29 de novembro de 2019

CONHEÇA A ECONOMISTA DE ESQUERDA QUE PROPÕE UMA NOVA HISTÓRIA SOBRE O CAPITALISMO!

(Katy Lederer – The New York Times/Folha de S.Paulo, 28) Mariana Mazzucato estava com muito frio. Do lado de fora, era um dia úmido de final de setembro em Manhattan, mas do lado de dentro –em um espaço para conferências da Universidade Columbia, repleto de cientistas, acadêmicos e empresários que assessoram a ONU sobre sustentabilidade—, o ar condicionado estava funcionando a toda força.

Para uma sala lotada de especialistas que discutiam os problemas sociais e ambientais mais urgentes do planeta, isso não só era desconfortável como contrariava a mensagem pretendida. Não importa como estivessem vestidas –ternos, saris, lenços de cabeça–, as pessoas pareciam encolhidas, resguardadas.

Durante uma pausa, Mazzucato enviou um assistente para pedir que o ar condicionado fosse desligado. Como é que mudaremos alguma coisa, ela indagou em voz alta, “se não nos rebelarmos já no primeiro dia?”

Mazzucato, que tem um doutorado em economia e leciona no University College de Londres, está tentando mudar algo de fundamental na maneira pela qual a sociedade pensa sobre valor econômico.

Embora muitos de seus colegas venham expressando desdém pelo capitalismo, recentemente, ela prefere reimaginar suas premissas básicas. De onde vem o crescimento? Qual é a fonte da inovação? Como o Estado e o setor privado podem trabalhar juntos a fim de criar as economias dinâmicas que desejamos?

Ela faz perguntas sobre o capitalismo que deixamos de fazer muito tempo atrás. As respostas que vem propondo podem permitir que superemos os desafios mais difíceis de nossa era.

Em dois livros sobre teoria política e econômica moderna – “The Entrepreneurial State” [O Estado Empreendedor] (2013) e “The Value of Everything” [O Valor de Tudo] (2018) –Mazzucato argumenta contra a visão binária aceita há muito tempo sobre um setor privado ágil e um Estado lento e ineficiente.

Mencionando mercados e tecnologias como a internet, o iPhone e a energia limpa –todas as quais foram bancadas por dinheiro público, em estágios cruciais de seu desenvolvimento–, ela diz que o Estado vem sendo um propulsor de crescimento e inovação sem receber o devido reconhecimento.

“Pessoalmente, acredito que a esquerda está perdendo em todo o mundo”, ela disse em entrevista, “porque se concentra demais em redistribuição e não o suficiente na criação de riqueza”.

A mensagem dela atraiu diversos políticos americanos. A senadora Elizabeth Warren, de Massachusetts, candidata à indicação presidencial pelo Partido Democrata, incorporou o pensamento de Mazzucato em diversos dos anúncios de sua plataforma de campanha, incluindo o de que ela promoveria o uso de “verbas federais de pesquisa e desenvolvimento para criar empregos no país e promover o investimento sustentável no futuro”, e em outra proposta que autorizaria o governo a receber retorno sobre seus investimentos no setor farmacêutico.

Mazzucato também vem trabalhando como consultora da deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez, democrata de Nova York, e de sua equipe sobre maneiras de implementar uma política industrial mais ativa que possa servir como catalisador para um “Green New Deal”.

Mesmo os republicanos encontraram ideias que os agradam no trabalho da economista. Em maio, o senador Marco Rubio, republicano da Flórida, creditou o trabalho de Mazzucato diversas vezes em “Investimento Americano no Século 21”, sua proposta para impulsionar o crescimento econômico.

“Precisamos construir uma economia que possa ver além da pressão por compreender a criação de valor em termos financeiros estreitos e de curto prazo”, ele escreveu na introdução da proposta, “e em lugar disso visualizar um futuro que mereça investimento em longo prazo”.

Formalmente, o evento da ONU em setembro era uma reunião do conselho de liderança da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN, na sigla em inglês). Trata-se de um órgão de cerca de 90 especialistas que assessoram a organização sobre tópicos como igualdade de gêneros, pobreza e aquecimento global. A maior parte dos participantes tem conhecimentos técnicos específicos –Mazzucato cumprimentou um colega, em dado momento, dizendo “você é o cara do oceano”–, mas ela oferece alguma coisa tanto ampla quanto escassa: uma história nova e interessante sobre como criar um futuro desejável.

Nascida na Itália –sua família deixou o país quando ela tinha cinco anos–, Mazzucato é filha de um físico nuclear da Universidade de Princeton e de uma mãe dona de casa, que não falava inglês quando se mudou para os Estados Unidos.

Ela conseguiu seu doutorado em 1999 na New School for Social Research, e começou a trabalhar em “The Entrepreneurial State” depois da crise financeira de 2008. Governos de toda a Europa começaram a instituir políticas de austeridade em nome de fomentar a inovação –um arrazoado que ela considerava não só dúbio mas economicamente destrutivo.

“Há toda uma agenda neoliberal”, ela disse, se referindo aos preceitos recebidos quanto ao livre mercado, no sentido de que cortar orçamentos estimula o crescimento econômico. “E a maneira pela qual a teoria tradicional fomentou isso, ou ao menos não contestou isso, gerou uma espécie de estranha simbiose entre o pensamento econômico dominante e políticas públicas estúpidas”.

Mazzucato questiona muitos dos preceitos da teoria econômica neoclássica lecionada na maioria dos departamentos acadêmicos de economia: sua suposição de que as forças da oferta e procura resultam em um equilíbrio de mercado, a equiparação de preço a valor, e – talvez acima de tudo -, a relegação do Estado ao posto de investidor de último recurso, encarregado apenas de corrigir os fracassos do mercado.

Ela originou e popularizou a descrição do Estado como “investidor de primeiro recurso”, concebendo novo mercados e oferecendo capital de longo prazo, ou capital “paciente”, em estágios iniciais de desenvolvimento.

De modos importantes, o trabalho de Mazzucato se assemelha ao de um crítico literário ou retórico, tanto quanto ao de um economista. Ela escreveu sobre travar o que o historiador Tony Judt classifica como “uma batalha discursiva”, e esquadrinha termos descritivos – palavras como “conserto” e “gasto”, em oposição a “criação” e “investimento” – que foram usadas para solapar os atrativos do Estado como agente econômico dinâmico. “Se continuarmos a retratar o Estado apenas como facilitador e administrador, e lhe dissermos que pare de sonhar”, ela escreve, “no final é isso que teremos”.

Como uma figura carismática em um campo contencioso que não cria muitas estrelas – ela recentemente foi tema de um perfil na edição britânica da revista Wired–, Mazzucato tem seus críticos. Ela costuma ser convidada regularmente para os programas noturnos de entrevistas britânicos, onde se defronta com proponentes da saída britânica do Reino Unido ou céticos quanto à ideia de um Estado que funcione bem com o mercado.

Alberto Mingardi, acadêmico adjunto no Cato Institute, uma organização de pesquisa de inclinações libertárias, e diretor-geral do Istituto Bruno Leoni, um instituto de pesquisa sobre o livre mercado, criticou Mazzucato repetidamente por selecionar de modo capcioso os exemplos que promove, subestimar o balanço entre ganhos e perdas econômicos causados por suas propostas, e por definir política industrial de maneira excessivamente ampla. Em janeiro, em um trabalho acadêmico escrito com um de seus colegas no Cato, Terence Kealey, ele a definiu como “o maior expoente mundial, hoje, da prodigalidade pública”.

Mas as ideias de Mazzucato vêm encontrando audiências receptivas em todo o mundo. No Reino Unido, o trabalho dela influenciou Jeremy Corbyn, o líder do Partido Trabalhista, e a ex-primeira ministra conservadora Theresa May, e ela assessorou a líder nacionalista escocesa Nicola Sturgeon sobre como planejar e colocar em operação um banco nacional de investimento. Ela também assessora órgãos governamentais na Alemanha, África do Sul e outros países.

Durante uma pausa na reunião da ONU, Mazzucato escapou do ar condicionado para conversar com dois colegas em um pátio, falando italiano. Alta, com um físico musculoso, ela usava uma gargantilha de vidro de cores fortes que se tornou uma espécie de marca registrada no circuito da economia. Tendo viajado a cinco países em oito dias, ela estava combatendo uma tosse.

“Em teoria, sou a ‘musa da missão’”, ela brincou, retornando ao inglês. É uma referência à missão original que conduziu o homem à Lua –uma revolução tecnológica patrocinada pelo Estado, consistindo de centenas de projetos individuais, muitos dos quais colaborações entre o setor privado e o setor público. Alguns foram sucessos, alguns fracassos, mas a soma de todos eles contribuiu para o crescimento econômico e para uma explosão na inovação.

A plataforma de Mazzucato é mais complexa –e, para alguns, controversa– do que simplesmente encorajar o investimento governamental, no entanto. Ela escreveu que os governos e as entidades de investimento patrocinadas pelo Estado deveriam “socializar tanto os ricos quanto as recompensas”. Sugeriu que o Estado obtenha retorno sobre os investimentos públicos, por meio de royalties ou de participações acionárias, ou impondo condições para reinvestimento – por exemplo, uma cláusula de limitação da recompra de ações.

Ao enfatizar para as autoridades não só a importância do investimento mas também sua direção – “Em que estamos investindo?”, ela pergunta frequentemente–, Mazzucato influenciou a maneira pela qual os políticos americanos falam sobre o potencial do Estado como propulsor econômico. Em sua visão, os governos deveriam fazer aquilo que muitos economistas tradicionais há muito afirmam que deveriam evitar: criar e dar forma a novos mercados, abraçar a incerteza e assumir grandes riscos.

Dentro da conferência, as notícias eram uniformemente negativas. Pavel Kabat, cientista chefe da Organização Mundial de Meteorologia, lamentou os recordes de temperatura estabelecidos no planeta e disse que os países precisariam triplicar os compromissos assumidos sob o Acordo de Paris, até 2030, se desejam ter alguma esperança de manter o aquecimento global abaixo de um limiar crítico.

Um painel sobre o uso da terra e o desperdício de comida apontou que nove espécies respondem por dois terços das safras do planeta, uma falta perigosa de diversidade agrícola. Todos os especialistas pareciam deprimidos pelo que Jeffrey Sachs, o diretor da SDSN, descreveu como “nacionalismo cru” e “oposição agressiva à globalização que estão em alta em todo o mundo”.

“Precisamos absolutamente mudar tanto a narrativa quanto a teoria e a prática concreta”, disse Mazzucato aos presentes ao falar no último painel de especialistas do dia. “O que quer dizer, de fato, criar mercados nos quais você gera a demanda e começa a direcionar o investimento e a inovação de maneira que possam nos ajudar a atingir essas metas?”

Mais cedo no encontro, ela apontou para um anúncio, em seu laptop. Havia acabado de ser apontada para o primeiro Not the Nobel Prize, uma comenda cujo objetivo é promover “pensamento econômico original”. Mazzucato disse que “os governos despertaram para o fato de que a forma convencional de pensar não os está ajudando”, o que explica por que ela atrai os políticos e as autoridades. Poucos dias mais tarde, Mazzucato foi anunciada como ganhadora.

28 de novembro de 2019

COMO TORNAR O CENTRO FORTE!

(Eurípedes Alcântara – O Globo, 23) ‘O cara matou uma moça por nada e ‘vcs’ estão discutindo em quem ele vota? Esse país se tornou um antro de idiotas mesmo.” Comentário deixado no site do G1 sobre um crime em Sorriso, Mato Grosso, em que a agrônoma Julia Barbosa, de 28 anos, foi morta por tiro disparado por um motorista enfurecido no trânsito. Na caminhonete, emprestada, do assassino confesso havia um adesivo já gasto da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro. O adesivo pode ser ofensivo em si mesmo para quem detesta o presidente e incriminador para quem entende que sua visão sobre as armas incentiva a puxar o gatilho por qualquer coisa. O número absurdo de homicídios no Brasil, porém, precede o atual governo, embora as estatísticas mostrem que as vítimas vêm diminuindo um pouco desde o ano passado, tendência que se repete em 2019.

Pode-se e deve-se politizar a questão do acesso às armas e das regras gerais de engajamento dos policiais com os criminosos. Mas partidarizar cada caso em qualquer região do país não ajuda a solucionar nem diminuir a ocorrência de crimes. Se for possível amenizar sua conclusão figadal sobre o país, o autor do comentário no G1 tocou em um ponto sensível —e não apenas no Brasil. De um domínio negligenciado pela maioria das pessoas, a política partidária passou a ocupar ferozmente até os círculos mais íntimos da nossa interatividade. Saímos em tempo recorde da alienação quase absoluta para a militância cega, sem passar pelo aprofundamento do senso de comunidade.

As pessoas fazem planos para as festas natalinas e entre eles está o de aproveitar o clima de confraternização para se desculparem das ofensas desferidas sem dó durante o ano nos parentes e amigos que pensam diferente delas sobre questões políticas. Isso é intrigante. O mais comum sempre foi justamente o contrário, ou seja, armar-se de argumentos e aproveitar as festas para acertar os ponteiros com aquele tio bacana, generoso, mas reacionário, ou com o sobrinho que se proclama comunista, mas vive de mesada. Vinha janeiro e o tio continuava tão querido quanto reacionário, o sobrinho mantinha sua utopia financiada pelos pais, deixando leve esperança de que estudaria com mais afinco para o Enem no ano que começava. E a vida seguia. Agora, esses encontros tendem a deixar uma certa amargura e a sensação incômoda de que, sem agressões políticas, vivemos uma vida vicária, uma vida substituta —uma vida no lugar da vida de verdade, essa, sim, cheia de sopapos.

Quem tem gato ou adolescente em casa sabe que com eles basta conversar racionalmente e com calma para que nada se resolva. Pessoas dominadas pela fúria da política reagem da mesma forma. Tornam-se impermeáveis a argumentos. Ouvir torna-se uma falsa cortesia, apenas um intervalo para voltar a falar. Isso não é bom. A conversação é o maior patrimônio da humanidade. Todas as demais riquezas acumuladas na caminhada histórica das sociedades são fruto dessa capacidade. Sem a conversação arrisca-se perder, sobretudo, a moderação, virtude essencial da civilidade. É ela que permite a convivência no espaço da proteção mútua dentro das muralhas metafóricas das cidades —em contraste com o “lado de fora” hobbesiano, onde a vida é “atroz, brutal e curta.”

Sem política não teríamos saído das cavernas. Com o extremismo político dominando tudo arriscamos a voltar a elas. Muitos analistas trabalham simplesmente com a noção de que o centro cedeu sob o peso de “ilhas de insatisfação” desconexas e que só existe vida política nos extremos. Os sinais disso, infelizmente, estão por toda parte. Em quase todos os fóruns, como disse o poeta irlandês W.B Yeats há exatos cem anos, “aos melhores falta toda a convicção, enquanto os piores estão tomados pela paixão intensa”. Talvez ajude a desinflar os extremos reconhecer que a democracia e seu corolário material, a economia de mercado, têm seus limites e não podem trazer felicidade pessoal nem nos excitar permanentemente. Ainda bem. Sabemos como acabaram os sistemas político-econômicos arrebatadores que prometeram criar o “novo homem” ou o “homem ariano”. Talvez esperando menos da política, as frustrações sejam menores e maiores as chances de tornar o centro mais robusto.

27 de novembro de 2019

HISTÓRIA DOS EUA AJUDA A ENTENDER O NOSSO ATRASO INSTITUCIONAL!

(Marcos Lisboa – Folha de S.Paulo, 24) Em tempos em que o STF é fonte de incerteza jurídica e os Poderes perderam o pudor de fazer intervenções arbitrárias, talvez seja recomendável, enquanto dura a desordem, deixar na geladeira a comemoração do dia da Proclamação da República.

Para  entender o tamanho do nosso atraso institucional, vale resgatar uma história.

Em 1783, diplomatas negociavam, em Paris, o fim da guerra pela independência dos EUA. Havia reparações de lado a lado, mas os americanos não aceitavam concluir o acordo sem obter a região para além do rio Ohio.

Os ingleses aquiesceram, e a ex-colônia, ainda sem governo, tornou-se proprietária de terras que duplicavam a sua extensão territorial.

Pouco depois, representantes da Confederação dos Estados Americanos elaboravam a Constituição do novo país na Filadélfia, enquanto seu Congresso, em Nova York, enfrentava os conflitos decorrentes da independência.

A Confederação não tinha poder para cobrar tributos e pagar os títulos de dívida com que remunerara seus soldados durante a guerra. As terras obtidas no acordo de Paris vieram em boa hora.

A engenhosidade americana construiu uma solução surpreendente, que congregava revolucionários e oportunistas, incluindo membros do Congresso responsáveis pela sua aprovação.

Muitos colonos da Nova Inglaterra desejavam ocupar a região, que encantava pelos relatos sobre a generosidade das suas terras. Parte da área recebida seria vendida para uma empresa que comercializaria lotes para os colonos e aceitaria como pagamento títulos de dívida emitidos pela Confederação.

Durante semanas, representantes da empresa negociaram com o Congresso as regras no novo território. “O que valeriam as casas dos homens da Nova Inglaterra na ausência de um bom governo?”, dizia-se então, segundo conta David McCullough em seu livro “The Pioneers”.

Em 1787, o Congresso aprovou a Ordenança do Noroeste, atendendo a muitas condições consideradas essenciais pelos colonos para a construção de uma sociedade justa.

As regras previam liberdade religiosa, direito ao habeas corpus e ao julgamento com júri, proibição da intervenção em contratos livremente pactuados, a menos em caso de fraude, e apoio à educação, “que deve ser para sempre incentivada”.

Ficava também proibida a escravidão no novo território.

Alguns dos celebrados direitos individuais das emendas à Constituição americana copiam, quase literalmente, artigos da Ordenança.

Foi preciso, porém, uma guerra civil no século seguinte para que a escravidão fosse abolida no restante do país.

O desenvolvimento dos EUA é filho de longa, por vezes conflitada, construção das instituições, e não de canetadas.

26 de novembro de 2019

OS PARTIDOS E A POLÍTICA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 24) O poder de transformação passa pela política. O tão almejado empoderamento do cidadão passa necessariamente pela política, que é também política partidária.

“A sensação é de que há muita ‘política’ e pouquíssima política ao mesmo tempo”, escreve Marco Aurélio Nogueira no artigo Partidos, movimentos, democracia: riscos e desafios do século XXI, recentemente publicado na edição brasileira do Journal of Democracy. O professor da Unesp faz referência a um quadro contraditório. Os partidos são ainda estruturas importantes – “permanecem como personagens centrais do jogo político e parlamentar” –, mas “perderam protagonismo como agentes de mobilização, educação política e formatação da cidadania. (…) Deixaram de atuar como fatores de hegemonia – de formação de consensos e da fixação de diretrizes ético-políticas –, processo que se transferiu sempre mais para o mercado (o marketing, a publicidade), a indústria cultural e os diferentes ambientes virtuais”.

A situação de crise vai muito além das fronteiras das legendas. “A derrocada dos partidos (…) passou a reforçar a ideia de que a democracia representativa ingressou em crise de igual proporção, com a ampliação da fuga dos eleitores, o aumento do desinteresse político da população e a desvalorização das eleições como método para a escolha dos governantes”, aponta Nogueira.

A relação entre partidos e democracia vem de longa data. Nas democracias representativas de massa surgidas na Europa a partir do final do século 19, as agremiações partidárias eram vistas como elementos fundamentais para o funcionamento democrático. Tal perspectiva está presente, por exemplo, na Constituição de 1988, que lista a filiação partidária entre as condições de elegibilidade. Com essa medida, mais do que impor um trâmite burocrático, a Carta Magna coloca os partidos políticos entre as instituições fundamentais para a organização do Estado, reconhecendo a esfera partidária como etapa obrigatória para o debate, o aprimoramento e a difusão das ideias e propostas políticas. “Ainda que pouco eficientes no diálogo com a sociedade e a opinião pública, os principais partidos funcionam e conseguem transferir alguma estabilidade ao sistema político”, reconhece o professor da Unesp.

No entanto, e aqui está um dos desafios atuais, tal realidade institucional não é percebida pela população. “Em uma época na qual a política não é devidamente valorizada no âmbito estatal e na opinião pública, os partidos são rejeitados por serem vistos como excessivamente poderosos no controle do processo decisório, o que afastaria os cidadãos das decisões políticas e bloquearia a participação cívica, com o efeito colateral de entregar a política aos interesses unilaterais dos políticos e à corrupção”, diz o artigo.

Diante desse distanciamento entre partidos políticos e sociedade, os movimentos ganham força. “Desejosos de participação e refreados pelas idiossincrasias dos sistemas políticos, muitos cidadãos buscam novos espaços de agregação e atuação. Os movimentos tornam-se, assim, uma espécie de desaguadouro do ativismo que floresce na hipermodernidade, expressando uma vontade coletiva de limitar as oligarquias partidárias, reformar a política e inventar novas formas de atuar politicamente. No horizonte de todos esses movimentos, anuncia-se a perspectiva de não repetir a organização tradicional dos partidos políticos.”

Por isso, o ativismo dos movimentos se dá em paralelo, ou mesmo em oposição, ao mundo da política institucional. É como se a força renovadora dessas novas agremiações, incluída a capacidade de dar voz aos cidadãos, dependesse de um distanciamento da política institucional. No entanto, ao se posicionar assim, tal ativismo limita sua própria capacidade de realização desses desejos de mudança. Referindo-se à situação do Brasil em 2019, Nogueira reconhece haver “muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não há propriamente oposição”.

O poder de transformação ainda passa pela política. Ou seja, o tão almejado empoderamento do cidadão passa necessariamente pela política, que é também política partidária. Quando se rejeita esse caminho, a participação política tornase uma utopia, frustrando expectativas e reforçando ainda mais o círculo vicioso do alijamento do cidadão do poder político.

25 de novembro de 2019

INVESTIMENTO EM ECONOMIA CRIATIVA É IMPORTANTE PARA CRESCIMENTO!

(Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural e do MAM-SP, é presidente do Conselho Estadual de Cultura do Estado de São Paulo – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 24) Amplamente estimulada no Reino Unido e em outras sociedades desenvolvidas, a economia criativa —setores que geram riqueza pela inovação— representa 7% dos empregos no Brasil, mas encontra barreiras nos parcos resultados da educação.

O tema das indústrias criativas ganhou atenção no final da década de 1990, após sua ampla difusão nas políticas públicas do Reino Unido. A lógica é que existe um potencial especial de promoção e de crescimento econômico nos setores que geram valor pela criatividade, sobretudo com a definitiva ascensão da importância das atividades baseadas no conhecimento.

Por conta de seu pioneirismo nesse campo, o governo britânico —via Departamento de Cultura, Mídia e Esporte— foi o primeiro a fomentar o debate sobre quais seriam as atividades econômicas protagonistas no âmbito das indústrias criativas.

Com o passar dos anos essa classificação tem sido aprimorada, especialmente para atender a uma crescente corrente de inovação que se espalha por toda economia, para além das áreas reconhecidas como indústrias criativas.

Com essa nova metodologia surge o chamado modelo de “intensidade criativa”. A partir dessa nova classificação, os setores criativos britânicos contabilizaram 2 milhões de empregos em 2017 —somando-se a eles os trabalhadores criativos atuando fora desses setores, chega-se a uma alocação de 3,1 milhões de pessoas na economia britânica, o equivalente a impressionantes 9,5% do total de empregados no país.

Ainda de acordo com esse novo modelo, setores criativos são os que possuem maior percentual de trabalhadores criativos em relação ao total de empregados. Esses profissionais são aqueles focados nas ocupações que envolvem criação, inovação e diferenciação.

Segundo a metodologia adotada, há cinco critérios de avaliação para determinar os trabalhadores criativos de maneira específica:

1) A capacidade de engendrar novos processos, ou seja, de resolver problemas ou de atingir objetivos de maneira inovadora, com o emprego claro e frequente da criatividade.

2) A resistência à mecanização, no sentido de que a atividade desenvolvida dificilmente poderia ser realizada por uma máquina.

3) A não repetição e não uniformização de função. De maneira mais direta, isso significa que a cada vez que a atividade é desenvolvida, o impacto no processo produtivo é diferente, a depender das necessidades e contextos específicos da tarefa.

4) A contribuição criativa à cadeia de valor, ou seja, a atuação do trabalhador em qualquer setor trará inovação e/ou criações.

5) Por fim, é necessário que haja interpretação, não mera transformação. O trabalhador realmente cria e inova, não apenas copiando, adaptando ou mudando a forma de coisas já existentes.

No modelo britânico, é necessário que uma ocupação atenda, no mínimo, a quatro desses critérios para ser considerada criativa.

Adaptando essa classificação à realidade brasileira, após identificar o perfil de nossos trabalhadores criativos e os setores em que eles mais se concentram, poderíamos, de forma não exaustiva, listar algumas atividades econômicas que se destacam: arquitetura, artes cênicas e visuais, atividades artesanais, cinema, televisão, música e radiodifusão, editorial, design, moda, museus e patrimônio, publicidade e tecnologia da informação.

Nesses setores, segundo dados da Pnad Contínua do IBGE, os trabalhadores criativos somaram 4,36 milhões de pessoas no primeiro trimestre de 2019, sendo que 2,57 milhões destes atuam nos setores criativos e os demais 1,79 milhão estão distribuídos nos outros setores da economia, aplicando sua criatividade em produtos e processos diversos.

Nos setores criativos, ainda existem 2,42 milhões de trabalhadores de apoio, que não são os responsáveis pela criatividade, mas auxiliam na execução das atividades. Somando os empregados desses setores aos trabalhadores criativos que atuam fora deles, a economia criativa gera um total de 6,8 milhões de empregos no Brasil, 7,4% do total.

Em um contexto de severa crise econômica no país, um olhar para esses novos processos é fundamental, não apenas pela quantidade de empregos gerados, mas também pelos potenciais de difusão da inovação e catalisação de novos mercados e negócios internos e externos.

Os setores culturais e criativos devem ocupar um papel de relevância na retomada do crescimento e desenvolvimento econômico do Brasil a partir de novos modelos mais aderentes ao século 21.

Contudo, tal qual a Inglaterra (paradigma do liberalismo) fez no início dos anos 1990, é essencial que haja investimentos em cultura, desburocratização da inovação e aporte massivo de recursos em ciência e tecnologia. Tudo isso, mediado e planejado por meio de políticas públicas modernas, claras e estratégicas, pode levar o país a ser protagonista da economia e da sociedade global.

No entanto, em virtude da forte desigualdade no Brasil, tais políticas públicas pedem mais. Não bastariam os investimentos apontados e ações de qualificação profissional para atender às demandas do mundo do trabalho atual.

Certamente, um dos maiores gargalos nessa jornada está tristemente ligado a uma questão estruturante, que impede o país de dar o salto em direção ao mundo do conhecimento: o baixíssimo domínio de nossa língua pátria.

É insustentável nos depararmos com um número persistente de apenas 12% dos brasileiros com grau de proficiência em leitura, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) de 2018.

Formar sujeitos inovadores e reflexivos exige pensamento crítico elevado, com a capacidade de pensar por si e não permitir que outros pensem por nós. Aqui não trago jogo de palavras, mas a síntese do esforço que os governos, a sociedade e as empresas precisam fazer para que possamos entrar num real patamar de desenvolvimento social, cultural e econômico.

Só assim poderemos nos libertar do século 19. Só quando compreendermos o conhecimento a partir de toda sua intensidade criativa, como um ativo estratégico, traremos o Brasil verdadeiramente ao século 21.

22 de novembro de 2019

‘THE CROWN’: LIÇÃO PARA LULA E BOLSONARO!

(Ascânio Seleme  – O Globo, 21) Todo governante deveria ler livros de História antes de assumir seu cargo e ao longo do exercício do seu mandato. Nunca é demais aprender com acertos e erros do passado para melhorar o presente e enriquecer o futuro. Há governantes que não conseguem ler, ficam com sono e preguiça. Outros odeiam livros. Para estes, existem muitos bons documentários, excelentes filmes históricos e séries imperdíveis, como “The Crown”, cuja terceira temporada está disponível na Netflix desde domingo passado.

Na série, há um diálogo educativo, muito útil para os dias de hoje, entre a rainha Elizabeth II e o primeiro-ministro Harold Wilson, que foi o chefe do governo britânico por dois mandatos, de 1964 a 1970 e de 1974 a 1976. A rainha acabara de voltar de uma visita a Aberfan, uma cidade no País de Gales, onde um acidente em uma mina de carvão resultou em 144 mortos, sendo 116 crianças da escolinha local. Ela se queixa ao primeiro-ministro por não ter chorado, lamentando não conseguir oferecer emoção aos seus súditos que sofriam com tamanha perda.

Elizabeth disse ainda a Wilson não ter chorado quando visitou com seu pai, o rei George VI, as ruínas de um ataque alemão a Londres na Segunda Guerra, ou na morte da sua avó, a rainha Mary. Tampouco derramou qualquer lágrima de emoção no nascimento de seu primeiro filho, disse ela. O primeiro-ministro respondeu com uma clareza impressionante. Iniciou o diálogo mostrando que é político e como tal deve cumprir papéis que às vezes não se encaixam ao seu perfil. Depois, explicou à rainha o que as pessoas precisam encontrar em seus líderes.

— Essas reuniões são confidenciais, certo? — certificou-se Wilson, antes de prosseguir.

—Eu nunca fiz um dia sequer de trabalho manual em minha vida. Sou um acadêmico, um privilegiado de Oxford, não um trabalhador — disse o líder trabalhista, o primeiro trabalhista do reinado de Elizabeth II.

—Eu não gosto de cerveja, prefiro conhaque. Eu prefiro salmão selvagem a salmão enlatado. Prefiro um Chateubriand a uma torta de bife com rim — acrescentou, mostrando ter gosto mais sofisticado do que o eleitor que então votava no Partido Trabalhista britânico.

—Eu não gosto de cachimbo, prefiro muito mais um charuto. Mas charutos são símbolo de privilégio capitalista. Então eu fumo cachimbos durante as campanhas eleitorais e na televisão. Me deixa mais próximo das pessoas —disse Wilson, que tem mais fotos na internet com um cachimbo nas mãos ou na boca do que sem ele.

— Nós não podemos ser tudo o que todos querem e ainda assim sermos verdadeiros conosco mesmos. Nós fazemos o que temos de fazer como líderes. Esse é o nosso trabalho. Nosso trabalho é mais acalmar crises do que as criar. Esse é o nosso trabalho. E (Vossa Majestade) o faz muito bem.

Além de mostrar a ambiguidade do político, Harold Wilson explicava a Elizabeth os meandros que formavam uma reputação. Não é possível, nas suas palavras, agradar a todos a todo momento e ainda assim manter-se inalterado. Na série, a extraordinária atriz Olivia Colman mantém Elizabeth II com um ar próximo à estupefação enquanto a soberana ouve as explicações do primeiro-ministro.

As palavras de Wilson pretendiam acalmar Elizabeth, que lamentara não conseguir chorar nem mesmo diante de uma tragédia. E a frase final do diálogo é estupenda, deveria ser impressa, enquadrada e pendurada no terceiro andar do Palácio do Planalto.

—De certa forma, a ausência de emoção (de Vossa Majestade) é uma bênção. Ninguém precisa de histeria num chefe de Estado.

Momentos de sabedoria como esse permeiam a história política da humanidade. Para os principais líderes brasileiros, nunca é tarde para beber em boas fontes. As palavras de Harold Wilson servem muito bem ao presidente Jair Bolsonaro e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O primeiro, passa muitas vezes do ponto da histeria, causando enorme impacto no cotidiano dos brasileiros. O segundo, desde que abandonou o Lulinha paz e amor na cadeia, gera muitas vezes mais estresse do que calma mesmo entre os seus próprios seguidores. Nossos líderes precisam de exemplos. É fácil encontrá-los na História.

21 de novembro de 2019

“EFEITO TÚNEL”!

(Monica de Bolle  – O Estado de S. Paulo, 20) Medidas econômicas revelam cegueira em relação à realidade de um país profundamente desigual.

Em 1973, o grande economista Albert O. Hirschman publicou artigo intitulado “A mutabilidade da tolerância à desigualdade de renda durante o desenvolvimento econômico”. Nesse artigo, ele elaborou a tese do “efeito túnel” a partir de metáfora prosaica. Imagine que você esteja preso em um engarrafamento dentro de um túnel. De repente, a faixa ao seu lado começa a se mover lentamente enquanto a sua continua absolutamente imóvel. A constatação de que enfim o tráfego começou a se mexer lhe dá esperanças de que eventualmente a sua faixa também passe a andar. Portanto, você haverá de tolerar a injustiça inicial de sua imobilidade pois há a expectativa de que em algum momento a movimentação incipiente lhe beneficie. Assim descreve Hirschman os primeiros estágios do desenvolvimento econômico. Quando as economias começam a se desenvolver e crescer, algumas faixas de renda serão beneficiadas primeiro, deixando outras para trás. Há, portanto, um aumento da desigualdade. Contudo, a população tende a tolerar esse aumento da desigualdade porque, como os carros dentro do túnel, têm a esperança de que em breve os benefícios do crescimento econômico acabará lhes trazendo ganhos semelhantes. Nas palavras de Hirschman, enquanto o efeito túnel durar, todos sentem que a qualidade de vida melhorou, ainda que alguns tenham ficado ricos e outros não.

É concebível, portanto, que distribuições desiguais de renda sejam preferíveis a distribuições mais igualitárias, o que torna o aumento da desigualdade politicamente tolerável, ou até desejável. Essa tolerância, obviamente, é apenas eterna enquanto dura. Caso o ciclo de crescimento e desenvolvimento acabe por frustrar as expectativas daqueles que não desfrutam de seus benefícios, a tolerância inicial com a maior desigualdade de renda se transformará rapidamente em ressentimento e intolerância. O efeito túnel é portanto especialmente perigoso para os políticos, que não têm como saber quando a tolerância haverá de se transformar subitamente em intolerância. Embalados pelas expectativas positivas das primeiras etapas do ciclo de crescimento, é provável que se tornem complacentes, ignorando a necessidade de enfrentar as desigualdades criadas. Quando percebem a mudança, já é tarde demais: o povo estará nas ruas ou nas urnas denunciando o mesmo processo que os fez inicialmente acreditar na melhoria de vida, afirmando que os ricos se tornaram mais ricos enquanto o resto ficou para trás.

O efeito túnel de Hirschman é incrivelmente poderoso para explicar o que se passa hoje na América Latina – possivelmente em outras partes do mundo também. Assim como no Brasil em 2013, as manifestações no Chile pegaram o presidente e seu entorno de surpresa. A indignação aparentemente repentina tomou conta das ruas por uma razão aparentemente singela: um pequeno ajuste nas passagens de metrô. Contudo, não foi o aumento do metrô que levou o povo para a rua, assim como em 2013 não foram os 20 centavos. A frustração derramada, às vezes com violência, é fruto do esgotamento da tolerância, da sensação de que ficar naquela faixa engarrafada que não vai a lugar algum dentro de túnel onde não há saídas é insuportável. A conclusão inevitável é que políticas para retomar o crescimento econômico são desejáveis e toleráveis apenas até um certo ponto. Caso não resultem em redução das desigualdades e melhorias concretas de vida para todos tornar-se-ão politicamente inviáveis.

Penso nisso quando vejo a precariedade dos empregos no Brasil, o aumento da informalidade e da pobreza. Penso nisso quando vejo anúncios de medidas econômicas que podem acabar esgarçando ainda mais a rota rede de proteção social brasileira. Penso nisso quando vejo o ministro da Economia com propostas para criar empregos para os mais jovens financiando-as com tributos sobre o seguro-desemprego. Essas medidas revelam uma surdez cega não apenas dirigidas aos ruídos estrepitosos de uma região que se levanta para reclamar de seus líderes, como também em relação à realidade de um País profundamente desigual – o único na América Latina que viu a pobreza aumentar desde 2014, pouco importa de que governo seja a culpa por isso. Pode ser que não aconteça nada. Pode ser que o Brasil continue impávido frente aos problemas sociais existentes e ao que acontece ao seu redor. Mas, não custa nada reler Hirschman. Em 1973, o alcance de sua visão era bem maior do que o dos economistas da Universidade de Chicago na época.

19 de novembro de 2019

ÍNTEGRA DO DISCURSO DO PRESIDENTE DA CÂMARA DE DEPUTADOS NO WOODROW WILSON INSTITUTE, EM NEW YORK, DIA 15/11/2019!

Primeiramente, agradecer e reforçar a relevância do Brazil Institute. Em tempos tão sombrios, de tantos ruídos e distensões, ver uma organização promover o diálogo e construir pontes é uma alegria. O trabalho do Paulo Sotero à frente do Brazil Institute deve servir de modelo para todos nós. O trabalho do instituto de promover o diálogo e a troca de experiências sobre o Brasil aqui nos Estados Unidos é fundamental para todos nós. Parabéns ao Brazil Institute e ao seu diretor!

Muito boa a noite a todos,

Certamente para mim não é uma noite qualquer; também não é uma noite qualquer para os brasileiros que estão aqui. Hoje, 15 de novembro, é a data que nós comemorarmos o nascimento da República. Não sei se este evento e a data foram atos pensados pelo Wilson Center; o que me importa é tentar entender os sinais que surgem ao longo da nossa trajetória. Receber este prêmio no dia da proclamação da República é um grande sinal. Creio que nada na vida é por acaso; o destino, apesar de incerto, é o resultado dos nossos erros e tentativas, do nosso esforço e das nossas escolhas. Os sinais aparecem a todo tempo e eu sempre busco interpretá-los.

No dia em que comemorarmos o nascimento da nossa República, eu recebo esta homenagem em nome de todos os Parlamentares brasileiros. Sim, de TODOS! Dos que pensam como eu, mas também dos que pensam diferente de mim; dos que votaram em mim para presidente da Câmara, mas também para os que votaram em outros candidatos; para os que me elogiam, mas também para os que me criticam. Aceito e dependo do contraditório!

O homem público tem a obrigação de aceitar outros pontos de vista, de acolher as diferenças. Portanto, meu muito obrigado a todos que pensam diferente de mim, que me criticam e que me mostram diferentes caminhos e soluções. Vocês, certamente, são uma grande influência na minha vida.

Aceitar o diferente é um ato de responsabilidade. Eu acredito que a política é a arte de construir consensos, encontrar saídas, enxergar o fiapo de luz na escuridão, oferecer soluções em meio aos conflitos. A política é uma arte, e aqueles que tentam criminaliza-la não se dão conta que a política tá no cotidiano de todos nós. O exercício de convencer um amigo pelas palavras é política; persuadir e lutar por uma ideia dentro de qualquer instituição é fazer política. Quando convencemos pelas palavras temos a capacidade de criar empatia, e quando criamos empatia estabelecemos laços de confiança.

Empatia e confiança: talvez não existam atributos melhores do que esses para definir o presidente Woodrow Wilson. Eu gosto de ver os sinais que a vida nos manda. 2019 é o ano do centenário do prêmio Nobel da paz que o presidente Woodrow Wilson ganhou. Vejam só como a história muitas vezes teima em se repetir. Wilson lutou contra a praga do nacionalismo que foi a centelha para eclosão da 1 grande guerra e apostou todas as fichas na construção de um mundo multilateral. Wilson ganhou o Nobel por apostar e trabalhar por um mundo onde as divergências se solucionam no diálogo. A semente do que hoje é a ONU nasceu com ele na antiga Liga das Nações; isso sem contar o papel fundamental que ele teve na valorização das mulheres ao lutar pelo voto direito ao voto.

A “paz sem vencedores” de Wilson é uma lição para todos que acreditam nos valores democráticos e universais. Nada mais atual e urgente do que lutarmos por uma “paz sem vencedores” nos dias de hoje.

Estamos testemunhando de novo uma onda nacionalista que faz renascer aquelas fagulhas que sempre nos levaram ao caos. Vemos fronteiras sendo fechadas e famílias sendo separadas por uma disputa de espaço imaginária; vemos a cor da pele, a opção religiosa ou sexual sendo usadas como réguas para classificar as pessoas. Que este centenário do Nobel da paz do presidente Woodrow Wilson inspire, ilumine e una os amantes dos valores universais, aqueles que, diferentemente dos que se refugiam nos preconceitos, se fortalecem nas diferenças.

São esses valores também que unem nossos países. E muito além dos produtos que compõe a nossa balança comercial, acho que o principal produto que importamos dos Estados Unidos é o modelo de democracia liberal. A crença na independência dos poderes; a visão de que os poderes devem se fiscalizar para impedir que um se sobreponha ao outro; a luta federalista de independência dos estados; e o respeito divino à Constituição são, na minha opinião, a maior contribuição deste país para o mundo. Não existe democracia que não seja a democracia liberal. Qualquer outro modelo que não considere as bases da democracia representativa deve receber um outro nome. A democracia não é o regime da maioria, é, sobretudo, o regime que protege as minorias.

Eu desejo, profundamente, que os laços do Brasil e dos Estados Unidos se fortaleçam cada vez mais baseados nos valores que comungamos em conjunto. Nossa balança comercial será mais forte se as democracias forem mais fortes; nosso turismo será mais pujante se nossas instituições forem mais sólidas. Carrego comigo uma frase sublime do John Adams que cai como uma luva nos dias de hoje: “Você nunca saberá quanto custou à minha geração preservar a SUA liberdade. Espero que você faça bom uso disso”. Por obra do destino eu nasci em Santiago, no Chile, porque meu pai estava no exílio. Sou filho de um ex-exilado e aprendi que a única coisa inegociável é a liberdade. Sempre haverá grupos que tentarão inverter o processo civilizatório. Para esse grupo o nosso Congresso tem dado respostas inequívocas: não passarão.

Eu sempre digo que uma nação só é forte quando as suas instituições são fortes. Temos trabalhado muito para manter as nossas liberdades, mas também para garantir a liberdade para milhões de brasileiros que ainda vivem na prisioneiros da pobreza.

Seremos mais livres e fortes quando milhões de brasileiros puderem caminhar com as próprias pernas. Fizemos a mais importante reforma da previdência da história; encaminhamos a mais completa reforma tributária; tiramos do papel a reforma administrativa para modernizar o Estado; e criamos um grupo especial para acelerar os projetos de lei que visam combater a pobreza. Nunca produzimos tanto em tão pouco tempo.

Em fevereiro deste ano eu completei 20 anos como deputado. Convivo com lideranças que estão na política há muito mais tempo. Todos são unânimes em dizer que este é o melhor momento do Parlamento brasileiros em décadas. Somos a voz da razão; somos o distensor dos conflitos; somos o ponto de equilíbrio tão necessário para encontrar as saídas. Eu tenho um enorme orgulho de estar à frente da Câmara neste período tão conturbado, mas tão gratificante. Eu me realizo na política; me realizo nos amigos e amigas que tenho no Congresso; estamos mais fortes, mais independentes e mais conscientes do nosso papel histórico.

Vou terminar lembrando o que disse no início: eu gosto de interpretar os sinais. A história não é uma linha reta. Hoje, vivemos um ciclo que guarda semelhantes com o período em que o presidente Woodrow Wilson viveu. Portanto, se há alguma vantagem em estar vivo hoje é lembrar das consequências do nacionalismo, do preconceito, da xenofobia e do desprezo pela ciência. A história se repete em ciclos; depende agora de todos nós que estamos aqui fazer com este ciclo seja lembrado no futuro pelos valores sagrados da democracia liberal que nos unem.

Os dias são duros, as batalhas são intensas, às vezes pensamos que não há mais alternativas, às vezes desanimamos. Mas eu não tenho dúvidas de que o nosso esforço está sendo recompensador, e este prêmio é uma prova disso.  E termino com uma frase emblemática do presidente Woodrow Wilson. Ele disse que “crescemos com os sonhos. Todos os grandes homens são sonhadores. Eles veem as coisas através da névoa suave de um dia de primavera ou através do fogo de uma longa noite de inverno. Cuide dos sonhos durante os dias ruins até que esses sonhos nos tragam a luz do sol que sempre vêm para aqueles que esperam que seus sonhos se tornem realidade”.

Cuidemos dos nossos sonhos de viver em um país mais livre, mais justo e mais humano.

18 de novembro de 2019

‘DESAMPARO E ANGÚSTIA AUMENTAM DEMANDA POR LÍDERES POPULISTAS’!

(O Estado de S. Paulo, 17) Professor de Teoria Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), Thomás Zicman de Barros tem se dedicado a estudar o populismo. Em entrevista ao Estado, ele analisa como o fenômeno afeta a atualidade e aponta a educação política e o fortalecimento das instituições como principal vacina contra esse tipo de discurso.

“Meu diagnóstico desse aumento de demanda por líderes populistas é o desamparo e a angústia na sociedade”, disse Barros. A seguir os principais trechos da entrevista:

Como o sr. define populismo?

Eu definiria populismo como um estilo político. Mas, além disso, o populista é também um produtor constante de crises e instabilidade política, e, através de declarações polêmicas, coloca em xeque regras estabelecidas na sociedade. Pode ser problemático no caso em que essas crises são fantasiosas. Mas existem problemas latentes na sociedade que muitas vezes não são problematizados na esfera pública, e o populista, ao trazer a questão à baila, cria o ambiente para que o tema seja debatido.

O populismo é um perigo para a democracia?

O populismo pode ser um perigo porque a apelação ao povo pode recair na ideia de que existe um povo puro que vai se levantar contra as elites, tidas como moralmente condenadas. Por outro lado, a construção de uma identidade coletiva também pode se dar de forma democrática, mas não deixa de ser instável. Existe uma linha tênue entre o populismo democrático e o populismo antidemocrático.

Existe vacina?

Para além das instituições, que precisam existir e controlar autoritarismos, é um trabalho de educação política das pessoas, para que elas se vacinem, por assim dizer, contra o discurso que divide o mundo entre os puros e os impuros, para que as pessoas entendam que não existe resposta pronta. Mais importante que as instituições, cujo papel é fundamental, é a cultura democrática de tolerância. E, nisso, os líderes políticos têm papel relevante.

Existe um bom populismo?

Pode haver um populismo positivo. O populismo, como lógica política, envolve a construção de uma identidade coletiva, e isso está presente em qualquer movimento político. Quase todos os políticos do Brasil e do mundo falam em nome do povo, da chamada coletividade. Eles apresentam pontos de identificação, constroem uma noção de povo. É possível construir identidades coletivas que sejam tolerantes, que não caracterizem o outro como alguém que deve ser eliminado. A democracia, a meu ver, é acima de tudo uma ética que aceita que não existem respostas definitivas, que não existe uma só resposta para os problemas da nossa sociedade. O populismo positivo se estruturaria em volta desta noção de que o outro não é um inimigo, mas, antes, um adversário.

Vivemos uma “hype populista” mundial?

Quando falamos em “hype populista”, nos referimos a um crescimento do uso do termo, sobretudo pela mídia. A palavra está na moda, o que acaba sendo muito útil para alguns grupos de extrema direita. Para além disso, de fato houve um aumento do número de figuras populistas. Donald Trump é, sem dúvida, um exemplo disso, assim como Hugo Chávez, Marine Le Pen, Evo Morales, a família Kirchner, Bolsonaro e Lula.

Por que o discurso populista é tão aceito hoje em dia?

Uma questão muito relevante hoje é a sensação de falta de reconhecimento das pessoas, que se sentem cada vez mais desamparadas. O governo se mostra incapaz de dar respostas para os problemas cotidianos. Meu diagnóstico desse aumento de demanda por líderes populistas é o desamparo e a angústia na sociedade.

Desde quando existem líderes populistas no Brasil?

Entre os populistas que o Brasil teve incluo Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Jânio Quadros, João Goulart. Mais recentemente, cito Paulo Maluf. Eu também colocaria nessa lista Lula, Bolsonaro, Brizola e Collor, que se encaixa perfeitamente nas características de populismo como estilo político – e olhe que ele era liberal. Populismo, por sinal, não tem a ver com política econômica. Podemos ter populistas liberais, intervencionistas, de esquerda ou de direita.

Como o populismo aparece na disputa política brasileira hoje?

No Brasil de hoje, o termo é utilizado sobretudo para se referir a adversários políticos. Há, na direita brasileira, uma tentativa de vincular o populismo às experiências da esquerda latino-americana, que agora está em crise, somando a isso a ideia de uma irresponsabilidade macroeconômica. Esse movimento também existe do lado da esquerda, que usa o termo para acusar a extrema direita de racista, xenófoba, demagógica e conservadora. De ambos os lados, o termo é utilizado hoje com uma conotação negativa para atacar o antagonista. Além disso, muitas vezes o próprio discurso antipopulista se encaixa numa lógica populista, do nós contra eles. O político antipopulista no discurso é muitas vezes populista em seu estilo.

14 de novembro de 2019

EM TESE, O BRASIL PODERIA TER UM SEGURO QUE GARANTISSE INDENIZAÇÃO DOS PREJUÍZOS DECORRENTES DE UM ACIDENTE AMBIENTAL COMO O VAZAMENTO DE ÓLEO NO NORDESTE!

(Antonio Penteado Mendonça – O Estado de S. Paulo, 11) Em função do óleo que atingiu o litoral brasileiro, causando um dos maiores desastres ambientais da história, um bom número de pessoas tem me perguntado se existe um seguro para este acidente. A resposta é: sim, existe seguro para cobrir danos ambientais. Mas, na prática, ele funciona exatamente ao contrário do que as pessoas estão me perguntando. É a apólice do causador do dano que indeniza os prejuízos decorrentes do acidente e a pergunta que me tem sido feita é se o Brasil poderia contratar um seguro para garantir diretamente o pagamento dos prejuízos bilionários causados pelo óleo.

Em tese, o Brasil poderia contratar um seguro que garantisse a indenização dos prejuízos decorrentes de um acidente ambiental como este. Seria uma apólice contratada pelo governo brasileiro para efetuar o pagamento dos prejuízos decorrentes de um vazamento de petróleo que atingisse o litoral.

As garantias poderiam ser amplas, incluindo as medidas de proteção para impedir que o óleo atingisse a costa, a limpeza das áreas atingidas, a destruição dos resíduos retirados, a recuperação de manguezais, costeiras, praias, ilhas e outras áreas afetadas, os custos para repovoamento de áreas em que a poluição afetasse a vida marinha, etc.

A primeira grande dificuldade seria determinar os capitais segurados e, a segunda, pagar o prêmio do seguro. Uma apólice desta natureza só faria sentido com capitais segurados na casa dos bilhões de dólares. Para dar uma ideia, os prejuízos causados pelo naufrágio de uma plataforma da petroleira BP, no Golfo do México, alguns anos atrás, ultrapassaram US$ 40 bilhões, abalando seriamente a saúde da empresa.

É difícil calcular os prejuízos sofridos pelo Brasil em função do vazamento criminoso de óleo que atingiu a costa – se não pela intenção de causar o dano, pela não comunicação do acidente quando da sua ocorrência.

O país foi pego de surpresa por uma mancha de óleo gigantesca que se move submersa, fora do alcance dos meios de vigilância, incluídos satélites. Levada pelas correntes, a mancha foi se subdividindo e se espalhando por uma imensa área, que abrange todos os Estados do Nordeste, atingidos com mais ou menos severidade, em função das correntes, do tipo de costa, da vegetação e da fauna de cada um.

Não é comum um seguro com estas coberturas. Eu diria mesmo que não há nenhuma apólice contratada por um país para fazer frente aos danos ambientais decorrentes de um acidente de grandes proporções, seja ele de que natureza for. Da mesma forma que o governo norte-americano não tinha seguro para indenizar os danos causados pelo naufrágio da plataforma da BP, o governo da Califórnia ou o governo português não têm uma apólice para indenizar os danos causados pelos incêndios florestais que atingem seus territórios anualmente.

Mas isto não significa que o risco não possa ser segurado. Pode. Apenas as condições dos seguros estão além da capacidade de pagamento dos eventuais segurados.

O que é comum se ter são apólices contratadas por empresas e pessoas para protegerem-se de riscos naturais e mesmo de eventos de origem humana com grande capacidade de destruição.
Neste sentido, as apólices patrimoniais brasileiras disponibilizam garantia para uma série de riscos com este perfil. E as apólices internacionais, especialmente as desenhadas para grandes empresas, costumam ter coberturas ainda mais abrangentes.

Além disso, o seguro de danos ambientais tem como cobertura mais importante a indenização dos prejuízos causados ao meio ambiente, a pessoas e a patrimônios em função de um grande acidente atingir uma determinada área ou região.

Uma das maiores indenizações pagas na carteira de responsabilidade civil foram os danos decorrentes do naufrágio do petroleiro Exxon Valdez na costa do Alasca. Os valores chegaram a vários bilhões de dólares.

Por estas e por outras, não é de se esperar que empresas sérias, com potencial de causar danos desta natureza, não tenham seguros para fazer frente a uma eventualidade.

13 de novembro de 2019

JOGOS DE ESPIONAGEM NA BOLÍVIA!

(José Casado – Globo, 12) A liquefação institucional da Bolívia marca uma inflexão na biografia de dois influentes diplomatas latinos, cujas carreiras foram construídas na intimidade de governos de esquerda.

Um deles é Carlos Zamora, 76 anos, ex-embaixador de Cuba no Brasil nos governos Lula e Dilma. Ele atravessou os últimos 45 anos em cargos relevantes da chancelaria, incluindo a seção Estados Unidos e a embaixada na ONU.

“El Gallo” Zamora, coronel da Direção Geral de Inteligência de Cuba, chegou a La Paz em março, com a mulher Maura Isabel, também oficial da DGI. Virou conselheiro de Evo Morales. De “El Gallo”, porém, jamais se ouviu um canto no Palácio Quemado — ele apenas sussurrava nos ouvidos do presidente.

No páreo estava outro diplomata, o uruguaio Luis Almagro, 56 anos, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos. Emergira como chanceler do governo José Mujica, com quem rompeu ao qualificar a cleptocracia da Venezuela como ditadura (“Te digo adeus”, escreveu-lhe Mujica). Acabou expulso da Frente Ampla, ao admitir intervenção militar externa para remover o ditador Nicolás Maduro. Retrucou, reconhecendo o oposicionista Juan Guaidó como presidente “interino” da Venezuela. Passou a ser visto como agente americano.

Almagro incorporou Evo ao próprio plano de reeleição na OEA, no ano que vem, e até reconheceu-lhe a candidatura ao quarto mandato como “direito humano”, embora a Constituição boliviana proíba. Mas tropeçou em “El Gallo”. Desde então, responsabiliza Cuba e Venezuela por agitações na América do Sul.

No domingo, avalizou a auditoria da OEA dissecando a fraude montada para eleger Evo. Houve de tudo. Principalmente, um inexplicável desvio do endereço (IP) de 350 máquinas do tribunal eleitoral para processamento de votos num servidor externo, ainda desconhecido. “As manipulações são de tal magnitude que devem ser profundamente investigadas”, diz a OEA.

Em La Paz há quem considere o hackeamento similar aos percebidos em eleições na Venezuela, supostamente sob supervisão cubana. Sem provas, condimenta-se o imaginário da espionagem, com Almagro e “El Gallo” Zamora como protagonistas.

12 de novembro de 2019

A DEGOLA NA BABEL DO SÉCULO XXI!

(Paulo Sternick – O Globo, 11) Deus —na metáfora bíblica —não podia imaginar que a estratégia de confundir as línguas não daria certo na atualidade. Criaram tradutores “on-line” e os humanos já poderiam chegar ao céu pelas torres da tecnologia. Verdade? Não. A Babel do século XXI se sofisticou — e ficou paradoxal. Pois hoje é possível se comunicar a qualquer momento, em diferentes línguas, e nas redes sociais. Porém, quanto mais o fazem, mais ficam confusos, atordoados e intolerantes: não chegaram ao céu, mas não estão longe do inferno. Deus é cruel? Não! Ele “ofereceu” excelentes pensadores para tirá-los dessa.

Marshall McLuhan batizou nosso mundo de “aldeia global”. O nome é instigante, e incoerente: aldeia é muito pequena, global é enorme, e com muita gente! A internet, enfim, as redes sociais nos jogaram de volta ao mundo tribal. Estamos todos muito próximos com nossas diferenças. Não percebemos o quanto isso nos pressiona e nos deixa agastados. Aos poucos, a privacidade foi sendo atacada, e fomos soterrados —em câmera lenta — pela enxurrada de contatos e informações. O mundo tribal não é amistoso. McLuhan avisou: um dos principais esportes de um povo da aldeia —em tempo integral —é degolar uns aos outros.

Se as distâncias foram rompidas, e o tempo quase acabou, muita intimidade aumentou a dose de intolerância e incivilidade. O próprio Freud apontara o “narcisismo das pequenas diferenças”. E na esteira de Schopenhauer, usou ainda a metáfora do porco-espinho: na carência, os seres se aproximam, porém, muito perto, se espetam. E o buraco e a falta que os humanos sentem —mais ainda nesta era de incertezas agudas —os levam à procura de uma sutura: as redes sociais, e todas as telas, se somam aos tóxicos que vendem o adiamento do sofrimento.

“Precisamos de contatos menos abrasivos, um pouco mais de distância entre o eixo e a roda. Quando estão juntos demais, perdem o espírito lúdico. Não se brinca mais” — comenta Marshall McLuhan. Ele, porém, não viveu a tempo de conhecer os efeitos da ascensão de Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Mal previu que no Brasil até humorista seria linchado em redes sociais. Porém, a evocação do lúdico é estratégica no atual cenário, onde a ternura não vem calibrando a dureza. O desmanche da polarização e do radicalismo, deixando de corresponder aos que se aproveitam do jogo, é das tarefas políticas mais importantes do momento.

O “New York Times” citou pesquisa científica: desde a Guerra Civil americana não se verifica tanta divisão e polarização nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, nem precisa sondar: há nível inusitado de radicalismo nas discussões. A política tem razões que a razão desconhece, mas também serve para expressão de ressentimento e intolerância oriundas de fontes subjetivas. Porém, a própria realidade carrega conflitos e contradições que opõem os sujeitos numa arena pronta para embates extremos. Até porque líderes escolhidos são afunilados em polos opostos da obtusidade ideológica. Na aldeia global, o meio que junta todos é a mensagem para se desentender. E ofuscar o assunto real.

Desse jeito, há inaudito ataque ao pensamento. A crise econômica não computa nos seus estragos a deterioração moral e psicológica da nação. A mente primitiva passa a pautar o tom e se infiltra até no debate entre economistas. Perturbações do pensamento econômico — oprimido entre a adesão a escolas ortodoxas e assombrações de um passado estereotipado —dificultam tomada de posições mais inteligentes e oportunas, que seriam aptas a ajudar a destravar o crescimento. A austeridade também ataca o pensar, e confirma ser a economia uma ciência realmente triste.

Por fim, ganha “likes” o discurso de que não há mais esperança de que o futuro possa trazer respostas aos impasses do presente. A mentalidade pessimista — ou será realista? — põe na agenda questão assustadora: há realmente progresso humano, além da ciência e da tecnologia? Enfim, melhor pensar que podemos encontrar a paz, se possível for esquecer a paz que no céu sempre buscamos.

11 de novembro de 2019

MEIO AMBIENTE AFASTA INVESTIDOR!

(O Globo, 08) Para presidente da Câmara, questão ambiental afasta investidor estrangeiro. Ele deve encampar pacote de corte de despesas públicas.

No dia em que o governo realizou o segundo leilão de petróleo sem atração de petroleiras internacionais, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou, em entrevista ao GLOBO, que as polêmicas do governo em torno da política ambiental estão entre as razões que afastam investidores estrangeiros do país. Sem fazer menção ao resultado do certame, ele avaliou que, para o Brasil, o meio ambiente é um tema mais sensível por causa das reservas naturais, que não existem em outros países. Apesar da crítica à condução da agenda ambiental pelo governo, Maia está disposto a encampar o pacote de medidas de redução de despesas públicas do ministro da Economia, Paulo Guedes, mesmo que nele haja um ponto crucial que não foi debatido com antecedência com o Parlamento: a possível extinção de municípios pequenos, sem arrecadação suficiente para se manter. Mas criticou esse ponto como um “desgaste” para o Parlamento, o que faria com que o Legislativo não ficasse apenas com a “vitória” de aprovar reformas. Diz ainda que não vê “ambiente” para votar na Câmara a PEC Paralela, que estende a reforma da Previdência a estados e municípios, aprovada no Senado.

A pauta ambiental foi motivo de muitas críticas ao governo recentemente. Como o senhor avalia o impacto econômico?

Temos de ter esse cuidado, até porque são temas muito sensíveis na sociedade brasileira e para os investidores estrangeiros. Muitos investidores estão começando a deixar de pensar no Brasil como uma alternativa de seus investimentos pela questão do meio ambiente. A questão do meio ambiente é mais sensível por causa das reservas naturais, que não existem em outros países. Todos entendem que têm de construir condições para se financiar a floresta. Então, é preciso tomar muito cuidado com esses temas.

No pacote de Guedes, o ponto que permite cortar até 25% da carga horária dos servidores em casos de emergência fiscal é viável?

É, porque isso já era previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal e, por uma liminar (decisão judicial provisória), nunca funcionou. É melhor isso (cortar hora de trabalho) do que o que sobrou na Constituição hoje, que é demitir.

A proposta de Guedes de extinguir municípios pequenos que não se sustentam vai ter resistência no Congresso?

O debate não pode ser só extinguir. A única crítica que eu faço ao governo é que esse não pode ser um debate que coloque a sociedade contra a política. Há um debate de como financiar melhor os municípios que têm pouca receita e são pequenos. E há alguns que cabe discutir se devem existir. Mas um debate frio desses, muitas vezes parece que é um debate assim: vamos jogar algum problema para o Parlamento, para ele não fique só coma vitória de ter responsabilidade, de reformar e modernizar o Estado. Acho que esse artigo foi colocado de forma a criar esse conflito e esse desgaste ao Parlamento. Talvez não tenha sido a preocupação, mas, da forma como está colocado, é exatamente para gerar uma oposição da sociedade contra o Parlamento. Vai jogar, certamente, milhares de vereadores e prefeitos contra o governo federal.

Mas foi proposital essa forma como o governo encaminhou a proposta?

Eu não sei, mas não foi combinado nem com Davi (Alcolumbre, presidente do Senado) nem comigo, pelo menos em nenhuma reunião. Acho que pode ser tratado, não acho ruim que ele tenha vindo. Mas ele veio sem um diálogo. Eu nunca tratei desse tema. Mas é importante que os municípios que têm pouca arrecadação consigam viabilizar as suas atividades, operando de uma forma que não seja sempre com transferência federal.

Os vereadores vão pressionar os deputados…

Vão pressionar o governo. O governo é que trouxe esse tema, e ele agora está colocado. E (vão pressionar) os senadores, porque vai passar no Senado primeiro. Deputados não precisam tratar desse tema agora.

O fato de ser ano eleitoral atrapalha?

Para a gente, não. A proposta não é nossa. Mas tem que debater.

Algum outro ponto do pacote não foi discutido com o Congresso?

Não. Eu não faço crítica ao mérito, faço crítica a como foi introduzido o debate. Todo o resto (do pacote) foi debatido, ou pelo menos informado (ao Congresso).

Como fica o cronograma para conciliar o pacote e a reforma tributária?

Estamos esperando a parte (do pacote) da Câmara chegar, a reforma administrativa, na próxima semana. Vamos trabalhar para que a CCJ vote o mais rápido possível, para que a gente possa começar um trabalho na comissão especial em duas ou três semanas.

Há possibilidade de votar o pacote em 2019?

Não é simples. Semana que vem tem evento do Brics e já inviabiliza a votação. A gente espera votar a PEC do (deputado) Pedro Paulo, que é parecida com a (PEC Emergencial) do governo, mas muito mais densa, na próxima semana ou na outra, para que vire uma comissão especial e fique aguardando o trabalho do Senado.

Mas não deve passar na frente da reforma tributária?

A reforma tributária vai ficar madura para votar nos próximos 30, 40 dias. Pode votar no primeiro semestre ainda na comissão, se tiver apoio, mas não estamos com essa urgência nem na administrativa. No início do próximo ano, depois do Carnaval, a gente pode votar as duas matérias na Câmara e depois encaminhar essas duas para o Senado.

A PEC Paralela da Previdência, aprovada no Senado, vai tratar de assuntos que a Câmara já resolveu não levar adiante, como a reforma da Previdência em estados e municípios. Como o senhor vê isso?

Não temos problema com o tema da PEC Paralela, mas só dois senadores do Nordeste votaram (a favor), e o nosso problema na Câmara foi exatamente o não interesse da maioria dos deputados ligados aos governadores do Nordeste de votar. Esse é um problema que tem que ser resolvido, porque não vejo ambiente na Câmara, sem apoio dos deputados dos partidos de esquerda, para a gente conseguir avançar nessa parte da PEC Paralela, que é a que temos compromisso.

Não é uma ilusão achar que o Congresso pode acabar com o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador)?

Todas as despesas precisam ser avaliadas. Os fundos precisam ser avaliados para que a gente possa ter um Estado que de fato reduza a desigualdade. O Estado brasileiro amplia a desigualdade, porque é concentrador de renda. O governo brasileiro concentra as suas riquezas na elite da sociedade, no setor privado e no setor público.

O senhor disse, no início do ano, que faltava um projeto de país do governo. De lá para cá, isso mudou?

Acho que o governo tem o seu caminho para reduzir desigualdade, para gerar emprego. Do meu ponto de vista, tem toda uma agenda que o governo não trata com tanta prioridade, que nós vamos tratar. Nós entendemos que essa agenda social, que nós estamos começando a construir, precisa ter uma importância que não teve até o momento. É uma questão de estratégia. A equipe econômica acha que tem que resolver primeiro a parte da organização das despesas. Nós entendemos que a pobreza está muito alta, então, precisamos reduzir as despesas e construir caminhos para que as futuras gerações não continuem sendo prejudicadas pela ineficiência do Estado brasileiro.

Quais são os caminhos?

Primeiro, temos que cuidar das famílias e das crianças na extrema pobreza. A extrema pobreza cresceu em 4,5 milhões de brasileiros. Já que estamos economizando nos próximos dez anos, já temos aprovada e projetada (uma economia de) mais de R $1,2 trilhão, como é que a gente consegue trazer para cá parte desse alívio fiscal? Até porque o Brasil vai crescer, então, vai ter aumento de arrecadação, mesmo que não seja muito grande.

08 de novembro de 2019

A VERDADE SOBRE O SANEAMENTO BÁSICO E COMO RESOLVER O PROBLEMA!

(Arminio Fraga e Claudio Frischtak – Folha de S.Paulo, 07) Lemos as críticas ao projeto de lei de saneamento básico em discussão no Congresso que Léo Heller, relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, fez em entrevista para esta Folha na segunda-feira, 28 de outubro.

Concordamos que o saneamento básico no país está muito distante de responder às urgentes demandas da população. Os índices são inaceitáveis, seja em abastecimento de água (estamos estagnados na cobertura —83,5% da população— e nas perdas de 38,3% da água produzida), seja na coleta e no tratamento de esgoto (52,4% e 38,6% da população, respectivamente).

Numa comparação do Banco Mundial baseada no percentual de esgoto tratado, o Brasil se encontra abaixo do México, de países mais pobres como Equador, do Uruguai e muito distante do Chile.

Tal fiasco afeta o bem-estar da população, impõe custos elevadíssimos para o sistema de saúde, reduz a produtividade e a capacidade de gerar renda dos trabalhadores, além de limitar o aprendizado das crianças.

Como chegamos a essa situação?
O entrevistado aponta para duas causas básicas: instabilidade das políticas e escassez de recursos públicos direcionados ao setor, agora agravada pela crise fiscal e pela contenção dos gastos públicos. Discordamos que essas sejam as verdadeiras causas.

Primeiro, porque não há descontinuidade nas políticas. Ao contrário: temos o mesmo modelo há décadas, e uma lei que desde 2007 rege o setor. É justamente este modelo —dominado por empresas públicas e autarquias municipais pessimamente administradas e submetidas a contratos frouxos e frágil regulação— que explica o atraso.

As empresas estatais, por não terem que obedecer a contratos com metas de desempenho nem se submeter a uma fiscalização rigorosa, não cumprem seu papel.

Temos, sim, uma crise de governança nas empresas estatais, o que explica por que os investimentos estão estagnados há uma década em R$ 11,5 bilhões: para nada menos de 20 das 26 empresas estaduais de saneamento básico —as mais relevantes—, os aumentos tarifários no período 2014-2017 foram transferidos para os salários dos funcionários.

Já os investimentos nesse período ou colapsaram (em dez casos) ou se expandiram a taxas inferiores aos gastos com os funcionários.

O contraste com as empresas privadas expõe outro ângulo da questão. As despesas médias em 2017 das empresas públicas com funcionários foram 2,4 vezes superiores às das empresas privadas do setor. Não é por outra razão que estas últimas investem relativamente mais: com apenas 6% do mercado, respondem por 21% do investimento.

O sr. Heller corretamente defende os direitos humanos ao saneamento básico; deveria, portanto, ser o primeiro a denunciar os grupos de interesse que capturaram as empresas públicas, pois é por isso que não sobram recursos para investimentos que beneficiariam os sem saneamento.

Romper o imobilismo e modernizar o setor é o objeto do projeto de lei em discussão no Congresso. O novo marco legal permitirá a concessão competitiva dos serviços à iniciativa privada, sob condições contratuais e metas transparentes, sujeitas à regulação e à fiscalização do Estado.

Os contratos serão desenhados de forma a atingir objetivos sociais e regionais mensuráveis. Em particular, permitirá a constituição de regiões de saneamento em que municípios com distintos níveis de renda farão parte de uma mesma concessão, beneficiando-se igualmente da ampliação da cobertura.

Como já ocorre em outros setores, as tarifas estarão sujeitas a revisões periódicas, que permitirão que ganhos de eficiência obtidos sejam compartilhados com a população.

Se aprovada pelo Congresso, a nova lei trará capital e eficiência ao setor, o que permitirá mais do que dobrar os investimentos do atual nível de 0,20% do PIB para os 0,44% do PIB (aproximadamente R$ 30 bilhões por ano) capazes de, em até duas décadas, universalizar os serviços no país.

Com segurança jurídica e previsibilidade regulatória, será finalmente possível incorporar aqueles historicamente desrespeitados nos seus direitos humanos ao saneamento básico.

07 de novembro de 2019

FIM DA TV COMO FENÔMENO DE MASSA!

(James Poniewozik – New York Times/O Estado de S. Paulo, 06) Pode ser a maior queda da TV de todos os tempos. E também a última. Por “maior” quero dizer em volume. Além das habituais estreias dos canais de TV (ainda operando no horário de volta às aulas, como meio século atrás) e a cabo e das novas temporadas da Netflix, dois novos serviços de streaming da Apple e da Disney chegam neste mês, carregados de novos programas.

E por “última” quero dizer última mesmo, o ato final da “queda da TV” enquanto marco e conceito. Quanto mais o streaming se tornar a principal maneira como as pessoas assistem a séries e programas, menos importantes serão os conceitos de tempo sob os quais a TV operava – temporadas, faixas de programação, horários. E isso mudará a própria cultura da mídia essencial dos Estados Unidos, mesmo que ainda não possamos saber exatamente como.

Muitas das maneiras às quais nos acostumamos a assistir TV são consequência da tecnologia e dos negócios. Setembro se tornou o Ano Novo da TV porque era a época dos lançamentos de novos modelos de carros. Os episódios de TV desenvolveram sua estrutura dividida em atos para abrir espaço para os comerciais. A grade horária semanal se estabeleceu porque era preciso transmitir programas para todos de uma vez só (uma prática que algum dia veremos como um ritual medieval, como assar seu pão no forno comunitário da aldeia).

Esse sistema de televisão foi mudando aos poucos – os canais a cabo começaram a estrear seus programas ao longo de todo o ano, por exemplo – mas, em geral, repetiu seu ciclo orbital, como planetas girando em torno do sol, desde meados do século 20. Agora, duas Estrelas da Morte gigantes, feitas de muito dinheiro, estão em rota de colisão com esse sistema solar. (Na verdade, como a Estrela da Morte agora é propriedade intelectual exclusiva da Disney, talvez seja melhor dizer que são dois asteroides, um deles com orelhinhas de rato).

As séries originais da Disney e da Apple são apenas uma pequena parte da tempestade cósmica que está prestes a cair. Há também os conteúdos de arquivo, especialmente no Disney Plus, que será o cofre do Tio Patinhas da empresa, com os catálogos da Marvel, Star Wars e muito mais. Outros serviços de streaming também vão chegar em 2020, como os da WarnerMedia e da NBC Universal, que dividiram Harry Potter, Garibaldo e Michael Scott como se estivessem escolhendo jogadores para seus times de futebol.

De certa forma, todos os acordos de distribuição e exibição podem ter mais importância do que as novas séries para o novo universo televisivo. É o que sugere o preço de Friends. Afinal, um dos maiores efeitos de distorção do espaço-tempo da ascensão do streaming é que o passado da TV está mais presente do que nunca (a menos que determinado programa não tenha contrato com algum serviço de streaming, nesse caso, é como se nunca tivesse existido).

O efeito do streaming na cultura do assistir a TV parece coisa de ficção científica: de repente, o público está em todos os pontos da história da TV e em nenhum momento específico. É tão fácil acessar toda a série Seinfeld quanto a nova temporada de BoJack Horseman. Uma série antiga pode se tornar tão significativa para o zeitgeist quanto uma nova: é só ver a proliferação de GIFs de The Office nas redes sociais.

Para um crítico de TV – isto é, para alguém que acredita que a televisão é o sistema nervoso pelo qual nossa cultura envia sinais para si mesma – tudo isso é empolgante e assustador. Por um lado, haverá mais de tudo: mais TV antiga, mais TV nova, mais oportunidades para a inovação e a diversidade, pelo menos em teoria.

Por outro lado, o dinheiro também tem aversão ao risco. As mesmas forças econômicas que transformaram a temporada de estreias nos cinemas em uma batalha de franquias podem levar os serviços de streaming a se empenharem em nos trazer novas versões daquelas coisas antigas de que já gostamos: Star Wars e Marvel na Disney Plus, extensões do universo da DC Comics no HBO Max, da Warner. Nenhum conteúdo morre de verdade na era do streaming, e isso pode nos trazer a maldição da vida eterna: algumas marcas imensas e imortais travando a cultura, em detrimento de novas vozes e ideias.

Monocultura. Em certo sentido, como alguns argumentaram, serviços de streaming como a Netflix representam o retorno da monocultura dos primeiros dias da TV: são muito acessíveis, têm grande variedade de programas e conseguem atrair uma audiência vasta (ainda que não verificável).

Mas também são a expressão máxima da cultura fragmentada. Além de os usuários não escolherem os mesmos programas e não os assistirem ao mesmo tempo, os algoritmos famintos por dados dos serviços de streaming oferecem a cada usuário diferentes opções de menu – e até imagens de tela diferentes para os mesmos programas. Milhões de nós assistimos à Netflix, sim, mas, de certa forma, todos assistimos a milhões de Netflixes diferentes e sob medida. O streaming deixou a TV, ao mesmo tempo, maior e menor do que nunca.

O novo e difuso debate sobre a TV pode ser pior ou melhor. Pode significar, por exemplo, mais oportunidades para que bons programas tenham boa repercussão, como as séries da Netflix Inacreditável e I Think You Should Leave tiveram nas redes sociais. Mas, de qualquer maneira, essas serão uma das nossas últimas experiências de cultura de massa – especialmente porque muitos desses programas agora vão morar atrás dos portões da assinatura mensal.

Até certo ponto, o impacto do streaming sobre a cultura da TV dependerá das decisões de cada consumidor na hora de assistir e gastar. Talvez o futuro nos divida em famílias da Disney, famílias da Amazon e famílias da Apple, como seitas religiosas que vivem em um mesmo país, mas mantendo seus próprios costumes .

Ou talvez a maioria de nós se inscreva em tudo e obtenha seus novos e inesgotáveis entretenimentos do século 21 de umas poucas megaempresas – mais ou menos como fizemos no século 20. Poderíamos até criar um nome sofisticado para elas, como “redes” ou “canais”. Esta é mais uma teoria do desconhecido universo quântico em que estamos prestes a entrar: pode ser que, mesmo expandindo, ele acabe por se contrair.

06 de novembro de 2019

EXTREMA DIREITA NÃO SABE ENFRENTAR DESAFIOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA, DIZ YUVAL HARARI!

(Reinaldo José Lopes – Folha de S.Paulo, 05) Os grandes desafios deste século estão todos ligados à ciência e à tecnologia em escala global, o que significa que os políticos da direita nacionalista que chegaram ao poder nos últimos anos em países como os EUA e o Brasil não estão equipados para enfrentá-los. “Eles simplesmente não têm respostas para essas questões”, diz o historiador israelense Yuval Noah Harari.

Autor de livros como “Sapiens” e “Homo Deus”, que há anos não saem da lista de mais vendidos no país, Harari conversou com a Folha num hotel de São Paulo, durante sua primeira visita ao Brasil. Na capital paulista, ele participará de um encontro com um dos autores que inspiraram seu trabalho, o biogeógrafo americano Jared Diamond, e também estará em eventos no Rio e em Brasília.

Harari cita três grandes problemas globais que devem preocupar a humanidade no século 21: mudança climática, ascensão da inteligência artificial e avanços tremendos da biotecnologia e da bioengenharia.

“Essas coisas vão transformar a própria evolução humana. E, quando você escuta o que a extrema direita tem a dizer, vê que eles não têm ideia alguma sobre esses temas. Afirmam que a mudança climática é ‘fake news’, não têm nada a dizer sobre as revoluções tecnológicas e sobre como lidar com a revolução da automação e não têm plano nenhum para criar uma ordem global alternativa. O máximo que eles conseguem imaginar é um mundo formado por fortalezas isoladas, que não tem como funcionar considerando as conexões econômicas mundiais de hoje.”

Além de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, Harari elenca entre essas figuras da direita radical políticos como o italiano Matteo Salvini e o russo Vladimir Putin. “Os grandes desafios que citei só podem ser mitigados por regras de cooperação internacional aceitas pela grande maioria dos países. Pense no estrago que a criação de sistemas de armamentos autônomos pode causar, por exemplo. Não adianta o seu país dizer: ‘Esse negócio é perigoso, não vamos mexer com isso’. Se, por exemplo, os russos começarem a usar esse tipo de sistema, outros países não terão alternativa a não ser desenvolvê-lo também.”

No entanto, para o historiador, ainda é cedo para dizer se essa onda direitista veio para ficar. O que acontecer em 2020, durante a próxima eleição presidencial americana, deve fazer muita diferença para os rumos desses movimentos, prevê ele.

“O que Trump tem feito é recusar o papel que os EUA desempenham desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o de líderes do mundo livre. Isso causou uma bagunça sem precedentes nesse sistema global, que parecia bem estabelecido.”

Apesar de ter defendido, em “Homo Deus”, que a humanidade está perto de adquirir a capacidade de reescrever seu próprio genoma e adquirir longevidade e capacidades quase divinas, Harari diz que não descarta a possibilidade de que existam barreiras fundamentais na biologia humana, as quais impediriam que esse processo fosse levado às últimas consequências.

“Acho que modificações profundas no genoma humano talvez aconteçam daqui a cem ou 200 anos. Não é algo para agora”, explica. Enquanto isso, porém, as possibilidades mais perturbadoras viriam do casamento entre tecnologia da informação e biotecnologia. Governos não democráticos e grandes empresas inescrupulosas poderiam utilizar sensores presentes em smartphones e sistemas de análise maciça de dados para monitorar os estados mentais de cada pessoa em tempo real, com base em coisas aparentemente tão simples quanto detalhes das expressões faciais ou a dilatação das pupilas.

Ainda que esse tipo de pesadelo totalitário não se concretize, Harari diz que historiadores como ele precisam ficar cada vez mais abertos à influência das ciências naturais, em especial por parte da biologia e de sua ideia unificadora, a teoria da evolução.

“É algo que vem acontecendo cada vez mais, em parte porque a história sempre absorveu bastante as contribuições de outras disciplinas, como aconteceu com a economia no século passado”, afirma.

Além do trabalho de Jared Diamond, autor de “Armas, Germes e Aço” e responsável por formular uma história do desenvolvimento das civilizações baseada nos efeitos da agricultura e da criação de animais, Harari destaca a importância de dois primatologistas, o holandês Frans de Waal e o americano Robert Sapolsky, para o desenvolvimento de suas ideias sobre a condição humana.

Para o historiador, entender as sociedades de primatas e o parentesco entre os seres humanos e essas criaturas traz insights sobre os mais diferentes aspectos do comportamento do Homo sapiens, da guerra às configurações familiares. “A ideia ingênua de que a única configuração natural da família humana é formada por um homem, uma mulher e três filhos, por exemplo, cai por terra quando você leva em conta os demais primatas e o nosso passado evolutivo.”

Por outro lado, a história humana possui uma camada extra de complexidade, representada pela criação coletiva de histórias e mitos, cujo papel é conferir significado ao que se faz em sociedade. Essa capacidade exclusivamente humana seria, para o autor, a responsável pela construção de grupos sociais tão complexos quanto Estados, impérios ou a União Europeia.

“É um erro achar que conflitos entre seres humanos normalmente giram em torno da disputa por recursos. Na maior parte das vezes, eles acontecem por causa do conflito entre histórias rivais. O caso do meu próprio país mostra bem isso. Há terra, água e alimentos suficientes tanto para israelenses quanto para palestinos em Israel e nos territórios ocupados. A questão é que as histórias que cada um dos grupos conta sobre seu lugar no mundo não se encaixam uma com a outra.”

05 de novembro de 2019

O NOVO PATAMAR DO JURO NO BRASIL!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S. Paulo, 04) Na última quarta-feira, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central reduziu a taxa básica de juro (Selic) para 5% ao ano e sinalizou pelo menos mais uma queda de 0,5 ponto porcentual, encerrando 2019 em 4,5% ao ano, não sendo descartada queda adicional em 2020. Com isso, a taxa real de juro, após a tributação, estará próxima de zero, podendo até mesmo tornar-se ligeiramente negativa. Até há pouco tempo isso era impensável. Quem fizesse tal previsão não seria levado a sério. Mas não se trata de canetada. O Copom vem seguindo o bom manual de política monetária. Eu mesmo defendi nesta coluna, por mais de uma vez, a necessidade de um afrouxamento monetário mais agressivo, em razão da enorme ociosidade dos fatores de produção existente atualmente na economia e da ausência de pressões inflacionárias.

A grande pergunta no momento é se este nível de juro é transitório, decorrente de condições momentâneas peculiares, ou se veio para ficar, por tempo indeterminado. Acredito que a segunda alternativa seja a mais provável, embora deva ocorrer modesta elevação da taxa real, talvez para 2% a 2,5% ao ano, na medida que a enorme ociosidade existente hoje vá desaparecendo. É claro que tal previsão depende da não ocorrência de choques negativos externos ou internos de grande intensidade, além da manutenção da política de responsabilidade fiscal iniciada no governo Temer e que permanece na atual administração.

Há três razões principais para que a expressiva queda do juro real no Brasil seja duradoura.

A primeira é que os juros internacionais, principalmente nos países desenvolvidos, caíram de forma expressiva e, certamente, por razões estruturais. Isso, evidentemente, pressiona a taxa de juro doméstica para baixo. Vejamos com mais detalhes este ponto.

Em 2014, o renomado economista Lawrence Summers, da Universidade Harvard, provocou muita polêmica com o artigo Reflections on the New Secular Stagnation Hypothesis (Reflexões sobre a hipótese de Nova Estagnação Secular). O texto de Summers é denso e não cabe ser analisado aqui. Destaco apenas sua visão sobre as razões da queda do juro real de pleno-emprego, ou juro neutro, que o autor acredita tenha se tornado muito baixo, provavelmente negativo.

Em síntese, Summers defende que tenha se formado um excesso de oferta de poupança em relação à demanda de fundos para investimentos. O crescimento mais lento da população e os avanços tecnológicos reduzem a demanda por bens de capital para equipar os novos e mais produtivos trabalhadores. Acresce-se a isso a contínua queda que se vem observando nos preços desses bens. O aumento da poupança, ou seja, a queda do consumo, seria uma decorrência natural da crescente desigualdade, que transfere renda dos segmentos da população com maior propensão a consumir para aqueles com maior propensão a poupar. Os dados dos últimos anos dos países desenvolvidos mostram que Summers estava correto.

A segunda razão está ligada à maior austeridade fiscal brasileira, que, a meu ver, tende a continuar. Para ilustrar isso, tomemos o conceito de resultado primário estrutural, ou seja, o resultado primário excluídas as receitas e despesas não recorrentes, e os efeitos do ciclo econômico sobre as contas públicas. Por essa métrica, segundo minhas estimativas, o saldo primário, que era negativo em 1,8% do PIB em 2016, deverá fechar com valor positivo de 0,2% do PIB em 2019. E aqui se cria um círculo virtuoso. O menor patamar de juro real exige superávit primário também menor para estabilizar, ou mesmo reduzir, a relação dívida/PIB.

Finalmente, a terceira razão é a grande credibilidade de que desfruta hoje o Banco Central, que tem permitido a ancoragem das expectativas inflacionárias para valores compatíveis com as metas, até 2023, conforme mostram a pesquisa Focus e o próprio mercado de juros futuros.

04 de novembro de 2019

ATIVIDADE ECONÔMICA MUNDIAL: PRECÁRIA!

(Paulo Leme – O Estado de S. Paulo, 03) Em outubro, o FMI publicou a nova edição do World Economic Outlook (WEO), onde apresenta suas estimativas para a economia mundial para 2019 e 2020. Apesar de não antecipar uma recessão global, as previsões do FMI para a recuperação do crescimento do PIB mundial para 2020 são desanimadoras.

Gita Gopinath, economista-chefe do FMI, rotulou essa recuperação de precária, adicionando que o viés de risco das previsões é para baixo. Fiquei mais preocupado ainda ao ler o relatório irmão do WEO sobre a Estabilidade Financeira Global (GFSR). Este alerta que a política de juros baixos ou negativos deixou o sistema financeiro global vulnerável a uma nova crise financeira.

O WEO prevê que a taxa de crescimento do PIB mundial cairá de forma sincronizada de 3,6% em 2018 para 3,0% em 2019 (o pior resultado desde 2008). Para 2020, o FMI antecipa que o crescimento mundial será de apenas 3,4%. Isso é preocupante, porque as economias desenvolvidas crescerão no mesmo ritmo lento de 1,7% previsto para 2019, e a China desacelerará para 5,8% em 2020, ante 6,6% em 2018 e 6,1% em 2019. Portanto, a modesta recuperação mundial esperada para 2020 dependerá da capacidade de algumas combalidas economias emergentes de saírem da recessão.

O viés das projeções para o crescimento mundial é para baixo, o que é explicado por sete grandes riscos. O primeiro é a intensificação do protecionismo e da guerra comercial iniciada pelos Estados Unidos. Em 2020, as barreiras comerciais reduzirão o crescimento do PIB mundial em pelo menos 0,8% e deprimirão o comércio internacional e a indústria automobilística.

O segundo é o Brexit, caso o Reino Unido e a União Europeia não cheguem a um acordo sensato sobre quais serão as regras de transição. Isso poderia custar ao Reino Unido entre 3,0% a 5,0% de crescimento econômico nos próximos dois anos.

O terceiro é a desaceleração do crescimento do PIB da China, cujo ritmo será ditado pela guerra comercial e falta de reformas. O quarto é a queda da produtividade e o envelhecimento da população nas economias desenvolvidas. O quinto é a incerteza e a perda da confiança dos investidores gerada pela cegueira e a forma errática com que os líderes das economias avançadas vêm conduzido a sua política econômica. O sexto é o risco geopolítico generalizado, o que poderia afugentar os investidores dos ativos de risco.

O sétimo risco é a fragilização do sistema financeiro internacional gerada pelos efeitos tóxicos da política monetária expansionista e de juros baixos ou negativos. É fácil de explicar o problema. Primeiro, as taxas de juros negativas de longo prazo matam a intermediação financeira. Para melhorar os seus resultados financeiros, os bancos são forçados a tomar mais riscos e aumentar o grau de alavancagem.

Em segundo lugar, os grandes investidores institucionais (fundos de pensão, seguradoras, e fundos mútuos) vêm tomando mais risco e investindo em produtos ilíquidos e créditos de má qualidade para minimizar a queda da rentabilidade de suas carteiras. Além disso, os fundos aumentaram exposição a produtos estruturados, alavancados e exóticos. Isso os torna vulneráveis à uma redução do apetite por risco e a mudanças na política monetária. A situação técnica do mercado é ruim, porque os investidores estão aplicados nas mesmas posições e os bancos perderam a capacidade de dar a liquidez necessária para que possam liquidar suas carteiras. Isso é uma das consequências do aperto regulatório e do aumento dos requerimentos de capital e liquidez: os bancos diminuíram o seu estoque de ativos, o que reduz a liquidez e aumenta a volatilidade do mercado – comparável à retirada dos amortecedores de um carro.

Em terceiro lugar, o barateamento do custo do crédito vem estimulando o endividamento excessivo das empresas não financeiras nas economias avançadas e na China. Nos EUA, empresas no segmento de alto risco de crédito estão se endividando não para investir, mas para recomprar ações, pagar dividendos, e adquirir empresas. O grau de alavancagem e o de cobertura do serviço da dívida em relação à receita dessas empresas são preocupantes.

O que poderia ser feito para diminuir esses riscos para a economia mundial? O presidente Trump poderia reverter o dano causado pela guerra comercial e os grandes bancos centrais das economias desenvolvidas deveriam ter um plano crível e um cronograma para a normalização da política monetária.

01 de novembro de 2019

REDUÇÃO DO PAPEL DO ESTADO LEVOU AO POPULISMO RADICAL, DIZ MINISTRO DAS FINANÇAS DE PORTUGAL!

(Folha de S.Paulo, 27) O economista Mário Centeno, 52, membro do Partido Socialista, vencedor da eleição de 6 de outubro, é considerado um dos pais da “geringonça”, a improvável aliança de partidos de esquerda no poder em Portugal desde 2015.

À frente do Ministério das Finanças, Centeno adotou uma receita que foge do modelo baseado em austeridade.

Mesmo mantendo em alta a despesa social, reduziu o desemprego, equilibrou o orçamento e produziu crescimento acima da média da União Europeia. Portugal virou uma espécie de farol para a esquerda, inclusive a brasileira.

“A redução do papel do Estado foi longe demais nas últimas décadas”, diz ele, em entrevista à Folha por e-mail. “Isso abriu o caminho ao populismo radical”, afirma.

Presidente do Eurogrupo, que reúne os ministros das Finanças dos países que adotam o euro, ele cobra um “ponto final” na novela do brexit e critica os EUA por estarem desestabilizando o comércio mundial, pela disputa com a China.

Portugal adotou uma receita que foge das tradicionais medidas de austeridade. Por que foi escolhido esse caminho?

Em 2014, Portugal era um país massacrado pela austeridade, com desemprego de 14%, sucessivos cortes nos salários e pensões e aumentos de impostos. Com déficit superior a 7%, dívida pública que não parava de subir e crescimento bem abaixo da média europeia. Era preciso virar a página da austeridade e das politicas pró-cíclicas para reconquistar a confiança dos cidadãos e fazer as reformas necessárias para recuperar a confiança dos investidores, incluindo uma consolidação orçamentária com credibilidade, que cumprisse as metas.

Os pontos-chave foram reforma abrangente do setor financeiro, devolução de rendimentos dando prioridade aos cidadãos mais penalizados pelos cortes e uma gestão rigorosa do Orçamento. Os resultados estão à vista: a dívida já cai, o tempo dos déficits acabou, crescemos acima da média europeia e recuperamos grau de investimento no mercado de capitais. Portugal passou de país atolado pela crise para exemplo para a Europa alternativas à austeridade.

Qual a importância do papel do Estado na economia?

Diria que o fosso entre os ricos e os pobres e a concentração do poder em poucas empresas sugere que a redução do papel do Estado foi longe demais nas últimas décadas.

A crença de que cada um por si é melhor para todos tem polarizado as nossas sociedades e abriu o caminho ao populismo radical, à esquerda e à direta, por todo o mundo.

O Estado deve fazer uso dos mecanismos de mercado, não se pode deixar usar por estes. Os governos devem garantir concorrência efetiva, assegurar igualdade de oportunidades e substituir o mercado quando este falha. A articulação do papel do Estado varia em função das suas instituições, da história e da estrutura da economia. Mas a sua preponderância em certas áreas é justificada em qualquer circunstância. A saúde e a educação são exemplos. Há ainda a questão ambiental. O Estado deve acelerar a mudança energética para minimizar efeitos das alterações climáticas e proteger os mais afetados.

Por outro lado, a dimensão cada vez mais supranacional dos desafios vai acabar transformando o papel do Estado.

Como evitar que o descontrole do déficit e do endividamento levem Portugal novamente a uma situação como a do início da década?

Evitar esse risco esteve, e está, no topo das prioridades. Portugal é uma pequena economia aberta e, como tal, vulnerável a choques externos. A nossa obrigação é procurar acautelar esses imprevistos para proteger os nossos cidadãos. Isso também exige políticas saudáveis no resto da economia. O melhor exemplo é a supervisão do setor financeiro, em que é preciso impedir práticas danosas que acabem por pesar nos cofres dos contribuintes.

O sucesso da chamada “geringonça” surpreendeu a muitos analistas. Surpreendeu ao sr. também?

Um dos aspectos mais significativos foi a devolução de um sentimento de confiança aos portugueses. Portugal é hoje uma referência de estabilidade política e econômica numa Europa minada pela implosão do centro político. Esta realidade única surpreendeu muita gente, mas no plano econômico não me surpreendeu.

Há pressões de partidos mais à esquerda por aumento dos gastos públicos. Como o sr. vai lidar com elas?

Com o mesmo espírito de diálogo e abertura que tivemos nos últimos quatro anos. Os gastos públicos nas áreas sociais são uma prioridade do governo —representam mais de metade do orçamento. Continuamos comprometidos em combater as desigualdades.

Como o sr. vê a contribuição dos brasileiros para a economia portuguesa?

Portugal tem uma economia moderna, competitiva, integrada na União Europeia, com um governo e um quadro legal estáveis. A continuidade deste crescimento depende, entre outros fatores, do investimento estrangeiro e da imigração.

A taxa de desemprego em Portugal passou de mais de 12% em 2015 para perto dos 6%. Além disso, temos uma população muito envelhecida. Isto quer dizer que o crescimento depende da imigração. E, claro, as pessoas que chegam do Brasil são fundamentais em várias áreas.

O sr. vê risco de que a questão ambiental, sobretudo a referente à Amazônia, atrase ou impeça a confirmação do acordo entre a União Europeia e o Mercosul?

Este acordo comercial demorou duas décadas sendo negociado. É muito importante para as nossas economias, também por questões ambientais. Inclui uma cláusula que obriga as partes a respeitar regras de proteção da natureza.

Os fogos na Amazônia são um flagelo para o Brasil e para o mundo. O caminho de sanções seria contraproducente para a causa ambiental. Temos de estar unidos e de boa-fé encontrar respostas.

O sr. teme que haja efeitos econômicos danosos para a economia causados por um processo mal negociado do brexit?

O primeiro efeito negativo tem sido a enorme incerteza sobre a capacidade de o Reino Unido levar a cabo o brexit. Isso tem deixado em suspenso muitas decisões de famílias, empresas e políticos. Tem sido uma trava ao crescimento do Reino Unido, mas também na Europa.

É preciso por um ponto final nesta incerteza e avançar.

Na União Europeia temos nos preparado para todos os cenários, incluindo [a perspectiva de] uma saída desordenada. Em termos do setor financeiro o estado de preparação é adequado. Mas esta é uma mudança estrutural nas nossas economias, que na União Europeia estão muito interligadas. Vamos ter de dar tempo às pessoas e empresas para poderem se adaptar.

Preocupam ao sr. os efeitos econômicos da disputa comercial entre China e EUA?

Junto com o brexit, o comércio internacional é uma grande fonte de incerteza neste momento. Os EUA estão tentando a todo custo melhorar a sua posição nas relações comerciais com seus principais parceiros. Isso desestabilizou o sistema comercial mundial e tem elevado tensões entre os principais blocos. Ainda não chegamos a uma verdadeira guerra comercial, mas o risco existe.

O acordo parcial firmado recentemente entre os Estados Unidos e a China contribuiu para aliviar um pouco a tensão. Mas as tarifas já aumentaram em muitos setores e há risco de novos aumentos. Do lado europeu, se os nossos interesses forem postos em causa não teremos alternativas a uma retaliação.

Este é um jogo de soma zero —na melhor das hipóteses. Com a incerteza e os aumentos de tarifas, aumentam os preços, cai a produtividade e emerge um clima de desconfiança. Nossa função como políticos é manter abertas as vias de diálogo e cooperação. Foi essa a estratégia que nos trouxe décadas de crescimento.

31 de outubro de 2019

BRIGA COM A ARGENTINA É INÚTIL!

(Elio Gaspari – O Globo, 30) Brasil e Argentina, além de vizinhos, são grandes parceiros comerciais. Ambos estão com taxas de desemprego de dois dígitos. Um torce para que o crescimento de 2019 chegue a 1%, e o outro rala uma contração da economia. Nesse cenário de ruína, Jair Bolsonaro e o presidente eleito da Argentina resolveram se estranhar. Por quê? Por nada.

Donald Trump briga com Xi Jinping, mas ambos defendem seus negócios. Já houve época em que o Brasil e a Argentina crisparam suas relações por motivos palpáveis, como aconteceu em negociações comerciais e em torno da construção da Hidrelétrica de Itaipu. Mesmo nessas ocasiões, os governos comportavam-se com elegância. Durante uma dessas controvérsias, o presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu: “Não gosto dessa coisa truculenta que não leva a nada. Já temos tantas arestas que é melhor nos pouparmos de acrescentar novas.” Agora, em torno do nada, Jair Bolsonaro e Alberto Fernández romperam a barreira da cordialidade.

Utilizando-se uma medida útil para quem observa briga de rua, foi Bolsonaro quem começou. Em junho ele disse que “Argentina e Brasil não podem retornar à corrupção do passado, a corrupção desenfreada pela busca do poder. Contamos com o povo argentino para escolher bem seu presidente em outubro.” Um mês depois, o candidato Alberto Fernández visitou Lula na carceragem de Curitiba. Domingo, no seu discurso de vitória, ele repetiu o “Lula Livre”, e Bolsonaro classificou o gesto como “uma afronta à democracia brasileira”, recusando-se a cumprimentá-lo pela vitória.

Se diferenças ideológicas justificassem tanta agressividade, os Estados Unidos e a falecida União Soviética teriam começado a Terceira Guerra Mundial no final da década dos 40 do século passado.

Não se pode saber qual é a real agenda de Fernández, mas é certo que por trás da agressividade de Bolsonaro há o nada. Pela primeira vez, desde a nomeação de José Bonifácio para a Secretaria de Negócios Estrangeiros por D. Pedro I, o Brasil não tem chanceler.

Diante do que aconteceu na Argentina e no Chile, o evangelismo bolsonarista tem razões para ficar inquieto. Estaria surgindo uma maré popular na América Latina. Uma coisa é decifrar a alma das ruas, bem outra é acreditar que o monstro da opinião pública deve ser desprezado. O PT, que menosprezou as manifestações de 2013, que o diga.

Çábios da ekipekonômica do doutor Paulo Guedes produziram um documento ensinando que “atribuir os recentes protestos sociais ocorridos no país (o Chile) a um mau desempenho econômico e social, comparativamente aos países latino-americanos, não é uma posição corroborada pelos dados”. Falta avisar aos chilenos, que moram lá.

O governo de Dilma Rousseff isolou-se quando fechou-se, alimentando teorias conspirativas. Bolsonaro faz do seu excêntrico isolamento uma plataforma realimentadora de ilusões. Veja-se uma de suas últimas tuitadas: “Chile, Argentina, Bolívia, Peru, Equador… Mais que a vida, a nossa LIBERDADE. Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”

Bolsonaro, um mestre na arte de perder amigos e fazer inimigos, sente-se cercado por hienas e tuitou uma pequena paródia do filme “Rei Leão”, como se ele fosse o Simba. Faltou lembrar que as hienas só comeram o tio (e rei) Scar, que se aliou a elas.