09 de julho de 2019

2020, RIO DE BURLE MARX!

(Sergio Magalhães – O Globo, 06) No próximo ano, o Brasil e o Rio estarão no centro do pensamento urbano mundial. Milhares de visitantes de dezenas de países, além de centenas de milhares de participantes das atividades culturais que se desenvolverão na cidade, terão o Rio de Janeiro como foco.

Sob o tema “Todos os Mundos, Um Só Mundo, Arquitetura 21”, aqui serão realizados três eventos globais importantes e correlacionados: o 27º Congresso Mundial de Arquitetos UIA 2020 RIO, evento trienal, o maior da arquitetura global; a programação decorrente da designação do Rio como primeira “Capital Mundial da Arquitetura — Unesco”; e o Fórum Mundial de Cidades Unesco-UIA.

Daí emanarão propostas para as cidades brasileiras e para as cidades do mundo que enfrentam desafios comuns, como a segregação espacial, a insuficiência de serviços públicos, a questão ambiental, entre outros, apoiados nos objetivos de sustentabilidade da ONU.

Será desejável que o Rio aproveite a oportunidade para buscar recuperar sua característica histórica de promotora de bem-estar. E isso começa em recuperar a sua autoestima.

Nesse sentido, duas dimensões podem ser elencadas: uma política, outra pragmática. Na primeira, fazer do ano de 2020 o lugar para intensa reflexão sobre questões relevantes da cidade metropolitana, à luz da experiência local e internacional, buscando consensos possíveis e metas para as próximas décadas, onde se incluem, por certo, a segurança, o saneamento, a mobilidade, a moradia e os serviços públicos.

Na segunda dimensão, o preparo da cidade. É verdade que estamos acostumados a delegar aos governos todas as tarefas. Tendo o Rio sido capital, é forte esse costume. Não é mais o caso. Ante as dificuldades no âmbito público, o envolvimento da sociedade é essencial. A saída desse quadro de dependência pode decorrer de projetos específicos, ainda que modestos. Recuperar a calçada de um quarteirão, por exemplo, pelo acordo entre os moradores, dando-lhe condições de acessibilidade universal. Quem sabe as associações de bairro possam ajudar? Adotar uma pracinha, cuidando de sua manutenção, quem sabe? Oferecer nas escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas, uma disciplina sobre o bairro, a cidade, a vida urbana, quem sabe? Para além do rico patrimônio arquitetônico da Colônia ao Império, o Rio do século XX produziu obras reconhecidas pelo mundo todo, como a contribuição ímpar de Roberto Burle Marx, o expoente maior do paisagismo moderno universal.

Neste ano em que se comemoram 110 anos de seu nascimento, quem sabe poderemos iniciar a recuperação de parte de seu importante legado carioca. Obras tombadas de Burle Marx formam um roteiro único: começa nos jardins do Palácio Capanema, vai à praça do Aeroporto Santos Dumont, inclui o Parque do Flamengo, presente monumental que a cidade recebeu do talento desse artista e de gestores públicos de grande competência, chegando, depois, na obra-prima dos mosaicos de pedra portuguesa da Avenida Atlântica, em Copacabana, bairro que é a síntese do Rio para o mundo. Quem sabe lideranças empresariais fluminenses possam assumir a condução dessa tarefa espetacular, assim como Lota Macedo Soares o fez nos anos 1960? Recuperar o roteiro Burle Marx, pelo que representa na cultura e no usufruto da população de toda a metrópole, bem como no encantamento do país e do mundo, poderá ser exemplo fundamental de condução compartilhada em busca do reerguimento da cidade.

A coesão de cariocas, fluminenses e brasileiros em torno da valorização de nossas cidades é caminho de democratização do espaço urbano e de superação das enormes dificuldades a que fomos levados. Não tenhamos dúvida, recuperar nossas cidades é também condição essencial para o desenvolvimento nacional.

O RIO 2020 pode ser um marco de entendimento em momento de tanta radicalização. Quem sabe?

Nos 110 anos de seu nascimento, quem sabe iniciamos a recuperação de parte de seu importante legado carioca.

08 de julho de 2019

JOÃO GILBERTO TEVE UMA VIDA DEDICADA A APERFEIÇOAR A PERFEIÇÃO!

(Ruy Castro – Especial – Folha de S.Paulo, 07) Sua gravação do samba “Chega de Saudade”, de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, feita no Rio a 10 de julho de 1958 e distribuída sem alarde ou expectativa dois meses depois, tinha 1 minuto e 59 segundos de duração. Mas nunca tão pouco tempo de música significou tanto —dividiu a cultura brasileira em antes e depois. No mesmo espaço de tempo, João Gilberto, cantor e violonista baiano, 27 anos, saltou do nada para o centro das discussões.

Num país de comunicações precárias, aquele disco de 78 rpm alterou corações e mentes, a favor ou contra, onde fosse tocado. O canto a seco e sem ornamentos de João Gilberto não era propriamente novidade, mas, aliado ao violão que produzia um ritmo contagiante e inesperado —logo depois chamado de bossa nova—, à complexidade harmônica de Jobim e à sofisticação coloquial da letra de Vinicius, resultaram num todo revolucionário.

Meses depois, ainda em 1958, novo 78 rpm de João Gilberto, contendo o samba “Desafinado”, de Jobim e Newton Mendonça, consolidou a proposta. Havia uma nova música no ar, e João Gilberto era seu intérprete. Outras faixas, de novos e velhos compositores, foram gravadas nos meses seguintes, formando o LP “Chega de Saudade”, lançado em 1959, e que está para a bossa nova como a carta de Pero Vaz de Caminha para o Brasil.

O lançamento desses discos (e dos dois LPs seguintes, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, em 1960, e “João Gilberto”, em 1961) provocou uma onda de shows semiprofissionais em universidades, despertou o interesse maciço de rapazes e moças pelo violão, revelou inúmeras vocações vocais e pareceu tornar “antiga” a música que se fazia até então no Brasil. De súbito, a bossa nova era um “movimento” — um novo estilo, uma nova música, algo com que uma geração inteira sonhara, e que acontecera.

E da maneira mais espontânea possível. A bossa nova não apenas não contou com a TV, ainda incipiente no país, como enfrentou a resistência das emissoras de rádio, então poderosíssimas e dirigidas a um gosto mais popular — mas até elas tiveram de se render. A imprensa, a publicidade, o comportamento, tudo de repente tornou-se “bossa nova”.

No rastro de João Gilberto, jovens compositores como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell e Marcos Valle, letristas como Ronaldo Bôscoli, cantores como Alayde Costa, Claudette Soares, Leny Andrade, Pery Ribeiro, Wilson Simonal, Nara Leão e Wanda Sá, músicos como os arranjadores Moacir Santos e Eumir Deodato, pianistas Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas e Sergio Mendes, contrabaixistas Bebeto Castilho e Tião Neto, bateristas Milton Banana e Edison Machado, e muitos, muitos outros, se revelaram.

Era toda uma geração surgindo e decretando uma espécie de verão permanente na música brasileira.

Os grandes artistas que, no decorrer dos anos 50, haviam preparado o terreno para a bossa nova, como Sylvia Telles, Dick Farney, Lucio Alves, Doris Monteiro, Miltinho, Luiz Bonfá, Johnny Alf, João Donato, Billy Blanco, Dolores Duran, Maysa, Tito Madi e Os Cariocas, não ficaram imunes. Alguns se integraram com naturalidade ao movimento; outros foram injustamente condenados pelo público a um quase segundo plano. Mas, cedo ou tarde, todos tiveram seu vanguardismo reconhecido. A chegada de João Gilberto tirara tudo do lugar.

De certa forma, isso se refletiu também no plano internacional. Sua descoberta pelos músicos e cantores internacionais garantiu-lhe um culto que, começando em 1962, nunca mais parou. O LP “Getz/Gilberto”, lançado em 1964, é até hoje o álbum de jazz mais vendido da história —o que é surpreendente, por ser, na verdade, um disco de bossa nova e cantado em português! De Peggy Lee e Doris Day, naqueles tempos, a Diana Krall e Stacey Kent, passando por Frank Sinatra, não houve um grande artista, vocal ou instrumental, que não se deixasse influenciar pelo seu “blend” de voz e violão. João Gilberto teria ficado bilionário se ganhasse US$ 0, 01 por cada vez que, desde então e em qualquer país, alguém emulou ou emula seu estilo.

No Brasil, ao contrário, dedicamo-nos a cobrá-lo —por faltar a compromissos mal combinados, por não querer que o ar condicionado desafinasse seu violão, por pedir à plateia que o deixasse cantar baixinho. E por se manter fiel a um estilo e repertório que levou anos construindo e, com razão, não queria malbaratar. Esquecemo-nos de que, sempre que João Gilberto deixou seu eremitério no 30º andar de um apart-hotel no Rio, foi porque alguém o arrancou de lá— agentes, empresários, gravadoras.

Enquanto o criticávamos por faltar a shows, deixamos de ouvir o seu legado, exposto em 13 álbuns de estúdio e, até agora, quatro ao vivo. Está tudo lá —o homem por trás daquelas maravilhas nem precisava aparecer.

Assim como criou a batida de violão da bossa nova tocando sozinho no banheiro de sua irmã, em Diamantina, MG, em 1956, João Gilberto passou as últimas décadas tocando para as paredes de seu apartamento, entregue a uma missão, por definição, maluca e impossível —aperfeiçoar a perfeição.

05 de julho de 2019

QE – AFROUXAMENTO MONETÁRIO, PIB MAIOR!

(Roberto Macedo, professor sênior da USP – O Estado de S. Paulo, 04) Na literatura em inglês sobre política monetária, um quantitative easing (QE), no Brasil traduzido como afrouxamento monetário, ocorre quando um banco central adquire do setor financeiro, com expansão monetária, títulos privados ou públicos para estimular o crédito em situações marcadas por esfriamento da atividade produtiva, baixa inflação e fraca resposta a taxas básicas de juros muito baixas.

O QE foi muito usado nos EUA em resposta à crise econômica mundial que veio em 2008 e, mais recentemente, pelo Banco Central Europeu (BCE) na crise que chegou à sua jurisdição em 2012. Há poucos dias Mario Draghi, presidente do BCE, disse que pretende expandir o QE.

Bancos centrais, incluído o nosso, na sua prática ortodoxa têm como principal ferramenta a taxa básica de juros – no Brasil, a Selic –, usada para controlar a inflação. Mas aqui o Banco Central (BC), sem explicitar isso, também olha o nível de atividade, e tanto assim é que recentemente anunciou uma redução de R$ 16 bilhões dos depósitos compulsórios que os bancos mantêm no BC. O ministro Paulo Guedes falou em valor maior, de R$ 100 bilhões. Creio ser melhor fazer um QE, e bem mais forte.

A Selic está em 6,5% ao ano (a.a.). Apesar de a inflação do IPCA prevista para o fim do ano estar em 3,8% a.a., e abaixo da meta (4,25% a.a.), e a economia muito carente de estímulos, o BC vem adiando uma redução adicional da Selic. Disse que aguarda a reforma previdenciária em face dos riscos que o quadro fiscal do governo, sem essa reforma, apresenta para a política monetária.

No Brasil uma queda da Selic tem efeitos muito prejudicados pelo elevadíssimo spread bancário, que faz com que os juros em geral não caiam proporcionalmente a essa queda. Estudo da Confederação Nacional do Comércio mostrou que a Selic caiu 54,4% desde 2016 até abril deste ano, mas os juros no varejo recuaram apenas 26%. E continuam as reclamações de tomadores quanto às taxas ainda muito altas. Assim, uma queda da Selic para 5,5%, prevista pelo mercado até o fim do ano, estimularia muito pouco a economia.

A liberação de depósitos compulsórios é também afrouxamento monetário, mas um QE pode direcioná-lo para fins específicos, como investimentos em capacidade produtiva adicional, que são a principal força a impulsionar o crescimento econômico e a geração de empregos.

Em países desenvolvidos o QE passou a ser usado quando se percebeu que a taxa básica de juros, próxima de zero como a inflação, não produzia os estímulos necessários. Aqui se poderia argumentar que a Selic e a taxa de inflação não estão próximas de zero, mas vale lembrar que a economia brasileira é muito indexada, como ocorre com rendimentos pagos pelo INSS, com o salário mínimo, com reajustes salariais dos trabalhadores com contrato formal e vários preços e tarifas. Assim, esperar que a inflação e a Selic cheguem a zero para fazer um QE é inconcebível. Ambas já estão em níveis muito baixos para nossa cultura inflacionária, o estímulo de uma Selic um pouco menor não funcionaria a contento, e há assim um quadro adequado à adoção de um QE.

Haveria demanda por financiamentos estimulados por ele? Quanto ao habitacional, um dos mais estimulados pelo QE nos EUA, falei com o ex-presidente da Caixa Econômica Federal (CEF) no governo Temer, Nelson Antônio de Souza, que também nela trabalhou por 40 anos como funcionário de carreira. Dele soube que sempre houve forte demanda por esse tipo de financiamento. Soube também que a taxa de inadimplência na CEF nesse caso é de apenas 1,4%, excluído o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), mostrando que as hipotecas a serem objeto do QE são de baixo risco. O MCMV tem subsídio, é assunto da política fiscal, e não caberia num QE.

Assim, um objetivo bem adequado de um QE no Brasil seria comprar hipotecas de financiamentos habitacionais já concedidos para que estes se expandissem. O déficit habitacional é enorme e a garantia do imóvel reduz fortemente o risco da operação. A construção habitacional é forte geradora de empregos, sua cadeia produtiva é ampla, nela predominam insumos nacionais, e mesmo prontos os imóveis demandam serviços geradores de emprego.

Na redução dos compulsórios o dinheiro liberado iria para os bancos, mas estes atuam mais no financiamento do consumo das famílias e de capital de giro das empresas. Mas os juros são tão altos que absorvem rendimentos das famílias, e novo ciclo de endividamento delas ampliaria a inadimplência. O financiamento de capital de giro faz jus ao nome, pois os juros deixam tontos os devedores. E há também agiotagem oficializada nas contas de cheque especial e no rotativo de cartão de crédito, cujas taxas superam 10% ao mês (!).

Creio que o BC deveria examinar também a possibilidade de um QE alcançar contratos do BNDES de financiamento empresarial, em particular os voltados para infraestrutura. Ignoro se é possível liberar depósitos compulsórios apenas para fins específicos.

Insisto: a economia está numa situação calamitosa e é preciso financiar o investimento. A política fiscal não comporta estímulos e é necessário recorrer à política monetária. Manchetes, títulos de artigos e recado de palestra a que assisti recentemente dão um quadro atual dessa calamidade, além das más notícias da atividade econômica e do emprego: “Quanto pior, pior”, “PIB per capita volta ao valor que tinha em 2010”, “Brasil, quase 200, envelhece mal”.

Deve ficar claro que o QE que defendo deve alcançar apenas papéis e contratos privados, todos sujeitos a garantias reais como os de financiamento habitacional, e equivalentes no caso do BNDES. E estou falando de financiamentos que mesmo nas condições atuais cobram menos ou pouco mais de 10% ao ano(!).
A política fiscal não comporta estímulos e cabe recorrer à política monetária.

04 de julho de 2019

FANFARRONADAS TÊM UM PREÇO!

(Elio Gaspari – Folha de S.Paulo, 03) O retumbante Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália, aprendeu uma lição. Quando o barco Sea Watch 3 entrou à força no porto de Lampedusa com 40 refugiados líbios, ele anunciou a prisão da capitã Carola Rackete com a teatralidade do radicalismo fanfarrão. A entrada do navio no porto teria sido um “ato de guerra” praticado por uma embarcação “pirata”.

Os 40 africanos que haviam sido resgatados pelo Sea Watch em alto-mar seriam mais um lote de desesperados e Carola Rackete, mais uma ativista dessas ONGs que azucrinam os poderes estabelecidos. Nunca se sabe quando o vento da história sopra em cima de um poderoso da ocasião. O vento soprou em cima de Salvini.

O Sea Watch tem a bandeira holandesa e Carola Rackete é alemã. O ministro das Relações Exteriores de Berlim, Heiko Maas, pediu a libertação da marinheira: “Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso” —exatamente o que achou a juíza que ordenou sua soltura nesta terça (2). O governo da França classificou o ato de “histeria” e o presidente italiano recomendou que se baixasse a bola. Duas vaquinhas internacionais arrecadaram mais de 1 milhão de euros para ajudar a ONG do Sea Watch.

Os refugiados não precisam ficar na Itália e não era razoável que 40 pessoas ficassem à deriva no Mediterrâneo. As leis italianas pretendem conter o êxodo de refugiados africanos, na defesa dos interesses do país, e quando a marinheira desceu no cais de Lampedusa, populares chamaram-na de “vendida”. Um deles gritou que ela devia ser estuprada pelos negros que transportou. Coisa dos tempos de hoje. No século passado os europeus fizeram coisas piores e em 1944 o governo italiano colou cartazes mostrando um soldado simiesco com o uniforme americano saqueando obras de arte. Deixar barcos em alto mar, chamando os tripulantes de piratas metidos em atos de guerra, é um triste retorno, e Salvini percorreu-o.

Isso era o que acontecia em 1947. O governo inglês capturava navios com judeus que seguiam para a Palestina. Depois, quando a saga do navio Exodus (com Paul Newman no papel principal) tornou-se um marco na vida de Israel, tiraram o corpo fora.

Por trás do Sea Watch e das ONGs há uma rede de apoios e cumplicidades. A tripulação do barco tinha jovens franceses, holandeses e espanhóis. Nada de novo: havia uma rede clandestina e multinacional por trás de navios como o Exodus. (Nela militava Samy Cohn, que se tornou banqueiro e morreu no Brasil.) Há diferenças entre os refugiados judeus de 1947 querendo ir para a Terra Santa e os africanos de hoje querendo entrar na Europa, mas o ministro alemão que defendeu a libertação de Carola Rackete foi ao essencial: “Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso”. Os líbios do Sea Watch poderiam ter morrido no Mediterrâneo e, segundo a capitã, ameaçavam jogar-se ao mar, como faziam os africanos dos navios negreiros do século 19. Calcula-se que neste ano 600 africanos afogaram-se no Mediterrâneo.

As falas de Salvini, repudiadas na terça pela juíza, foram uma fanfarronice demagógica. O ministro tinha motivos para saber que a marinheira, uma “fora da lei”, segundo ele, não ficaria muito tempo presa. Sendo alemã, poderia ser deportada. Sabia também que os africanos não ficarão em Lampedusa. Jogou para sua plateia, mas subestimou a reação de outros países e das próprias instituições italianas. Nos dias de hoje, isso é comum.

03 de julho de 2019

LIVRO SOBRE DESIGUALDADE É O MELHOR EM ANOS, DIZ CELSO ROCHA DE BARROS!

(Celso Rocha de Barros – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 30) “Uma História de Desigualdade” é o melhor trabalho produzido pelas ciências sociais no país nos últimos anos. Caso seja sinal de uma tendência de conciliar rigor quantitativo com discussões teóricas historicamente relevantes, talvez estejamos prestes a assistir a uma grande era na reflexão sobre a sociedade brasileira.

O livro é fruto de tese de doutorado em sociologia defendida na Universidade de Brasília. O autor, Pedro H. G. Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea, venceu com essa pesquisa prêmios conferidos pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Por isso o livro é, fundamentalmente, uma tese. Tem gráfico, tem tabela —e grande parte de seu atrativo vem disso. Para quem estuda sociedade brasileira, trata-se de uma leitura obrigatória, embora a discussão sobre dados possa afastar alguns leitores.

O Brasil é um caso de grande interesse para os estudos sobre desigualdade. Já fomos o país mais desigual do mundo e continuamos no pelotão da frente em todas as medidas nesse quesito. Ao nosso lado nessa nada honrosa lista estão outros países da América Latina e países africanos extremamente pobres e/ou afetados por guerras civis.

Quando a desigualdade russa disparou nos anos 1990, lembro-me de pessoas dizendo: “se continuar assim, vai ficar igual ao Brasil”. Quando um pesquisador estrangeiro fala de “brasilianização”, o mais provável é que esteja se referindo a algum cenário de desigualdade crescente.

Nada disso é novidade, mas é raro o assunto ser tratado com dados novos e procedimentos estatísticos rigorosos.

O trabalho de Souza e de seu orientador Marcelo Medeiros (também pesquisador do Ipea) ganhou notoriedade, inicialmente, como contestação da reivindicação petista de que a desigualdade havia despencado na era Lula. A tese mostra uma notável estabilidade na fração da renda controlada pelo 1% da população mais rica.

Sem a utilização dos dados obtidos por Souza, o quadro anterior indicava grande queda da desigualdade, causada pela redução (aí sim, bem grande) da distância entre os pobres e a classe média, ou entre os pobres e os não tão pobres.

Na verdade, é possível resumir o lulismo em um gráfico com os dois resultados. Os pobres conseguiram se aproximar do meio da distribuição da renda, mas os governos petistas não encostaram na renda dos mais ricos. É a redistribuição sem conflito, bem descrita nos trabalhos de André Singer.

Se Souza e Medeiros tivessem só ajudado a compor metade desse quadro, já seria uma bela contribuição. Mas o livro é bem mais que isso.

Sob um certo aspecto, é a história de uma proporção: a parte da renda nacional que está nas mãos dos ricos. Souza foi atrás de dados de tabelas do Imposto de Renda que refletem melhor a renda dos ricos que as pesquisas domiciliares por amostragem, base dos estudos anteriores. Os ricos —e, em especial, os muito ricos— aparecem pouco nessas pesquisas, que, portanto, tendem a subestimar a desigualdade total.

De posse dos dados e após reconstruir a história da taxação da renda no Brasil, Souza reconta a evolução da proporção da renda dos brasileiros controlada pelos ricos, com atenção especial ao 1% mais rico, de 1926 a 2013.

A despeito dessa façanha, o livro é bem mais do que um bom trabalho de sistematização de dados. O que os números revelam é interessantíssimo. Não há espaço aqui para discutir todos os resultados, nem mesmo os mais interessantes, mas vale a pena citar ao menos um, com seus desdobramentos.

A desigualdade brasileira caiu nos períodos democráticos (tanto no período de 1945 a 1964 quanto na fase atual) e subiu durante as ditaduras (tanto no Estado Novo quanto no regime militar). Souza é o primeiro a dizer que não se deve interpretar esse fato apressadamente.

É possível que a democracia tenha reduzido a desigualdade, dando voz aos pobres que exigiram redistribuição; também é possível que as ditaduras tenham levado a um crescimento da desigualdade, pois reprimiram movimentos sociais pró-redistribuição, como os sindicatos. Mas em cada uma das conjunturas-chave (as transições para a democracia e para regimes autoritários), vários outros fatos também podem ter sido decisivos.

Enquanto lia, ocorreu-me uma hipótese bem mais pessimista: talvez a democracia brasileira só tenha sido capaz de se sustentar enquanto foi possível redistribuir renda. Espero que as descobertas de Souza inaugurem um bom debate sobre o tema.

O livro oferece ainda apoio parcial às teses do economista Jeffrey Williamson, que mostrou que a desigualdade na América Latina não era tão mais alta do que a europeia, no final do século 19. Nossa excepcionalidade está no fato de que perdemos a “grande equalização” que ocorreu nos países ricos durante o século 20. As comparações internacionais, a propósito, são um dos pontos fortes do livro.

Os resultados de Souza nos fazem pensar sobre o quanto a falta de democracia nos fez perder a grande equalização. Está claro, porém, que não se trata apenas disso. Afinal, a Europa passou por grandes calamidades no século 20 que acabaram por reduzir a desigualdade. As guerras mundiais, as crises econômicas e a inflação destruíram uma quantidade imensa de riqueza.

Souza chama de “Jencks-Piketty” a hipótese de que a desigualdade só cai bruscamente pela ação de grandes reviravoltas históricas (em geral, desastres). O nome é uma homenagem aos pesquisadores Christopher Jencks e Thomas Piketty.

Souza, por sinal, parece inclinado a interpretar seus resultados à luz de Jencks e Piketty, relacionando os grandes movimentos da desigualdade às grandes crises brasileiras que causaram sucessivas mudanças de regime político.

Faz sentido e é consistente com os dados, mas ainda acho que se deva dar mais uma chance à hipótese de que a democracia foi crucial para derrubar a desigualdade, tanto aqui quanto nos países ricos.

O século 20 foi uma era de calamidades, mas também dos espetaculares ganhos sociais obtidos pela social-democracia e suas variantes onde ela teve chance de se desenvolver. As duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. É difícil isolar os efeitos da democracia e os das calamidades, mas vale a pena continuar tentando.

De qualquer forma, parece claro que precisaremos levar a sério a ideia de Mangabeira Unger de que “a imaginação antecipa o trabalho da crise” e começar a pensar em soluções para o problema da desigualdade que sejam compatíveis com alguma estabilidade institucional.

Supondo, é claro, que ainda estejamos, enquanto país, interessados em reduzir nossas desigualdades. Isso já foi mais certo.

02 de julho de 2019

LEITURA DE RISCO!

(André Cáceres – Aliás – Estado de S.Paulo, 30) Quem lê com atenção a passagem do romance Anna Kariênina, de Liev Tolstoi, em que a protagonista comete suicídio, não passa incólume por essa experiência. “Os mesmos neurônios que você utiliza quando mexe as pernas e o tronco são ativados também quando você lê que Anna se jogou na frente do trem”, descreve a neurocientista cognitiva e pesquisadora da leitura Maryanne Wolf, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, em seu livro O Cérebro no Mundo Digital, lançado no Brasil pela editora Contexto. “Uma grande parte de seu cérebro foi ativada tanto pela empatia ante o desespero visceral da personagem, quanto pela ação motora de neurônios-espelho interpretando esse desespero. Quem leu essa passagem no romance de Tolstoi também se jogou.” No entanto, Wolf argumenta que somente quem leu atentamente passou por esse processo mental – e estamos perdendo a capacidade de imergir dessa forma nos livros.

Seres humanos não nasceram para ler. Diferente da linguagem, que é inata, a leitura é uma das aquisições mais importantes do Homo sapiens, característica única na natureza, que implicou em um processo de mudança da estrutura e das conexões do cérebro. Tanto que, em analfabetos, “a maior parte dos grupos de trabalho neuronais que usamos hoje para as letras e palavras são amplamente associados a tarefas visualmente semelhantes, mas funcionalmente diferentes, como a identificação de objetos ou rostos”, de acordo com Wolf.

A primeira carta de O Cérebro no Mundo Digital (o livro é dividido em epístolas e escrito com a linguagem intimista de um diálogo da autora com o leitor) se dedica a explicar didaticamente como funciona o circuito da leitura no cérebro para, nas outras cartas, detalhar como a leitura em telas de computadores, celulares, tablets – e até mesmo e-readers projetados especificamente para isso – vem perturbando esse processo intrincado e reduzindo nossa capacidade cognitiva de imergir em um texto. “A qualidade de nossa leitura não é somente um índice da qualidade de nosso pensamento, é o melhor meio que conhecemos para abrir novos caminhos na evolução cerebral de nossa espécie. Há muito em jogo no desenvolvimento do cérebro leitor e nas rápidas mudanças que caracterizam atualmente suas sucessivas evoluções.”

A escrita – e, portanto, a leitura – é uma das mais poderosas ferramentas que a humanidade já concebeu. No também recente O Mundo da Escrita, o crítico Martin Puchner mostra como ela foi sinônimo de poder ao longo dos milênios: “Os sacerdotes indianos se recusavam a escrever as histórias sagradas por medo de perder o controle sobre elas, sentimento compartilhado pelos bardos da África Ocidental, que viveram 2 mil anos depois, quase do outro lado do mundo. Os escribas egípcios adotaram a escrita, mas tentaram mantê-la em segredo, com a esperança de reservar o poder da literatura para si mesmos.” Ele perpassa a história da civilização para evidenciar como a escrita transformou o mundo irremediavelmente – até chegar à era da internet.

Os livros de Puchner e Wolf revelam, juntos, um amplo panorama do passado e um assombroso prognóstico do futuro da leitura. E ambos compartilham uma preocupação em comum: que essa ferramenta tão valiosa esteja em risco graças ao progresso tecnológico. Não que as pessoas não estejam lendo. Wolf mostra que um americano médio lê, por dia, uma quantidade de palavras equivalente à de um romance curto. “Infelizmente, é raro que essa leitura seja contínua, constante ou concentrada”, lamenta.

As telas digitais, de acordo com Wolf, oferecem obstáculos muito mais severos que o papel para alcançar a concentração, como a iluminação, a disputa pela atenção do usuário e a poluição sinestésica. E não são apenas os leitores em formação que sofrem: ao se submeter aos próprios testes, ela identificou em si mesma uma perda na capacidade de imersão.

A autora relaciona, por meio d e outros estudos, essa defasagem na qualidade da leitura à perda da capacidade de interpretação de texto e, por conseguinte, ao empobrecimento do pensamento crítico e até à redução coletiva da empatia. As sequelas para a sociedade, segundo ela, vão muito além de crises no mercado editorial, tendo efeitos práticos – e políticos – preocupantes.

Leia a seguir a entrevista que a neurocientista Maryanne Wolf concedeu ao Aliás:

Como a leitura desatenta pode afetar fisicamente a formação do cérebro a longo prazo?

A atenção inicia o resto do que acontecerá no circuito leitor. Se você está parcialmente atento, o circuito não funciona de modo ideal. Por exemplo, há uma relação entre atenção e memória. Quando você não está atento, não consolida a informação de modo que a lembre. Se não há essa consolidação, você não tem como fazer analogias, porque o cérebro está sempre comparando o que já sabe com informações novas. Se você lê com atenção parcial, não será capaz de inferir o que é verdade e fica mais vulnerável às informações falsas, menos capaz de ler crítica e analiticamente.

Um leitor experiente também pode perder sua habilidade com o tempo?

Eu testei a mim mesma e foi realmente frustrante descobrir que eu estava me tornando cognitivamente impaciente, e com essa impaciência eu não conseguia ficar tão facilmente imersa em minha leitura. Então temos de tomar cuidado.

O que mais impacta a qualidade da leitura: a mídia em que se lê ou o ambiente ao redor?

O principal impacto é o que você está conscientemente optando por fazer. Seja em um café lotado ou no conforto da sua casa, se seu propósito é realmente ir o mais profundo que puder, essa será sua prioridade. Mas nossa atenção pode ser facilmente distraída. Quando você está em um ônibus ou no metrô, pode mergulhar numa leitura profunda, mas é menos fácil de fazê-lo.

Quando a sra. afirma que a leitura profunda é mais difícil de ser alcançada por meio de telas, também se refere a dispositivos específicos para leitura, como o Kindle e outros e-readers?

Qualquer mídia tem suas vantagens e desvantagens, mas mesmo dentro do mesmo tipo há diferenças. Por exemplo, é diferente ler em uma página da internet, em um Kindle ou em seu celular. A realidade é que mesmo em um Kindle ainda há uma desvantagem em relação ao livro físico, para além dos aspectos sinestésico e tátil do papel. Dito isso, o Kindle é preferível a uma tela comum, no sentido de não oferecer a mesma competição pela atenção, o que aumenta a qualidade da concentração. As pesquisas ainda são incipientes com o e-reader, mas mostram que ele chega muito mais próximo do tipo de leitura profunda que queremos para os leitores. Porém há menos compreensão sobre a sequência das informações. Mas independentemente da mídia em que se lê, nós temos a habilidade de ler profundamente se esse for nosso propósito.

Como podemos usar a tecnologia para melhorar nossa leitura, já que não é possível regredir?

Muitas pessoas estão compreendendo que não podemos voltar atrás no progresso tecnológico. Então eu acredito que precisamos educar nossas crianças para que elas aprendam a ler profundamente em papel, mas que sejam ensinadas a ler conscientemente em telas com o máximo de propósito. Eu creio que possamos fazer isso. E acredito que há aspectos da tela que sejam muito benéficos. Trabalho com dislexia, e é maravilhoso que algumas de nossas crianças disléxicas possam usar as características das telas para ajudá-las a ler, aumentando as fontes ou o espaçamento entre as palavras. Há também empresas de tecnologia que estão tentando usar o conhecimento de pesquisadores como eu para aprimorar suas telas. Todos nós estamos em um momento de transição. Se eu puder aconselhar as pessoas, diria para ler o máximo possível em papel até que apareçam telas que permitam mais facilmente a leitura profunda. Independente do quão dominantes as telas sejam em nossas vidas, não deixe que elas sejam tudo.

01 de julho de 2019

EM LIVRO, SOCIÓLOGA EXPLICA DOMÍNIO CONSERVADOR NA WEB!

(O Estado de S. Paulo, 30) Jen Schradie é socióloga e professora do Observatório Sociológico da Mudança, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), e lançou um livro para explicar como os grupos conservadores se beneficiam mais das redes sociais.

O livro The Revolution that Wasn’t: How Digital Activism Favors Conservatives (“A revolução que não houve: como o ativismo digital favorece os conservadores”, em tradução livre) aponta que o uso das redes sociais é desigual – e essas desigualdades são determinantes para o sucesso do ativismo digital.

Mestre por Harvard e PhD pela Universidade da Califórnia Berkeley, Schradie analisou 30 grupos políticos na Carolina do Norte, nos EUA, para identificar quais tendem a ser mais bem-sucedidos na internet. Ela questiona o quanto a internet abre portas para uma sociedade mais plural.

Segundo a pesquisadora, desigualdades, ideologias e instituições moldam a participação na nova sociedade da informação. Em 2010 e 2011, segundo ela, o foco no estudo de ativismo digital estava nos grupos de esquerda, impulsionados pela Primavera Árabe e pelo movimento Occupy Wall Street. Schradie decidiu olhar para o outro lado.

“Vejo a internet neutra, similar a outras formas de comunicação como telefone, rádio ou jornal, se você pensar na tecnologia de forma genérica. Mas havia uma ideia, num tempo mais utópico, de que a internet permitiria um movimento político social porque, diferentemente dos jornais, por exemplo, poderia ser feita por muitas pessoas para muitas pessoas, numa comunicação ao mesmo tempo. Mas, como as outras ferramentas, ela exige recursos para gerar conteúdo online”, disse Schardie, em entrevista ao Estado.

Em seu estudo, a pesquisadora identificou que os grupos com maior infraestrutura tendem a ter um ativismo digital mais persistente.

“Não é apenas uma questão de conservadores terem mais recursos financeiros, mas também de haver uma conexão entre os conservadores e a forma de organização”, afirmou Schradie. Ela menciona, por exemplo, que o sucesso do ativismo digital exige grupos com habilidade e conhecimento de uso da internet, para criar conteúdo, o que novamente remete a uma parcela da sociedade que tem mais acesso a recursos financeiros.

“Outra parte desse quebra-cabeça é que os conservadores estavam sentindo como se a mídia não os estivesse representando e estiveram muito focados nessa ideia de liberdade de informação. Já a esquerda estava preocupada em ter diversas vozes envolvidas, discutir questões trabalhistas, ambientais e de gênero”, afirmou.

Segundo Schradie, nem sempre o alcance na internet é tão amplo quando se tenta incluir várias mensagens diferentes – mais um fator que deixa os conservadores à frente. “Conservadores tendem a focar em questões de forma mais simples”, disse.

Ao analisar os gastos dos grupos, a pesquisadora indica que os grupos conservadores tendem a investir em patrocínios de postagens com artigos, enquanto grupos de esquerda preferem focar em imagens de encontros com grupos que mostrem diversidade.

Para ela, a pesquisa com foco na Carolina do Norte partiu de uma hipótese que, atualmente, tem mostrado descobertas ainda mais importantes sobre o papel dos conservadores no ativismo das redes sociais. “O uso do WhatsApp nas eleições no Brasil, por exemplo, é particularmente interessante. É uma ferramenta que muitas pessoas com menos recursos também podem usar.”

28 de junho de 2019

MAL-ESTAR NA GLOBALIZAÇÃO!

(José Serra, senador – Estado de S. Paulo, 27) Alexander Solzhenitsyn, com sua peculiar alma russa, escreveu que “o desaparecimento das nações nos empobreceria tanto quanto se todas as pessoas se tornassem iguais, com um único caráter e um só rosto. As nações são a riqueza da humanidade, elas são suas diversas personalidades: a menor delas tem suas cores particulares e representa uma faceta particular dos desígnios de Deus”.

Essa gema literária nos estimula a procurar entender, ao menos em parte, a onda nacionalista – não raramente xenófoba – que viceja no mundo, especialmente nos países mais ricos.

A globalização econômica e cultural permite às populações desfrutarem de um padrão de vida ascendente – e elevado, nos países desenvolvidos –, mas também subtrai parte da soberania dos Estados nacionais e reduz o raio de ação dos governos democraticamente eleitos. Mais ainda, a hegemonia cultural que acompanha esse processo encolhe as diferenças e particularidades que dão às pessoas o sentimento essencial de pertencimento.

A interconexão das economias nacionais e o avanço sem precedentes da tecnologia têm um efeito dinamizador cuja potência e rapidez é fácil de ilustrar. Nos anos 30, nos Estados Unidos, um rádio doméstico de cabeceira, com seus chiados e interferências, custava o equivalente a US$ 670, a preços de 2019. Isso é mais que o que se paga hoje por um smartphone intermediário, cuja capacidade de processamento é maior que a do conjunto dos computadores usados pela Nasa para levar o homem à Lua no final dos anos 60. E a uma velocidade de processamento 120 milhões de vezes maior!

Mas nem só de pão – e celular – vive o homem. Observamos, paralelamente a esse progresso, a persistência ou mesmo o aumento da precarização das relações de trabalho e das desigualdades – não obstante a disponibilidade mais elevada de bens e serviços. A maior fluidez das relações sociais que decorrem de tal processo cria ansiedades que não têm sido devidamente consideradas pelas elites políticas locais e internacionais. Em alguns casos, chega a transparecer até um certo desprezo. Ficou célebre a infeliz referência generalizante de Hillary Clinton aos eleitores de Trump como uma “cesta de deploráveis”.

O historiador Victor Hanson abordou com veemência esse estado de coisas – o divórcio cada vez mais litigioso entre o homem comum e “as elites”: “Nós criamos uma riquíssima e influente casta senhorial que não se sujeita às consequências negativas de suas próprias ideias”.

As eleições mais recentes na Europa e nos Estados Unidos evidenciam que, por um lado, os partidos tradicionais e suas lideranças de alguma maneira se afastaram dos problemas mais prementes do cidadão médio. Por outro – e este é um componente paradoxal do processo –, a insatisfação do cidadão comum se tornou politicamente mais organizada a partir da expansão vertiginosa das redes sociais. As candidaturas de contestação aos partidos tradicionais têm se valido da capilaridade dessas redes. As estruturas políticas tradicionais e seus canais de difusão de ideias têm se tornado, se não obsoletos, bem menos efetivos.

Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, o partido do Brexit, liderado pelo eurocético Nigel Farage e fundado um mês antes, foi o mais votado no Reino Unido, deixando para trás os conservadores e os trabalhistas. As redes sociais criaram instantaneamente uma estrutura política competitiva, circunstância que seria impensável sem a difusão quase ubíqua da internet e do smartphone nos últimos anos. O impacto da vitória do partido do Brexit foi tamanho que liquidou definitivamente com o governo de Theresa May e suas tentativas de contemporização. E provavelmente levará Boris Johnson, um entusiasta da saída do Reino Unido da União Europeia, à liderança dos Conservadores e ao cargo de primeiro-ministro. O fantasma de uma vitória de Nigel Farage nas próximas eleições está conduzindo o Reino Unido para o desligamento definitivo.

Seria equivocado equiparar os movimentos “antielitistas” ao nacionalismo militarista e expansionista que caracterizou, por exemplo, o fascismo. No caso norte-americano, boa parte do eleitorado de Trump anseia pela completa renúncia dos Estados Unidos ao papel de polícia do mundo. Esse eleitorado é francamente isolacionista, em contraste com o chamado pensamento neoconservador que, no campo da ideologia, deu as cartas no governo Bush e era entusiasta de uma ação “evangelizadora” dos Estados Unidos, a qual, supostamente, deveria levar a democracia aos quatro cantos do mundo. Simplificando, pode se dizer que o saldo foram a Guerra do Iraque e o aumento da instabilidade no Oriente Médio. Diante desse vetor isolacionista, é curioso e surpreendente que os Democratas venham tentando associar o governo Trump a Putin, investindo numa espécie de “russofobia” belicosa e antiquada, mais condizente com os tempos da guerra fria.

Na Europa, os partidos nacionalistas são francamente hostis à União Europeia e, longe de uma pauta militarista ou expansionista, propõem a desconstituição do bloco e a diluição do poder de Bruxelas. E são intransigentes com a imigração. O rechaço à União Europeia não decorre simplesmente de preocupações econômicas, mas do senso de perda de soberania e do medo – um tanto irracional – de enfraquecimento da “identidade nacional”. São esses temores que impulsionam líderes como Matteo Salvini e Marine Le Pen. Os movimentos nacionalistas se colocam como defensores da identidade nacional e da democracia ante uma elite internacional cosmopolita, sem rosto e inimputável.

Por isso tudo, o sucesso da globalização dependerá de sua capacidade de reconciliar avanços econômicos com os profundos elementos culturais e políticos que moldaram as nações nos últimos cinco séculos.

Seu sucesso dependerá de reconciliar avanços econômicos e elementos culturais e políticos.

27 de junho de 2019

A CRISE DO RIO E A AUTOESTIMA! 

(Mauro Osorio) Matéria do jornal O Globo de de 23/6, apontou pesquisa mostrando que muitos estão deixando o estado do Rio de Janeiro em busca de oportunidades profissionais em outras regiões: “Entre os que deixam o estado, 42% têm nível superior”.

Essa pesquisa traz à luz também a questão sobre quais são os fatores que levam ao desenvolvimento econômico.

Entendo que a educação é uma variável necessária, mas não suficiente. Gosto muito do economista americano Albert Hirschman que, em seu clássico livro “Estratégia do desenvolvimento”, aponta que não dá para dizer previamente o que gera desenvolvimento. O que gera desenvolvimento é sempre um conjunto de fatores e o mais difícil é começar. Hirschman trabalha ainda com a ideia de que a autoestima é uma variável fundamental.

A Argentina, por exemplo, em 1914, tinha o segundo PIB per capita do mundo e excelente padrão educacional. Desde então o seu PIB per capita caiu para a 50ª posição.

A cidade do Rio de Janeiro/Guanabara, nos anos 1960, tinha um excelente padrão educacional no cenário brasileiro. Desde então se tornou a lanterna em termos de dinamismo econômico comparativamente às demais capitais de estados brasileiros.

Não me surpreende que o estado do Rio de Janeiro tenha destaque em termos de exportação de capital humano. Entre janeiro de 2015 e abril de 2019, o estado apresentou uma perda de empregos com carteira assinada de 15,2% – a maior entre todos os estados brasileiros –, contra uma perda no total do Brasil de 6%.

Desde janeiro de 2015, o estado do Rio de Janeiro perdeu 573.258 postos de trabalho com carteira assinada. É esperado que a migração de profissionais para outros estados ocorra com destaque entre aqueles que têm formação profissional, capacidade financeira e contatos para buscar oportunidades em outras regiões, no Brasil e no mundo.

26 de junho de 2019

DESPERTA, RIO!

(Luiz Fernando Janot – O Globo, 22) Deitado em berço esplêndido, o Rio vive um momento de profunda letargia. Bem que gostaria de elogiar suas qualidades, mas, do jeito que as coisas andam, seria apenas um devaneio. Não dá pra continuar enaltecendo o passado diante de um presente cada vez mais adverso. Críticas podem ser feitas ao ex-prefeito, menos acusá-lo de omissão. Acredito que se ele tivesse uma assessoria técnica capaz de orientá-lo em suas decisões, alguns problemas de obras teriam sido evitados. A ciclovia da Avenida Niemeyer é um bom exemplo.

Ao declarar que, se pudesse não a faria de novo, ele atribuiu o ocorrido aos fenômenos da natureza, quando, na verdade, a causa encontra-se na concepção do projeto. Se a ciclovia fosse acoplada à avenida, além de incorporar uma calçada para circulação dos moradores, ela teria uma estrutura capaz de suportar os impactos que a destruíram por duas vezes. Muitos problemas ocorridos em obras públicas se devem ao fato de o processo de licitação ter como referência apenas o projeto básico. Ao transferir para a empreiteira a responsabilidade pela elaboração do projeto executivo, abre-se espaço para os costumeiros reajustes de preço e os habituais desvios de conduta. Demolir ou recuperar a ciclovia, eis a questão que se apresenta para a prefeitura neste momento. Enquanto especulações são feitas, o prefeito parece atônito e sem saber o que fazer. A sua falta de iniciativa revela a dificuldade em lidar com problemas de uma cidade do porte do Rio de Janeiro. Para que não pareça uma acusação leviana, relaciono alguns fatos que comprovam tal afirmação: ruas repletas de buracos; calçadas ocupadas por vendedores ambulantes; conservação precária de praças e jardins; podas irresponsáveis de árvores; monumentos históricos relegados ao abandono; assaltos frequentes à luz do dia; e um crescente número de pessoas dormindo nas ruas.

Além dessas questões, temos que conviver com os frequentes alagamentos na cidade; com o BRT em estado precário; com rios e canais despejando esgoto nas lagoas e na Baía da Guanabara; com a falta de contenção das encostas; com favelas crescendo sem infraestrutura; com a expansão descontrolada de loteamentos e construções irregulares; e com o estigma da violência assombrando a cidade. Como se vê, não é pouca coisa. Para o Rio não sucumbir à degeneração progressiva, será necessário mobilizar os governos estadual e federal para atuarem solidariamente no aporte de recursos e meios para ajudar o município a enfrentar tal situação. É imprescindível que a sociedade se envolva nesse processo através de representações e organizações sociais e culturais.

O Porto Maravilha seria o local ideal para iniciar tal movimento. Principalmente, pelo fato de o plano para transformar aquela região em um sofisticado polo empresarial não ter logrado o sucesso desejado. Ademais, o modelo proposto se mostrou incompatível com a realidade da própria cidade. A legislação urbanística idealizada para gerar recursos para as obras de infraestrutura não atraiu investidores. A solução foi recorrer à Caixa Econômica para aportar recursos e levar o projeto adiante. Hoje, o desinteresse pela área se reflete na baixa ocupação e na má conservação dos espaços públicos.

Urge, portanto, rever o que foi planejado e encontrar uma alternativa viável para ocupar essa área. Estou seguro de que os usos habitacional e comercial são os mais indicados. Mas não se pode achar que a inserção aleatória de tais edificações será capaz de atender aos objetivos desejados. O plano existente precisa ser revisto, e um novo projeto de ocupação deve ser realizado.

Resta saber se o prefeito estará disposto a encarar mais esse desafio. A cidade precisa de mais gestão e menos demagogia. Não podemos continuar de braços cruzados esperando milagres que jamais acontecerão. Portanto, chegou a hora de o Rio despertar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Se possível, antes que seja tarde demais.

Para a cidade não sucumbir à degeneração progressiva, será necessário mobilizar os governos estadual e federal.

25 de junho de 2019

VENEZUELA ABANDONA BOLÍVAR E LENTAMENTE ADOTA A DOLARIZAÇÃO!

(O Estado de S. Paulo, 23) O dólar está por todas as partes. Antes, os venezuelanos viam a moeda americana apenas em raros vislumbres. Um garçom disposto a arriscar um tempo na prisão podia ser persuadido a aceitá-las pelo preço certo. Turistas mostravam as notas verdinhas no aeroporto. Vendedores ambulantes faziam ofertas por elas, quase sussurrando.

Agora, elas estão empilhadas nas gavetas de caixas de supermercados, armazéns e até nas canecas dos mendigos. Os ricos dão gorjetas para valets de estacionamento e sacam maços de US$ 20 para pagar por baldes de cerveja. Operadores de câmbio acomodam-se em esquinas movimentadas nas favelas e gritam: “Compro dólares, compro dólares”.

Com o bolívar quase sem valor, relegado à irrelevância pelo presidente Nicolás Maduro, o dinheiro impresso pelos americanos – que o chavismo tanto odeia – tornouse uma presença constante na vida dos venezuelanos. E são as notas que trazem a face de Benjamin Franklin que mantêm viva a economia do país.
Até recentemente, usar dinheiro estrangeiro era um crime que o governo ameaçava processar com gosto. Depois que os chavistas estabeleceram controles cambiais, em 2003, começaram a patrulhar transações que iam contra as regras kafkianas sobre o dinheiro. Inspetores vestidos com roupas comuns montavam operações e invadiam empresas.

Pouquíssimos acabaram atrás das grades, mas o governo conseguiu assustar todo mundo. Os venezuelanos mantiveram as notas americanas escondidas por medo de mandar sinais para sequestradores e policiais. As conversas eram sempre em código e um novo léxico foi criado nas ruas: o dólar virou “alface”. Mesmo na clandestinidade, muitas transações eram concluídas em dólares. Aqueles que recebiam as traiçoeiras notas americanas fechavam nervosamente janelas e portas, enquanto desferiam olhares desconfiados e indiscretos para os compradores.

Agora, a inflação atingiu seis dígitos e a fome finalmente começou a desmantelar a complicada confusão dos controles cambiais. Hoje, as autoridades não piscam quando os dólares são trocados. O governo está falido e desajustado demais para ditar termos comerciais. O socialismo do século 21 deu lugar ao capitalismo selvagem.

A liberalização das regras, que começou em agosto do ano passado, foi bem-vinda para qualquer um cansado de lidar com a quantidade de zeros envolvidos nos preços do bolívar, puxando pacotes de notas inúteis e rezando para que o leitor de cartão de crédito funcionasse pelo menos uma vez.

Os apagões, quando a maior parte da Venezuela fica sem energia e sem sistema bancário, aceleraram a dolarização da economia. Na escuridão, carregar dinheiro era a única maneira de ter certeza de que se conseguiria fazer qualquer tipo de compra.

Algumas lojas e restaurantes já exibem os preços em dólar. Na região leste de Caracas, os estabelecimentos oferecem de tudo, desde cereais Fruit Loops a biscoitos caseiros e garrafas de Budweiser. Tudo tabelado em dólar. Os funcionários também aceitam transferências eletrônicas, via Zelle ou PayPal, facilitando a vida de quem não carrega dinheiro. Estima-se que 30% de todas as transações são feitas em dólares hoje na Venezuela – um porcentual que tende a crescer. Entre os opositores, também se intensifica o debate sobre adotar ou não a moeda após a volta da democracia. A maioria dos venezuelanos, porém, já fez sua escolha.

24 de junho de 2019

VEJA – O GOVERNO PARALELO LIDERADO POR RODRIGO MAIA!

No vácuo da desarticulação política do Executivo, o Congresso prepara uma agenda que será implementada após a aprovação da reforma da Previdência

A imagem ao lado retrata o aperto de mãos entre dois dos mais poderosos homens da República. À direita, está Paulo Guedes, o superministro da Economia, o “Posto Ipiranga” do presidente Jair Bolsonaro. À esquerda, Rodrigo Maia, comandante da Câmara e senhor do destino de todas as votações importantes no plenário da Casa. Na foto, o clima é de cordialidade, mas longe dos holofotes a relação entre ambos, que ainda pode ser classificada de parceria, está se esgarçando. Os sinais são evidentes. Guedes reclamou publicamente do fato de os deputados terem mudado a proposta da reforma da Previdência do governo, retirando do texto o regime de capitalização, a menina dos olhos do ministro. Maia respondeu defendendo a autonomia do Legislativo e tachando o governo de uma “usina de crises”. Os dois também se estranharam sobre a demissão de Joaquim Levy do cargo de presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A reação de Maia foi acima de seu tom habitual. Ele considerou a exoneração de Levy “uma covardia sem precedentes” por parte de Guedes.

Os dois episódios não são casos isolados. Pelo contrário, refletem uma disputa de poder entre o Executivo e o Legislativo para ver qual deles receberá os créditos pela aprovação de projetos capazes de reaquecer a economia brasileira, que registrou retração no primeiro trimestre deste ano. No modelo político brasileiro, o protagonismo cabe, em tese, ao presidente da República. O problema é que Jair Bolsonaro propôs a reforma da Previdência e, até aqui, nada mais falou sobre como destravar investimentos, gerar empregos, aumentar a produtividade. Sua agenda se restringe a temas caros a nichos bolsonaristas, como porte de armas, multas e cadeirinhas de trânsito. Empresários, banqueiros e trabalhadores, então, passaram a levar suas demandas e esperanças a outro guichê, o gabinete de Rodrigo Maia, que está preparando um pacote de medidas econômicas para ser votado tão logo a reforma da Previdência seja aprovada. As propostas estão sendo elaboradas por um grupo de especialistas que forma uma espécie de equipe econômica paralela do presidente da Câmara.

Maia acha que, se seu plano der certo, atingirá dois objetivos: terá sido responsável pela recuperação da economia e pavimentará o caminho para alçar voos maiores na eleição de 2022. Em 2018, ele chegou a cogitar uma candidatura à Presidência. Cauteloso, o deputado afirma que não quer ocupar o espaço do governo, mas apenas colaborar. Em entrevista a VEJA, deixou claro, no entanto, que tocará seu Calendário Maia mesmo quando houver discordância do Planalto, já que o Legislativo é independente — e não submisso — na relação com o Executivo. “O presidente tem uma agenda muito voltada para os segmentos da sociedade que o levaram ao Palácio do Planalto. Fala a nichos bem específicos”, declarou. “Ele nunca falou aos brasileiros mais simples. O ministro Paulo Guedes menos ainda. Está faltando alguém que consiga elaborar uma política para a base da sociedade, para as famílias que ganham dois ou três salários mínimos.” O cronograma, por sinal, já foi definido. Maia pretende que a reforma da Previdência seja aprovada pela Câmara até julho.

No segundo semestre, será a vez de votar a reforma tributária e uma reformatação ambiciosa do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), além da autonomia do Banco Central e de mudanças destinadas a baratear o custo dos empréstimos feitos pelas instituições financeiras, por meio da redução do chamado spread bancário. Esse ponto tem forte apelo popular, já que, segundo dados do Banco Central, 40% das famílias que ganham até dois salários mínimos entram no cheque especial pelo menos uma vez por mês. “O Paulo Guedes vendeu uma imagem que já foi perdida. Todos reclamam da instabilidade do governo. O pedido do setor produtivo ao Congresso é: tomem conta”, diz o deputado Aguinaldo Ribeiro, braço-direito de Maia e líder da maioria na Câmara, posto que, em tese, deveria estar alinhado ao presidente da República. Sob a batuta de Maia, os deputados estão, de fato, tomando conta. Nas próximas semanas, será instalada a comissão especial para analisar a reforma tributária. Embora o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, esteja preparando um texto sobre o assunto, a Câmara está tocando uma proposta de autoria formal do deputado Baleia Rossi, líder do MDB, mas que foi desenhada pelo economista Bernard Appy.

O texto reúne cinco impostos e contribuições que incidem sobre o consumo num único tributo e resultaria em benefícios como o fim da guerra fiscal e a simplificação da vida do contribuinte. “Essa proposta vai eliminar uma quantidade brutal de distorções e dos problemas no sistema tributário atual. Ela tem potencial enorme de impacto no crescimento da economia, no poder de compra do cidadão, na geração de emprego, o que facilita a constatação de que todos sairão contemplados”, disse Appy a VEJA. Já a reforma do FGTS está a cargo do economista Samuel Pessôa. Os objetivos são aumentar a rentabilidade do fundo, cuja gestão passaria para o Tesouro Nacional, e fomentar a poupança no Brasil a longo prazo. Pelo modelo que está em estudo, o FGTS deixaria de ser um instrumento de proteção ao desempregado, função que seria exercida por outras políticas públicas. O trabalhador não poderia mais sacar o FGTS em caso de demissão, mas apenas na compra da casa própria e na aposentadoria. Ou seja: faria uma poupança ao longo da vida que poderia ser embolsada quando ele deixasse a ativa.

Ao saber que Maia considera as mudanças no fundo a grande pauta do Congresso para o segundo semestre, o governo pediu para participar dos debates. “De modo geral, o trabalhador acumularia o FGTS para a aposentadoria, constituindo uma renda vitalícia. Essa poupança seria uma complementação à aposentadoria do Regime Geral da Previdência. Nada disso teria custo para o Estado, já que está sendo arrecadado”, afirmou a VEJA o economista Samuel Pessôa. Desconfiado de que Bolsonaro, até pela queda em sua popularidade, radicalizará o discurso e falará cada vez mais para segmentos específicos da sociedade, como militares e policiais, Maia — que acena ao topo da pirâmide social com a agenda econômica — prepara também ações sociais voltadas aos mais pobres. Ao receber VEJA na quarta-feira 19 na residência oficial da presidência da Câmara, ele fez questão de sublinhar, numa das centenas de folhas espalhadas sobre a mesa, o que considera quatro áreas prioritárias: primeira infância, inclusão produtiva (“complementar ao Bolsa Família”), sistema de governança da educação (“hoje não temos”) e rede de proteção social.

Enquanto Bolsonaro enfrenta protestos contra o bloqueio de verbas na Educação, o deputado quer aprovar iniciativas que ampliem as vagas para crianças de até 3 anos nas escolas e turbinem o ensino técnico no país. Para facilitar seu plano, convocou um grupo de deputados de diferentes partidos para tocar pontos específicos da agenda social. Assim, semeia os votos favoráveis aos textos quando estes chegarem ao plenário. Hoje, o presidente da Câmara controla mais votos do que o governo na Casa. Bolsonaro, segundo o deputado, tem entre 100 e 150 votos, num universo de 513 deputados. A reforma da Previdência requer o apoio de pelo menos 308 parlamentares. Eleito com um discurso de rejeição à política, o capitão pouco faz para reverter esse quadro. Até aqui, a estratégia de seu governo foi basicamente usar as redes sociais para pressionar deputados e senadores a votar favoravelmente às medidas de interesse do governo. Não tem dado certo. Na semana passada, por exemplo, o Senado, comandado por Davi Alcolumbre, rejeitou por 47 a 28 o decreto de Bolsonaro que ampliou o porte de armas. O texto segue para a Câmara, que também deve impor derrota ao presidente.

Com a derrubada do decreto, os congressistas querem mandar um recado a Bolsonaro: na base da ameaça, ele só colherá derrotas. Em 26 de maio, 1 milhão de pessoas foram às ruas para protestar contra os políticos tradicionais e defender a reforma da Previdência. No próximo dia 30, nova manifestação a favor de Bolsonaro tomará as ruas. Numa conversa reservada, Rodrigo Maia afirmou que as críticas de Guedes ao texto dos deputados para a reforma da Previdência tiveram o objetivo oculto de incendiar tais manifestações. Tal atitude seria desnecessária, uma vez que os deputados estão comprometidos com as mudanças previdenciárias, apesar de não defenderem integralmente aquilo que Guedes quer. Nas redes sociais, os bolsonaristas atacam Maia com virulência e o tratam até com apelidos jocosos. A VEJA, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, revelou sua opção pelo caminho da conciliação: “O presidente está disposto a manter a paz. Ele já disse que não pretende contestar as coisas do Rodrigo Maia, porque o Rodrigo é presidente da Câmara e a agenda é dele”.

Com a pouca habilidade do governo em termos de articulação política, que sofreu alterações nesta semana (saindo de Onyx Lorenzoni e indo para o general Luiz Eduardo Ramos), o Congresso vem ganhando espaço. Derrotas como a derrubada do decreto que flexibilizava o porte e a posse de armas, um projeto-vitrine do governo, acumulam-se desde o início desta administração. Embora o descompasso entre os poderes possa gerar alguma turbulência, o movimento pode ser encarado também pelo lado positivo. “Acho muito importante que o Congresso retome seu protagonismo”, diz o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-RJ. Na história recente da República, poucas vezes a Câmara e o Senado exerceram papéis decisivos na construção de propostas para o país (leia a Carta ao Leitor). A verdade é que o presidencialismo de coalizão, em quase todos os governos, acabou transformando o Parlamento em linha auxiliar do Executivo e, até por causa disso, no protagonista de diversos escândalos. Um Legislativo forte e independente pode mudar essa dinâmica e, simultaneamente, contribuir de maneira significativa para o avanço do país. Em seu sexto mandato de deputado federal, Rodrigo Maia ocupa pela terceira vez a presidência da Câmara e tem esta oportunidade nas mãos. Ele sabe que o resultado da empreitada pode mudar não apenas o destino do Brasil como o seu próprio destino. Afinal, faltam apenas três anos para 2022.

UM MINISTÉRIO PARA CHAMAR DE SEU

O presidente da Câmara reuniu uma equipe de economistas para trabalhar na elaboração das propostas que serão levadas ao plenário

Bernard Appy
Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo Lula, Appy é especialista em tributação. Ele coordenou os estudos que deram origem ao projeto que pretende unificar cinco impostos — três federais (PIS/Cofins e IPI), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS) —, sem aumento da carga tributária. A pedido de Rodrigo Maia, o economista já promoveu diversas reuniões com líderes partidários para explicar a importância das mudanças

Samuel Pessôa
Especialista em desenvolvimento econômico, Pessôa é pesquisador da área de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Maia o convidou há dois meses para formatar uma proposta de reforma do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. O FGTS não poderá mais ser sacado em caso de demissão e se tornará uma complementação da aposentadoria. A ideia é criar mecanismos que aumentem a rentabilidade dos recursos

Marcos Lisboa
Também ex-secretário de Política Econômica durante o primeiro governo Lula, o economista, por solicitação do presidente da Câmara, está elaborando estudos que apontarão caminhos por onde o Congresso pode atuar para destravar a economia, principalmente nas áreas de infraestrutura, incentivo à instalação de indústrias e comércio exterior. O objetivo é fazer um mapeamento de projetos e medidas capazes de alavancar o crescimento no menor prazo possível

Marcos Mendes
Consultor do Senado, Mendes já ocupou cargos importantes na Secretaria do Tesouro Nacional, no Banco Central e no Ministério da Fazenda durante o governo Michel Temer. Ele é especialista em políticas de inclusão social. Sua tarefa é propor medidas para uma agenda de emergência, com metas para o combate à pobreza e ao desemprego. Há propostas para aumentar a eficiência dos programas de distribuição de renda.

19 de junho de 2019

POPULISMO DIGITAL!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 18) Seguindo o compasso dos tempos, a edição de 2019 do Relatório de Notícias Digitais do Instituto Reuters focou no impacto das gigantes da tecnologia, como Google e Facebook, e em particular na ascensão do populismo.

Entre outros destaques, o Relatório aponta que houve pouco crescimento de pessoas que pagam por notícias na rede. Mesmo nos países de alta renda, a maioria paga apenas por uma única assinatura, e muitos optam por gastar com entretenimento ao invés de notícias. Ao mesmo tempo, a preocupação com a desinformação permanece alta, assim como a desconfiança em relação à imprensa: menos da metade dos entrevistados (49%) dizem confiar no veículo que eles mesmos usam. Por outro lado, 26% declararam ter começado a confiar em fontes mais “reputadas” de notícias.

Uma seção do Relatório é dedicada à relação entre o populismo e as mídias digitais, preocupando-se em entender se os eleitores dessa faixa têm hábitos diferentes do restante da população em relação ao noticiário, e também como eles acessam e interagem com as notícias e seus veículos.

Os populistas foram identificados como aqueles que sustentam as duas seguintes crenças: o conflito entre uma elite “perversa” e um povo “virtuoso”, e a soberania irrestrita da vontade popular. Em quase todos os países analisados, as atitudes populistas são mais comuns entre pessoas mais velhas, de baixa renda e pouca escolaridade.

Apesar da associação habitual entre a ascensão do populismo e a proliferação das redes sociais, quando se trata de notícias os indivíduos com atitudes populistas preferem buscá-las fora da rede: 46% deles dizem que a televisão é a sua principal fonte, enquanto para aqueles que não apresentam atitudes populistas essa média é de 40%.

Ainda assim, a internet é um campo de atuação importante para os populistas. Na Europa, a título de exemplo, eles têm uma forte preferência pelas redes sociais: 24% em comparação com 19% daqueles considerados não populistas. Esta preferência é canalizada indubitavelmente no Facebook, a principal fonte de notícias na rede digital para os populistas, em contraste com o Twitter, fonte principal para os não populistas. Segundo os pesquisadores, o padrão se explica pelo fato de que o Facebook é uma rede que distribui conteúdo primariamente baseado nas preferências dos cidadãos comuns, ao passo que o Twitter tende a ser visto como um espaço dominado pela mídia oficial e por vozes da elite.

Pessoas com atitudes populistas tendem a compartilhar e comentar mais notícias do que a média. Ao mesmo tempo, partidos populistas tendem a ser mais ativos no Facebook. “Estas tendências podem estar se combinando para criar um ambiente de mídia social onde as ideias e perspectivas populistas sejam hiper-representadas”, dizem os pesquisadores.

O Brasil exemplifica com particular estridência muitas destas correntes. Durante as eleições de 2018, após a notícia de que um empresário estaria financiando um bombardeio de mensagens contra um candidato à Presidência, o WhatsApp informou que banira 100 mil contas, tentando conter a desinformação. Antes de assumir o cargo, o presidente da República eleito anunciou 14 dos seus 22 ministros por Twitter. Caracteristicamente, ele já acusou um grupo de comunicação de “inimigo” e compartilhou em suas redes denúncias falsas contra outro.

Menos da metade dos brasileiros (48%) confiam no noticiário em geral, uma queda de 11 pontos porcentuais em relação ao ano passado. Por outro lado, os brasileiros seguem crescendo entre os maiores usuários das redes sociais.

O dado curioso é que o Brasil tem o maior porcentual de pessoas preocupadas com notícias falsas na internet (85%). Por outro lado, os brasileiros estão entre os que menos pagam por notícias na rede (22%). Ou seja, a população parece supor que é possível conseguir boa notícia sem investir em jornalismo profissional – uma evidente quimera. Enquanto persistir essa atitude, estaremos cada vez mais vulneráveis às vagas populistas.

18 de junho de 2019

CON­CI­LI­AR DE­SEN­VOL­VI­MEN­TO COM A PRE­SER­VA­ÇÃO AM­BI­EN­TAL EXI­GE COM­PRO­MIS­SOS!

(Jo­sé Gol­dem­berg, pro­fes­sor emé­ri­to da USP, O Estado de S. Paulo, 17) A nos­sa ci­vi­li­za­ção te­ve iní­cio cer­ca de 6 mil anos atrás, no Ori­en­te Mé­dio, nu­ma re­gião que é ho­je o Ira­que. Os pri­mei­ros po­vos que vi­vi­am na­que­la re­gião, os su­mé­ri­os, ba­bilô­ni­os e as­sí­ri­os, ti­ve­ram de en­fren­tar gran­des obs­tá­cu­los na­tu­rais, en­tre os quais as chei­as vi­o­len­tas e ir­re­gu­la­res dos Ri­os Ti­gre e Eu­fra­tes. Pa­ra so­lu­ci­o­nar es­ses pro­ble­mas, ti­ve­ram de cons­truir di­ques e bar­ra­gens, re­ser­va­tó­ri­os e ca­nais de dre­na­gem de pân­ta­nos e ir­ri­ga­ção que mu­da­ram a fa­ce da re­gião e o meio am­bi­en­te.

Fo­ram es­sas gran­des obras que pos­si­bi­li­ta­ram uma agri­cul­tu­ra pro­du­ti­va que le­vou à cri­a­ção de ci­da­des e im­pé­ri­os. Sem elas, no cli­ma se­co e de­sér­ti­co do Ori­en­te Mé­dio, não ha­ve­ria lí­ri­os nos cam­pos que tan­to im­pres­si­o­na­ram Je­sus há 2 mil anos, co­mo se po­de ver no Ser­mão da Mon­ta­nha em Je­ru­sa­lém, se­gun­do Ma­teus.

Sem as obras re­a­li­za­das, pro­va­vel­men­te não ha­ve­ria lí­ri­os no Ori­en­te Mé­dio. De­sen­vol­vi­men­to exi­ge a re­a­li­za­ção de obras e im­pac­tos que po­dem ser pre­da­tó­ri­os e mo­di­fi­cam a na­tu­re­za. Pre­ser­va­ção am­bi­en­tal exi­ge a ma­nu­ten­ção da na­tu­re­za. Por es­sas ra­zões, con­ci­li­ar de­sen­vol­vi­men­to – es­sen­ci­al pa­ra o bem-es­tar das po­pu­la­ções – com a pre­ser­va­ção am­bi­en­tal exi­ge com­pro­mis­sos.

Es­ta­be­le­cer os li­mi­tes dos im­pac­tos acei­tá­veis é o gran­de pro­ble­ma: se fo­rem mui­to li­be­rais, po­dem pro­vo­car da­nos ir­re­ver­sí­veis ao meio am­bi­en­te. Se fo­rem mui­to exi­gen­tes, po­dem in­vi­a­bi­li­zar as pró­pri­as obras. Es­se é o di­le­ma que en­fren­ta­mos ho­je e so­lu­ci­o­ná-lo se tor­na ca­da vez mais ur­gen­te, por­que a ação do ho­mem so­bre a na­tu­re­za – no seu con­jun­to de mais de 7 bi­lhões de pes­so­as – atin­giu um ní­vel com­pa­rá­vel à ação das for­ças ge­o­ló­gi­cas na­tu­rais (chu­vas, ven­tos, ma­res, erup­ções vul­câ­ni­cas e ou­tras).

No ca­so da po­lui­ção lo­cal, es­tes com­pro­mis­sos fo­ram ba­si­ca­men­te es­ta­be­le­ci­dos com a le­gis­la­ção am­bi­en­tal ado­ta­da na In­gla­ter­ra em 1953 – que re­sul­tou na des­po­lui­ção do Rio Tâ­mi­sa –, de­pois ado­ta­da em su­as li­nhas ge­rais no mun­do to­do, in­clu­si­ve no Bra­sil.

Nos paí­ses em de­sen­vol­vi­men­to, sua im­ple­men­ta­ção dei­xa mui­to a de­se­jar por­que têm fal­ta­do re­cur­sos pa­ra cum­prir a le­gis­la­ção. O exem­plo mais fla­gran­te é o ca­so do sa­ne­a­men­to bá­si­co (co­le­ta do li­xo e a dis­po­si­ção de es­go­tos re­si­den­ci­ais e seu tra­ta­men­to). Qua­se me­ta­de da po­pu­la­ção bra­si­lei­ra não tem aces­so a ele. A Baía de Gu­a­na­ba­ra, no Rio de Ja­nei­ro, con­ti­nua po­luí­da, bem co­mo o Rio Pi­nhei­ros, em São Pau­lo. A co­le­ta, re­ci­cla­gem e dis­po­si­ção do li­xo ur­ba­no es­tão pro­gre­din­do no Es­ta­do de São Pau­lo, mas exis­tem ain­da mi­lha­res de li­xões a céu aber­to no País.

Ou­tros pro­ble­mas ocor­rem na cons­tru­ção de usi­nas hi­dre­lé­tri­cas. Os re­ser­va­tó­ri­os ne­ces­sá­ri­os pa­ra que elas con­ti­nu­em pro­du­zin­do ener­gia nos pe­río­dos se­cos do ano po­dem inun­dar gran­des áre­as, o que im­pac­ta po­pu­la­ções e o meio am­bi­en­te lo­cal. Sem elas, con­tu­do, as ci­da­des fi­ca­ri­am no es­cu­ro. Es­te é tal­vez o me­lhor exem­plo dos con­fli­tos en­tre de­sen­vol­vi­men­to e a pre­ser­va­ção do meio am­bi­en­te e que não po­de ser so­lu­ci­o­na­do sem ar­bi­trar en­tre os in­te­res­ses dos afe­ta­dos e os dos que são be­ne­fi­ci­a­dos pe­los em­pre­en­di­men­tos.

O no­vo pro­ble­ma que sur­giu nas úl­ti­mas dé­ca­das é o do aque­ci­men­to glo­bal: a tem­pe­ra­tu­ra mé­dia do pla­ne­ta já au­men­tou mais de um grau cen­tí­gra­do des­de 1850 e con­ti­nua au­men­tan­do em ra­zão da quei­ma de com­bus­tí­veis fós­seis, que tem co­mo re­sul­ta­do a pro­du­ção dos ga­ses res­pon­sá­veis pe­lo aque­ci­men­to (glo­bal), co­mo dió­xi­do de car­bo­no, que são lan­ça­dos na at­mos­fe­ra, e o des­ma­ta­men­to.

As con­sequên­ci­as des­te aque­ci­men­to po­de­rão ser de­vas­ta­do­ras e te­mos, por­tan­to, du­as al­ter­na­ti­vas: ou nos adap­ta­mos a um mun­do mais quen­te ou to­ma­mos me­di­das pre­ven­ti­vas pa­ra evi­tar que ele se aque­ça.

O que fa­zer, en­tão? Ata­car os pro­ble­mas da po­lui­ção lo­cal que es­tão nos afli­gin­do ago­ra ou con­cen­trar no­vos es­for­ços em ten­tar re­du­zir as con­sequên­ci­as fu­tu­ras do aque­ci­men­to glo­bal?

Es­te é um fal­so di­le­ma, que foi dis­cu­ti­do des­de 1992, quan­do foi ado­ta­da a Con­ven­ção do Cli­ma no Rio de Ja­nei­ro: é ain­da pos­sí­vel evi­tar o aque­ci­men­to glo­bal to­man­do me­di­das de pre­cau­ção, is­to é, evi­tan­do au­men­tar as emis­sões de ga­ses de efei­to es­tu­fa e to­man­do me­di­das pa­ra re­du­zi-las? Ou é tar­de de­mais e pre­ci­sa­mos ado­tar me­di­das pa­ra nos adap­tar­mos a um mun­do mais quen­te? Exem­plo de adap­ta­ção se­ria cons­truir di­ques pa­ra nos pro­te­ger do au­men­to do ní­vel do mar, co­mo fez a Ho­lan­da no pas­sa­do.

A te­se do­mi­nan­te, até ago­ra, foi a de ado­tar me­di­das de pre­cau­ção e dei­xar me­di­das de adap­ta­ção pa­ra o fu­tu­ro.

Pa­ra evi­tar es­tes con­fli­tos e não fa­zer na­da são in­ven­ta­das te­o­ri­as cons­pi­ra­tó­ri­as de to­do ti­po e até ten­ta­ti­vas de ne­gar as ba­ses ci­en­tí­fi­cas do aque­ci­men­to glo­bal, que são bem es­ta­be­le­ci­das. O “ruí­do” cri­a­do pe­los as­sim cha­ma­dos “ne­ga­ci­o­nis­tas” – in­cluin­do al­guns bra­si­lei­ros mal in­for­ma­dos – é adi­ar a ado­ção de me­di­das re­la­ti­va­men­te sim­ples pa­ra en­fren­tar os pro­ble­mas, en­tres eles o de re­du­zir o des­ma­ta­men­to da Amazô­nia, que é a prin­ci­pal fon­te de emis­sões do Bra­sil. As ações ne­ces­sá­ri­as pa­ra tal, so­bre­tu­do a fis­ca­li­za­ção, são de bai­xo cus­to, co­mo já foi de­mons­tra­do pe­la re­du­ção do des­ma­ta­men­to a par­tir de 2005.

Por­tan­to, en­fren­tar o pro­ble­ma do aque­ci­men­to glo­bal não exi­ge ain­da gran­des obras, mas po­lí­ti­cas pú­bli­cas (e le­gis­la­ção re­sul­tan­te) que ori­en­tem o de­sen­vol­vi­men­to na di­re­ção cor­re­ta, in­cluin­do a ado­ção de ener­gi­as re­no­vá­veis e a so­lar em subs­ti­tui­ção à ener­gia ge­ra­da quei­man­do com­bus­tí­veis fós­seis.

Já a so­lu­ção dos pro­ble­mas de po­lui­ção lo­cal, co­mo sa­ne­a­men­to bá­si­co, exi­ge gran­des obras de en­ge­nha­ria e en­ga­ja­men­to di­re­to de au­to­ri­da­des lo­cais (pre­fei­tos e go­ver­na­do­res). É ne­les que é pre­ci­so in­ves­tir ago­ra, en­quan­to as po­lí­ti­cas pú­bli­cas sur­tem efei­tos pa­ra o fu­tu­ro.

Não há o que es­co­lher. Am­bas ações são ne­ces­sá­ri­as.

17 de junho de 2019

SERTÃO DE EUCLIDES!

(Ronaldo Correia de Brito, autor de ‘DORA SEM VÉU’ – O Estado de S. Paulo, 16) Homenageado na 17.ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, Euclides da Cunha foi o responsável pelo conceito que se cristalizou sobre o interior do País.

Euclides da Cunha será o homenageado da Flip 2019. Nada mais justo. No ensaio Euclides da Cunha: Revelador da Realidade Brasileira, Gilberto Freyre já o referia como um dos escritores brasileiros de maior influência sobre o nosso povo, e que chamava atenção dos estrangeiros para a cultura em geral e para as letras em particular, de um ainda obscuro Brasil.

Mesmo não havendo nascido no sertão de que trata em sua obra, Euclides foi quem mais contribuiu para codificar o que lhe pareceu sertão, guiando leitores e gerações futuras a buscarem o modelo estabelecido de semiárido habitado por bárbaros, num processo semelhante ao dos orientalistas em relação ao Oriente. Da mesma maneira que o Oriente é corrigido e penalizado por estar fora dos limites da Europa e América do Norte, o sertão do Nordeste brasileiro sofre processo semelhante por se encontrar fora dos limites da sociedade do Sul e Sudeste. É igualmente “sertanizado” por acadêmicos e cientistas, tornando-se propriedade de um conhecimento nem sempre verdadeiro.

A partir do genocídio praticado contra os conselheiristas de Canudos – recuso a denominação de jagunços –, retratado com parcialidade pelo geógrafo, engenheiro, militar e jornalista, se evidenciam as incompatibilidades entre os vários sertões. As sociedades heterogêneas possuem valores culturais, econômicos e religiosos desiguais. Os sertanejos são tratados como menores, raças submetidas a um “poder civilizatório” que se apresenta benigno e altruísta, mas que traz apenas mais miséria, destruição e morte. Acontece a guerra, uma coisa horrível de se testemunhar, um choque implacável, irremediável, como tem sido o embate de todos os dias, no Brasil.

Nos primeiros tempos de nossa história, tudo o que não fosse litoral era sertão, independente de condições climáticas, relevo, cobertura vegetal, presença ou não de rios, tipo de solo. Assim, o Estado de São Paulo para além da Capitania de São Vicente era todo sertão, como também o eram Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e até Paraná e Rio Grande do Sul.

O próprio Euclides descreve diferente o sertão dos primórdios da nossa colonização: “Constituiu-se, dessa maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século 18 ao das raias setentrionais de Minas e Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessassem ao egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, ‘o quase único aspecto tranquilo da nossa cultura’. À parte os contingentes de povoadores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos que ali se formaram, vinha do sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras.”

As migrações e entrelaçamentos dos sertanejos se fazia intensa, de sul a norte e de norte a sul, a ponto de um decreto real do século 18 proibir que os do norte buscassem as terras do sul, onde havia mais promessas de riqueza. “Paulista” não se referia apenas aos naturais de São Paulo, sendo uma denominação genérica para sertanejos de Goiás, Mato Grosso, Minas e outras regiões. Interessa investigar quando e de que maneira o devaneio sobre o que é sertão o transforma em paisagem semiárida, hostil, com o sol inclemente,

confundido com o que se estabeleceu ser o Nordeste. Gilberto Freyre recusa essa imagem de deserto. Para ele, o lugar também é uma terra de fartura, de águas abundantes, onde, como no poema de Carlos Pena Filho, “nunca deixa de haver uma mancha d’água, um avanço de mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma lagoa…”

Não sei ainda quais convidados irão debater Os Sertões, mas espero que haja alguns escritores nordestinos, conselheiristas e intelectuais que enxergam os erros de Euclides, a antropologia e a sociologia impregnadas de cientificismo, consonante com a época em que o livro foi escrito. Teorias de inspiração europeia e americana, racistas, supremacistas, cientificistas, que defendem a eugenia e são contrárias ao hibridismo, atribuindo ao cruzamento das raças formadoras do Brasil todos os nossos males.

Riobaldo, personagem narrador do Grande Sertão: Veredas, pergunta ao escutador: “Como vou contar e o senhor sentir em meu estado? O senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo?” A pergunta não precisaria ser feita ao carioca Euclides da Cunha, nem a qualquer intelectual que

se aventurasse a escrever sobre o episódio de Canudos, desde que mantivesse isenção e imparcialidade. Por mais que tenha estudado a geografia, a história, a cartografia, a formação do lugar e do homem sertanejo, Euclides olha de fora, se dói de fora, denuncia de fora e, na hora do julgamento final, toma um partido: “Não tive o intuito de defender os sertanejos, porque este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque”. Diferente de Guimarães falando através de Riobaldo Tatarana: “O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca… O senhor crê minha narração?”

Euclides nunca se avistou com o Conselheiro, nunca o entrevistou em conversa de homens pisando mundos diferentes. Do beato, viu o resultado do exame realizado pelo médico Nina Rodrigues, partidário da pseudociência da frenologia, que defendia que a estrutura do crânio determinava o caráter das pessoas e sua capacidade mental. Responsável por equívocos e crimes, o exame frenológico foi realizado na cabeça do beato, concluindo-se pela normalidade do mesmo, o que só expõe a barbárie e o abuso da ciência da época.

Na nota preliminar à primeira edição de Os Sertões, Euclides assume postura sobre o lugar e os personagens da sua epopeia: “Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil, e fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexo de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir nossa terra.”

Apesar das denúncias feitas e registradas, da comoção diante do massacre, de afirmar que o sertanejo é antes de tudo um forte, Euclides se mantém firme, como observa Leopoldo M. Bernucci: “O narrador toma partido na defesa dos conselheiristas, mas a escolha final, a que determina verdadeiramente a decisão inexorável de combater o fanatismo religioso, a ‘selvatiqueza épica’, em uma palavra, os nossos ‘bárbaros patrícios’, recai nas mãos de um juiz implacável. E nem mesmo o esforço para construir uma frase imparcial e justa, que defina o seu duplo ataque, aos sertanejos e aos ‘singularíssimos civilizados’ nas Notas à 2ª Edição, consegue no final retraí-lo da sua cega fidelidade ideológica ao republicanismo progressivo.”

Os Sertões prevaleceu como obra monumental pela sua linguagem, mesmo que Euclides tenha escrito “num estilo não só barroco – esplendidamente barroco – como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos. Deixando-se apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos de má eloquência que o teriam levado à desgraça literária e ao fracasso artístico”, como anotou Freyre.

Lamentarei se o tom da homenagem a Euclides da Cunha, na Flip, for somente apologista. Vou convencer-me de que a etiqueta com que rotularam os sertanejos continua valendo.

O tempo passou, mas o modelo de violência da nossa sociedade permanece o de sempre, desde a colônia. A República defendida por Euclides nunca se consolidou. Nem mesmo a democracia. Soldados e conselheiristas se irmanam. Os que restam vivos, ao retornarem às cidades grandes, irão morar em morros ou periferias que receberão o nome de favelas, em memória às favelas de Canudos. A história se refaz e se complementa. Agora os “civilizados” tomam o lugar da sub-raça, e passam também a ser exterminados. O sertão se desloca com os homens, sem a liderança social ou espiritual do Conselheiro. Seu novo lugar na periferia das cidades grandes representa um risco maior do que o Arraial de Canudos. A guerra se mantém: sistemática, predatória, manipulada. Irmãos contra irmãos. E os poderosos jogam com os mesmos princípios do início da colonização e sempre ganham.

14 de junho de 2019

ES­TU­DO DO BC MOS­TRA QUE 43,9% DOS USUÁ­RI­OS DO CHE­QUE ES­PE­CI­AL TÊM REN­DA IN­FE­RI­OR A DOIS SA­LÁ­RI­OS MÍ­NI­MOS E 12,5% ES­TÃO COM PA­GA­MEN­TOS ATRA­SA­DOS HÁ MAIS DE 90 DI­AS!

(Estado de S.Paulo, 08) Os bra­si­lei­ros mais po­bres e com me­nos es­co­la­ri­da­de são as mai­o­res ví­ti­mas dos al­tos ju­ros co­bra­dos pe­los ban­cos no che­que es­pe­ci­al. A mo­da­li­da­de de em­prés­ti­mo mais sim­ples, po­rém mais ca­ra, do mer­ca­do tem si­do a saí­da dos tra­ba­lha­do­res com me­nor ren­da pa­ra fe­char as con­tas no fim do mês. O re­sul­ta­do des­sa equa­ção são al­tos ní­veis de ina­dim­plên­cia nes­sas ope­ra­ções, que su­pe­ram o de qual­quer ou­tra li­nha de cré­di­to dis­po­ní­vel pa­ra fa­mí­li­as.

Es­tu­do do Ban­co Cen­tral mos­tra que 43,9% dos usuá­ri­os do che­que es­pe­ci­al têm ren­da in­fe­ri­or a dois sa­lá­ri­os mí­ni­mos (R$ 1.996) e 12,5% es­tão com os pa­ga­men­tos em atra­so su­pe­ri­or a 90 di­as. Ou­tros 33,5% dos cli­en­tes que usam es­se ti­po de cré­di­to ga­nham en­tre dois e cin­co sa­lá­ri­os, com 6,4% de ina­dim­plên­cia.

Con­si­de­ran­do o ní­vel de es­co­la­ri­da­de, a ina­dim­plên­cia no che­que es­pe­ci­al tam­bém é mai­or en­tre aque­les que es­tu­da­ram por me­nos tem­po e não che­ga­ram a cur­sar uma fa­cul­da­de.

A ta­xa mé­dia co­bra­da pe­los ban­cos no che­que es­pe­ci­al pas­sou de 322,7% ao ano em mar­ço pa­ra 323,3% em abril. No cré­di­to pes­so­al, por exem­plo, os ju­ros pas­sa­ram de 45,3% pa­ra 45,9% ao ano.

“Uma vez que bai­xa es­co­la­ri­da­de e bai­xa ren­da es­tão in­ter­li­ga­das, é di­fí­cil sa­ber se a mai­or ina­dim­plên­cia é re­sul­ta­do do não en­ten­di­men­to das ca­rac­te­rís­ti­cas do pro­du­to (ques­tão edu­ca­ci­o­nal) ou do seu cus­to ele­va­do (ques­tão de ren­da) ou ain­da de uma com­bi­na­ção dos dois”, pon­de­ra o BC no do­cu­men­to.

Em de­zem­bro do ano pas­sa­do, o sal­do do che­que es­pe­ci­al to­ta­li­zou R$ 21,98 bi­lhões, dos qu­ais R$ 3,38 bi­lhões es­ta­vam ina­dim­plen­tes. Es­se ní­vel de ina­dim­plên­cia de 15,36% é bem su­pe­ri­or à mé­dia do to­tal de ope­ra­ções de cré­di­to pa­ra pes­so­as fí­si­cas, de 3,25%.

Pa­ra o BC, é im­por­tan­te o de­sen­vol­vi­men­to de es­tra­té­gi­as de uti­li­za­ção des­se ins­tru­men­to de for­ma mais ade­qua­da por seus usuá­ri­os. Em en­tre­vis­ta ao jor­nal Va­lor Econô­mi­co nes­ta se­ma­na, o pre­si­den­te do BC, Ro­ber­to Cam­pos Ne­to, afir­mou que a ins­ti­tui­ção es­tu­da au­to­ri­zar os ban­cos a co­bra­rem uma ta­ri­fa dos cli­en­tes no aces­so ao che­que es­pe­ci­al, em tro­ca de uma re­du­ção dos ju­ros co­bra­dos na mo­da­li­da­de.

Des­de ju­lho do ano pas­sa­do, os ban­cos es­tão ofe­re­cen­do um par­ce­la­men­to pa­ra dí­vi­das no che­que es­pe­ci­al. A op­ção va­le pa­ra dé­bi­tos su­pe­ri­o­res a R$ 200. Se­gun­do a Fe­de­ra­ção Bra­si­lei­ra de Ban­cos (Fe­bra­ban), en­tre ju­lho de 2018 e abril des­te ano, 9,55 mi­lhões de pes­so­as mi­gra­ram do che­que es­pe­ci­al pa­ra o par­ce­la­do. Só em abril, da­do mais re­cen­te, 1,11 mi­lhão de pes­so­as fi­ze­ram a tro­ca da li­nha que co­bra ju­ros mé­di­os de 12,31% ao mês pa­ra a ou­tra, cu­jo cus­to é de R$ 3,21 ao mês, de acor­do com le­van­ta­men­to fei­to com 12 ban­cos que re­pre­sen­tam 90% do mer­ca­do.

A ex­pec­ta­ti­va da Fe­bra­ban era de que es­sa mi­gra­ção do che­que es­pe­ci­al pa­ra li­nhas mais ba­ra­tas ace­le­ras­se a ten­dên­cia de que­da do ju­ro co­bra­do ao con­su­mi­dor. Em ju­nho de 2018, an­tes do iní­cio da no­va di­nâ­mi­ca, a ta­xa do che­que es­pe­ci­al es­ta­va em 304,9% ao ano.

A ou­tra pon­ta. Pa­ra o eco­no­mis­ta da Se­ra­sa Ex­pe­ri­an, Luiz Ra­bi, a ina­dim­plên­cia mai­or no che­que es­pe­ci­al en­tre as pes­so­as com me­nor ren­da e es­co­la­ri­da­de não sig­ni­fi­ca que ape­nas es­sa ca­ma­da da po­pu­la­ção pre­ci­sa­ria de mais edu­ca­ção fi­nan­cei­ra. Se­gun­do ele, mes­mo pes­so­as com mais es­tu­do e co­nhe­ci­men­to so­bre o fun­ci­o­na­men­to des­se ti­po de cré­di­to aca­bam cain­do na ar­ma­di­lha dos re­cur­sos dis­po­ni­bi­li­za­dos de ma­nei­ra au­to­má­ti­ca pe­las ins­ti­tui­ções fi­nan­cei­ras. “As clas­ses de mai­or ren­da e es­co­la­ri­da­de co­me­tem os mes­mos er­ros no che­que es­pe­ci­al, mas con­se­guem sair ra­pi­da­men­te do ins­tru­men­to. Quan­do es­sas pes­so­as exa­ge­ram em com­pras por im­pul­so, nor­mal­men­te su­pe­ram es­se de­se­qui­lí­brio sa­can­do de ou­tra re­ser­va fi­nan­cei­ra”, ex­pli­ca.

13 de junho de 2019

DICK MORRIS: “A ÚNICA MANEIRA DE UM POLÍTICO SAIR VIVO DE UM ESCÂNDALO É FALAR A VERDADE E AGUENTAR O TRANCO”! “UMA MENTIRA LEVA À OUTRA”! 
                       
1. The New Prince: Machiavelli Updated for the Twenty-First Century (El Nuevo Príncipe, editora El Ateneo), de Dick Morris (coordenador de Clinton em 2006), é leitura básica para entender a complexidade da comunicação política dos governos, muito maior que a do marketing eleitoral, pois ocorre dia a dia. E se insere num universo diversificado, de imprensa, comunicação direta, boatos, opinião pública segmentada, contracomunicação da oposição e dos insatisfeitos e da internet. Morris fala disso em Governar, na parte 2 de seu livro. Nele, trata de temas como popularidade cotidiana, exercício da liderança, agressividade ou conciliação, inércia burocrática, cuidar das costas (controlar seu partido), cortejar a oposição, grupos de pressão, buscar recursos e continuar sendo virtuoso, o mito da manipulação da mídia e como sobreviver a um escândalo.
          
2. A este último ponto Morris dedica atenção. “Não há como ganhar na cobertura de um escândalo. A única maneira de sair vivo é falar a verdade, aguentar o tranco e avançar”. Com vasta experiência junto à imprensa dos EUA, lembra que, quando ela abre um escândalo, tem munição guardada para os próximos dias. Os editores fatiam a matéria, pedaço a pedaço, para a cada dia ter uma nova revelação. De nada adianta querer suturar o escândalo com uma negação reativa, pois virão outras logo depois, desmoralizando a defesa. E outros veículos entram com fatos novos para desmentir. Para Morris, a chave é não mentir. O dano de mentir é mortal. “Uma mentira leva à outra e o que era uma incomodidade, passa a ser obstrução criminal à Justiça”.
        
3. A força de um escândalo é a sua importância política. As pessoas perdoam muito mais aqueles fatos sem relação com o ato de governar. E ir acompanhando a reação do público. “Se os eleitores se mostram verdadeiramente escandalizados com o que se diz que ele fez, é melhor que não tenha feito. Roubar dinheiro quase sempre não se perdoa”. Em outros tipos de escândalo, como os de comportamento, os eleitores se mostram mais suaves e compreensíveis. Os mais velhos são sempre menos tolerantes. Os de idade intermediária tendem a ser mais flexíveis, especialmente com escândalos de comportamento. Os eleitores jovens se fixam mais no caráter do governante. Assim, além da complexidade de enfrentar um escândalo, a comunicação de governo deve ser, pelo menos, etariamente segmentada. Na medida em que o governante nada tenha a ver diretamente com o fato, que os responsáveis sejam de fato afastados por traição de confiança. Caso contrário, o próprio governo será contaminado e terá perdido precocemente a batalha de opinião pública e, assim, a batalha política.

12 de junho de 2019

O REMÉDIO PARA A SITUAÇÃO ATUAL É PERSISTIR COM AS REFORMAS!

(José Márcio Camargo, professor economia PUC-RIO – O Estado de S. Paulo, 08) Após a re­ces­são de 2014/2016, a eco­no­mia bra­si­lei­ra re­to­mou a tra­je­tó­ria de cres­ci­men­to. De­pois de cres­cer 1,1% em 2017, a ati­vi­da­de de­cep­ci­o­nou em 2018 e no iní­cio de 2019, quan­do re­cu­ou – 0,2% em re­la­ção ao tri­mes­tre an­te­ri­or. O que acon­te­ceu?

Em 2018/2019, a eco­no­mia foi atin­gi­da por uma sequên­cia de cho­ques ne­ga­ti­vos. Des­va­lo­ri­za­ção cam­bi­al, au­men­to dos pre­ços dos com­bus­tí­veis, da ener­gia elé­tri­ca e dos ali­men­tos, gre­ve de ca­mi­nho­nei­ros, au­men­to das ta­xas de ju­ros nos EUA, guerra co­mer­ci­al en­tre EUA e Chi­na, en­tre ou­tros. Ape­sar dis­so, a eco­no­mia con­ti­nu­ou cres­cen­do e a in­fla­ção em que­da. O Bra­sil foi um dos pou­cos paí­ses emer­gen­tes que não au­men­ta­ram a ta­xa de ju­ros em 2018.

Com­pa­ran­do 2018/19 com o pas­sa­do re­cen­te e com eco­no­mi­as que tra­di­ci­o­nal­men­te se com­por­ta­vam co­mo a nos­sa, o con­tras­te é no­tá­vel. Em 2002, a elei­ção de Luíz Iná­cio Lu­la da Sil­va ge­rou des­va­lo­ri­za­ção cam­bi­al e a ta­xa de in­fla­ção atin­giu 18% ao ano. A Se­lic che­gou a 27% ao ano.

​​​​​​​O slo­gan “eu sou vo­cê ama­nhã” era uti­li­za­do pa­ra ca­rac­te­ri­zar o com­por­ta­men­to das eco­no­mi­as do Bra­sil e da Ar­gen­ti­na. Des­ta vez, en­quan­to o Bra­sil cres­ceu 1,0% com in­fla­ção de 3,5% ao ano, a Ar­gen­ti­na en­trou em re­ces­são (- 3,0%), a in­fla­ção atin­giu 40% e os ju­ros 60% ao ano. Por que a di­fe­ren­ça?

Por­que o Bra­sil im­ple­men­tou um con­jun­to de re­for­mas que mu­dou o fun­ci­o­na­men­to da eco­no­mia. Em es­pe­ci­al, a dí­vi­da pú­bli­ca é ho­je de­no­mi­na­da em re­ais e não em dó­la­res, cri­ou-se um te­to pa­ra o cres­ci­men­to do gas­to pú­bli­co, di­mi­nuin­do a in­cer­te­za quan­to à sol­vên­cia do País, tro­cou-se a Ta­xa de Ju­ros de Lon­go Pra­zo (TJLP) pe­la Ta­xa de Lon­go Pra­zo (TLP), eli­mi­nan­do os sub­sí­di­os do BNDES, fez-se uma re­for­ma tra­ba­lhis­ta e li­be­ra­li­zou-se a ter­cei­ri­za­ção, que re­du­zi­ram a in­de­xa­ção dos sa­lá­ri­os e o Ban­co Cen­tral ga­nhou cre­di­bi­li­da­de. O re­sul­ta­do é uma eco­no­mia mais re­si­li­en­te.

E o cres­ci­men­to? Ape­sar dos cho­ques, a eco­no­mia não en­trou em re­ces­são. No fi­nal de 2018, as ex­pec­ta­ti­vas fo­ram in­fla­das pe­lo re­sul­ta­do das elei­ções. O re­sul­ta­do do pri­mei­ro tri­mes­tre mos­tra que al­go deu er­ra­do.

A eco­no­mia mun­di­al es­tá de­sa­ce­le­ran­do. Chi­na, Eu­ro­pa, Ar­gen­ti­na e os EUA ou es­tão de­sa­ce­le­ran­do ou já es­tão em re­ces­são (Ar­gen­ti­na).

A de­ci­são de aban­do­nar o cha­ma­do “pre­si­den­ci­a­lis­mo de co­a­li­zão” ge­rou ruí­dos e dis­pu­tas en­tre o Exe­cu­ti­vo, o Le­gis­la­ti­vo, a im­pren­sa e as re­des so­ci­ais, in­cer­te­zas quan­to à apro­va­ção das re­for­mas e re­tra­ção dos in­ves­ti­men­tos.

Após seis anos de dé­fi­cits pri­má­ri­os e a dí­vi­da pú­bli­ca che­gan­do a 78% do PIB, o in­ves­ti­men­to pú­bli­co não po­de as­su­mir o pro­ta­go­nis­mo.

Fi­nal­men­te, os ana­lis­tas (eu in­clu­si­ve) su­bes­ti­ma­ram a im­por­tân­cia do res­cal­do ne­ga­ti­vo das po­lí­ti­cas dos anos 2007/2015. Nes­te pe­río­do, o cré­di­to sub­si­di­a­do do BNDES in­cen­ti­vou a com­pra de 300 mil ca­mi­nhões, a Pe­tro­brás se en­di­vi­dou pa­ra cons­truir qua­tro re­fi­na­ri­as e com­prar son­das pa­ra o pré-sal, cri­ou-se uma em­pre­sa cu­jo ob­je­ti­vo era in­ter­me­di­ar a re­la­ção en­tre a Pe­tro­brás e os es­ta­lei­ros que, por sua vez, se en­di­vi­da­ram pa­ra cons­truir as son­das, en­tre ou­tros pro­je­tos mi­ra­bo­lan­tes.

Os ca­mi­nhões não têm car­ga pa­ra trans­por­tar, a Pe­tro­brás aban­do­nou as re­fi­na­ri­as, can­ce­lou a com­pra das son­das e, co­mo se en­di­vi­dou em ex­ces­so, es­tá de­sin­ves­tin­do. Os es­ta­lei­ros (que che­ga­ram a em­pre­gar 70 mil pes­so­as, ho­je em­pre­gam 2 mil) fa­li­ram, e as gran­des em­prei­tei­ras se en­vol­ve­ram em es­que­mas de cor­rup­ção na Pe­tro­brás e en­tra­ram em re­cu­pe­ra­ção ju­di­ci­al. Má alo­ca­ção de re­cur­sos, des­trui­ção de ca­pi­tal e re­du­ção da ca­pa­ci­da­de de in­ves­ti­men­to.

Es­te o di­ag­nós­ti­co. O re­mé­dio: re­jei­tar ata­lhos e po­ções má­gi­cas e per­sis­tir com as re­for­mas. A No­va Pre­vi­dên­cia pa­ra tor­nar sus­ten­tá­vel o te­to do gas­to, tri­bu­tá­ria pa­ra sim­pli­fi­car os im­pos­tos, Or­ça­men­to Im­po­si­ti­vo pa­ra ra­ci­o­na­li­zar o or­ça­men­to, aber­tu­ra da eco­no­mia pa­ra au­men­tar a pro­du­ti­vi­da­de, me­lho­rar re­gu­la­ções pa­ra dar mais se­gu­ran­ça ju­rí­di­ca aos in­ves­ti­do­res em in­fra­es­tru­tu­ra, au­to­no­mia do BC pa­ra re­for­çar a cre­di­bi­li­da­de, e mui­ta edu­ca­ção! ​​​​​​​

11 de junho de 2019

POR QUE É DIFÍCIL FAZER REFORMAS ECONÔMICAS NO BRASIL!

(Marcos Mendes – Introdução, 05/05/2019) O Brasil precisa realizar reformas econômicas como condição necessária para acelerar sua taxa de crescimento e se tornar um país de renda alta, com menos pobreza e menos desigualdade. Tais reformas enfrentam elevada resistência para sua aprovação. Este estudo investiga porque é tão difícil a aprovação de reformas no Brasil.

Para tanto, inicia-se com uma breve descrição das reformas necessárias e seu esperado impacto sobre o crescimento e a redução da pobreza e da desigualdade. Em seguida mostra-se que é difícil aprovar reformas em qualquer lugar do mundo, porém são identificadas condições estruturais que podem facilitá-las.

Observa-se que é mais fácil fazer reformas em países: (a) pequenos; (b) fizeram abertura econômica antes da abertura política; (c) que estão em um dos extremos da escala de democracia: plenamente democráticos ou autoritários; (d) têm sistemas político-eleitorais que facilitam a formação de maiorias no parlamento; (e) têm baixo poder de interveniência do Judiciário nas decisões dos demais poderes; (f) são países com governos unitários; (g) têm constituições pouco detalhistas ou facilmente alteráveis. O Brasil não preenche qualquer desses quesitos, daí o seu atraso e dificuldade em avançar.

O trabalho destaca em seção específica mais um fator facilitador das reformas: a existência de coesão social. O tema merece destaque por ser central para o caso brasileiro e, ao mesmo tempo, muito pouco discutido. O Brasil está muito mal posicionado nos principais indicadores considerados pela literatura: a participação da classe média na renda e o nível de violência. Associado à baixa coesão social também está o grau de confiança mútua. Nesses três aspectos o País ocupa as últimas posições no ranking internacional. Trata-se de situação grave.

Em uma sociedade com esse perfil é difícil obter consenso para a aprovação de medidas que exigem postura cooperativa, confiança no cumprimento de acordos, sacrifício no presente em troca de benefícios futuros. Será difícil avançar em reformas na profundidade exigida pelo caso brasileiro sem que tais reformas incorporem em seu desenho o encaminhamento de soluções para a baixa coesão social e o alto nível de desconfiança mútua.

Mesmo havendo barreiras à realização de reformas em qualquer lugar do mundo, sempre surgem, em alguns momentos históricos, janelas de oportunidade para avançar. A formação de blocos econômicos é uma delas. Países da periferia europeia, por exemplo, conseguiram realizar amplas reformas, pois estas eram precondições para aderir ao bloco econômico regional e ao Euro. O Brasil não teve oportunidade similar. Pelo contrário, sua integração regional se fez através do Mercosul, um bloco mais dedicado ao protecionismo que à expansão do comércio sem exigências de reformas prévias à adesão ao grupo.

Não obstante, o País aproveitou outras condições históricas que surgiram no período1980-2018. Crises econômicas criaram condições para reformas fiscais e monetárias, e para avanços institucionais na gestão pública. As condicionalidades e cooperação técnica do FMI e do Banco Mundial, em programas de ajustamento, ajudaram bastante nesse processo. Mudanças de governo deram espaço nos primeiros meses de mandato para que, utilizando o capital político do chamado “efeito lua de mel”, novos governantes introduzissem reformas. O efeito de aprendizado das primeiras reformas estimulou novos avanços.

Contudo, entre 2005 e meados de 2016 o Governo Federal retrocedeu, desmontando (de facto ou dejure) reformas do período anterior, além de estimular governos estaduais e municipais a irem na mesma direção. A soma desse retrocesso com a fadiga de um modelo de Estado voltado a atender as demandas de todos os segmentos sociais, seja com gasto público, seja com regulação protetora, cobrou preço elevado.

O resultado foi uma recessão sem precedentes, da qual o país começou a sair em 2016, porém em um processo de recuperação muito lenta. Essa crise abriu nova janela para reformas. Uma agenda modernizadora foi estabelecida pela equipe econômica que assumiu em maio de 2016, várias reformas foram aprovadas desde então, mas a agenda é longa e precisa avançar.

Para ser bem-sucedida, tal agenda terá que superar o ambiente hostil decorrentes das barreiras estruturais a reformas existentes no Brasil, analisadas nesse estudo.

O trabalho apresenta sugestões de como lidar com tais dificuldades, de modo a aproveitar ao máximo a nova oportunidade histórica para avançar e, ao mesmo tempo, reforçar instituições que evitem novos retrocessos. Os eixos centrais dessas sugestões são: recomposição das instituições fiscais, que foram dilapidadas no período 2005-2016, melhoria da governabilidade e medidas visando o aumento da coesão social e da confiança mútua.

10 de junho de 2019

CHINA DIMINUI SEU APETITE PELA AMÉRICA LATINA!

(Estado de S.Paulo, 09) Atrasos, descumprimento de prazos e corrupção explicam redução dos investimentos. Em maio de 2015, a en­tão pre­si­den­te do Bra­sil, Dil­ma Rous­seff, re­ce­bia no Pa­lá­cio do Pla­nal­to o pri­mei­ro-mi­nis­tro da Chi­na, Li Keqi­ang. Após os ri­tos ofi­ci­ais, os dois as­si­na­ram uma sé­rie de par­ce­ri­as. A prin­ci­pal de­las: um in­ves­ti­men­to de US$ 50 bi­lhões pa­ra a cri­a­ção da fer­ro­via bi­o­ceâ­ni­ca, que atra­ves­sa­ria a Amé­ri­ca do Sul, en­tre Pe­ru e Bra­sil, e co­nec­ta­ria os oce­a­nos Atlân­ti­co e Pa­cí­fi­co.

Qua­tro anos de­pois, Keqi­ang se­gue no car­go, Dil­ma so­freu im­pe­a­ch­ment e na­da saiu do pa­pel. A bi­o­ceâ­ni­ca é um re­tra­to da si­tu­a­ção dos in­ves­ti­men­tos da Chi­na na Amé­ri­ca La­ti­na nos úl­ti­mos dois anos: pla­nos gran­di­lo­quen­tes, al­tos in­ves­ti­men­tos, mas re­a­li­za­ções tí­mi­das.

A Chi­na se­gue com in­te­res­se pe­la Amé­ri­ca La­ti­na, mas a vi­tó­ria de par­ti­dos de di­rei­ta na re­gião, atra­sos e des­cum­pri­men­to de pra­zos, cor­rup­ção e mai­or aten­ção chi­ne­sa a pro­je­tos na Ásia e na Eu­ro­pa, co­mo o da no­va Ro­ta da Se­da, co­nhe­ci­do co­mo “One Belt One Ro­ad”, fi­ze­ram o in­ves­ti­men­to chi­nês di­mi­nuir na re­gião nos úl­ti­mos dois anos.

Fu­sões, aqui­si­ções e in­ves­ti­men­tos pri­va­dos caí­ram de um ní­vel re­cor­de de US$ 17,5 bi­lhões, em 2017, pa­ra ape­nas US$ 7,6 bi­lhões, em 2018, se­gun­do o Glo­bal De­ve­lop­ment Po­licy Cen­ter. E os ban­cos chi­ne­ses – Ban­co de De­sen­vol­vi­men­to da Chi­na e Ban­co de Ex­por­ta­ção e Im­por­ta­ção da Chi­na – emi­ti­ram ní­veis de fi­nan­ci­a­men­to com­pa­ra­ti­va­men­te bai­xos pa­ra os go­ver­nos la­ti­no-ame­ri­ca­nos nos úl­ti­mos dois anos.

“A Amé­ri­ca La­ti­na é vis­ta co­mo uma ter­ra cheia de vi­ta­li­da­de e es­pe­ran­ça na po­lí­ti­ca ofi­ci­al da Chi­na, mas os in­ves­ti­do­res chi­ne­ses há mui­tos anos con­si­de­ram a dis­tân­cia e a cul­tu­ra la­ti­no-ame­ri­ca­nas em­pe­ci­lhos pa­ra ne­go­ci­ar”, afir­mou ao Es­ta­do Zuo Pin, da Uni­ver­si­da­de de Es­tu­dos In­ter­na­ci­o­nais de Xan­gai. “Os am­bi­en­tes nor­ma­ti­vos, os pro­ces­sos de li­ci­ta­ção pou­co cla­ros e a com­ple­xi­da­de lo­gís­ti­ca das em­pre­sas chi­ne­sas de acom­pa­nhar obras e exe­cu­ções a mais de 15 mil quilô­me­tros de dis­tân­cia são al­guns dos prin­ci­pais pro­ble­mas.”

A Bo­lí­via é um exem­plo das apos­tas de al­to ris­co. Em 2016, o pre­si­den­te bo­li­vi­a­no, Evo Mo­ra­les, re­ce­beu o chan­ce­ler da Chi­na, Wang Yi, pa­ra anun­ci­ar um cré­di­to chi­nês de US$ 4,85 bi­lhões pa­ra que o país apli­cas­se em no­ve pro­je­tos de in­fra­es­tru­tu­ra. Ape­nas um saiu do pa­pel, a ro­do­via El Sil­lar, que li­ga Co­cha­bam­ba a San­ta Cruz.

No ca­so da Ve­ne­zu­e­la, a ins­ta­bi­li­da­de po­lí­ti­ca se tor­nou uma fon­te re­gu­lar de es­tres­se pa­ra po­lí­ti­cos e in­ves­ti­do­res chi­ne­ses, e pa­ra ban­cos e em­pre­sas que ope­ram no país. Ape­sar do apoio po­lí­ti­co ao cha­vis­mo, em 2018, o go­ver­no chi­nês in­ter­rom­peu a con­ces­são de em­prés­ti­mos à Ve­ne­zu­e­la, um si­nal da im­pa­ci­ên­cia de Pe­quim com Ni­co­lás Ma­du­ro. A tor­nei­ra fi­nan­cei­ra foi re­a­ber­ta em 2019, mas em ní­veis me­no­res do que em anos an­te­ri­o­res.

Os ca­sos de Ve­ne­zu­e­la e Bo­lí­via são os mais evi­den­tes, mas ale­ga­ções de cor­rup­ção tam­bém afe­tam ou­tros pro­je­tos chi­ne­ses na re­gião, in­cluin­do uma con­ces­são fer­ro­viá­ria de Qu­e­ré­ta­ro, no Mé­xi­co, e du­as hi­dre­lé­tri­cas na Ar­gen­ti­na. Des­de 2002, as es­ta­tais da Chi­na e os ban­cos ma­ni­fes­ta­ram in­te­res­se em cer­ca de 150 pro­je­tos de in­fra­es­tru­tu­ra de trans­por­te na Amé­ri­ca La­ti­na, mas ape­nas a me­ta­de en­trou em fa­se de cons­tru­ção.

Além dis­so, há tam­bém a con­cor­rên­cia com os am­bi­ci­o­sos pro­je­tos da no­va Ro­ta da Se­da, in­ves­ti­men­tos em in­fra­es­tru­tu­ra na Eu­ro­pa, Ásia e Áfri­ca, que po­dem che­gar a US$ 1,9 tri­lhão nos pró­xi­mos anos. “A Chi­na é re­tar­da­tá­ria na área de in­ves­ti­men­tos in­ter­na­ci­o­nais e é for­ça­da a alo­car ca­pi­tal pa­ra paí­ses e re­giões com mai­o­res ris­cos”, diz Wang Yongzhong, eco­no­mis­ta do Ins­ti­tu­to de Eco­no­mia e Po­lí­ti­ca da Chi­na. “Mas há um li­mi­te pa­ra o grau de ris­co ad­mi­ti­do, e dez anos de in­ves­ti­men­to com pou­co re­tor­no é um mau ne­gó­cio pa­ra qual­quer um.”

Por ques­tões po­lí­ti­cas, paí­ses co­mo Equa­dor e Ar­gen­ti­na re­du­zi­ram em qua­se 50% seus pe­di­dos de fi­nan­ci­a­men­to pa­ra a Chi­na, pa­ra não au­men­tar o ní­vel de dí­vi­da so­be­ra­na com­pro­me­ti­da com os chi­ne­ses. Mui­tos paí­ses es­tão sen­tin­do uma pres­são con­si­de­rá­vel de Washing­ton pa­ra evi­tar gran­des acor­dos com a Chi­na, ca­so do Mé­xi­co e de paí­ses do Ca­ri­be, e até mes­mo do Bra­sil.

“Em­bo­ra as re­ser­vas in­ter­na­ci­o­nais da Chi­na te­nham cres­ci­do, os li­mi­tes pro­vá­veis do cré­di­to dis­po­ní­vel obri­ga­rão os ban­cos e es­ta­tais chi­ne­ses a es­co­lher pro­je­tos no ex­te­ri­or com mais cui­da­do”, es­cre­veu Mar­ga­ret Myers, di­re­to­ra do cen­tro de es­tu­dos In­ter-Ame­ri­can Di­a­lo­gue, na re­vis­ta Ame­ri­cas Qu­ar­terly. “Em­pre­sas e ban­cos chi­ne­ses ten­dem a bus­car opor­tu­ni­da­des mais pró­xi­mas de ca­sa, on­de os cus­tos são mais bai­xos e as re­des, bem es­ta­be­le­ci­das.”