o mundo instalou 5 gigawatts de suprimento de bateria. Precisamos de uma capacidade de 600 gigawatts em 2030. Claramente, precisamos de uma coalisão global para alcançar isto. Gargalos no transporte e restrições nas cadeias de suprimento, assim como custos mais altos para lítio e outros metais estão afetando o emprego destas tecnologias e materiais justamente quando mais precisamos deles.

Terceiro, precisamos cortar a fita vermelha que atrapalha projetos solares e eólicos. Precisamos de aprovações mais rápidas e mais esforços para modernizar a matriz de eletricidade. Na União Europeia, demora-se oito anos para aprovar uma fazenda eólica; dez anos nos Estados Unidos. Na República da Coreia, projetos eólicos terrestres precisam de 22 licenças de oito ministérios diferentes.

Quarto, o mundo precisa trocar os subsídios energéticos de combustíveis fósseis para proteger as pessoas mais vulneráveis e investir em uma transição justa para um futuro sustentável.

E quinto, precisamos triplicar os investimentos em renováveis. Isto inclui bancos de desenvolvimento multilaterais e desenvolvimento de instituições financeiras, assim como bancos comerciais. Precisamos incrementar drasticamente o incentivo aos investimentos em renováveis.

Precisamos de mais urgência de todos os líderes globais. Já estamos perigosamente perto de alcançar o limite de 1,5 graus Celsius que a ciência aponta como o nível máximo de aquecimento para evitar os piores impactos climáticos. Para manter este 1,5, precisamos reduzir as emissões em 45% em 2030 e alcançar a neutralidade de carbono até a metade do século. Mas os comprometimentos nacionais atuais nos levarão a um aumento de quase 14% nesta década. Isto significa catástrofe.

A resposta está nos renováveis – para ação climática, para segurança energética e para prover eletricidade limpa para centenas de milhões de pessoas que atualmente não a tem. Os renováveis são um ganho triplo.

Não há desculpa para rejeitar uma revolução renovável. Enquanto os preços de gasolina e gás atingem níveis históricos, os renováveis estão ficando cada vez mais baratos, o tempo todo. O custo da energia solar e de baterias despencou 85% na última década. O custo da energia eólica caiu 55%. E investimento em renováveis cria três vezes mais empregos do que em combustíveis fósseis.

Claro que os renováveis não são a única resposta para a crise climática. Soluções baseadas na natureza, como reverter o desmatamento e a degradação de terra, são essenciais. Assim como os esforços para promover eficiência energética. Mas uma transição rápida para energias renováveis precisa ser nossa ambição.

Na medida em que superamos a dependência de combustíveis fósseis, os benefícios serão amplos e não apenas para o clima. Os preços da energia serão mais baixos e previsíveis, com efeitos positivos nos alimentos e na segurança econômica. Quando os preços de energia aumentam, também sobem os custos de alimentos e de todos os bens de que precisamos. Então vamos concordar que uma rápida revolução renovável é necessária para deixarmos de tocar a lira enquanto nosso futuro arde em chamas.

30 de junho de 2022

COLÔMBIA PRECISA SOBREVIVER AO POPULISMO!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 27) A Colômbia acaba de eleger seu próximo presidente, Gustavo Petro, que, apesar de sua longa carreira política, se apresenta como um forasteiro que vai desalojar do poder as elites que sempre governaram o país. O mesmo foi prometido por Andrés Manuel López Obrador, no México, Gabriel Boric, no Chile, Pedro Castillo, no Peru, Alberto Fernández, na Argentina, e por vários outros presidentes latinoamericanos.

No dia 2 de outubro, haverá eleições no Brasil e é quase certo que o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula da Silva disputarão o cargo. Além de enfrentar agressivamente seus oponentes, todos esses líderes prometem amplas mudanças institucionais e reformas econômicas. Todos também se comprometeram a reduzir fortemente a pobreza e a desigualdade. Eles serão bem sucedidos?

Não. Por várias décadas, nenhum da longa lista de predecessores que tentaram fazer mudanças permanentes e indispensáveis teve sucesso. A exceção a essa tendência foi Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, que transformaram drasticamente a Venezuela. Eles a destruíram.

POPULISMO.

O novo presidente colombiano é o mais recente membro desse clube de líderes políticos que chegam ao poder com promessas populistas que não poderão cumprir ou impor de qualquer maneira, independentemente dos custos e de outros efeitos nefastos. Além disso, terão de governar sociedades com níveis de polarização política e social que muitas vezes impossibilitam acordos e compromissos entre grupos ou segmentos da sociedade que rivalizam e não se toleram.

Como em muitas outras partes do mundo, importantes tomadas de decisão governamentais na América Latina são bloqueadas pela polarização, que se alimenta de identidades de grupo: religião, raça, gênero, região, idade, interesses econômicos, ideologias e muito mais.

Essa polarização, que sempre existiu, agora foi potencializada pela pós-verdade: o aumento da desinformação, das fake news, da manipulação e da disseminação de mensagens que provocam desconfiança.

NOVA REALIDADE.

Estes são os três “Ps” que definem as realidades políticas nestes tempos atuais: populismo (dividir e governar, prometer e vencer), polarização (o uso e abuso da discórdia) e pós-verdade (em quem acreditar?).

Governar com sucesso neste contexto torna-se ainda mais difícil quando se leva em conta a situação econômica da América Latina. A saúde das economias da região depende criticamente dos preços internacionais das matérias-primas, que constituem seus principais itens de exportação.

Quando a demanda e os preços desses produtos no mercado mundial aumentam, os governos latino-americanos obtêm recursos que alimentam os gastos públicos e, assim, aliviam os atritos políticos e sociais. Se os preços internacionais caem, o conflito político e social se intensifica. É um padrão recorrente.

CONTRAÇÃO.

Tudo parece indicar que a economia global experimentará uma forte contração e a América Latina não conseguirá evitar o impacto dos choques externos. A inflação, fenômeno até então desconhecido para a grande maioria dos jovens da região, reaparecerá após décadas em que a alta dos preços não fazia parte do cotidiano. A inflação será uma fonte perniciosa de fome, empobrecimento, desigualdade, estagnação econômica e conflito social.

Os efeitos políticos da inflação são agora agravados por uma terrível condição preexistente: a desilusão com a democracia. Milhões de latino-americanos fortemente afetados pela pandemia, pelo desemprego, pela má qualidade dos serviços públicos, pela insegurança alimentar, pela corrupção e pelo crime perderam a esperança de que as eleições e a democracia lhes deem as oportunidades que os políticos há muito lhes oferecem.

Este é o contexto em que o presidente Petro deve governar a Colômbia. Ele tem três alternativas. A primeira é dar viabilidade política a sua ambiciosa agenda de mudanças por meio de transações oportunistas com alguns líderes, partidos da oposição e grupos sociais que se opõem a ele, o que inevitavelmente exigirá que o presidente faça concessões. Aumentar essa margem de apoio será essencial e exigirá decisões bem menos virtuosas.

ACORDO NACIONAL.

A segunda alternativa é Petro propor à Colômbia um amplo e inclusivo acordo nacional. Uma aliança que permita a tomada de decisões importantes e seja sincera e possa lhe dar o apoio de que ele necessita. Novamente, isso envolve fazer concessões que podem ser difíceis de engolir para o presidente e para aqueles que o apoiaram.

A terceira opção que lhe resta é se comportar como os “presidentes 3Ps” fizeram em outras partes do mundo: enfraquecendo sorrateiramente as instituições, as normas e os freios e contrapesos que definem a democracia. Espero que a democracia colombiana sobreviva aos 3Ps.

29 de junho de 2022

MAIS SALGADA QUE O MAR E 100 VEZES MAIOR QUE A RODRIGO DE FREITAS: CONHEÇA A LAGOA DE ARARUAMA – QUE NÃO É LAGOA!

(G1, 26) Situada na Região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro, a Lagoa de Araruama – que, apesar de ser conhecida com este nome, não é uma lagoa – é um dos maiores corpos de água hipersalina (ou seja, mais salgada que a água do mar) do mundo.

O termo correto é “laguna” porque existe uma ligação com o mar. Ela é separada do Oceano Atlântico por uma comprida linha de costa, que compõe a Restinga de Massambaba, e a única ligação com o mar é pelo Canal do Itajurú, em Cabo Frio. Já sua salinidade vem do fato de que a laguna recebe mais água do mar do que consegue escoar água de seu interior para o oceano; esse processo, combinado ao clima seco da região –que faz com que a água evapore da laguna e deixe o sal –, faz com que ela fique hipersalina.

A Lagoa de Araruama se estende por 160 dos 850 quilômetros da região costeira do RJ. Além de Cabo Frio, outras cinco cidades são banhadas por suas águas salgadas: Araruama, Iguaba Grande, Saquarema, São Pedro da Aldeia e Arraial do Cabo.

A laguna tem 220 quilômetros quadrados e cerca de 630 milhões de metros cúbicos de água; como comparação, a Lagoa Rodrigo de Freitas, que fica na Zona Sul da cidade do Rio, e talvez seja a mais conhecida do estado, tem 2,4 quilômetros quadrados e cerca de 6 milhões e 200 mil metros cúbicos. Ou seja, a laguna é quase cem vezes maior que a Lagoa Rodrigo de Freitas.

Estudos apontam que a salinidade da água da laguna pode chegar ao dobro da salinidade da água do mar. De acordo com o Instituto Estadual do Ambiente, o Inea, podem ocorrer variações desse parâmetro em diferentes pontos da laguna, variando entre 33 ‰ (por mil) a 65‰, enquanto a salinidade média da água do mar é de 35%.

Além das belezas naturais que atraem banhistas e praticantes de diversos esportes como vela, stand up paddle e canoa havaiana, a Lagoa também é responsável pelo sustento de centenas de famílias de pescadores da região.

Por que é tão salgada?
O g1 conversou com o biólogo Eduardo Pimenta, bacharel em Biologia Marinha, pós-graduado em Planejamento Energético e Impactos Ambientais e Master of Sciences em Ciências da Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ, para entender o que leva a laguna a ter essa alta salinidade.

Pimenta atua há mais de 40 anos na área de impacto ambiental e já participou de diversos estudos e projetos que buscam beneficiar a Lagoa de Araruama. Ele também é presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica Lagos São João, que promove a gestão sustentável, democrática e participativa dos recursos hídricos na Região dos Lagos e Baixada Litorânea do Rio de Janeiro.

O especialista explica que o clima particular da região tem influência na salinidade da laguna. A área entre a Lagoa de Araruama e Armação dos Búzios apresenta um clima semiárido, com presença de cactos, vegetação característica de locais desérticos, e tem pouca chuva. Ele explica ainda que a laguna é parte de um estuário ou sistema estuarino, caracterizado por uma reentrância da costa para o continente onde a água doce de um rio se mistura à água salgada do oceano.

“Por ser um clima semiárido e chover muito pouco na região, principalmente no entorno da Bacia Hidrográfica da Lagoa de Araruama, entra mais água do mar pro interior da Lagoa do que sai água do interior dela para o mar. Ou seja, existe uma corrente preponderante mais forte jogando pra dentro da lagoa do que tirando água dela pro mar, porque tem muito pouco aporte de rios no interior da lagoa de Araruama. Os rios que tem não são caudalosos. Então, entrando mais água do mar e por ser um clima semiárido, essa água evapora e deixa o sal. Por isso que ela é hipersalina”, completa.

Fauna
Diversas espécies de animais podem ser encontradas dentro e no entorno da laguna. Recentemente, a presença de cavalos-marinhos foi identificada e passou a ser estudada pela Universidade Santa Úrsula. O biólogo Eduardo Pimenta destacou que o aparecimento de cavalos-marinhos é um dos indicativos de que a laguna está saudável e se recuperando.

“Existem vários animais que vivem na Lagoa e no entorno dela. Por exemplo, nós temos uma avifauna [conjunto das aves de uma região] riquíssima. Existe um grupo de estudo de aves da Região dos Lagos, que tem origem na Universidade Veiga de Almeida (Cabo Frio). O grupo vem inventariando as aves de toda a região há uma década. Mas nós também temos alguns outros animais. Os que são explorados economicamente é o pescado como perumbeba, carapicu, carapeba, tainha, parati e o camarão”, diz Eduardo Pimenta, que já publicou um livro em parceria com o ambientalista e fotógrafo Antonio Angelo Trindade Marques sobre as aves da Laguna Araruama.

“Esses são os produtos de maior valor comercial e explorados pela cadeia produtiva setorial pesqueira da Lagoa de Araruama. O camarão gosta muito de lagoa, lagunas e estuários, então é muito comum ver camarão em lagoa. Mas essas espécies de peixes são as que se sentem mais à vontade, que se sentem confortáveis e que toleram alta salinidade. Por isso, essa lista de espécies diferencia um pouco das espécies oceânicas, onde a salinidade é de 36 partes por mil litros. Então, tem uma variedade muito maior de peixes no oceano do que na própria Lagoa de Araruama pela característica hipersalina dela que condiciona uma ocorrência menor de espécies de peixes”.

Potencial turístico
A região tem um grande potencial turístico e geralmente é procurada pelas belas praias em Cabo Frio, Arraial do Cabo e Búzios, que são praias de mar aberto. Mas quem visita as praias da Lagoa também encontra um cenário paradisíaco.

Ao longo das cidades, os banhistas encontram píeres e espaços “instagramáveis” para registrar o momento da visita. Também foram espalhadas pela areia placas lembrando os visitantes da importância de preservar o meio ambiente.

Em Araruama, é possível fazer um passeio de ferryboat que sai da praia do Centro e atravessa a laguna até o distrito de Praia Seca, que possui mar aberto e é parte da Restinga de Massambaba. O trajeto é de 7 quilômetros e o tempo de travessia leva em média de 25 minutos a 30 minutos, variando a depender do peso da embarcação, do vento e das correntes marítimas.

Em Iguaba Grande, moradores e turistas podem admirar o nascer do sol privilegiado e até visitar a Ilha de Santa Rita, que fica no meio da lagoa, a cerca de 400 metros da orla. É possível chegar à ilha fazendo trajeto a pé por dentro da Lagoa. Esse caminho só pode ser feito andando a partir de um ponto específico, em frente à Câmara Municipal da cidade.

Práticas esportivas
A laguna também é muito usada para esportes, inclusive com projetos gratuitos de incentivo às práticas esportivas em algumas cidades. Em Araruama, existe um projeto gratuito que oferece modalidades esportivas diferentes como caiaque, standup paddle, Futmesa, Frescobol, Vôlei, Futevôlei, Beach Tênis.

Em Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia também há projetos que estimulam a prática de esportes na lagoa e na orla, como futebol de areia, stand up paddle, vôlei de praia e corrida, entre outras modalidades.

Questões ambientais
“Em relação a preservação ambiental, existe uma legislação. Tenho até muito orgulho de falar disso porque foi uma legislação que eu ajudei a construir quando eu era diretor do Ibama na Região dos Lagos. A gente consolidou, claro, com um grupo maior de pessoas, não fui eu sozinho. É a legislação da pesca na Lagoa de Araruama”, destaca Eduardo Pimenta.

De acordo com Pimenta, a lagoa entrou em colapso no final da década de 1990 porque a pouca eficiência do tratamento de esgoto na região deixou-a muito poluída. Com o tempo, a rede de coleta tornou-se maior e a qualidade da água melhorou: “Hoje, em 2022, um monitoramento físico ou químico de balneabilidade do corpo hídrico, feito por cientistas, comprovam que 85% das praias lagunares estão em boas e ótimas condições de saúde, de balneabilidade”, diz o pesquisador.

O Instituto Estadual do Ambiente (Inea), explica que a qualidade da água pode variar e é acompanhada com medições realizadas a cada 15 dias pelo instituto. Os resultados são disponibilizados no portal do órgão ambiental estadual. A análise da balneabilidade é feita com base nos níveis de bactérias de origem fecal (coliformes fecais ou enterococos) nas amostras de água coletadas, como recomenda a Resolução Conama 274/2000.

O biólogo reforça que também existem outros indicadores que comprovam isso, como a aparição de cavalo-marinho.

“Há quase duas décadas não ocorria e agora voltou a ocorrer como antigamente, quando a laguna tinha saúde. Hoje existe cavalo-marinho em abundância na Lagoa de Araruama e isso é um bom indicador de que a lagoa está se recuperando. Outro indicador é a produção pesqueira que aumentou demais”.

A região recebe um grande número de turistas em épocas de férias, principalmente no verão. Esse aumento também tem impacto na preservação ambiental.

“Claro que com o aumento populacional – e a região cresce assustadoramente -, aumentam os impactos oriundos da atividade humana. Seja de geração de efluentes, resíduos sólidos, resíduos líquidos… Tudo isso impacta, mas a Lagoa hoje passa por um bom momento. A Lagoa de Araruama hoje é estudada como um case de sucesso de recuperação ambiental e é um sistema tão grande e tão importante”.

O especialista atribui essa recuperação a um trabalho realizado em conjunto por diferentes órgãos e entidades. “Isso reflete em aquecimento da atividade econômica, seja pesqueira, turística, esportes náuticos, pousadas, quiosques do entorno da Lagoa de Araruama. Toda a cadeia produtiva setorial pesqueira volta a funcionar com maior propulsão, gerando trabalho, emprego e renda”, afirma.

Mesmo com os avanços em relação às questões ambientais, o futuro da laguna e o que é feito com o esgoto tratado ainda é discutido.

“O despejo desses efluentes tratados, que são água doce, num ecossistema hipersalino não tem alterado a salinidade da Lagoa de Araruama”, explica Pimenta. Ainda assim, o despejo de água doce na laguna não é o ideal, e está sendo estudada a transposição desses efluentes para outras regiões. “Já existem diversos estudos de viabilidade econômica e ambiental que comprovam a possibilidade dessas transposições, seja pra um rio ou pra zona rural ou até mesmo através de emissário submarino”, diz o biólogo.

No início de junho de 2022, o Ministério Público Federal fez uma recomendação à Prolagos, concessionária responsável pela água e esgoto de cinco cidades da Região do Lagos, com o objetivo de solucionar o antigo problema da poluição da lagoa. O MPF listou uma série de exigências para solucionar o problema da poluição da lagoa, que, segundo o órgão, ainda recebe lançamento de esgoto in natura.

Procurada pelo g1, a concessionária informou que as recomendações são resultado de uma vistoria realizada em 2019 às margens da Lagoa de Araruama para identificar pontos de lançamento de esgoto ainda não coletados.

A Prolagos disse que, desde então, iniciou uma série de investimentos, como a implantação de rede coletora no entorno da laguna, aumentando sua proteção, construção de novas elevatórias e melhorias nas estações de tratamento de esgoto.

A concessionária informou que já apresentou o plano de investimentos aos municípios e ao Ministério Público Federal onde prevê a ampliação das estações de tratamento de esgoto, implantação de rede separadora e a construção do trecho final do cinturão no entorno da Lagoa de Araruama, que iniciará no próximo mês, em julho de 2022.

28 de junho de 2022

QUEM É LEONIDAS IZA, O LÍDER INDÍGENA DE PONCHO VERMELHO QUE ASSOMBRA O GOVERNO DO EQUADOR!

(O Globo, 25) Forte, veemente e sempre vestindo seu poncho vermelho, Leonidas Iza forjou sua liderança entre os indígenas do Equador em meio ao fogo dos protestos. Hoje de volta a Quito, ele está à frente de uma mobilização que encurrala o presidente conservador Guillermo Lasso.

O líder de poucos sorrisos comandou uma revolta contra o governo em 2019, que então terminou com 11 mortos e mais de mil feridos.

Agora, Iza volta às ruas para uma nova briga: ou Lasso alivia o custo de vida — que afeta severamente as comunidades rurais — ou ele e os seus continuarão em Quito, uma cidade semiparalisada pelos protestos.

— Se (o Executivo) não resolver este problema, rios de gente continuarão a chegar à capital — desafiou o chefe de um exército de 14 mil homens e mulheres com lanças e paus capazes de abalar um governo.

Iza, de 39 anos, é um quéchua do povo Panzaleo, assentado nas províncias de Cotopaxi e Tungurahua, no coração dos Andes euatorianos. O poncho vermelho, uma trança até as costas e suas palavras flamejantes o distinguem entre os indígenas.

Teimoso e, às vezes, radical, Iza é um anarquista aos olhos do governo, mas seu povo o vê como um representante fiel e carismático de suas causas.

— Qualquer governo terá que lidar com a posição do movimento indígena e dos setores populares — disse Iza, presidente da poderosa Confederação de Nacionalidades Indígenas (Conaie), à AFP antes da eleição de Lasso em 2021.

Andrés Tapia, que o conhece há 20 anos, o descreve como um líder “determinado” em suas ideias e gentil com seus amigos.

— Sempre teve um caráter muito firme — comenta Tapia, que trabalhou com Iza em seus primeiros dias como ativista.

O ex-porta-voz da Conaie Apaawki Castro concorda e acrescenta: quer “que tudo saia milimetricamente calculado”. Seu lado sensível aparece quando canta e toca instrumentos de sopro.

Iza quer recuperar para os indígenas o poder de outros tempos quando, com suas revoltas populares, derrubavam presidentes.

Único de oito irmãos que estudou na universidade, dirigiu o Movimento Indígena e Camponês de Cotopaxi (MICC). Em 2021 tornou-se presidente da Conaie. Sua participação nos protestos de 2019 foi fundamental. Aquele “outubro negro” — como chamam os episódios as classes média e alta de Quito — foi parar no livro “Estallido”, que Iza escreveu com Tapia e Andrés Madrid.

O relato, que descreve a revolta como “épica”, resume os sentimentos do líder: “Comunismo indo-americano ou barbárie”.

Nascido na comunidade de San Ignacio, em Cotopaxi, no Sul do Equador, Iza garante que deve seu espírito guerreiro à mãe.

— Minha mãe Rosa Elvira [Salazar tinha um espírito rebelde. Ela sempre esteva nos processos comunitários, nas mobilizações, cozinhando nas mobilizações — contou em entrevista divulgada pelo MICC, na qual aparece alimentando um bezerro.

A prisão de Iza logo após o início do novo protesto alimentou as manifestações no país. O líder a descreveu como um “sequestro político”. O dirigente indígena defende a produção agrícola em detrimento da exploração mineral.

— Se conseguíssemos reorganizar a capacidade produtiva nacional, poderíamos alimentar parte do mundo — disse.

Em 2021, ele concorreu à indicação do Pachakutik , o braço político da Conaie, para as eleições presidenciais de 2021. E embora tenha perdido para Yaku Pérez —-que ficou em terceiro no primeiro turno — conseguiu entrar totalmente no radar da política equatoriana.

27 de junho de 2022

CIDADE BAIANA AFRONTOU PORTUGUESES, RESISTIU A CANHÕES E FOI 1ª CAPITAL DA ‘BAHIA BRASILEIRA’!

(Folha de SP, 24) Uma escuna militar com 26 marinheiros portugueses estava fundeada no rio Paraguaçu, principal rota fluvial entre o Recôncavo baiano e a Baía de Todos os Santos, com os canhões apontados para a Vila de Cachoeira.

As ameaças não dissuadiram os principais líderes políticos da vila, que em junho de 1822 decidiram afrontar os portugueses e a aclamar Dom Pedro de Alcântara como “regente constitucional e defensor perpétuo do Brasil”. A retaliação não tardou e a vila foi alvejada por uma saraivada de tiros e balas de canhão.

O episódio, que neste sábado (25) completa 200 anos, marcou o início de uma “Bahia brasileira” e desencadeou a guerra pela Independência no estado, que opôs os portugueses e os nascidos no Brasil em uma série de batalhas que acabaram com a vitória brasileira em 2 de julho de 1823.

“Cachoeira foi a primeira capital brasileira da Bahia. Enquanto Salvador ainda era uma capital portuguesa e submetida a Lisboa, Cachoeira formou um conselho interino que passou a governar a província”, afirma o historiador Sérgio Guerra Filho, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

A aclamação de Dom Pedro respondia a uma consulta feita pelos deputados que representavam a Bahia nas cortes de Lisboa. O documento chegou com atraso ao Brasil e, por isso, “estava muitos graus abaixo da temperatura política na Bahia”, como aponta historiador Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020).

O ponto de ebulição foi atingido em fevereiro, quando o brigadeiro português Inácio Luís Madeira de Melo virou governador em armas da Bahia sob forte resistência. Um levante foi sufocado pelas tropas portuguesas, que assassinaram a abadessa Joana Angélica no Convento da Lapa.

O triunfo português em Salvador fez com que os revoltosos buscassem abrigo no Recôncavo baiano, onde começaram a organizar uma resistência ao comando português na província.

O período entre fevereiro e junho de 1822 foi marcado por articulações políticas, pela defesa de um centro de Poder Executivo no Brasil liderado por D. Pedro e pela compra de armas, munição e pólvora.

Por isso, quando a canhoneira portuguesa aportou no rio Paraguaçu, trancando a entrada e saída de embarcações do porto de Cachoeira, os brasileiros estavam preparados para resistir.

A aclamação a D. Pedro na Câmara Municipal foi comemorada em uma missa em ação de graças na Igreja Matriz de Cachoeira, em celebração conhecida como Te Deum. Ao fim da cerimônia religiosa, foram disparados os primeiros tiros.

Além das balas de canhão que vieram da escuna, portugueses que moravam na cidade também reagiram, entrincheirados, com tiros de armas de fogo contra aqueles que celebravam a insurreição nas ruas e praças de Cachoeira.

Um dos atingidos foi Manoel Soledade, personagem cuja participação na batalha ainda hoje é um mistério. Na versão mítica, eternizada em 1931 no quadro do artista Antônio Parreiras (abaixo), Manoel teria seria o responsável pelo toque do tambor das tropas brasileiras e tombou sob o instrumento.

O historiador cachoeirano Cacau Nascimento diz que não foi bem assim: “Manoel Soledade era um intelectual negro, uma figura influente. Ele recebeu um tiro após sair da missa e ficou ferido, mas não teve participação militar nas batalhas.”

Os brasileiros reagiram para tentar neutralizar o ataque das forças portuguesas e instauraram uma Junta Interina Conciliatória e Defesa, embrião do que a partir de setembro se consolidaria em um governo paralelo da Bahia.

O clima de guerra instaurou-se na vila. A embarcação portuguesa seguiu atacando de forma violenta, atingindo edificações de Cachoeira.

A escuna canhoneira foi tomada apenas em 28 de junho, quando uma bandeira branca subiu na embarcação após ser cercada por uma flotilha improvisada com canoas e saveiros. Capitão e marujos foram presos e enviados à cadeia pública de Inhambupe, vila do sertão baiano.

A Junta de Defesa recebeu adesões de Santo Amaro e São Francisco do Conde e passou a ter pretensões mais amplas: governar a província e preparar a tomada de Salvador, ainda sob jugo português.

A escolha de Cachoeira como centro da resistência foi natural. A vila era estratégica por causa do porto, que escoava a produção de fumo, couro e algodão. Tinha na época cerca de 20 engenhos de cana-de-açúcar que se mantinham com a força de trabalho escravo.

O enfrentamento aos portugueses uniu comerciantes, coronéis, proprietários de terra e donos de engenho, que escalaram escravizados para formar parte das tropas que partiriam para cercar a capital.

“Foram vários grupos que se unificaram para a resistência. Mesmo com interesses conflitantes, eles se uniram em torno de um Brasil livre”, afirma Luís Antônio Costa Araújo, historiador e provedor da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira.

O interesse por maior autonomia se transformou em um nacionalismo que levou parte dos líderes a trocar sobrenomes lusitanos por outros com referências nativas, como Baiense, Baitinga, Morici, Baraúna, Pitombo, Tanajura, Gê Acaiaba e Dendê Bus.

Entre junho e outubro de 1822, foram criados em Cachoeira batalhões patrióticos, formados principalmente por brancos pobres, negros libertos e negros escravizados enviados pelos seus senhores.

Entre eles, estavam a Companhia dos Caçadores de Santo Amaro, os Voluntários da Vila de São Francisco e os Voluntários do Príncipe Dom Pedro, cujos soldados ficaram conhecidos como “periquitos” pelo fardamento verde.

Foi deste batalhão que participou uma das principais heroínas da guerra: Maria Quitéria de Jesus, uma jovem e exímia atiradora que se disfarçou de homem para ser aceita no batalhão.

Proibida pelo pai de se alistar no batalhão, ela vestiu um uniforme do cunhado, cortou seus cabelos e se apresentou como um homem sob a alcunha de “soldado Medeiros”. Mesmo depois de descoberta mulher, permaneceu no batalhão e lutou nas batalhas em Salvador e na foz do rio Paraguaçu.

O reforço oficial viria nos meses seguintes, quando o Exército Pacificador partiu do Rio de Janeiro com armamentos, 38 oficiais e 260 soldados para reforçar as tropas que conquistariam Salvador em 2 de julho de 1823.

Depois de 200 anos, os filhos da terra lutam para preservar o legado da resistência cachoeirense, seja pela exaltação ao passado de “cidade heroica”, seja pelas tradições dos descendentes de quilombos, inviabilizados ao longo dos últimos dois séculos.

Neste 25 de junho, como acontece desde 2007, Cachoeira passa a ser a capital da Bahia por um dia. Por mais um ano, a cidade vai exaltar a figura do caboclo, que representa a participação popular nas batalhas contra os portugueses, com desfile cívico, sambas de roda e saudações nos terreiros de Candomblé.

“O desafio é manter a tradição. Houve uma carnavalização da data, que cai em meio aos festejos de São João. A data passou a ser uma coisa mais festiva e menos cívica”, explica o escritor e artista plástico Davi Rodrigues, que tem nas tradições populares de Cachoeira o centro de seu trabalho.

Outro desafio é enfrentar a ruína econômica de uma cidade que saiu do apogeu no século 19, quando ganhou uma ponte de ferro sobre o rio Paraguaçu, ao declínio no século 20, com a derrocada do porto, da ferrovia, da indústria do fumo e dos engenhos de açúcar.

Estagnada com cerca de 30 mil habitantes, caiu de 2ª maior cidade baiana para o 83º município em população do estado.

Mitigar as desigualdades sociais e raciais são um desafio ainda maior em uma cidade com mais 80% da população negra, boa parte dela pobre. Foi só em 2020 que a cidade deu um passo na representatividade e elegeu sua primeira prefeita negra em 490 anos de história.

Para Luís Antônio Costa Araújo, a cidade heroica de Cachoeira —que com seu casario histórico é considerada Patrimônio Cultural Brasileiro— deve trabalhar para fazer do seu legado o ponto de partida para transformação econômica e social: “Isso aqui é um lugar sagrado”.

22 de junho de 2022

OS MUITOS GANHOS DO ENSINO INTEGRAL!

(O Estado de S. Paulo, 22) Por qualquer ângulo que se olhe, o ensino integral é um investimento que vale a pena. Melhoria da aprendizagem, redução de desigualdades, maior empregabilidade e salários mais altos para quem conclui a educação básica, entre outros benefícios, já haviam sido constatados em levantamentos anteriores. Uma recente pesquisa acaba de evidenciar mais um ganho ligado à oferta de ensino em tempo integral: a diminuição, em até 50,8%, das taxas de homicídios de adolescentes homens na faixa de 15 a 19 anos.

Os dados, noticiados pelo Estadão na última segunda-feira, retratam a realidade de Pernambuco, onde foram comparadas taxas de homicídio de jovens em municípios com e sem escolas de ensino em tempo integral, inclusive em Estados vizinhos. Desde 2004, a rede pernambucana investe em escolas de tempo integral, com 70% das vagas de ensino médio nesse formato de carga horária dobrada, o mais elevado índice do País.

Cada município pernambucano conta atualmente com pelo menos uma escola em horário integral. O investimento, como não poderia deixar de ser, resultou em aumento do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal indicador de qualidade do ensino brasileiro, que leva em conta o desempenho dos alunos em provas de matemática e língua portuguesa, além da aprovação ao final de cada ano letivo.

Os benefícios do ensino em tempo integral são intuitivos e ecoam o senso comum: ao permanecer mais horas na escola, crianças e adolescentes têm mais tempo de aula, de estudo e de convívio. Não surpreende, então, que aprendam mais e que sua vivência escolar seja capaz de abrir mais portas, quando terminarem o ensino médio e partirem rumo à universidade ou ao mercado de trabalho. Não por outra razão, países desenvolvidos adotam o ensino em tempo integral, enquanto a regra, na maioria das escolas brasileiras, é apenas um turno de quatro horas.

Vale registrar, porém, que a jornada mais longa, por si só, não basta. Mais do que uma escola em tempo integral, o que se busca é uma escola que ofereça educação integral, isto é, que dê conta da formação dos estudantes em diversas frentes: a cognitiva, a socioemocional, a física, a cidadã e a profissional, entre outras. Qualidade, em todos os sentidos, é a palavra-chave. Daí que uma política educacional centrada nesse modelo requer ações articuladas. Tanto os professores devem atuar em regime de dedicação integral quanto o currículo precisa ser atrativo e diferenciado, com foco no protagonismo e no projeto de vida dos jovens. Se a escola for desinteressante e de má qualidade, quem vai querer permanecer mais tempo nela?

O levantamento em Pernambuco foi realizado por pesquisadores do Insper e da Universidade de São Paulo (USP), com apoio do Instituto Natura. Assim como estudos anteriores, jogou luz sobre algo essencial nas políticas educacionais: investir em escolas de ensino em tempo integral gera resultados positivos. Ou seja, do ponto de vista dos governos e das prioridades orçamentárias, é um tipo de investimento que compensa e vale a pena. Logo, deveria servir de referência para gestores educacionais em todo o País, seja em Brasília, onde o Ministério da Educação (MEC), sob o atual governo, já demonstrou não ter projeto educacional à altura dos desafios nacionais, ou nos gabinetes das secretarias municipais e estaduais de Educação.

Não há mágica para solucionar os problemas educacionais nem é preciso reinventar a roda. O ensino em tempo integral já comprovou ser um caminho que traz avanços. Nos últimos anos, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo acordou para a importância dessa iniciativa, a exemplo de Estados como Ceará e Paraíba. Na rede estadual de São Paulo, como informou o Estadão, o número de escolas de ensino fundamental e médio em tempo integral saltou de 364, em 2018, para 2.050, um acréscimo de 463%. A meta é alcançar 3 mil unidades no ano que vem. Eis um investimento que dá resultado. O País só tem a ganhar se todas as redes de ensino seguirem esse mesmo rumo.

22 de junho de 2022

OS MUITOS GANHOS DO ENSINO INTEGRAL!

(O Estado de S. Paulo, 22) Por qualquer ângulo que se olhe, o ensino integral é um investimento que vale a pena. Melhoria da aprendizagem, redução de desigualdades, maior empregabilidade e salários mais altos para quem conclui a educação básica, entre outros benefícios, já haviam sido constatados em levantamentos anteriores. Uma recente pesquisa acaba de evidenciar mais um ganho ligado à oferta de ensino em tempo integral: a diminuição, em até 50,8%, das taxas de homicídios de adolescentes homens na faixa de 15 a 19 anos.

Os dados, noticiados pelo Estadão na última segunda-feira, retratam a realidade de Pernambuco, onde foram comparadas taxas de homicídio de jovens em municípios com e sem escolas de ensino em tempo integral, inclusive em Estados vizinhos. Desde 2004, a rede pernambucana investe em escolas de tempo integral, com 70% das vagas de ensino médio nesse formato de carga horária dobrada, o mais elevado índice do País.

Cada município pernambucano conta atualmente com pelo menos uma escola em horário integral. O investimento, como não poderia deixar de ser, resultou em aumento do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal indicador de qualidade do ensino brasileiro, que leva em conta o desempenho dos alunos em provas de matemática e língua portuguesa, além da aprovação ao final de cada ano letivo.

Os benefícios do ensino em tempo integral são intuitivos e ecoam o senso comum: ao permanecer mais horas na escola, crianças e adolescentes têm mais tempo de aula, de estudo e de convívio. Não surpreende, então, que aprendam mais e que sua vivência escolar seja capaz de abrir mais portas, quando terminarem o ensino médio e partirem rumo à universidade ou ao mercado de trabalho. Não por outra razão, países desenvolvidos adotam o ensino em tempo integral, enquanto a regra, na maioria das escolas brasileiras, é apenas um turno de quatro horas.

Vale registrar, porém, que a jornada mais longa, por si só, não basta. Mais do que uma escola em tempo integral, o que se busca é uma escola que ofereça educação integral, isto é, que dê conta da formação dos estudantes em diversas frentes: a cognitiva, a socioemocional, a física, a cidadã e a profissional, entre outras. Qualidade, em todos os sentidos, é a palavra-chave. Daí que uma política educacional centrada nesse modelo requer ações articuladas. Tanto os professores devem atuar em regime de dedicação integral quanto o currículo precisa ser atrativo e diferenciado, com foco no protagonismo e no projeto de vida dos jovens. Se a escola for desinteressante e de má qualidade, quem vai querer permanecer mais tempo nela?

O levantamento em Pernambuco foi realizado por pesquisadores do Insper e da Universidade de São Paulo (USP), com apoio do Instituto Natura. Assim como estudos anteriores, jogou luz sobre algo essencial nas políticas educacionais: investir em escolas de ensino em tempo integral gera resultados positivos. Ou seja, do ponto de vista dos governos e das prioridades orçamentárias, é um tipo de investimento que compensa e vale a pena. Logo, deveria servir de referência para gestores educacionais em todo o País, seja em Brasília, onde o Ministério da Educação (MEC), sob o atual governo, já demonstrou não ter projeto educacional à altura dos desafios nacionais, ou nos gabinetes das secretarias municipais e estaduais de Educação.

Não há mágica para solucionar os problemas educacionais nem é preciso reinventar a roda. O ensino em tempo integral já comprovou ser um caminho que traz avanços. Nos últimos anos, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo acordou para a importância dessa iniciativa, a exemplo de Estados como Ceará e Paraíba. Na rede estadual de São Paulo, como informou o Estadão, o número de escolas de ensino fundamental e médio em tempo integral saltou de 364, em 2018, para 2.050, um acréscimo de 463%. A meta é alcançar 3 mil unidades no ano que vem. Eis um investimento que dá resultado. O País só tem a ganhar se todas as redes de ensino seguirem esse mesmo rumo.

21 de junho de 2022

1822: O PRIMEIRO JORNALISTA NO BANCO DOS RÉUS!

(Isabel Lustosa, pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa – Folha de SP, 20) Quem estava vivo e ativo em 1984 ainda se lembra do clima que tomou o Brasil durante a campanha pelas Diretas Já. O comício da Candelária, no Rio, foi uma experiencia emocional e sensorial intensa até para quem estava em algum lugar distante do palanque. Era um tempo de esperança em um futuro melhor, o final de um período sombrio que nos tinha sufocado por mais de duas décadas.

Pode-se dizer que um clima parecido, em bem menores proporções, foi experimentado pelos que, às vésperas da Independência, passaram a ter acesso aos jornais e panfletos publicados pela imprensa, que fora liberada no Brasil em 1821. Essa imprensa livre, ainda que incipiente, levou adiante o movimento pelo “fico” (9 de janeiro de 1822) e fez a campanha pela primeira Constituinte brasileira.

Em maio daquele ano, o jornalista João Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de Janeiro, fez correr na cidade um abaixo-assinado e colheu 6.000 assinaturas pedindo eleições para uma Assembleia Constituinte brasileira. No mesmo documento recomendava aos subscritores que indicassem se queriam que as eleições fossem diretas ou indiretas. Dom Pedro 1º aceitou o pedido de uma Constituinte, mas não o das eleições diretas pelo qual a maior parte dos assinantes havia optado. O jornalista protestou, questionando: “Quem autorizou Sua Alteza Real a determinar o contrário do que lhe pediu o povo?”.

O protesto, publicado na edição de número 64 do Correio, em 1º de julho de 1822, levou Soares Lisboa a ser julgado por ofensa grave ao chefe do Poder Executivo, crime previsto na lei sobre abuso da liberdade de imprensa. O caso inaugurou o sistema de jurados no Brasil, que foi criado justa e exclusivamente para julgar aquele tipo de crime. João Soares Lisboa foi absolvido e, assim como os seus leitores, comemorou a vitória como prova de que o Brasil entrara de fato na era das luzes e dos direitos.

Interessante contrastar aquele longínquo julho de 1822 com o clima que o Brasil viveu com o fim da ditadura. Entre 1983 e 1984, muito mais do que 6.000 brasileiros se manifestaram pelas Diretas Já nas grandes cidades do país. Enorme foi também a nossa frustração com a escolha da eleição indireta para o pleito de 1985. Mas essa frustração foi superada pela Assembleia Constituinte, que promulgou a Constituição de 1988, dando forma de lei aos direitos reprimidos pela ditadura.

A alegria dos liberais brasileiros da Independência durou menos que a nossa. Antes mesmo do final de 1822, João Soares Lisboa e seus companheiros foram presos ou tiveram que fugir para o exterior. Exilado em Buenos Aires, Soares Lisboa pôde voltar ao Rio de Janeiro quando a Assembleia Constituinte foi inaugurada, em 3 de maio de 1823. Partiu novamente depois que, por um golpe de força, o imperador dissolveu a Assembleia, em 12 de novembro. Por ironia da história, os perseguidores do jornalista de 1822 passaram a ser perseguidos juntamente com ele em 1823.

Nós, que acreditávamos que nossos direitos estavam garantidos por leis estabelecidas há décadas, os vimos sabotados por juízes e promotores midiáticos, os quais hoje estão desmascarados e desmoralizados. No entanto nem podemos comemorar tais derrotas. Os abusos cometidos por eles criaram um ambiente de insegurança jurídica que estimula o governo que aí está a desobedecer às leis, ofender as instituições democráticas e ameaçar romper a ordem pelo uso das Forças Armadas.

João Soares Lisboa seguiu para o Recife revolucionado pela Confederação do Equador e se juntou a seu amigo Frei Caneca na luta por aquela outra independência, a do Nordeste. Homem do comércio e das letras, amante romântico dos ideais de liberdade impulsionados pelo Iluminismo, João Soares Lisboa preferiu morrer no campo de batalha a se submeter a um governo arbitrário.

20 de junho de 2022

EMPREGO E FOME!

(Luís Eduardo Assis, economista, ex-diretor de Política Monetária do Banco Central e professor de Economia da PUC-SP e FGV-SP – O Estado de S. Paulo, 20) A taxa de desemprego cravou 10,5% no trimestre terminado em abril último. Isso significa uma queda de 4,3 pontos porcentuais em relação ao mesmo período do ano passado, a redução mais forte da série histórica. Não só nos recuperamos do choque provocado pela pandemia, como voltamos para o patamar do começo de 2016.

Em 2019, quando a taxa girava em torno de 12%, o presidente Bolsonaro deu-se ares de especialista, criticou a metodologia adotada e disse que o índice do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) parecia ser feito para “enganar a população”. Não se sabe de manifestação do presidente agora que a taxa caiu.

A notícia é boa, mas não se ouvem as fanfarras. O comedimento tem razão. A queda do desemprego convive com uma forte deterioração das condições de vida da população mais pobre. Pesquisa coordenada pela Rede Penssan (II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar) registra que, em 2022, 33 milhões de pessoas sofrem de insuficiência alimentar grave – ou seja, passam fome.

Em relação à pesquisa anterior, de 2020, o número de brasileiros nessa situação aumentou nada menos que 73%. Nas famílias com renda per capita inferior a 25% do salário mínimo, a fome foi registrada em 43% dos casos (era 22,8% em 2020). O índice cai para 3% nas famílias com renda per capita acima de um salário.

É estarrecedor, não só pelo nível abjeto em que nos encontramos, como pela velocidade da deterioração. Há quem use a taxa de desemprego para desacreditar a pesquisa sobre insegurança alimentar. Se o desemprego cai, por que a fome aumenta?

A fome aumenta porque esse governo se empenhou em desmontar programas e políticas sociais focados na segurança alimentar, justamente quando os preços dos produtos agrícolas explodiram. E também porque a queda do desemprego foi acompanhada pelo declínio da renda, fruto do aumento do trabalho precário.

A média dos rendimentos reais nos últimos 12 meses até abril de 2022 ficou em R$ 2.708,50, o valor mais baixo desde outubro de 2013. A massa de rendimentos reais voltou aos níveis de 2017. Ou seja, a queda do rendimento médio foi tão grande que o aumento do emprego não evitou a redução da massa de ganhos.

A fome tem rosto, tem nome e tem endereço. Tem também origem. Essa catástrofe que nos envergonha deriva da pérfida combinação entre erros da política econômica e desprezo pelos mais pobres. As consequências políticas são visíveis nas pesquisas de opinião.

15 de junho de 2022

QUEM FOI BÁRBARA PEREIRA DE ALENCAR, REVOLUCIONÁRIA E PRIMEIRA PRESA POLÍTICA DO BRASIL!

(Fernanda Mena – Folha de SP, 11) Inimiga do rei, agitadora, revoltosa, conspiradora, liberal, sanguínea, nervosa, mulher-macho.

Uma rica sinhá sertaneja desafiou os costumes e os tabus de seu tempo e também o poder da Coroa portuguesa ao participar da articulação política que proclamou uma república no Vale do Cariri, onde o Ceará encontra Pernambuco.

Tamanha ousadia lhe rendeu a série de alcunhas que abrem este texto, mas também a denominação de patriota, e fez dela a primeira presa política do Brasil –ainda que pouca gente tenha aprendido sobre ela nas aulas de história.

Bárbara Pereira de Alencar era viúva, tinha 57 anos e cinco filhos criados quando tomou parte ativa do movimento que incendiou o Nordeste brasileiro, no rastilho das ideias iluministas de liberdade, igualdade e participação política que desembarcavam no porto do Recife.

Única mulher branca e rica proprietária de terras a participar da Revolução Pernambucana de 1817, dona Bárbara, como era conhecida, integrou a articulação precursora da Independência e da República no Brasil, uma luta que marcou sua trajetória de vitórias, derrotas e sacrifícios, antes de relegá-la ao esquecimento.

A Revolução Pernambucana foi um movimento que se opôs, de uma só vez, ao domínio português e ao regime monarquista e elaborou uma ideia de pátria para além do antigo regime e do sistema colonial, ainda que paradoxalmente mantivesse intacto o estatuto da escravidão.

Os insurgentes declararam independência da então província de Pernambuco cinco anos antes do suposto grito de dom Pedro 1º às margens do rio Ipiranga, em 1822. Derrubada a monarquia, instauraram ali uma república mais de 70 anos antes de Deodoro da Fonseca, o marechal, expulsar o imperador e a família real do Brasil em 1889.

O chamado revolucionário bateu à porta de dona Bárbara na noite de 29 de abril de 1817, quando seu filho mais novo, o então seminarista José Martiniano de Alencar, apareceu inesperadamente no Crato.

Ele havia viajado mais de 600 quilômetros desde o Seminário de Olinda, que havia se tornado uma espécie de centro irradiador das ideias iluministas derivadas da Guerra de Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789-1799).

O seminário era reduto de freis próximos da família Alencar e, particularmente, de Bárbara. Sua pregação liberal era recebida com entusiasmo pela aristocracia agrária brasileira da região, incomodada com a alta de impostos da Coroa e com o deslocamento do eixo econômico e político da colônia para o Rio de Janeiro, onde aportara a família real portuguesa em 1808, fugida das invasões de Napoleão Bonaparte na Europa.

Naquela noite de abril, o então subdiácono José Martiniano de Alencar chegou à casa da mãe, no sítio do Pau-Seco, não só como filho, mas também como emissário do novo governo revolucionário instaurado no Recife.

Sua missão era levar a conspiração ao Ceará e libertar a província do domínio português a partir do Vale do Cariri. Há registros de que sua mãe, Bárbara, teria atuado na costura de apoio entre os poderosos da região.

A articulação partia do princípio de que a vanguarda política tinha como limite a manutenção da escravatura –uma condição para colher apoio no mando local, todo escravocrata, assim como os Alencar.

Dias depois, José Martiniano deu início à insurreição política durante a missa na igreja matriz do Crato, quando subiu ao púlpito e leu o manifesto dos rebeldes patriotas.

Aplaudido, hasteou ali a bandeira branca da independência e seguiu com o público da missa para a frente da Câmara, onde o grupo deu vivas à República e “morras ao rei”, para escândalo dos apoiadores da Coroa.

José Martiniano seria depois sacralizado não pela proclamação desta República do Crato, mas como senador do Império, presidente da província do Ceará e pai do escritor romântico José de Alencar, autor de obras clássicas da literatura brasileira como “O Guarani” e “Senhora”.

A reação foi rápida, e seu foco era prender os líderes da revolução. Três deles eram filhos de Bárbara. Ela mesma, a única mulher da lista de insurgentes, foi classificada pelo juiz como “muito culpada”.

“Bárbara foi acusada de queimar papéis”, conta a historiadora Danielly Teles, pesquisadora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “Sabemos muito pouco sobre o papel dela na revolução. Bárbara é uma personagem construída e fica difícil ter noção do que ela realmente fez”, aponta.

“A participação política feminina nesse período, em que a mulher se movimenta de acordo com o que é possível, não se resume apenas a pegar em armas”, explica Teles, autora de artigo sobre Bárbara que integra o quinto dos seis volumes da coletânea “Brasil: Independências”.

Para a historiadora, Bárbara de Alencar pode ser considerada uma mulher revolucionária da época, ainda que não tenha sido a única a se engajar em lutas políticas. “Ela representou a imagem de uma mulher forte, do sertão, que fugia dos padrões estabelecidos. Uma matriarca”, diz.

O movimento republicano pernambucano foi chamado pelo historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) de a mais “linda, inesquecível, arrebatadora e inútil das revoluções brasileiras” e resistiu por 75 dias à repressão das armas da Coroa Portuguesa antes de sucumbir.

Já sua versão cearense, conspirada e celebrada em serões, jantares e encontros no salão da casa de dona Bárbara, teve vida bem mais curta: a República do Crato durou apenas oito dias até que as ordens da Coroa levassem ao hasteamento de sua bandeira onde antes se via a flâmula dos revolucionários.

A contrarrevolução foi ágil, violenta e cruel. Levou Bárbara e três de seus filhos para as masmorras do quartel-general da capital cearense, a fortaleza Nossa Senhora de Assunção, construção que batizou a cidade.

Bárbara, uma mulher descrita como alta e forte, foi tratada como troféu e exibida pedagogicamente a cada povoado ao longo dos 500 quilômetros que separam o Vale do Cariri de Fortaleza. A viúva rebelde percorreu o trajeto acorrentada e a galope, desmilinguida sob o sol de verão do sertão cearense. Esse era só o começo de seu calvário.

Nascida na cidade de Exú (Pernambuco) em 1760 em uma família rica, proprietária de terras e de negros escravizados, Bárbara de Alencar cresceu acostumada ao poder e se tornou uma mulher livre e emancipada para os padrões da época.

“Era uma mulher decidida, abastada, que aprendeu desde cedo a ser dona do próprio nariz”, diz a jornalista cearense Ariadne Araújo, autora de “Bárbara de Alencar”, para o qual, afirma, montou um quebra-cabeças sobre a heroína sertaneja diante do desafio de obter informações a seu respeito.

“Ela se casou muito cedo e com um homem 30 anos mais velho, a contragosto do pai, o que demonstrava sua personalidade obstinada”, afirma.

Casada, mudou-se para o sítio Pau Seco e passou a administrar o engenho de cachaça e rapadura e a produzir tachos contra a vontade do marido. Para o pensamento da época, essas eram atividades para homens, o que rendeu a Bárbara a imagem de mulher-macho.

“Nessa época, era o homem quem se colocava publicamente e nos negócios, mas Bárbara, ao contrário, não aceitava papel de bastidor”, diz Araújo. “Ainda assim, ela não era totalmente transgressora: estava na vanguarda de alguns comportamentos e na tradição de outros. Não era abolicionista, mas era tratada como madrinha dos seus escravos, por exemplo.”

O escritor cearense Gylmar Chaves, que pesquisa a vida de Bárbara de Alencar há mais de dez anos para uma biografia, conta que ela mantinha escravizados muito próximos.

Um deles, conhecido como Barnabé, teria sido pego e torturado pelos soldados da Coroa para revelar o paradeiro da sinhá, fugida de suas terras. “Para não traí-la, ele decepou com os dentes a própria língua e a cuspiu aos pés do torturador”, diz Chaves.

De rica e poderosa proprietária, Bárbara passou quase quatro anos em masmorras e calabouços fétidos de Fortaleza, Recife e Salvador, com o corpo machucado pelos grilhões de ferro que carregava, enfraquecida pela má alimentação e pelas crueldades de alguns carcereiros.

Todos os seus bens foram confiscados pela Coroa e leiloados. A principal propriedade da família foi arrendada pelo rival e delator dos revolucionários, padre Francisco Gonçalves Martins, segundo Araújo.

No final de 1820, Bárbara foi posta em liberdade. Também soltos, seus dois filhos mais velhos, Tristão e Carlos, retomaram a luta revolucionária. Queriam se libertar de Portugal e, portanto, derrubar dom Pedro 1º.

Outorgada em 1824, a primeira Constituição na nação recém-independente não foi aceita pelos pernambucanos, que criaram a Confederação do Equador, organizada por frei Joaquim do Amor Divino Rabelo (1779-1825), mais conhecido como frei Caneca.

A Confederação tinha em Tristão uma liderança importante e reunia outras províncias do atual Nordeste, como Piauí, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, em um regime federalista em que cada unidade manteria sua soberania e autonomia, a exemplo dos EUA.

Dom Pedro se organizou para reprimir os confederados e contratou mercenários ingleses, que promoveram um banho de sangue no Recife, executado por um exército de 3.500 homens. Segundo Araújo, os ingleses saquearam e incendiaram a capital pernambucana, último bastião da resistência, mas lideranças confederadas ainda não aceitaram a derrota.

Tristão, considerado presidente da Confederação no Ceará, foi morto dias depois pelas tropas imperialistas. Seu corpo mutilado ficou exposto por dias, postado de pé, com a mão direita decepada. Carlos, outro filho de Bárbara, também foi brutalmente assassinado, assim como outros 11 parentes do clã Alencar.

“As manifestações de poder da repressão da Coroa foram muito mais fortes e violentas em 1817 e em 1824 que durante a Inconfidência Mineira [1789]”, afirma Maria Eduarda Marques, doutora em história e curadora da exposição “Revolução de 1817”, organizada na Biblioteca Nacional por ocasião do bicentenário do levante iniciado em Pernambuco.

Exilada em uma fazenda entre o Ceará e o Piauí, Bárbara de Alencar morreu em 1832, aos 72 anos de idade. Seus restos foram sepultados na capela de Itaguá, local depois batizado de Poço das Pedras, em Campos Sales, no Ceará.

Para Marques, o Brasil vive um momento de resgate de nomes da história, e Bárbara emerge como uma figura de peso nessas descobertas. “Estamos desmistificando a história mainstream, o que abre possibilidades de uma visão mais diversificada da história brasileira e menos centrada no heroísmo clássico e nas figuras masculinas e brancas.”

Em um artigo ainda inédito, Danielly Teles lembra que, em 2014, a então presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou uma lei que ordenava que Bárbara Pereira de Alencar integrasse o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília, fazendo dela uma das poucas mulheres a receber a homenagem.

Para a pesquisadora, Bárbara de Alencar é “uma mulher que buscou pensar e fazer política, se movimentando e articulando relações em uma sociedade construída sobre as bases de um sistema de relações desiguais”.

14 de junho de 2022

RENDA É A MENOR EM 10 ANOS!

(Marcelo Reis Garcia) Entre os 5% mais pobres a queda foi de 48% desde 2012. Entre o 1% mais rico, de 6,9%.

A desigualdade no Brasil explodiu e nenhum governo (federal, estadual ou municipal) está sabendo enfrentar essa questão.

O 1% mais rico do Brasil ganha o equivalente a 38,4% do rendimento de 50% dos mais pobres.

Todas as famílias perderam desde 2012, mas entre os 5% mais pobres o rendimento despencou 48%, passando de RS 75 per capita em 2012 para RS 39 per capita.

Já o 1% mais rico saiu de RS 17 mil per capita para RS 15,9 mil per capita.

Em 2022 o Cenário é bem difícil.

O Nordeste segue com menor rendimento médio familiar, RS 843,00 enquanto a média nacional é de RS 1.353,00

Importante destacar que é a renda da família e não renda per capita.

A Desigualdade aumentou em todas as regiões, sobretudo nas norte e nordeste.

Analistas indicam escalada da desigualdade.

Constatações da PNAD a partir de minha avaliação.

1- Pressão sobre os Serviços Públicos;

2- Urgência de uma Reorganização Social para segurar a reconstrução de bases de Desenvolvimento Familiar;

3- Incapacidade total dos governos atuarem sobre desigualdade;

4- Entre 2023 e 2025 será necessário fortalecer Transferência de Renda. O esforço deveria ser por um cartão único e não pela dispersão atual;

5- Garantir condições mínimas para as equipes sociais nos municípios. Sem essas condições o trabalho não gera nenhum resultado.

13 de junho de 2022

NÃO IMPORTA DE ONDE VEM A COMIDA EM MEIO À FOME!

(Ishaan Tharoor – O Estado de S. Paulo, 10) Pense nisso como a guerra além da guerra. A invasão da Ucrânia e a ofensiva militar russa causaram destruição e deixaram dezenas de milhares de mortos. Mas a crise também teve efeitos dramáticos em todo o mundo. O efeito cumulativo dos ataques russos à Ucrânia e o bloqueio de seus portos no Mar Negro, assim como as sanções ocidentais às exportações russas, levaram à disparada dos preços em lugares distantes da zona de conflito. Nos países mais pobres da Ásia e da África, o custo de produtos básicos, como trigo e óleo de cozinha, disparou e criou tensões para as sociedades que menos podem comprá-los. Somente no Chifre da África, até 20 milhões de pessoas podem passar fome este ano em meio à escassez de alimentos e seca prolongada.

Agora, governos estrangeiros estão lutando por opções para liberar a imensa oferta de produtos agrícolas da Ucrânia, principalmente trigo. Autoridades ucranianas dizem que 20 milhões de toneladas de grãos estão presas no país.

ACORDO. Por meio de canais diplomáticos, autoridades ucranianas exploram a possibilidade de transferir o carregamento de grãos por trem para portos no Mar Báltico e para a vizinha Romênia. Mas há problemas logísticos, incluindo se esses portos têm capacidade para acomodar os encargos crescentes.

As construções da época da Guerra Fria também são um obstáculo. “Ucrânia, Rússia, Lituânia e outros ex-membros da União Soviética usam o padrão russo de bitola ferroviária (estreita)”, explica o Wall Street Journal.

Para piorar, autoridades dos EUA citam evidências de navios russos transportando grãos ucranianos “roubados” de portos sob seu controle e destruindo produtos alimentícios na Ucrânia, exacerbando a insegurança alimentar global.

Entre 2018 e 2020, a África importou 44% de seu trigo de Rússia e Ucrânia. Desde as recentes interrupções, os preços do trigo subiram 45%, segundo o Banco Africano de Desenvolvimento. A maioria dos países do continente na Assembleia Geral da ONU votou para condenar a invasão da Ucrânia.

Mas, em tempos de crise econômica, importa menos para os países distantes do conflito como eles recebem seus alimentos e quem os está enviando.

10 de junho de 2022

VALE DO JAVARI, ONDE INDIGENISTA E REPÓRTER DESAPARECERAM, É ALVO DE COBIÇA DO COMANDO VERMELHO!

(O Estado de SP, 08) A região do Vale do Javari, onde desapareceram após ameaças o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, sofre reflexos de um misto de atividades clandestinas que vai além da extração de madeira e do garimpo. Desde os anos 2000, a região passou a ser alvo de disputa entre facções de narcotraficantes brasileiros, por ser estratégica para escoamento de armas e drogas – produzidas no Peru e na Colômbia e que abastecem o mercado brasileiro e o europeu, atravessando os rios e portos brasileiros. As facções mais presentes são o Comando Vermelho (CV), originário do Rio de Janeiro, e a Família do Norte, bando criado na periferia e nas cadeias de Manaus, mas que teve como trunfo o controle da chamada Rota do Solimões por alguns anos.

Essa facção local ficou conhecida em 2017, quando comandou execuções brutais no sistema prisional do Amazonas, num sinal do que seria o rompimento do acordo nacional entre as duas maiores organizações criminosas do País, o Primeiro Comando da Capital (PCC), de origem paulista, que também tentava o controle do Solimões, e o CV. À época, a FDN era parceira do CV e executou integrantes do PCC. Atualmente, FDN e CV disputam territórios.

A FDN foi alvo de uma operação da Polícia Federal, batizada “La Muralha”, que dissecou a organização. Investigações registradas pelo Ministério Público documentaram conexões da FDN com outro agente transnacional da região, os guerrilheiros colombianos das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), do qual restam frentes dissidentes, depois da deposição de armas com acordo de paz. Segundo o MPF, eles foram fundamentais para o acesso da FDN a armamentos.

Além dessas três facções, também surgiu em Tabatinga (AM) o bando local “Os Crias”, formado a partir de 2019, por alianças entre criminosos que estavam antes ligados às maiores facções. Policiais já encontraram documentos com referências a “Os Crias” na Unidade Prisional de Tabatinga, em abril .

A presença de “Os Crias” na tríplice fronteira foi catalogada pela publicação Cartografias das Violências na Região Amazônica, publicada em fevereiro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O documento também indica que, do lado colombiano, a organização de narcotraficantes Caqueteños tem o maior controle no Amazonas.

A área em que Pereira e Phillips sumiram fica próxima à tríplice fronteira, sendo as principais cidades Santa Rosa, no Peru, Letícia, na Colômbia, e Tabatinga, no Amazonas. Os mesmos rios e igarapés onde as buscas são feitas servem aos traficantes como forma de escape. Os rios Amazonas e Javari são parte da rota. Autoridades já colheram indícios de que as organizações trabalham na extrativismo, com madeira e garimpo.

Militares dizem que as comunidades ribeirinhas e povos indígenas sofrem com a ausência do Estado e de oportunidades de renda, o que facilitou com que se alastrasse, nessa região permeável, uma mistura de atividades ilegais a girar a economia local.

As investigações em curso ainda não descartam nenhuma hipótese do paradeiro de Pereira e Phillips. A Polícia Federal concentra as apurações e recebeu apoio de militares das Forças Armadas. Um oficial relatou que as principais hipóteses são três: que ambos estejam em local isolado, provavelmente com indígenas; que tenham sofrido algum acidente; ou que tenham sido emboscados e mortos por marginais.

08 de junho de 2022

ESPÍRITO DOS MANIFESTOS DE 1977 É NECESSÁRIO!

(Merval Pereira – O Globo, 07) 1977 só foi um bom ano para a liberdade de expressão no Brasil do ponto de vista simbólico. Estávamos em uma ditadura militar e, portanto, havia censura nos meios de comunicação e nas artes. Mas havia uma incipiente, porém resistente, brisa soprando para lado certo.

Ao assumir a Presidência, Ernesto Geisel deixou saber que o compromisso do governo era com a abertura do país, embora “lenta e gradual”. O papel da imprensa, submetida a uma censura rígida, seria fundamental no projeto, que tinha, dentro dos próprios militares, seus adversários.

Ao mesmo tempo em que o secretário de imprensa, Humberto Barreto, ampliava seus contatos com jornalistas, os meios de comunicação tentavam alargar o espaço democrático da informação publicando análises e comentários que iam ficando mais explícitos.

Dois manifestos foram fundamentais para empurrar à frente a roda da História. Um, de intelectuais, pedindo o fim da censura nas artes. Outro, de jornalistas, contra a censura e a favor da liberdade de imprensa. A censura foi ficando cada vez mais anacrônica, até desaparecer.

Os jornais nasceram no século XIX, com a Revolução Industrial e a democracia representativa. A opinião pública surgiu por meio, principalmente, da difusão da imprensa, como maneira de a sociedade civil nascente se contrapor à força do Estado absolutista e legitimar suas reivindicações no campo político.

Não é à toa, portanto, que o surgimento da opinião pública está ligado ao surgimento do Estado moderno. Também não foi à toa que a censura à imprensa foi parte substantiva do controle da ditadura sobre a opinião pública. Assim como permitir a liberalização gradativa da liberdade de imprensa contribuiu para criar um ambiente propício para a abertura política.

É justamente essa a atribuição da imprensa: fazer com que o Estado conheça os desejos e as intenções da nação, e com que esta saiba os projetos e desígnios do Estado. A definição do teatrólogo americano Arthur Miller, de que “um bom jornal é uma nação conversando consigo mesma”, explica por que os governos ditatoriais ou autoritários não querem essa conversa republicana entre as diversas faces da nação.

No sistema democrático, a representação que sai das urnas é fundamental, mas a legitimidade dessa representação depende fundamentalmente da informação. O jornalismo, seja em que plataforma se apresente, continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático.

Justamente por isso é que, superada a ditadura, nos vemos agora às voltas com um governo autoritário, que tenta cercear a liberdade de expressão, seja nas artes ou no jornalismo. O governo Bolsonaro serve de exemplo dos problemas que governantes criam para incentivar a desmoralização dos meios de comunicação. O espírito dos manifestos de 1977 continua sendo necessário para defender a democracia.

07 de junho de 2022

CUIDADO COM A AMAZÔNIA, O NOSSO ARQUIPÉLAGO VERDE!

(Arminio Fraga, Beto Veríssimo e Juliano Assunção – O Globo, 05) Hoje é Dia do Meio Ambiente. Protegê-lo é, acima de tudo, garantir qualidade de vida. As florestas têm papel decisivo em nossa vida. Da harmonização do regime de chuvas que garante a produção de alimentos e a energia limpa à biodiversidade que oferece soluções para a saúde, são extensas as contribuições para nosso bem-estar. Isso sem contar seu papel no ciclo global de carbono e no equilíbrio do clima do planeta.

No Brasil, a natureza é superlativa e diversa. Há muito o que apreciar das riquezas naturais. Cabe ir além da experiência sensorial da própria visitação, que já é especial. Precisamos nos apropriar do simbolismo da natureza que nos cerca, que nos define e pode nos colocar, se cuidarmos desse patrimônio, numa posição de liderança ambiental em escala planetária, com palpáveis benefícios econômicos e políticos. A sociedade deve exigir que esse patrimônio natural seja preservado. A visão de um Brasil verde deveria balizar nossas decisões cotidianas e, principalmente, estar no cerne de nossa identidade e no centro de nosso projeto de desenvolvimento.

É com esse espírito que precisamos olhar para a Amazônia. A ciência já mostra evidências claras de que o desmatamento corre o risco de não ser reversível, o que poderá levar à savanização da Amazônia — destruímos 20% da floresta original. O desmatamento fragiliza partes importantes da floresta, que já não conseguem manter sua biomassa, emitindo mais carbono do que absorvem. É uma crise existencial que ameaça a maior floresta tropical do mundo e põe em risco a qualidade de vida dos brasileiros na Amazônia e fora dela.

A Amazônia é também residência de 28 milhões de pessoas, cujos indicadores socioeconômicos estão defasados em relação ao restante do país. É um erro comum acreditar que novos desmatamentos seriam necessários para o desenvolvimento da região. Ao contrário, já desmatamos demais, o que tem contribuído para deteriorar o ambiente econômico na Amazônia e para aumentar a criminalidade e a conivência com a ilegalidade.

A imagem de um grande arquipélago verde permite imaginar caminhos para o desenvolvimento da região. A população está distribuída em centros urbanos inseridos num mar de florestas, o que cria desafios logísticos, mas também abre a possibilidade de desenvolver atividades de manejo sustentável da floresta. A interação entre o poder público e o mercado, nesse contexto, também é necessária e ganha novos contornos. Além de suas atribuições tradicionais, o setor público tem papel crucial na proteção da floresta e na regulação do uso sustentável de recursos naturais. O setor privado também ganha novas funções, principalmente com a estruturação do mercado de carbono e com projetos de restauro florestal.

Dada a importância da floresta, a estratégia de desenvolvimento da Amazônia requer um esquema tático mais defensivo, na linha do 5-3-2: 50% de áreas protegidas como Unidades de Conservação e Terras Indígenas, 30% de áreas de florestas de pé que podem ser objeto de exploração sustentável, e os restantes 20% já desmatados (e frequentemente degradados) explorados com com consciência ambiental e social. Essa parte equivale às áreas de Espanha e Itália combinadas. É ali que devemos concentrar nossa estratégia de ataque, onde devemos privilegiar os esforços de infraestrutura, regularização fundiária, investimento e disseminação de tecnologia. Cabe tudo, desde a produção de grãos, passando por pecuária de alto desempenho, mineração industrial, silvicultura e sistemas agroflorestais, até atividades como o restauro de matas nativas, na onda da compensação de carbono.

Vamos celebrar o meio ambiente, a floresta, a Amazônia.

02 de junho de 2022

100 ANOS DE BIBI FERREIRA!

No maior equipamento cultural da América do Sul, a Cidade das Artes, homenageamos uma das maiores personalidades da arte brasileira!

Não poderia ser diferente!

Bibi Ferreira é parte da cultura do nosso país; uma professora, nossa DAMA DO TEATRO!

Sinto-me honrado de nominar esse espaço dedicado a ela no seu centenário!

O Rio de Janeiro se debruça a essa estrela que fez dos palcos a extensão de sua vida. Viveu intensamente atuando, cantando, compondo e dirigindo. Aliás, foi uma das primeiras mulheres a dirigir uma peça de teatro, o que na década de 70 era raro porque, na época, às mulheres se restringiam a atuar e não dirigir, nunca no comando. Bibi rompeu essa lógica!

Uma grande artista, uma operária cultural, uma referência para muitos!

Compartilhou seu conhecimento e humildemente ensinou a todos sua sabedoria.

Foi, é, e será a grande diva da cultura do Brasil.

Agradecemos sua generosidade e eternizamos seu legado! Lembrando sempre que a arte é redentora da humanidade.

1º de junho de 2022

COLÔMBIA DO AVESSO!

(O Estado de S. Paulo, 31) No dia 19 os colombianos escolherão o vencedor das eleições presidenciais. Desde já se conhece o grande perdedor: o establishment político. De polos opostos, o ex-guerrilheiro de esquerda Gustavo Petro (com 40% dos votos no 1.º turno) e o magnata populista de direita Rodolfo Hernández (28%) encarnam a fome por mudanças.

A Colômbia tem uma história peculiar na América Latina. Nos “anos de chumbo” ficou imune a uma ditadura militar. Por décadas o governo foi dividido entre conservadores e liberais. Durante a “onda rosa” dos anos 2000, o país optou pela linha conservadora e pró-mercado de Álvaro Uribe e seus correligionários.

A estabilidade política e o crescimento econômico contrastam com quase 50 anos de guerra civil contra milícias marxistas, além da guerra contra o narcotráfico. O incumbente uribista Iván Duque foi lento na implementação do acordo de paz e das reformas. A desigualdade, uma das maiores do mundo, despertou protestos antes da pandemia e foi agravada por ela. Fartos com a violência, a corrupção e a desigualdade, os colombianos querem mudanças. Mas a sabedoria popular adverte: cuidado com o que você deseja. Nem toda mudança é necessariamente para melhor.

Petro e Hernández têm mais em comum que o apelo às mudanças. Ambos foram prefeitos, respectivamente de Bogotá e Bucaramanga, com resultados medíocres. E ambos apresentam propostas inconsistentes e rasgos autoritários.

Se eleito, Petro será o primeiro presidente de esquerda. Ele foi duas vezes senador e concorre pela terceira vez à Presidência. Moderando o discurso, diz-se agora favorável a uma “economia de mercado social-democrata”. Mas muitas propostas permanecem radicais, como empregos públicos para todos os desempregados, gratuidade do ensino superior ou o banimento de novas explorações de óleo e gás. Ele promete financiar seus programas com mais impostos, exportações agrícolas e a receita do turismo. Mas, para que ela compense a dos hidrocarbonetos, teria de igualar o turismo argentino e brasileiro juntos.

Hernández parece ainda mais inconsistente – e autoritário. Ele só entrou para a política recentemente e pouco se sabe sobre suas propostas. Sua campanha foi simplista e agressiva, suscitando comparações com Donald Trump e Jair Bolsonaro. Ele se recusou a participar dos debates e atribui praticamente todos os problemas da Colômbia à corrupção.

O próximo presidente governará com um congresso fragmentado. A coalizão de Hernández obteve só duas cadeiras e ele promete não fazer alianças com políticos. A coalizão de Petro conseguiu o maior bloco, mas não a maioria, e ele enfrentará a desconfiança das elites econômicas e políticas.

Agora que eles terão de disputar os votos do centro, espera-se que os colombianos premiem o mais comprometido com renovações sem rupturas, ou seja, que se mostre mais apto a consolidar a paz e reformar as estruturas que perpetuam velhas insatisfações dos colombianos, como a corrupção e a desigualdade, sem debilitar os alicerces que garantiram a estabilidade política e econômica do país.

30 de maio de 2022

ESPERAR NÃO FAZ BEM ÀS CRIANÇAS!

(Rosely Sayão, psicóloga, consultora educacional – O Estado de S. Paulo, 29) Quando as escolas estavam funcionando plenamente, antes da pandemia, fui visitar duas delas, a convite. Gosto de fazer isso principalmente nos horários de entrada, recreio e saída porque é quando percebemos como se dá a convivência dos alunos no espaço escolar, quando eles estão mais livres, e se há educadores presentes nesse período.

Nas duas, escolhi a saída, e levei um susto porque fazia um bom tempo que não tinha a oportunidade de observar a dinâmica desse horário. Meu susto? O alto número de alunos que ficava muito tempo após o término das aulas aguardando que os pais fossem buscá-las. E é preciso aqui apontar que eram alunos da educação infantil e do ensino fundamental 1, ou seja, crianças.

A lembrança dessas visitas me surgiu quando li no noticiário que uma criança de 7 anos ficou presa em uma escola do interior de São Paulo por cerca de cinco horas, após as aulas terminarem, até que fosse resgatada. Criança não gosta de ser das últimas da classe ou da escola a ir para casa. E não se trata, aqui, apenas de ela ficar desgostosa ou magoada com seus pais por ter de esperar muito tempo por eles. A sensação que a criança tem, ao ver seus colegas partirem e ela ficar, é de abandono. E já sabemos, faz um bom tempo, que tal sensação, além de provocar sofrimento, pode afetar o desenvolvimento e a saúde mental da criança.

Já faz algumas décadas que os pais ficam tranquilos quando o filho está na escola, e não só pela aprendizagem que pode adquirir, mas também porque consideram que a criança está em um ambiente seguro e monitorado por adultos responsáveis. Foi assim que, pouco a pouco, muitos pais passaram a se atrasar para buscar os filhos na escola. Para algumas escolas, isso virou rotina, tanto que já oferecem atividades extracurriculares no horário.

A realidade é que muitos pais não conseguem buscar o filho pontualmente por causa do horário do trabalho. Nesses casos, é preciso buscar, na rede de apoio da família, quem possa substituir os pais nessa tarefa para que não seja a criança prejudicada. Não há rede de apoio familiar ou de amigos? Quem tem filhos precisa construir essa rede. É por isso que, hoje, faço um pedido aos pais e familiares de crianças: não deixem os filhos na escola esperando muito tempo. Não faz bem a eles essa espera. E, para a criança, 15 minutos pode durar uma eternidade.

Lembrete: em tempos de covid, não leve seu filho para a aula caso ele tenha algum sintoma. O melhor lugar para a criança doente é em casa ou na de alguém da família.

27 de maio de 2022

MORTES DE CRIANÇAS A TIROS CRESCERAM NA PANDEMIA!

(O Estado de S. Paulo, 26) As últimas três matanças em escolas – Newtown, em 2012; Parkland, em 2018; e agora Uvalde – eclipsaram o massacre da escola de ensino médio de Columbine, em 1999, quando eventos desse tipo ainda tinham o poder de chocar os EUA.

As razões para a violência são incontestáveis. Há nos EUA muito mais armas do que cidadãos – cerca de 400 milhões de armas de fogo, segundo pesquisa de 2018 realizada pelo projeto Small Arms Survey, espalhadas entre 331 milhões de habitantes. Na última década, pistolas semiautomáticas, compradas para proteção pessoal, venderam mais que fuzis e rifles, usados para caçar.

No entanto, a pandemia desencadeou uma febre ainda maior de compra de armas de fogo. A produção anual de armas nos EUA cresceu de 2,9 milhões, em 2000, para 11,3 milhões, em 2020, de acordo com relatório publicado este mês pela Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF, na sigla em inglês). A grande maioria dessas permaneceu nos EUA.

ROTINA.

O índice de violência, especialmente contra crianças, só cresceu. Os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) constataram que o número de mortes de crianças e adolescentes de até 14 anos causadas por armas de fogo cresceu aproximadamente 50%, entre o fim de 2019 e o fim de 2020.

No ano passado, mais de 1.500 crianças e adolescentes menores de 18 anos foram mortos em ações homicidas ou por disparos acidentais, em comparação com 1.380, em 2020, de acordo com o Gun Violence Archive, base de dados que registra mortes causadas por armas de fogo.

Massacres ficaram tão comuns nos EUA que só uma pequena fração chega a atrair atenção muito além das comunidades diretamente afetadas. No mesmo fim de semana da matança em Buffalo, 12 pessoas foram feridas por disparos de arma de fogo no centro de Milwaukee, perto de onde se realizava uma partida da NBA (liga de basquete).

Duas semanas antes, o proprietário e dois funcionários do motel Broadway Inn Express, em Biloxi, no Estado do Mississippi, foram mortos a tiros, e outra pessoa também recebeu um disparo fatal durante um roubo de carro.