03 de março de 2020

O ESTADO DA DEMOCRACIA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 02) As pessoas parecem não se dar conta de que o genuíno vigor da democracia depende menos do exercício da vontade da maioria do que das garantias às minorias.

Para testar a pertinência da preocupação recorrente com o “declínio da democracia”, o Pew Research Center pesquisou o apoio a princípios e instituições democráticas em 34 países. O resultado revela uma série de inconsistências humanas, demasiado humanas, entre a teoria e a prática: a popularidade dos direitos democráticos é grande, mas a dos deveres, bem menos; as eleições seguem valorizadas, mas os eleitores estão cada vez mais frustrados com seus eleitos; os mais insatisfeitos com o funcionamento da democracia são os menos empenhados em reformá-la. É esclarecedor e preocupante notar a consistência com que o Brasil encarna estas inconsistências.

A pesquisa avaliou o apoio a nove princípios: igualdade de gênero, imparcialidade judicial, eleições livres, além das liberdades de prática religiosa, expressão, imprensa, internet, oposição política e atuação pelos direitos humanos. A imensa maioria tem alguma estima por estes princípios. Mas só nas Américas e Europa, em que pesem as crescentes apreensões com a saúde da democracia, tende-se a considerar todos eles muito importantes.

Um Judiciário justo é, em geral, o princípio mais valorizado (para 82% ele é “muito importante”), seguido pela igualdade de gênero (74%). A liberdade religiosa também recebe amplo apoio (68%). Contrariando a intuição comum, os mais comprometidos com a sua religião são justamente os mais comprometidos com o livre exercício das outras religiões – por outro lado, corroborando esta intuição, os mais favoráveis ao populismo conservador são em geral os menos favoráveis à liberdade de outras práticas religiosas.

Numa era de crescente preocupação com a desinformação, o apoio à liberdade de expressão, da imprensa e da internet cresceu em muitas nações. Em algumas onde as métricas apontam que a liberdade de imprensa efetivamente diminuiu nos últimos quatro anos, como EUA e Turquia, o apoio a ela cresceu expressivamente (quase 20 pontos porcentuais). No Brasil, por outro lado, ele caiu de 71% para 60%.

Eleições regulares e competitivas são o quarto princípio mais valorizado – “muito importante” para 65% dos entrevistados –, mas nos últimos anos o entusiasmo global caiu. Dois terços dos entrevistados acreditam que os representantes eleitos não se importam com o que eles pensam. Em muitos países, como Itália, Alemanha, Polônia e Reino Unido, diminuiu dramaticamente o número de pessoas que acreditam que “o Estado é administrado para o benefício de todos”.

Em média, 52% estão insatisfeitos com o funcionamento da democracia, enquanto 44% estão satisfeitos. A insatisfação é mais comum entre as pessoas de baixa renda e está frequentemente relacionada ao mau desempenho da economia e à desconfiança das elites políticas. Na Europa, ela é particularmente expressiva entre os populistas de direita. Não surpreende que no Brasil, que elegeu um candidato desta estirpe, o porcentual de insatisfeitos tenha caído em apenas um ano de 83% para 56%.

Os dois princípios menos valorizados em todo o mundo são as liberdades de atuação dos grupos de direitos humanos e dos partidos de oposição. Neste último quesito em particular, o Brasil está entre os quatro países mais mal classificados. Apenas 36% dos brasileiros acreditam que é muito importante que a oposição possa atuar com liberdade. Isso diz muito sobre o acirramento das facções políticas à esquerda e à direita, suas convicções e seus métodos.

É alarmante constatar que as pessoas parecem não se dar conta de que o genuíno vigor da democracia depende menos do exercício da vontade da maioria (o que é compatível com o despotismo) do que das garantias às minorias. Muitos indicadores mostram que os brasileiros – como os demais povos – sentem um amor sincero pela democracia. Mas está claro que todos – cada um a seu modo – ainda precisam fazer muito para conhecer o verdadeiro objeto de seu amor e servi-lo como se deve.

02 de março de 2020

CÂMBIO AUTOMÁTICO!

(Paulo Leme – O Estado de S. Paulo, 01) O comportamento da taxa de câmbio é um assunto técnico, mas que desperta acaloradas discussões políticas. O real já se desvalorizou 11% em 2020 e 19% nos últimos 12 meses. Como temos um regime de câmbio flutuante, este é o resultado do mercado automaticamente precificando a moeda de acordo com as mudanças dos fundamentos econômicos no Brasil e no mundo.

Para entender a desvalorização do real, o primeiro passo é determinar qual é o seu preço justo. Hoje, o real está subvalorizado entre 12% a 17%. Portanto, não temos um problema de competitividade: o real está barato e a taxa de câmbio deveria estar entre R$3,80 e R$4,00.

A diferença entre as taxas de inflação entre o Brasil e os EUA (apenas 2%) também não é a causa da desvalorização do real.

O segundo passo é analisar o comportamento do balanço de pagamentos. Nos últimos três anos, o déficit em corrente aumentou em 2 pontos porcentuais do PIB, chegando a 2,85% em janeiro de 2020. Metade deste aumento é devido à queda da taxa de poupança e a outra metade reflete um aumento da taxa de investimento. Por sua vez, o crescimento do investimento e do consumo privado explicam porque as importações subiram e o superávit comercial caiu. Houve uma pequena queda nas exportações, o que é devido a uma pequena queda no volume, mas não nos preços, já que o País não sofreu uma deterioração dos termos de troca. Nos últimos meses, o ritmo do aumento do déficit em conta corrente diminuiu. Portanto, já faz tempo que a taxa de câmbio reflete a deterioração da conta corrente.

Dado que a moeda estrangeira é um ativo financeiro, o mecanismo de transmissão dos juros ao câmbio também se dá através da conta financeira do balanço de pagamentos. Portanto, o terceiro passo é analisar o efeito da política monetária nos fluxos de capitais. Este exercício revela que, desde 2019, a principal causa da desvalorização do real é o corte da taxa Selic de 14,25% a 4,25%. A desvalorização do real se deve à redução de 8 pontos porcentuais na diferença entre a Selic e a Fed Funds rate americana.

A redução na diferença entre as taxas de juros interna diminuiu a taxa de rolagem dos vencimentos da dívida externa das empresas brasileiras abaixo de 50% em 2020, porque agora é relativamente mais barato obter financiamento em reais e no mercado interno. Ou seja, as empresas estão diminuindo o seu financiamento em dólares e aumentando a sua dívida em reais, reduzindo sua exposição cambial. Além disso, houve uma saída líquida dos investimentos estrangeiros de portfólio, principalmente o de ações. Na bolsa, o investidor estrangeiro saiu porque as baixas taxas de crescimento do País e do lucro das empresas limitam o aumento do preço das ações.

O Copom acertou ao reduzir a Selic. No entanto, umas das consequências foi reduzir o superávit da conta financeira e desvalorizar o real. Dado que é provável que o Copom seguirá cortando a Selic, o real continuará a se desvalorizar ao longo de 2020. Para os próximos 12 meses, o mercado futuro de câmbio precifica que o real irá se desvalorizar 2,2%, para R$4,57, que é aproximadamente a diferença esperada entre a Selic e a Fed Funds. É provável que o Fed irá cortar a taxa de juros no dia 18 de março.

Não há nada de errado com o câmbio. Ele vem cumprindo a sua missão: responder automaticamente às mudanças nas variáveis econômicas (internas e externas). O Bacen pode ocasionalmente intervir no mercado de câmbio spot, vendendo reservas internacionais (US$ 359 bilhões), ou no mercado futuro, vendendo swap cambial.

O Bacen só deve intervir no mercado em casos extremos (falta de liquidez ou volatilidade excessiva). E foi exatamente isto que o Bacen fez esta semana. O mercado financeiro global reduziu bruscamente suas posições de risco: o investidor procurou o dólar e vendeu as moedas emergentes que, incluindo o real, se desvalorizaram.

Caso alguém prefira um real forte, a receita é simples: (a) implementar reformas que aumentem a competitividade e reduza os obstáculos às exportações (infraestrutura, impostos, encargos trabalhistas); (b) adotar um programa que estimule produtividade, investimento e crescimento; (c) desenvolver um arcabouço econômico e jurídico para atrair investimento estrangeiro para o setor de infraestrutura; (d) executar o programa de privatizações, contando com um elevado grau de participação de investimento estrangeiro.

Dado que o câmbio também reage às notícias e expectativas, o governo deveria zelar pela imagem do País e das suas instituições, melhorando as manchetes políticas e ambientais na mídia.

28 de fevereiro de 2020

SINAIS TÊNUES DE MAIOR CONFIANÇA DOS INDUSTRIAIS!

(O Estado de S. Paulo, 27) O setor secundário foi o que sofreu mais intensamente as consequências da recessão econômica e o que mais lentamente busca sair do marasmo. É do que trata a prévia da Sondagem da Indústria da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), que ouviu 787 empresas entre os dias 2 e 17 de fevereiro. Cabe citar o período da pesquisa porque nele já estavam presentes as últimas mazelas que afetaram a economia global, como o ataque norte-americano ao Iraque que resultou na morte do general iraniano Qassim Suleimani e a epidemia do coronavírus que já causou mais de 2 mil mortes na China.

Entre janeiro e fevereiro, o Índice de Confiança da Indústria (ICI) avançou 0,7 ponto porcentual e atingiu 101,6 pontos, marca idêntica à registrada em setembro de 2013, quando a economia brasileira vivia um momento melhor. O ICI é o resultado da média de dois outros indicadores.

O Índice de Situação Atual evoluiu de 99,7 pontos em janeiro para 101,4 pontos em fevereiro e o Índice de Expectativas teve uma ligeira queda, de 102 pontos para 101,7 pontos em igual período de comparação. Nos dois casos, o fato de os indicadores registrarem números superiores a 100 pontos revela que ambos estão no campo positivo da pesquisa, o que não havia ocorrido ao longo de todo o ano passado.

O sentimento de maior confiança corresponde apenas parcialmente aos fatos. Por exemplo, o Nível de Utilização da Capacidade Instalada da Indústria (Nuci) ainda é de 76,2%, porcentual idêntico ao de outubro de 2018. A indústria, portanto, continua operando com elevado nível de ociosidade.

Medida pela Sondagem da FGV, a confiança dos empresários industriais vem melhorando desde novembro de 2019. Isso se verifica tanto na série dessazonalizada como na série original. O que se deve ressaltar é que alguns empresários começam a manifestar mais otimismo com relação à economia e ao setor em que atuam.

Os números do desempenho do setor secundário relativos a janeiro de 2020 são conhecidos apenas parcialmente, pois não estão disponíveis as séries compiladas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Será preciso esperar um pouco mais, portanto, para saber se houve efetivamente reação industrial e como esta se distribuiu pelo País. Da recuperação da indústria depende um crescimento saudável em 2020.

27 de fevereiro de 2020

CRÉDITO DE LONGO PRAZO ESTÁ SE CONSOLIDANDO!

(José Roberto Mendonça de Barros e Antonio Sellare, sócios da MB Associados – O Estado de S. Paulo, 26) A queda nas taxas nominais e reais de juros ocorrida nos últimos anos tem produzido alterações nos mecanismos de financiamento de longo prazo utilizados pelas empresas no Brasil.

Estamos hoje com a taxa Selic mais baixa de toda a história, aliada a uma percepção dos agentes de que os níveis atuais de juros vieram para ficar. Além do nível nominal baixo, o juro real medido sobre o IPCA também atingiu níveis nunca experimentado após o Plano Real.

Após terem atingido 7% ao ano em 2014 e em 2015, os juros reais da taxa Selic declinaram de forma marcante para 1,6% em 2019. Nossa expectativa para 2020 é de que o juro real poderá ficar abaixo de 1%.

Esse movimento e as mudanças na operação do BNDES têm tido como efeito uma maior procura por financiamentos via mercado de capitais, em especial pela emissão de debêntures.

Do lado do investidor, também existem mudanças: parte dos recursos tem sido destinada à aquisição de papéis corporativos em substituição a aplicações em títulos públicos em busca de juro real maior.

O afastamento do BNDES pode ser constatado pelos desembolsos feitos nos últimos anos. Entre 2012 e 2015, os desembolsos totais em moeda corrente tiveram uma média anual de R$ 168 bilhões. Nos anos de 2016 a 2018, esses números caíram para R$ 76 bilhões. Para infraestrutura, setor que demanda financiamentos de prazos mais longos, a média anual de 2012 a 2015 foi de R$ 60 bilhões e nos três anos seguintes de R$ 28 bilhões. Em 2019 até setembro, último dado disponível, foram liberados apenas R$ 17 bilhões.

Por sua vez, nota-se no mercado de debêntures tendência em sentido oposto. Entre 2016 e 2019, o número de operações de emissão de debêntures, corrigidas pelo CDI, cresceu continuamente de 202 para 372 e os seus valores passaram de 73 para 146 milhões. Também cresceu o número de operações com debêntures, corrigidas pelo IPCA, de 40 para 112 em 2019, com valores que atingiram R$ 37 milhões.

Embora haja emissões em CDI de prazo longo, é entre as emissões indexadas no IPCA que se encontram maturidades longas com mais frequência e é esse mercado que pode apresentar crescimento ainda maior nos próximos anos, pois se ajusta à grande maioria dos fluxos dos tomadores e atende à demanda de investidores por juros reais melhores que aqueles pagos por títulos semelhantes emitidos pelo governo.

Trabalho divulgado pelo Ministério da Economia em janeiro deste ano aponta que em apenas dois anos, de dezembro de 2017 a dezembro de 2019, o volume mensal negociado no mercado secundário incluindo todos os tipos de debêntures cresceu de R$ 9 bilhões para R$ 20 bilhões. No caso das debêntures incentivadas, majoritariamente indexadas ao IPCA e destinadas a financiamentos de longo prazo de infraestrutura, o volume cresceu de R$ 1,8 bilhão para mais de R$ 5 bilhões.

Estudo recente da MB Associados, com base em dados da Anbima envolvendo debêntures em IPCA de prazo mais longo (maturidade a partir de oito anos) e de alta qualidade de crédito (rating pelo menos AA-), também mostrou crescimento notável. Em janeiro de 2017, foram negociados apenas R$ 111 milhões e em dezembro de 2019 R$ 2,1 bilhões.

Como se percebe, o número de negócios também cresceu substancialmente; de 739 em janeiro de 2017 para quase 10 mil em dezembro de 2019.

No estudo mencionado da MB Associados, foi também calculada a taxa média de negociação dos títulos com base em alguns dias do mês de dezembro de 2019, sempre com informações da Anbima. Considerando apenas os títulos em IPCA de rating elevado e com pelo menos oito anos de maturidade, foi encontrada taxa média de 4,25% ao ano e “duration” (definido como o prazo médio do papel ajustado pelas amortizações) de 5,7 anos.

O mesmo exercício feito para dezembro de 2017 indicou “duration” média de 4,1 anos e taxa média de 6,09%. Para 2018, apuramos “duration” média de 4,4 anos e taxa média de 5,29%. Devemos esperar por um aumento dos prazos médios para os próximos anos para que essas emissões possam abarcar empreendimentos de retorno de mais longo prazo.

Como se nota, a evolução do mercado observada em especial nos dois últimos anos mostra que temos um mercado ativo e estruturado, tendo havido um crescimento acentuado no volume de novas emissões e nos negócios no mercado secundário.

As condições atuais de mercado, que se espera estejam presentes por um longo período, e a crise fiscal do Estado deverão atuar de forma acentuada para um crescimento ainda maior do mercado de debêntures nos próximos anos.

As companhias brasileiras terão de se adaptar a essa situação e dependerão mais de sua competência e governança e menos de proximidade do poder.

As bases do crescimento serão mais sólidas.

21 de fevereiro de 2020

SÃO PAULO CRESCE MAIS DO QUE O BRASIL; O NORDESTE, BEM MENOS!

(Vinicius Torres Freire – Folha de S.Paulo, 20) A economia paulista cresceu 2,75% em 2019, segundo contas feitas com dados do Banco Central. O Nordeste cresceu um quarto disso. O Brasil, 0,89% (1,1%, na mediana da projeção “do mercado”).

São apenas estimativas, que nos últimos anos não têm ficado longe dos resultados do IBGE para o crescimento do PIB, no entanto. Nas contas do Seade, o “IBGE paulista”, São Paulo teria crescido 2,5% nos 12 meses contados até novembro.

A recessão em São Paulo começou antes. O estado começou a afundar no vermelho em 2014 (quando o Brasil ainda cresceria o quase nada de 0,5%). A recessão foi mais profunda. A economia encolheu 8,2% entre 2014 e 2016, ante 6,2% de queda no Brasil; a baixa foi maior do que a de qualquer grande região.

Desde 2018, São Paulo anda mais rápido, em particular pela aceleração do setor de serviços. A média nacional é mais lerda por causa do Nordeste e de resultados ruins ou fracos de grandes economias com governos em crise fiscal feia como a de Minas Gerais (também prejudicada pelo desastre de Brumadinho) e a do Rio de Janeiro, que se recuperou um pouco por causa do petróleo.

O Nordeste cresce menos do que a média nacional, a julgar pelas estimativas do PIB regional, sempre sujeitas a muitas revisões, embora os números já oficiais de rendimentos do trabalho, da indústria e do comércio evidenciem a fraqueza.

A região não se recuperou do fim do ciclo de obras dos anos petistas, algumas delas de resto desastrosas (como a refinaria Abreu e Lima). Meia dúzia de anos de seca até 2018, colapso de preços e produção de petróleo e da quimérica indústria naval deixaram sequelas.

Mais recentemente, a indústria nordestina tem apanhado muito mais que a do restante do país. Foi muito prejudicada pela baixa da produção de veículos, arrastada pela crise argentina, pela retração na petroquímica e na celulose.

O desemprego é cronicamente mais alto na região, mas a oferta de trabalho se recupera de modo ainda mais lento do que a lerdeza desesperadora do país inteiro. A limitação do crescimento de benefícios sociais (contidos ainda pelos reajustes quase nulos do salário mínimo) deve também ter tido impacto na região.

No conjunto do Brasil, a virada do ano ainda é uma incógnita com cheiro de queimado. Os dados de comércio, indústria e serviços para o trimestre final de 2019 foram frustrantes, ainda mais para quem fazia festinha na praça financeira. No entanto, os dados das contas nacionais, do PIB, do IBGE têm informações mais completas –saem daqui a duas semanas. Logo, é prematuro decretar o fracasso do final de 2019.

Tampouco haverá sucesso. A expectativa mais razoável e menos deprimida ainda é a de continuidade do ritmo de crescimento que vem desde a metade do ano passado. Mantido esse passo até o final deste 2020, o país terá crescido um tico mais de 2%. É pouco, mas seria o primeiro ano com algum avanço do PIB per capita.

Os dados mais recentes para este ano, vagos e precários, indicam que a confiança da indústria continuou a crescer, assim como a intenção de consumo das famílias. Por ora, não dá para dizer que haverá frustração grande de expectativa, como vimos no vexame do início de 2019.

Afora a possibilidade de catatonia estrutural da economia brasileira, os riscos maiores são a baderna política promovida pelo governo e a doença do novo coronavírus, um bicho ainda mal conhecido, mas que terá algum impacto também no Brasil.

20 de fevereiro de 2020

VENEZUELA CEDE PARTE DO CONTROLE DE RESERVAS PETROLÍFERAS!

(O Estado de S. Paulo, 19) Em um gesto de sobrevivência, após décadas no comando do seu setor petrolífero, o governo de Nicolás Maduro resolveu ceder o controle da sua indústria para companhias estrangeiras, para dar fôlego à economia e se manter no poder. Trata-se de uma reviravolta na estratégia da Venezuela em relação ao domínio de suas reservas de petróleo, as maiores do mundo e a espinha dorsal da economia do país.

Sob o peso das sanções americanas e os efeitos da corrupção e má gestão, a Petroleos de Venezuela, ou PDVSA, vem se desintegrando e abrindo espaço para parceiros estrangeiros.

Na prática, companhias privadas vêm extraindo o petróleo bruto, promovendo as exportações, pagando os funcionários, comprando equipamentos e até mesmo contratando equipes de segurança para proteger suas operações no interior do país, hoje em situação de ruína, segundo consultores da área de petróleo que trabalham no país. Para Rafael Ramírez, que dirigiu o setor no país por mais de uma década, o que ocorre é “uma privatização oculta”.

Mais sanções. Diante de um quadro já acirrado, os Estados Unidos apertaram ainda mais o cerco financeiro contra a Venezuela ao inserirem ontem uma gigante petrolífera russa, que compra e revende petróleo, entre os proibidos de fazer negócios com os americanos.

A Rosneft Trading é uma subsidiária da maior companhia de petróleo da Rússia, a Rosneft, e o principal comprador e revendedor do petróleo produzido na Venezuela. Na visão do presidente Donald Trump, a Rosneft ajuda economicamente o regime chavista ao sustentar o setor venezuelano de óleo e gás.

A medida aumenta a pressão sobre a Rússia, considerada por Washington como o principal apoiador de Maduro.

O governo americano também alertou para que outras empresas parem de negociar com a Rosneft Trading nos próximos 90 dias. A ação ainda congela ativos financeiros da subsidiária russa nos EUA, assim como o da diretoria e do presidente da companhia.

O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, discutiu o tema com o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, em um encontro em Munique, na Alemanha. A ação dos EUA é uma resposta a um papel cada vez mais central da Rosneft nos negócios da Venezuela, segundo a agência Reuters.

A guerra econômica declarada de Trump ao regime chavista abriu caminho para que a Rússia
dominasse o mercado venezuelano de petróleo.

Autoridades dos EUA dizem que acordos secretos entre Moscou e Caracas para produzir, transportar e vender petróleo para outros mercados se tornaram uma mina de ouro para a Rússia, que está fazendo empresas estatais ganharem cerca de US$ 120 milhões por mês.

Desde que Hugo Chávez implementou no país princípios socialistas, em 1999, a Rússia se tornou seu principal fornecedor de equipamentos e consultores militares, um apoiador consistente em organismos internacionais e uma fonte essencial de empréstimos e investimentos governamentais.

Moscou está se mostrando disposta a absorver o risco de sanções dos Estados Unidos. Freta navios de terceiros, obscurecendo a origem do petróleo ao comercializá-lo em todo o mundo.

Mas também cobra bem caro a Maduro: às vezes por meio de taxas ou com fortes descontos na compra do insumo.

19 de fevereiro de 2020

ELEIÇÃO NO RJ IMPREVISÍVEL ATÉ O MOMENTO!

(Sidney Rezende – Informe do Dia – O Dia, 18) O vereador Cesar Maia é um dos políticos mais antenados do país, mas mesmo ele anda cauteloso sobre os rumos da política no Rio. O ex-prefeito considera precipitado tentar descobrir a vontade do eleitor nas próximas eleições municipais. “Impossível antecipar. As condições vêm mudando”, diz.

Maia prevê que “teremos um primeiro turno imprevisível pela variedade e quantidade de candidatos. E segundo turno, só aguardando os nomes”. Para o ex-prefeito, uma coisa é certa: diferentemente de 2018, em que fatores ideológicos tiveram um peso relevante na escolha do eleitorado, na “disputa municipal deste ano isso influenciará muito menos”.

Indagado se a situação econômica e financeira do Rio o preocupa, Maia disse que depende da prorrogação dos termos do ajuste fiscal. Se vier, se terá como governar com maior tranquilidade. E vai depender da capacidade de cada um”.

O vereador contou já ter transmitido para o filho Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, sua avaliação da conjuntura: “Tenho insistido com ele sobre a imprevisibilidade dessas eleições”.

Já sobre a cidade do Rio e o seu complexo universo urbanístico, Cesar Maia saiu pela tangente e disse que “o melhor seria avaliar os governos um a um. Houve avanços em vários governos”.

Para fechar, perguntamos: “qual será o peso de cada governante eleito nesta eleição? O presidente Jair Bolsonaro, o governador Wilson Witzel e o prefeito Marcelo Crivella terão uma influência predominante?”.

“Apenas o prefeito se empenhará, pois é candidato”, respondeu Cesar Maia.

Informe do Dia: Cauteloso, Cesar Maia anda de poucas palavras

Silêncio da raposa

Por Sidney Rezende

O vereador Cesar Maia é um dos políticos mais antenados do país, mas mesmo ele anda cauteloso sobre os rumos da política no Rio. O ex-prefeito considera precipitado tentar descobrir a vontade do eleitor nas próximas eleições municipais. “Impossível antecipar. As condições vêm mudando”, diz.

Maia prevê que “teremos um primeiro turno imprevisível pela variedade e quantidade de candidatos. E segundo turno, só aguardando os nomes”. Para o ex-prefeito, uma coisa é certa: diferentemente de 2018, em que fatores ideológicos tiveram um peso relevante na escolha do eleitorado, na “disputa municipal deste ano isso influenciará muito menos”.

Indagado se a situação econômica e financeira do Rio o preocupa, Maia disse que depende da prorrogação dos termos do ajuste fiscal. Se vier, se terá como governar com maior tranquilidade. E vai depender da capacidade de cada um”.
O vereador contou já ter transmitido para o filho Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, sua avaliação da conjuntura: “Tenho insistido com ele sobre a imprevisibilidade dessas eleições”.

Já sobre a cidade do Rio e o seu complexo universo urbanístico, Cesar Maia saiu pela tangente e disse que “o melhor seria avaliar os governos um a um. Houve avanços em vários governos”.

Para fechar, perguntamos: “qual será o peso de cada governante eleito nesta eleição? O presidente Jair Bolsonaro, o governador Wilson Witzel e o prefeito Marcelo Crivella terão uma influência predominante?”.

“Apenas o prefeito se empenhará, pois é candidato”, respondeu Cesar Maia.

18 de fevereiro de 2020

A VERDADE É NOSSA!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 17) A polarização extrema torna impossível que grupos políticos rivais façam acordos para governar numa democracia.

Há uma fórmula que sintetiza o encolhimento da democracia liberal: populismo + polarização + pós-verdade levam ao continuísmo. O populismo não tem nada de novo. Em teoria, é a defesa do povo (populus) contra os abusos das elites. Na prática, é um termo usado para descrever fenômenos políticos às vezes muito diferentes entre si – Donald Trump e Hugo Chávez, por exemplo. É problemático de nascença. Quando se junta, então, à polarização e à pós-verdade, sua capacidade destrutiva se multiplica.

Poucos líderes se definem como populistas. A definição costuma ser mais usada contra adversários políticos. Um erro comum é supor que o populismo seja uma ideologia.

Há populistas que defendem a abertura econômica e cultural e outros que são isolacionistas; há os que confiam no mercado e os que acreditam no Estado. Os populistas “verdes” priorizam a proteção das florestas, enquanto os “industrialistas” querem o crescimento econômico, mesmo que polua o meio ambiente. Há populistas para todos os gostos.

A experiência histórica mostra que o populismo não é uma ideologia, mas uma estratégia para tomar o poder e, se possível, não largá-lo.

Esse populismo que se aferra ao poder é o mais perigoso. Um país pode sobreviver (e recuperar-se) a um mau governo cujas condutas populistas abalem a economia, estimulem a corrupção e enfraqueçam a democracia. Mas, quanto mais se prolongar esse mau governo, mais danos ele provoca, mais difícil se torna substituí-lo e mais custosa fica a recuperação econômica.

A Venezuela, por exemplo, pode ter sobrevivido ao período de Chávez, mas o que devastou esse país, e está dificultando tanto sua recuperação econômica, são as duas décadas do mesmo regime inepto, corrupto e autocrático iniciado por Chávez e prolongado por Maduro.

O continuísmo é o inimigo a vencer. Vimos seus efeitos no Peru de Fujimori, na Argentina dos Kirchners, no Brasil de Lula e Dilma, na Bolívia de Evo Morales e na Nicarágua do Ortega. É claro que se agarrar ao poder, violando a Constituição ou mudando-a para aumentar o número de mandatos, não é só um fenômeno latino-americano. Aí estão a China de Xi Jinping, a Rússia de Putin, a Turquia de Erdogan e a Hungria de Orbán, sem falar na longa lista de longevos ditadores africanos.

O populismo e a polarização fazem uma boa dobradinha. É normal que em uma democracia haja grupos antagônicos que disputem o poder. De fato, isso é salutar. Mas nos últimos tempos temos visto, em muitos países, essa saudável competitividade mudar para uma polarização nociva que atenta contra a democracia.

A polarização extrema torna impossível que grupos políticos rivais façam acordos e assumam compromissos necessários para governar numa democracia.

Rivais políticos se convertem em inimigos irreconciliáveis que não reconhecem a legitimidade do “outro”, não aceitam o direito desse outro de participar da política e, muito menos, que chegue a governar.

Cada vez mais, as diferenças que costumam dividir as sociedades (desigualdade, imigração, religião, região, raça, economia) deixam de ser fonte primordial da polarização, abrindo para identidade grupal como o fator que determina as preferências políticas. Além disso, essa identidade costuma se definir em contraste com a identidade do “outro”, a do adversário. Essa perspectiva simplifica tudo: os tons cinza desaparecem e tudo fica branco ou preto. Ou você é “dos meus” ou é do grupo cuja existência política eu não tolero.

Assim, fomentando a polarização, aprofundando os desacordos e buscando novas razões para o conflito social criamos poderosos instrumentos a serviço do continuísmo. O “nós contra eles” mobiliza e fortalece seguidores que, motivados e insuflados a enfrentar o “outro lado”, cuja identidade social e política abominam, se convertem em uma importante base de apoio aos que se mantêm no poder exacerbando divisões. Mas, ao populismo e à polarização, juntou-se um novo vício, muito mais moderno: a pós-verdade.

Desinformar, confundir, alarmar, distorcer e mentir ficou muito mais fácil e seu impacto se amplifica graças à nova arquitetura da informação, pela qual acreditamos menos nas instituições e mais em nossos amigos. Nas democracias de hoje, verdade é o que meus amigos de Facebook, Instagram ou Twitter acreditam ser verdade. Mesmo que seja mentira.

A polarização extrema torna impossível que grupos políticos rivais façam acordos.

17 de fevereiro de 2020

AUTORITARISMO GANHA FORÇA NA AMÉRICA CENTRAL!

(André Duchiade – O Globo, 16) Ao encontrar oposição do Legislativo para aprovar um projeto que equipa melhor as forças policiais do país, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tomou uma medida drástica no domingo passado. Após conclamar o povo à insurreição, ele entrou escoltado por militares armados com fuzis no prédio do Congresso, onde se sentou na cadeira do presidente da Casa e, depois de uma oração, deu aos deputados um ultimato de uma semana para a aprovação da proposta, que vence hoje. A intimidação foi o mais recente ato de debilitação institucional do Triângulo Norte, nome criado pelo Departamento de Estado americano para o trio El Salvador, Guatemala e Honduras. Na região, atormentada por disfunções crônicas, anuncia-se uma onda de endurecimento político. —Quando olhamos o panorama geral, há um conjunto de problemas, e é difícil estabelecer uma hierarquia entre eles. Cada país tem particularidades, mas o panorama geral é desolador. Há uma tendência crescente à militarização da sociedade, ao enfraquecimento da luta contra a corrupção e à centralização do poder — afirmou Victor Meza, diretor do Centro de Documentação de Honduras e ex-ministro do Interior do governo de Manuel Zelaya, deposto em 2009. Com taxas de homicídio altíssimas, economias precárias e corrupção alastrada, os países se tornaram, a partir de 2018, o ponto de partida de vastos contingentes de migrantes em caravanas rumo aos EUA. Grande parte dessas pessoas fugia da violência, sobretudo em El Salvador e Honduras, que registraram, respectivamente, o mais alto e o terceiro mais alto índice de assassinatos do mundo em 2017 (pouco abaixo do Brasil, a Guatemala também ficou entre os dez mais).

A maioria das mortes se relaciona ao crime organizado, ao narcotráfico e à disputa entre as quadrilhas. Proximidade dos mercados de droga da América do Norte, fronteiras porosas, alto grau de impunidade (95% de homicídios não resolvidos) e a abundância de armas depois das guerras civis dos anos 1970 e 1980 contribuíram para esse quadro, segundo a especialista salvadorenha Jeannette Aguilar. A falta de oportunidades econômicas, particularmente para os jovens, se relaciona à criminalidade. De acordo com o Banco Mundial, metade da população dos três países tem menos de 25 anos, tendência que deve se manter por ao menos 20 anos. A pobreza é persistente. Segundo os dados mais recentes do Banco Mundial, os gastos com programas de proteção social são de US$ 562 por cidadão por ano em El Salvador, de US$ 278 em Honduras e de US$ 258 na Guatemala. No Brasil, são de US$ 2.269. As mudanças climáticas tendem a acirrar os problemas, pois a região é muito suscetível a fenômenos extremos. Houve cinco anos seguidos de seca até 2018, afetando pequenos produtores de milho e feijão. Os problemas levaram, segundo o analista para a América Central do International Crisis Group, Tiziano Breda, a “altos níveis de desespero”: — As pessoas encontraram duas válvulas de escape: a agitação social e a emigração. Em Honduras, o único dos três países que não passou por uma guerra civil, a agitação se relaciona à falta de reconhecimento popular do governo, que, segundo Breda, “nunca superou o golpe de Estado” contra Zelaya — ele próprio acusado de buscar uma reeleição inconstitucional. Desde então, o Partido Nacional, de direita, esteve no poder, e o atual presidente, Juan Orlando Hernández, assumiu em 2014. No ano passado, Tony Hernández, irmão do presidente, foi condenado por tráfico de drogas em Nova York. A insatisfação com reformas nos sistemas de educação e saúde também levou a protestos. Em junho, Hernández, que já criara uma polícia ligada ao Exército e é acusado pela oposição de aparelhar o Judiciário, mandou os militares para reprimir as manifestações. Segundo a ONU, a repressão deixou 23 pessoas mortas. Denúncias de corrupção que desembocaram em protestos e endurecimento também tiveram lugar na Guatemala. Em 2017, o então presidente Jimmy Morales, que assumira o cargo uma no antes e o deixo uno mês passado, entrou em conflito com a Cicig, comissão da ONU instalada em 2006 para investigara corrupção no país, considerada uma das mais bem-sucedidas iniciativas na questão.

A Cicig chegou a delitos cometidos nos mais altos níveis políticos — e a denúncias envolvendo o irmão e o filho de Morales, além de suspeitas relacionadas ao financiamento de sua campanha. Morales entrou em conflito coma comissão até não renovar o seu mandato, que expirou em 2019. Em janeiro deste ano, assumiu Alejandro Giammattei, ex-diretor do sistema penitenciário guatemalteco. Sua plataforma prometeu trazer apena de morte de volta, “esmagar as gangues violentas, lutar contra a pobreza para parar a imigração e pôr um fim à corrupção nojenta ”. No poder, ele mandou os militares para combater as quadrilhas.

Dos três países, o caso considerado mais promissor era o de El Salvador. Na campanha, Bukele, um empresário do marketing de 38 anos que foi prefeito da capital e assumiu em junho de 2019, se vendeu como “um político descolado”. Sua campanha, por uma sigla de aluguel, usou extensamente as redes sociais. Sem apoio partidário nem legislativo, sua opção foi aproximar-se das Forças Armadas, elevadas a pilar da segurança pública. Bukele prometeu recuperar o centro das grandes cidades, combater a lavagem de dinheiro e cortar as comunicações entre os líderes das facções presos e os soltos. Segundo Breda, a despeito de suspeitas de que possa ter havido acordos com as quadrilhas para a redução dos homicídios, suas políticas “foram na direção correta em termos de segurança”. Embora os números oficiais não estejam disponíveis, o presidente se vangloria de que os homicídios caíram pela metade desde que assumiu, o que fez sua popularidade subir para mais de 80%.

O Plano de Controle Territorial, a lei de US $109 milhões que motivou a ocupação do Congresso, se inseria nesse quadro. Todos os partidos, exceto a FMLN, de esquerda, pretendiam aprovar a legislação, mas a Arena, de direita, disse que queria mais estudos. — Então, do nada, ele deu aquela demonstração de força, que preocupa e muda a imagem que tinha até então —disse Breda. Segundo Aleksander Aguilar Antunes, pesquisador da Universidade Católica de Pelotas e criador da rede O Istmo, sobre a América Central, a ocupação pode ter sido uma jogada política com vistas a angariar mais força e promover uma reforma constitucional para concorrer à reeleição, possibilidade inexistente hoje. Seus efeitos, contudo, são o fortalecimento de uma cultura autoritária. —Essa demonstração de força só é possível em função da super popularidade, que tem como a base a ideia de um governo forte e um líder empoderado. Essa espécie de cultura do autoritarismo está presente em vários lugares da América Latina hoje, não só na Central — disse Antunes. — Todos seguem na linha da repressividade e da instrumentalização das Forças Armadas.

“A última viagem de Jorge Alexandre Ruiz Dubón foi dentro do porão de um avião de carga. Caixão branco dentro de uma caixa de papelão. De Tijuana à Cidade do México. De Cidade do México a San Pedro Sula, a cidade menos pobre, mas a mais violenta de Honduras, o país de onde todo mundo quer escapar. (…) Assim regressou Jorge Alexander ao lugar que havia abandonado dois meses antes crendo que conseguiria chegar aos Estados Unidos.” A história de Dubón é descrita como “dramática” pelo repórter espanhol Alberto Pradilla, que a relata no livro “Caravana: Cómo el éxodo centroamericano salió de la clandestinidad” (sem tradução em português), escrito a partir da cobertura do primeiro grupo de centro-americanos que partiram em caravana de Honduras rumo aos Estados Unidos em 2018. —As caravanas são o símbolo de uma América Central despejada, que para ter uma vida digna teve que sair de seus países —disse Pradilla em entrevista ao GLOBO.

Era 12 de outubro de 2018 quando um grupo de 1.300 pessoas, organizadas via WhatsApp, mas sem liderança definida, se reuniu numa praça de San Pedro Sula e deu início a “um movimento de massas que colocou a migração centro-americana aos EUA no centro da agenda global”, escreve Pradilla. Em poucos dias, o grupo dobraria de tamanho, e até Tijuana, na fronteira norte do México, caminharia 4.736 quilômetros, dormindo em abrigos improvisados por organizações de ajuda humanitária ou, na maioria das vezes, na rua. —As caravanas são uma pequena representação de um êxodo que geralmente permanece na sombra. Elas existiram nos últimos 10 anos, mas nunca haviam feito algo maciço —explicou Pradilla. Segundo o Observatório Iberoamericano sobre Mobilidade Humana, Migrações e Desenvolvimento, entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2020 cerca de 300 mil imigrantes foram detidos no México e 84 mil deportados do país. Apenas 13 mil receberam autorização de residência. O restante foi forçado a regressar. Apesar disso, nada parece detê-los.

Diante da negativa do governo mexicano de abrir sua fronteira sul, Darwin José Juárez Calles, de 19 anos, se revoltou: “Senão nos abrem aporta, cruzaremos pelo rio”, disse, segundo relata Pradilla. O rio era o Suchiate, que separa a Guatemala do México. Agora mesmo tenho certeza de que uma salvadorenha, um guatemalteco, um hondurenho, estão fazendo as malas para enfrentar um caminho terrivelmente perigoso —disse o repórter. Violência e miséria estão na origem do movimento, que Pradill ad escreve no livro como “o êxodo dos pés doloridos, das pessoas exaustas, daqueles que ganham menos do que custa um Big Mac”. “Nada vai nos parar, porque Deus vai na frente. Assim como ele conduziu o povo de Israel, que abriu o mar, assim vai nos abrira fronteira. Que não se enganem o México ou os EUA”, disse a Pradilla Joel Madriaga, de 35 anos. O jornalista observa que Deus está “na boca de muitos imigrantes”, “em uma de cada três frases” que eles pronunciam. Quando se elegeu presidente mexicano, em junho de 2018, Andrés Manuel López Obrador prometeu que daria um novo tratamento aos imigrantes. Depois de sua posse, em dezembro daquele ano, “todos achávamos que estávamos diante de mudanças históricas”, disse Pradilla: —Lembro de policiais oferecendo água para os imigrantes com um sorriso no rosto. Pressionado pelo governo americano, que ameaçou impor tarifas ao México, López Obrador voltou atrás e converteu a Guarda Nacional, originalmente criada para combater o narcotráfico na fronteira norte, em uma polícia antiimigração. A situação piorou muito desde então, a ponto de o repórter começar a vislumbrar o fim das caravanas. — Não queria ser eu o responsável por enterrá-las, mas o governo mexicano está espalhando muitas notícias falsas de que elas estavam sendo promovidas pelos coiotes, e apressão dos Estados Unidos é forte — afirmou Pradilla.

14 de fevereiro de 2020

PARA NÃO ‘LIQUIDAR’ OS ESTADOS!

(Raul Velloso – O Estado de S. Paulo, 13) Tendo na origem a explosão dos déficits previdenciários num quadro altamente recessivo, a crise estadual está de volta às manchetes. Entre 2006 e 2011, esses déficits oscilavam ao redor de R$ 24,3 bilhões/ano. Depois, passaram a subir veloz e seguidamente, até atingir R$ 101,9 bilhões em 2018.

Daí acentuou-se a antiga tendência à queda dos investimentos subnacionais, item sempre escolhido para capitanear os esforços de ajuste, passando em 2017, e em porcentagem do PIB, a um terço do que alcançavam nos anos 60.

Por trás disso está a extrema rigidez orçamentária, algo que, em fases como a atual, leva a “Déficits Orçamentários” totais elevados, desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e uma enorme confusão no seio dos fornecedores e prestadores de serviço aos governos, que, mais do que os servidores, param de receber seus pagamentos.

Se tomarmos o caso de Minas Gerais, esse Estado, na contramão do ajuste, acaba de propor reajuste salarial na área de Segurança Pública, levando a pressões idênticas em áreas tão pesadas como Educação. Em Minas, o balanço de 2015 revelara, primeiro, uma estrutura de gastos em porcentagem da Receita Corrente Líquida (RCL) concentrada em segmentos que costumo chamar de “donos do orçamento”: 1) Educação: 16,4%; 2) Segurança: 15,7%; 3) Poderes Autônomos: 11,3%; 4) Saúde: 9,3%; 5) Demais Vinculações: 1,4%. Trata-se de itens financiados com receitas cativas e com alto componente de gastos com pessoal ativo, somando 54,1% – soma esta que subiria para 64,8%, se adicionássemos o rígido serviço da dívida de 10,7% do total.

Ao final, uma sobra de recursos de 35,2% foi chamada para cobrir o espremido gasto discricionário de apenas 21,2% do total, adicionando, ainda, receitas de capital mínimas, e onde os investimentos são de apenas 3,2% da RCL, ficando somente uma parcela residual de 14% para pagar a despesa previdenciária. Como esta alcançou 28%, surgiu um Déficit Orçamentário de idêntico valor: 14% da RCL. Dessa forma, com receita abaixo do normal e o orçamento tomado por “donos”, cujo peso só cresce, parte significativa das despesas é autorizada nos orçamentos, mas não se materializa em desembolsos de caixa, virando “atrasos” e causando todo tipo de complicação, especialmente para fornecedores.

Assim, mais de R$ 70 bilhões de atrasados foram transferidos para os mandatos estaduais que se iniciaram em 2018, sem que, por mais que denunciassem esses fatos às respectivas Assembleias, os órgãos de fiscalização, ao contrário do que se imagina, tivessem força para resolver tais problemas. Pior que isso, conforme projeções informadas pelos próprios entes ao Tesouro Nacional, a situação financeira dos Estados tenderia a se deteriorar ainda mais em 2019 e em 2020. (Outro Estado em desespero é o de Goiás, cujo governador acaba de afirmar que o seu Plano B “é fechar para liquidação”…)

Para o conjunto dos Estados, as necessidades de financiamento do orçamento de 2019 foram inicialmente estimadas em R$ 30,6 bilhões, sem falar em atrasados herdados. Caso os Estados fossem todos incluídos na reforma previdenciária em curso, teriam um alívio financeiro estimado em R$ 13,1 bilhões para o primeiro ano de sua vigência, o que certamente ajudaria muito a minorar suas dificuldades financeiras, principalmente quando se considera que o impacto médio nos dez primeiros anos de vigência das novas regras é de R$ 35 bilhões.

O único plano de socorro federal em vigor (PRF), que vem sendo aplicado ainda sem sucesso ao Rio de Janeiro e se cogita para Minas Gerais, empresta mais dinheiro para refinanciar dívidas, com contrapartida de privatizações e ajuste do gasto com o pessoal ativo difíceis de implementar. Não passa de alívio de curto prazo, sem ir ao âmago da questão. Para isso, é preciso definir planos de equacionamento dos passivos atuariais mais eficazes que os existentes, algo hoje já previsto na Constituição e com prazo mínimo para acontecer sob punições, única forma de retirar os déficits previdenciários dos orçamentos e voltar a investir.

É preciso definir planos de equacionamento dos passivos atuariais mais eficazes que os existentes.

 

13 de fevereiro de 2020

TROPAS NO CONGRESSO!

(Editorial – Folha de SP, 12) Foi uma cena digna dos piores momentos da América Latina. Acompanhado de policiais e militares com roupas camufladas e armados com fuzis, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, encenou, no domingo (9), uma invasão grotesca do Congresso de seu país.

Depois de ocupar a cadeira do chefe do Legislativo e fazer uma oração em frente aos deputados ali presentes, o mandatário deixou o recinto e se reuniu com uma multidão de apoiadores que o aguardava do lado de fora do prédio.

Diante deles, dirigiu um ultimato aos deputados, os quais chamou de sem-vergonha e acusou de não trabalharem para o povo: teriam uma semana para aprovar um empréstimo de US$ 109 milhões que o governo salvadorenho demanda com vistas à compra de equipamentos para o Exército e a polícia.

Ex-prefeito da capital do país, Bukele vem se notabilizando tanto pela retórica populista e messiânica como por demonizar os adversários políticos e atacar a imprensa. Foi eleito no início de 2019 com uma campanha feita por meio de redes sociais e pautada pela defesa da moralidade na administração e pelo combate ao crime.

Vem, aparentemente, obtendo sucesso no último objetivo. Considerado um dos países mais violentos do mundo, El Salvador chegou a ostentar, há alguns anos, uma taxa de mais de 100 homicídios por 100 mil habitantes (cerca de quatro vezes o índice brasileiro de 2018).

Segundo o governo, o número de assassinatos caiu quase 60% após a entrada em vigor do programa de combate às facções armadas que dominam parte do território.

Para dar continuidade ao seu plano, Bukele negociou um empréstimo internacional para modernizar as forças de segurança. Mas o Parlamento, de larga maioria opositora, vinha postergando a aprovação do financiamento.

Na última quinta, o presidente convocou para o fim de semana uma sessão extraordinária do Congresso, com o objetivo de aprovar a ajuda externa. Alegando não haver explicação para o uso dos recursos nem justificativa para a convocatória, a maioria dos deputados não compareceu à sessão.

Foi a deixa para o mandatário declarar o Congresso em desacato e conclamar a população a se insurgir contra os parlamentares. Estes, por sua vez, acusam o presidente de tentar um golpe de Estado.

Embora seja cedo para conclusões definitivas a respeito desse cenário inflamado, parece evidente que a ação autoritária e personalista de Bukele, ao afrontar a separação dos Poderes, cria mais uma ameaça à democracia na região.

12 de fevereiro de 2020

O IMPACTO POSITIVO DA QUEDA DOS JUROS DA DÍVIDA INTERNA!

(Editorial – O Globo, 11) As dívidas interna e externa frequentam os pesadelos de governantes brasileiros desde sempre. Uma economia com desbalanceamentos estruturais, pouco integrada ao mundo, com industrialização tardia e incompleta, não teria mesmo facilidade em manter em dia seus compromissos com o exterior, pagos em moeda forte, e também padeceria do peso crescente dos gastos públicos, inflados nos ciclos de populismo.

Mas encontra-se numa fase singular. Sua base moderna de produção agropecuária e uma eficiente estrutura de exportação de minérios aproveitaram a decolagem econômica da China, que passou a importar volumes crescentes de alimentos e matérias-primas em geral. Assim, o país acumulou reservas que passaram a poder pagar sua dívida com o exterior, algo de notável ineditismo.

Restou a questão da dívida interna, bastante inflada pelos erros do ciclo Lula/ Dilma, tanto que a relação dívida/PIB, que estava em 51,5% em dezembro de 2013, encerrou o ano passado em 75,8%, devido às barbeiragens heterodoxas do segundo governo Lula, aprofundadas por sua sucessora.

A queda dos juros internos iniciada ainda no governo Temer, e que prossegue com Bolsonaro, é um fator adicional neste cenário, que serve de poderosa ajuda na redução da pressão da dívida pública sobre as finanças do Estado.

Como mostra o jornal “O Estado de S.Paulo” de ontem, a taxa de juros que incidiu sobre a dívida bruta em 2019 encerrou o ano em 7,8% e havia sido de 8,3% no exercício anterior.

A taxa básica de juros (Selic) incide sobre boa parte da dívida, daí a sua redução constante ter gerado no ano passado uma economia de R$ 68,9 bilhões para o Tesouro. Praticamente o mesmo que foi arrecadado em novembro no leilão de dois dos quatro blocos licitados do pré-sal, para exploração de petróleo.

A Selic chegou a 4,25%, em níveis jamais atingidos pela taxa desde sua criação em 1999. Mantido tudo como está e confirmadas as melhores previsões, a redução da conta de juros da dívida pública poderá ser este ano de R$ 120 bilhões. Soma impensável não faz muito tempo.

Mas não se pode esperar que os cortes na Selic substituam o dever de casa que Executivo e Legislativo precisam fazer para garantira estabilidade da economia.

Os juros são apenas um dos fatores de aceleração ou atenuação das despesas públicas. Há outros, que, se não forem contidos, continuarão a desestabilizar as finanças governamentais.

Não se pode deixar de lado o fato de que apenas a reforma da Previdência e o teto constitucional dos gastos não conseguem dar o lastro fiscal para a economia voltar a crescer sem sustos. Portanto, a queda dos juros serve para criar um providencial espaço de tempo para serem aprovadas outras mudanças estruturais — PEC da Emergência, reformas administrativa, tributária. Sem elas, continua-se no ciclo da mediocridade econômica.

11 de fevereiro de 2020

O QUE É PRECISO PARA SER CEO NA DÉCADA DE 2020!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 10) No papel, essa é uma era de ouro para os CEOs. Afinal, os executivos têm um vasto poder. As 500 pessoas que dirigem as maiores empresas listadas nos Estados Unidos controlam mais de 26 milhões de funcionários. Os lucros são altos e a economia está ronronando. O salário é fantástico: a média para esses CEOs é de US$ 13 milhões por ano.

Sundar Pichai, da Alphabet, acaba de fechar um acordo de US$ 246 milhões até 2023. Os riscos são razoáveis: suas chances de ser demitido ou se aposentar em qualquer ano são de cerca de 10%. Os CEOs geralmente saem de campo com um desempenho terrível.

Em abril, Ginni Rometty se afastará da IBM após oito anos em que as ações da Big Blue perderam 202% no mercado de ações. Adam Neumann fumou maconha em um jato privado e perdeu US$ 4 bilhões antes de ser deposto da WeWork no ano passado. Entre cenários tão diversos, a única grande desvantagem são todas essas reuniões, que consomem dois terços das horas de trabalho do chefe.

No entanto, os CEOs dizem que o trabalho ficou mais difícil. A maioria aponta o dedo para a “perturbação”, a ideia de que a competição está mais intensa. Mas eles vêm dizendo isso há anos. De fato, as evidências sugerem que, à medida que a economia americana se tornou mais endurecida, as grandes empresas puderam contar com altos lucros por mais tempo.

No entanto, os CEOs estão certos de que algo mudou. A natureza do trabalho está sendo afetada. Em particular, o mecanismo dos CEOs para exercer controle sobre suas vastas empresas está falhando, e onde e por que as empresas operam estão em constante mudança. Isso tem grandes implicações para os negócios e para qualquer pessoa que esteja subindo a escada corporativa.

Poucos assuntos atraem mais “análises de vodu” do que o gerenciamento. Mesmo assim, estudos sugerem que a qualidade da liderança de uma empresa americana explica cerca de 15% da variação na lucratividade. Mas os conselhos e os headhunters lutam para identificar quem fará um bom trabalho. Talvez, como resultado, eles tendem a fazer escolhas conservadoras. Cerca de 80% dos CEOs vêm de dentro da empresa e mais da metade são engenheiros ou têm MBAs. A maioria é branca e masculina, embora isso esteja mudando lentamente.

Essa pequena elite enfrenta grandes mudanças, começando com a forma como controlam suas empresas. Desde que Alfred Sloan abalou a General Motors na década de 1920, a principal ferramenta que os CEOs exerceram é o controle do investimento físico, um processo conhecido como alocação de capital. A empresa e o CEO têm jurisdição clara sobre um conjunto definido de ativos, equipe, produtos e informações confidenciais. Pense em “Neutron” Jack Welch, que dirigiu a General Electric entre 1981 e 2001, abrindo e fechando fábricas, comprando e vendendo repartições, e controlando implacavelmente o fluxo de capital.

Hoje, no entanto, 32% das grandes empresas americanas na Standard & Poor’s 500 (S&P 500) investem mais em ativos intangíveis do que nos físicos, e 61% do valor de mercado da S&P 500 está em intangíveis, como pesquisa e desenvolvimento (P&D), clientes vinculados por efeitos de rede, marcas e dados. O vínculo entre o CEO que autoriza o investimento e obtém resultados é imprevisível e opaco.

Enquanto isso, os limites da empresa e a autoridade do CEO estão se ofuscando. Os 4 milhões de motoristas da Uber não são funcionários da empresa, nem os milhões de trabalhadores da cadeia de suprimentos da Apple, mas eles são extremamente importantes.

As grandes empresas gastaram US$ 32 bilhões no ano passado em serviços em nuvem com alguns fornecedores poderosos. Fábricas e escritórios possuem bilhões de sensores que bombeiam informações confidenciais a fornecedores e clientes. Os gerentes de nível médio falam de negócios nas redes sociais.

Mesmo com a redefinição da autoridade dos CEOs, uma mudança está ocorrendo no local onde as empresas operam. Gerações de chefes obedeceram ao chamado de “tornar-se global”. Mas, na década passada, a lucratividade do investimento multinacional no exterior se deteriorou, de modo que os retornos sobre o capital são insignificantes 7%. As tensões comerciais significam que os CEOs enfrentam a perspectiva de repatriar atividades ou redesenhar as cadeias de suprimentos. E a maioria apenas começou a lidar com isso.

A última mudança está acima do objetivo da empresa. A ortodoxia é que eles operam no interesse de seus proprietários. Mas a pressão está vindo de cima, pois políticos como Bernie Sanders e Elizabeth Warren convocam os CEOs a favorecer mais funcionários, fornecedores e clientes; e também de baixo, pois clientes e trabalhadores jovens exigem que as empresas se posicionem sobre questões sociais. A Alphabet enfrentou protestos contínuos dos funcionários.

Os CEOs estão experimentando novas táticas dentro desse cenário e alguns têm resultados surpreendentes. Reed Hastings, da Netflix, prega autonomia radical. Os funcionários decidem sobre os custos com seu trabalho e ficam sem análises formais de desempenho, uma ideia que na maioria das empresas causaria caos.

Outros afirmam ter autoridade revivendo o culto à celebridade dos anos 80. Às vezes funciona: Satya Nadella reconstruiu a Microsoft usando a “liderança empática”. E outras vezes o resultado não é o esperado. A passagem de Neumann como o “cara festeiro” no comando da WeWork terminou em fiasco. Jeff Immelt, ex-chefe da General Electric, foi acusado de “teatro de sucesso”, tornando-se uma estrela das colunas sociais, enquanto seu fluxo de caixa caía 36%.

Querendo mostrar que estão envolvidos, os CEOs estão publicamente avaliando questões como aborto e controle de armas. O perigo é a hipocrisia. O chefe do Goldman Sachs quer “acelerar o progresso econômico para todos”, mas enfrenta uma multa enorme por seu papel no escândalo de corrupção com o fundo estatal 1Malaysia Development Berhad (1MDB), na Malásia.

Em agosto, 181 CEOs americanos se comprometeram a trabalhar a favor de funcionários, fornecedores, comunidades e clientes, além de acionistas. Essa é uma promessa, feita durante uma longa expansão econômica, que eles não serão capazes de cumprir. Em uma economia dinâmica, algumas empresas precisam encolher e demitir trabalhadores. É bobagem fingir que não há trade-offs. Salários mais altos e mais dinheiro para fornecedores significam lucros mais baixos ou preços mais altos para os consumidores.

O que é preciso, então, para ser um líder corporativo na década de 2020? Toda empresa é diferente, mas quem contrata um CEO, ou aspira a ser um, deve valorizar algumas qualidades. É essencial dominar o jogo complicado, criativo e mais colaborativo de alocar capital intangível. Um CEO deve ser capaz de reunir os dados que fluem entre as empresas e suas contrapartes, redistribuindo quem obtém lucros e assume riscos.

Algumas empresas estão à frente a Amazon monitora 500 metas mensuráveis -, mas a maioria dos CEOs ainda está parada limpando as caixas de entrada de e-mail à meia-noite. Por fim, os chefes precisam deixar claro que uma empresa deve ser administrada sob o interesse de longo prazo de seus proprietários. Isso não significa ser duro ou míope.

Qualquer empresa sensata deve enfrentar os riscos das mudanças climáticas, por exemplo. Significa evitar o rastejamento da missão. Os CEOs da década de 2020 terão suas mãos ocupadas com sua própria empresa, então esqueça a ideia de tentar administrar o mundo também. E se, entre as reuniões, você encontrar tempo para fumar maconha a mais de 10 mil metros do chão, não seja pego.

A natureza do trabalho está sendo afetada. Em particular, o mecanismo para exercer controle sobre vastas empresas.

10 de fevereiro de 2020

MUNDO SEM ALMA!

(J.R. Guzzo  – O Estado de S. Paulo, 09) Acabam de se completar sete dias desde que a Grã-Bretanha saiu, enfim, da União Europeia, e já parecem sete anos – ou, talvez, mais precisamente, fica a impressão de que os britânicos nunca realmente entraram, ficaram 43 anos e foram embora da comunidade das nações da Europa. O motivo básico dessa sensação é o fato de que, após anos de ameaças de que a saída traria para o país problemas impossíveis de se descrever, de tão infernais que seriam, não aconteceu absolutamente nada. Claro que não: era o que dizia a lógica mais comum, o tempo todo. Também não vai acontecer. A Grã-Bretanha, a Europa e o resto do mundo continuarão levando as suas vidas, e ninguém perde nada – a não ser a teoria, ou o desejo, de que o futuro da humanidade deva ser a montagem de uma coleção de países sem fronteiras, sem nacionalidade, sem bandeiras, sem autonomia real e sem alma.

O que prescreve esse futuro derrotado pela maioria dos eleitores britânicos? Prescreve o adeus, num dia lá adiante, à ideia de que países têm direito a suas próprias leis, aprovadas pela maioria de suas próprias populações, a seus próprios costumes e a suas próprias riquezas. Bem-vindos a um mundo novo em que as sociedades, e os seres humanos que vivem nelas, colocam em segundo plano os seus governos nacionais e aceitem ser regidas, em primeiro lugar, por organismos internacionais, dirigidos por burocratas concursados, bem pagos e encarregados de produzir um “mundo melhor”. Melhor como? Mais “justo” (segundo a definição de justiça aprovada na direção desses órgãos), mais igualitário, mais ecológico, com mais impostos, mais aberto à imigração, mais dedicado aos pobres e mais obrigado, no fim das contas, a fazer o bem. Há também uma porção de “menos” nesse mundo novo. Menos indústria, menos comércio, menos riqueza, menos energia elétrica, menos tecnologia, menos religião (sobretudo cristã), menos comida processada, menos combustíveis, menos direitos individuais, menos liberdades.

É cansativo ver ideias mortas passarem por mais uma cirurgia plástica e aparecerem como a resposta moderna para questões que não sabemos como resolver. Tudo se baseia, nessa conversa, na conclusão de que o capitalismo deu errado, apesar das provas em contrário – e como não dá mais para dizer que a solução seja a sua troca pelo comunismo, aparece a fórmula descrita por alto nas linhas acima. Em outros momentos, chamou-se a isso de “terceira via”, social-democracia, socialismo “com rosto humano”, etc. etc. Agora dizem que a palavra certa é “globalismo”. É uma divagação atraente para gente rica, bem educada e que tem a consciência incomodada pela presença da pobreza no mundo.

A decisão britânica foi uma paulada feia no globalismo – no seu primeiro grande julgamento em eleições democráticas, a maioria da população consultada disse que não quer viver no mundo globalista.

Num discurso memorável no Parlamento, o deputado Nigel Farage, um dos mais hábeis esgrimistas do conservadorismo na Inglaterra, foi ao coração do problema. “O que a Grã-Bretanha quer da Europa? Se quer amizade, comércio, cooperação, reciprocidade, ela não precisa da União Europeia”, disse Farage. Não precisamos, apontou ele, de uma Comissão Europeia, um Supremo Tribunal Europeu, um Parlamento da Europa. Não é preciso ter centenas de repartições públicas regulando da pesca da sardinha a quantos litros de água as privadas devem liberar a cada descarga. Não é preciso, mais do que tudo, subordinar-se à gente que tem poder, mas não é eleita, e não tem responsabilidade pelo que faz; não responde, nunca, por nada que dá errado.

Não há como responder a isso.

07 de fevereiro de 2020

SEM PETRÓLEO, RIO TERIA QUEDA NA ARRECADAÇÃO EM 2019!

(Marcello Corrêa – O Globo, 06) Não fossem os recursos do petróleo, o Rio teria fechado 2019 com uma queda na arrecadação de receitas. A conclusão é do Conselho de Supervisão Fiscal, que monitora o cumprimento das medidas de ajuste que o estado se comprometeu a tomar para ingressar no Regime de Recuperação Fiscal (RRF).

De acordo com relatório divulgado ontem, a arrecadação fluminense recuou para R$ 73,8 bilhões no ano passado, uma queda de 0,93% em relação aos R$ 74,5 bilhões de 2018 — descontados os efeitos de royalties e participações especiais nos dois anos.

Só com o leilão do chamado excedente da cessão onerosa, o Rio arrecadou R$ 1,2 bilhão. Somou-se a isso uma entrada de royalties e participações especiais de R $7,9 bilhões a mais do que o previsto quando o estado entrou no programa de socorro federal, em 2017.

Assim, considerando a receita extra, a arrecadação do estado subiu de R$ 87,8 bilhões para R$ 88,4 bilhões, alta de 0,68%. O relatório destaca que a variação de preços não depende do controle do estado, o que aumenta o grau de incertezas em relação ao desempenho da arrecadação.

Os dados fazem parte de um balanço realizado pelo Conselho que traz uma série de alertas para o estado, que busca revisar as regras do acordo firmado com a União. O RRF permitiu um alívio no pagamento das parcelas da dívida pública com a União.

Em troca, o Rio estabeleceu medidas para melhorara situação das contas públicas.

Além da dependência do dinheiro do petróleo, o Conselho chamou atenção para o comportamento das despesas. Os gastos do estado ficaram estáveis em R$ 84 bilhões no período, mas a folha de pessoal aumentou de R$ 41 bilhões, em 2017, para R$ 44 bilhões, em 2019. Isso preocupa porque essa despesa é mais difícil de ser cortada.

O documento divulgado ontem aponta ainda que as medidas pontuais para auxiliar o ajuste fiscal tiveram impacto de R$ 7,4 bilhões aquém do esperado em relação a quando o acordo foi assinado. O governo estadual busca junto ao Ministério da Economia uma revisão desse plano, que ainda está em análise pela União.

Na avaliação do secretário de Fazenda do Rio, Luiz Claudio Rodrigues de Carvalho, o dado reforça que o estado é dependente dos royalties de petróleo. Ele afirma, no entanto, que o governo tem feito esforços para melhorar a arrecadação tributária.

—O que a gente precisa fazer é combater sonegação fiscal e auxiliar o crescimento econômico. Só isso vai fazer com que o estado seja menos dependente —afirma.

Já em relação aos gastos com pessoal, Carvalho observa que os dados do estado são diferentes dos apontados pelo Conselho e que o maior salto nas despesas de 2017 para cá ocorreu na gestão anterior, inclusive por reajustes salariais firmados previamente. Nas contas do governo, a folha subiu de R$ 44,3 bilhões para R$ 45,01 bilhões.

— Tem um crescimento vegetativo muito grande. Ter um crescimento tão pequeno quanto este é uma vitória —pontua o secretário.

06 de fevereiro de 2020

O DESAFIO É REINDUSTRIALIZAR!

(Antonio Carlos Pereira, diretor de Opinião O Estado de S. Paulo, 05) Se quiser mesmo consertar a economia brasileira e reencontrar o caminho do firme crescimento, o governo terá de promover a reindustrialização do País.

Se quiser mesmo consertar a economia brasileira e reencontrar o caminho do firme crescimento, o governo terá de promover a reindustrialização do País. A produção industrial encolheu 1,1% em 2019, depois de dois anos de expansão. O parque industrial brasileiro ainda é um dos nove ou dez maiores do mundo, mas está enfraquecido, atrasado e sem poder de competição depois de uma longa crise iniciada bem antes da última recessão. Houve um tombo de 18% entre o ponto mais alto da série histórica, atingido no trimestre encerrado em maio de 2011, e os três meses finais do ano passado. Olhando de baixo para cima, tem-se uma noção mais clara do esforço necessário para retornar ao topo. O volume produzido terá de crescer 21,9% sobre a base do último fim de ano para chegar de volta ao pico histórico.

Finda a recessão, o produto industrial cresceu 2,5% em 2017 e 1% em 2018 e voltou a cair no primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Só em março será conhecido o primeiro cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019. As estimativas correntes têm apontado um crescimento entre 1,1% e 1,2%. O número oficial, de toda forma, refletirá o péssimo desempenho da indústria, já refletido na recuperação muito lenta do emprego, marcada pela informalidade e pela expansão de precárias ocupações por conta própria.

O desastre da mineração, sempre lembrado quando se comentam os números da indústria, explica apenas uma pequena parte do novo desastre. Houve queda na produção de bens de capital e bens intermediários e expansão de 1,1% na de bens de consumo. O exame mais detalhado mostra recuos em 16 dos 26 ramos de atividades cobertos pela pesquisa, em 40 dos 79 grupos e em 54,2% dos 805 produtos incluídos no levantamento regular.

Em todos os trimestres de 2019 o desempenho foi pior que o de um ano antes. Esse tipo de resultado ocorreu desde os três meses finais de 2018. Mas o novo governo nada fez, durante a maior parte de seu primeiro ano, para tentar pelo menos conter o declínio da indústria. Os primeiros estímulos só foram aplicados a partir de setembro, embora os números da produção e os dados do emprego fossem muito ruins.

Evitar mais um voo de galinha foi a justificativa repetida por muitos integrantes do Executivo, quando se tentou chamar sua atenção para o problema. Mas essa desculpa deixou de valer quando se tornou indisfarçável a necessidade urgente de algum incentivo. O acesso a recursos do Fundo de Garantia (FGTS), iniciado em setembro, acabou sendo prorrogado em novas condições.

Se as projeções do mercado estiverem certas, a produção industrial crescerá 2,21% em 2020 e 2,50% em cada um dos três anos seguintes. O resultado será um crescimento acumulado de 7,4% em 2020, 2021 e 2022, fim do atual mandato presidencial. No primeiro ano do mandato seguinte a indústria produzirá 2,50% a mais. Faltará quase metade do caminho para o retorno ao pico de 2011, se se tratar apenas de recompor o volume produzido.

Mas o problema é muito mais complicado. Além das perdas de produção, a indústria acumulou em muitos anos – pelo menos desde 2012 – um enorme atraso em termos de tecnologia, de inovação e, portanto, de competitividade. Isso é visível no comércio exterior. Em 2000 as vendas de manufaturados corresponderam a 59% do valor exportado. Em 2009 a proporção estava reduzida a 44%. A partir daí a participação foi sempre inferior a 40%, exceto em 2016, quando esse número foi registrado. Em 2019 a parcela dos manufaturados caiu para 35%, a menor taxa desde o ano 2000.

De vez em quando algum membro do governo fala de produtividade e competitividade, mas sem apresentar mais que vagas intenções e ideias. A expressão política industrial é evitada como blasfêmia. O discurso é geralmente um recitativo com tinturas de liberalismo econômico e nenhuma referência clara a planos, metas e instrumentos. Diante disso, até as modestas projeções de crescimento industrial conhecidas chegam a parecer otimistas.

05 de fevereiro de 2020

QUEM PAGA IMPOSTO NO BRASIL?!

(Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal – O Estado de S. Paulo, 04) Sempre que se fala em reforma tributária aparece a preocupação de determinadas categorias com um possível aumento de sua tributação. Tal preocupação é compreensível, mas não é uma boa base para a discussão, pois pressupõe que o atual regime de tributação é justo e eficiente, o que não é verdade.

Para entender esse ponto, vou dar um exemplo de como o atual sistema tributário brasileiro resulta em iniquidades injustificáveis. Para tanto, vamos considerar a tributação na margem (ou seja, sobre cada real adicional de faturamento) do valor gerado pelo trabalho de duas pessoas: 1) um empregado formal de uma empresa industrial ou comercial cujo salário é de R$ 6,2 mil; e 2) um profissional liberal que atua como sócio de uma empresa do lucro presumido com renda de R$ 50 mil por mês.

No caso do empregado formal, supondo que seu trabalho gere um faturamento adicional de R$ 100,00 para a empresa (já descontado o custo dos insumos), a empresa terá de recolher R$ 18,00 de ICMS e R$ 9,25 de PIS-Cofins, sobrando R$ 72,75 (valor que será ainda menor, se a empresa estiver sujeita à incidência de IPI). Supondo que a empresa não tenha lucro nessa operação, ela pagará ao empregado um salário bruto de R$ 54,17, que corresponde à diferença entre os R$ 72,75 e a contribuição sobre folha recolhida pela empresa, de pelo menos R$ 18,58 (34,3% do salário bruto). Por fim, o trabalhador estará sujeito a Imposto de Renda na fonte no valor de R$ 14,90 (27,5% do salário bruto).

Ou seja, dos R$ 100,00 gerados pelo trabalhador, R$ 60,73 foram recolhidos na forma de tributos, sobrando apenas R$ 39,27 para que ele leve para casa. É verdade que algum dia ele recuperará seu FGTS (R$ 4,33) e parcela do Imposto de Renda (R$ 2,98, supondo desconto simplificado de 20%). Ainda assim, a tributação total terá sido de R$ 53,41 e a renda líquida do trabalhador terá sido de R$ 46,59. Vale notar que a contribuição sobre a folha da empresa não gera nenhum benefício previdenciário adicional para o trabalhador, pois seu salário é superior ao teto do salário de contribuição do INSS.

Já no caso do profissional liberal, a tributação sobre os R$ 100,00 de valor adicional gerado por seu trabalho será muito diferente. Supondo que ele recolhe ISS pelo regime uniprofissional, não haverá incidência de ISS sobre o valor adicional gerado, pois o imposto é recolhido num valor fixo (R$ 274,53 por trimestre, em São Paulo). Sua empresa recolherá R$ 3,65 de PIS-Cofins e R$ 7,68 de Imposto de Renda e CSLL. No total, ele terá pago R$ 11,33 em tributos. Todo o restante do valor adicionado (R$ 88,67) poderá ser recebido por ele na forma de lucro distribuído, isento na pessoa física.

Ou seja, nós vivemos num país em que a alíquota marginal incidente sobre o valor adicionado por um trabalhador formal com renda mensal de R$ 6,2 mil fica entre 53,4% e 60,7%, enquanto a alíquota marginal incidente sobre o valor adicionado por um profissional liberal com renda de R$ 50 mil é de 11,3%. Essa diferença se deve a tratamentos diferenciados na tributação tanto do valor adicionado quanto da folha de salários e da renda.

Além da clara iniquidade distributiva, esse modelo de tributação tem também consequências sobre a produtividade. Num mundo ideal, a tributação não deveria distorcer a alocação do trabalho entre várias atividades. Se a produtividade é maior no setor industrial, deveria haver mais trabalhadores na indústria e menos nos serviços. No Brasil, no entanto, a tributação muitas vezes leva as pessoas a optarem por trabalharem em atividades menos produtivas, apenas para pagar menos imposto. A consequência é um menor crescimento do País.

É óbvio que o profissional que hoje paga uma alíquota marginal de 11,3% não quer pagar mais imposto. Mas também é óbvio que qualquer boa reforma tributária tem de resultar numa carga mais elevada para este profissional e numa menor carga para o trabalhador formal.

04 de fevereiro de 2020

A TERCEIRA LEI DE NEWTON!

(Ricardo Lewandowski – Folha de S.Paulo, 03) Sir Isaac Newton (1643-1727), filósofo, matemático e físico inglês, um dos fundadores da ciência moderna, famoso por desvendar a “lei da gravitação universal”, identificou também outras três leis sobre as quais se assenta a mecânica clássica, sobrelevando a terceira delas, talvez a mais conhecida, que tem o seguinte enunciado: “A toda ação corresponde sempre uma reação oposta e de igual intensidade”. Tal princípio, concebido originalmente para explicar certos fenômenos naturais, vem sendo estendido às relações sociais, notadamente àquelas pertencentes ao mundo da política.

Empregando essa lógica, é possível concluir que os excessos praticados no passado recente por alguns juízes, policiais e membros do Ministério Público, restringindo direitos e garantias dos acusados em inquéritos ou ações penais, deram causa a uma reação equivalente em sentido contrário por parte dos órgãos de controle. A reação foi se intensificando à medida que tais excessos —em um primeiro momento percebidos apenas por advogados e um punhado de observadores mais atentos— passaram a ser divulgados pela mídia tradicional, causando um mal-estar generalizado na sociedade.

A resposta partiu inicialmente do Supremo Tribunal Federal, que proibiu conduções coercitivas; revogou prisões preventivas sem fundamentação idônea; censurou vazamentos de dados sigilosos; anulou provas ilícitas; rejeitou denúncias baseadas exclusivamente em delações premiadas; corrigiu violações ao devido processo legal; assegurou o exercício da ampla defesa; e reafirmou o princípio constitucional da presunção de inocência.

O Congresso Nacional retrucou no mesmo diapasão votando a lei 13.869/2019, na qual tipificou como abuso de autoridade a maioria dos desvios glosados pelo STF. Logo depois, complementou a corrigenda aprovando a lei 13.963/2019, que resultou do chamado “pacote anticrime”, escoimado das exorbitâncias iniciais, de cujo texto vale destacar a oportuna criação, por proposta de parlamentares, do “juiz das garantias” —adotado, com excelentes resultados, em um bom número de países—, a quem incumbirá promover a instrução criminal dentro da legalidade e com respeito aos direitos dos investigados e às prerrogativas de seus defensores.

Essa correção de rumos somente foi possível porque as democracias ocidentais, ao longo dos últimos três séculos, especialmente a partir do advento das revoluções liberais, desenvolveram —embora com as imperfeições próprias das instituições humanas— mecanismos de freios e contrapesos para evitar o arbítrio dos governantes, com destaque para a técnica de repartição das funções legislativas, executivas e judiciais entre poderes distintos e autônomos. Estabeleceram ainda um sistema recursal que permite a revisão das decisões de juízes e tribunais pertencentes a instâncias inferiores por colegiados de grau superior, de maneira a contrastá-las com as normas constitucionais e legais vigentes.

Conta a lenda que o cientista inglês mencionado no início apercebeu-se da força da gravidade ao ser surpreendido pelo impacto de uma maçã desabando sobre sua cabeça quando repousava tranquilamente debaixo de uma macieira. Talvez agora, de forma análoga, a parcela de agentes públicos —por sorte bastante diminuta— habituada a ultrapassar impunemente os limites da ordem jurídica se dê conta de que a terceira lei de Newton, com a inexorabilidade própria dos fatos da natureza, acabará sempre encontrando a sanção adequada para todo e qualquer comportamento desviante.

03 de fevereiro de 2020

ELEIÇÕES MUNICIPAIS, VOTO INFORMADO E DEMOCRACIA!

(Luiz Edson Fachin, ministro do STF e TSE – O Estado de S. Paulo, 02) Venho de presenciar eleições em país andino na condição de observador internacional. Essa experiência realça elementos da realidade brasileira. Não se tenha dúvida: predadores da democracia estão mesmo à espreita. Palavras de simples ameaças que parecem apenas exercitar ideias espalhafatosas que não desbordariam, a rigor, de uma sociedade aberta à livre expressão, vistas de perto, compõem um dialeto de propósito nítido: semear a descrença na democracia e na legitimidade das instituições. Almejam ir às últimas consequências: corroer a credibilidade da Justiça Eleitoral. À força do argumento ressuscitam o argumento da força.

O Brasil do presente é desafiado nesse campo, castigado ainda mais por enxurradas de desinformação. É um caos que até parece bem organizado por meio de notícias falsas e meias-verdades.

Auspicioso é o fato de que, neste 2020, eleições periódicas dos mandatários municipais se avizinham no Brasil. Abrem-se as urnas para o exercício eleitoral da cidadania que se constrói permanentemente. Essa reflexão conclama aos titulares da soberania popular. Nunca é demais enfatizar o poder do voto informado.

Votar é vital para o fortalecimento da musculatura da democracia representativa. Não se trata, por certo, de poção mágica para responder de pronto a todas as legítimas aspirações sociais, econômicas e políticas. Nada obstante, é um eficaz antídoto contra a atrofia que cede às tentações autoritárias.

Mais que isso: o dia das eleições produz uma necessária inquietação para que se entenda que numa democracia verdadeira se elege uma proposta ou alguém todos os dias em todas as horas que, individual ou coletivamente, se perfazem ações ou se configuram omissões. Educação, saúde, segurança, transportes públicos, entre outros temas, batem às portas da administração municipal por intermédio da comunidade de pessoas, grupos, movimentos sociais, entidades e instituições, almejando pôr em prática um constitucionalismo democrático popular.

Guardiões finais da Constituição são todos os que delegam, por agir ou por deixar de atuar, a um Poder o seu próprio poder. Delegações não são abdicações. Eleger é uma escolha importante para apontar quais são, na administração dos locais onde domiciliamos nossas raízes, os mandatários que, dentro da Constituição e das leis da República, vão desempenhar os poderes conferidos por essa legítima manifestação eleitoral.

Para tanto, consciência das possibilidades e dos limites é essencial, uma vez que na democracia se pode muito, mas não se pode tudo.

Limites democráticos são condições indispensáveis à própria democracia. Assim o pluralismo político também se deve traduzir (embora a isso não se resuma, por evidente) em pluripartidarismo. Partidos políticos, ideários e cosmovisões partidárias e programáticas são imprescindíveis. Afastar os partidos do núcleo da democracia consiste em golpear por dentro a razão da representação na República.

Inafastáveis são o controle e a fiscalização, contudo tais ações não apresentam um fim em si mesmo. Combater e punir são instrumentos de um Estado de Direito democrático, cujos fins são vincados pelos fundamentos da República inscritos na Constituição.

Cumpre estar atento a esses novos intentos variados de pôr em modo “hibernar” a legalidade constitucional.

Quando nas vizinhanças do Brasil se faz a defesa tout court de pena capital para ilícitos de corrupção, ou simplesmente a revogação da Carta Política, o passo seguinte é aniquilar o doente para supostamente sanar a doença. Impende não ser indiferente a isso. É possível (e necessário) ser implacável com a corrupção sem afrontar o organismo reitor vivo da democracia que é a Constituição. Guardá-la também é protegê-la.

Todas as democracias têm suas conjunturas claro-escuras, porém momentos de crise política não podem obnubilar a estrutura democrática. Transitoriedade e alternância no poder conjugam autoridade, respeito ao voto e democracia.

Às últimas consequências os limites constitucionais.

O escrutínio que se aproxima em outubro vindouro propicia oportunidade para desnudar a diluição institucional, pois um pleito dessa envergadura, dimensão e relevância pode ser um dos meios de defesa do povo contra o autoritarismo e a excessiva centralização de poderes na Federação. É o município o primeiro mundo político da cidadania, elevado em 1988 a ente federativo a merecer maior e melhor presença no federalismo de cooperação.

A diferença entre ponte e abismo vem se colocando no horizonte. Quiçá seja tempo de renovar a esperança de que somos plurais nas diferenças e capazes de ligar margens, e não apenas produzir clivagens. As eleições vêm logo aí. O tripé democracia, igualdade e República se reaviva no município.

Aos predadores antidemocráticos, o que lhes corresponde de acordo com a bula democrática: doses maciças de tolerância e de coexistência injetadas pelo soro dos limites constitucionais. O voto informado pode fazer de cada município a síntese que contém o País.

Pleito pode ser um dos meios de defesa do povo contra o autoritarismo e os poderes da Federação.