31 de março de 2020

A HORA DA SOLIDARIEDADE!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 29) Se nesta hora extrema o País souber implementar um surto de solidariedade, pode reduzir radicalmente as perdas e sair maior do que entrou na crise.

“Esta é a crise de saúde global definidora dos nossos tempos”, disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, logo após declarar que o surto de coronavírus se tornara uma pandemia. “Os dias, semanas e meses à frente serão um teste para nossa determinação, um teste para nossa confiança na ciência e um teste para a nossa solidariedade.”

Todos podem doar algo – tempo ou dinheiro. Mas, para doar bem, é preciso ouvir as autoridades sanitárias, ponderando recursos e identificando os grupos vulneráveis. Na infraestrutura, os sistemas de saúde correm contra o tempo para evitar o colapso. Entre os grupos sociais, os mais pobres, em condições precárias de moradia e saneamento, estão mais expostos. Na distribuição geracional, a covid-19 é brutal com os mais velhos – além das pessoas com comorbidades. E na área econômica, autônomos e pequenos empresários veem o vírus desintegrar do dia para a noite sua fonte de renda.

O Fundo Emergencial para a Saúde foi organizado para prover equipamentos e insumos a entidades de saúde, como a Fiocruz e as Santas Casas.

A Comunitas, uma organização da sociedade civil, juntou-se a lideranças empresariais para adquirir respiradores pulmonares para a rede pública de saúde. Até o momento foram arrecadados mais de R$ 23 milhões, e já estão garantidos 345 respiradores. O Comitê Executivo Covid-19 do governo de São Paulo já angariou R$ 96 milhões com o empresariado para materiais e serviços médicos. Indústrias de cosméticos estão produzindo álcool em gel para hospitais públicos e empresas de transporte estão disponibilizando vouchers para os profissionais de saúde. E é preciso não esquecer doações essenciais: os postos de coleta de sangue alertam para uma queda de 30% nos últimos dez dias.

A ONG Ação da Cidadania está arrecadando água, comida e produtos de higiene para comunidades carentes do Sudeste. A G10, uma cúpula de 10 grandes favelas, procura 420 voluntários para atuar no combate à epidemia distribuindo informações e produtos de primeira necessidade. A Central Única das Favelas angaria recursos para apoiar financeiramente as famílias inseridas em programas sociais e auxiliá-las nos cuidados com as crianças. O Instituto LAR oferece banho e comida para moradores de rua.

Todos os asilos precisam de ajuda para encontrar máscaras, luvas e álcool em gel. Muitas pessoas estão se organizando para fazer compras, cozinhar e prover os idosos de seus prédios e bairros. Os comércios locais, como bares, restaurantes e cabeleireiros, serão severamente afetados pela quarentena, com o risco de desempregar seus funcionários. Muitos estão disponibilizando vales a serem pagos agora para serem consumidos depois.

Há plataformas digitais que conectam doadores e beneficiários e inúmeros projetos de crowdfunding. Na plataforma “Todos por Todos” do governo federal, empresas e associações podem oferecer serviços e produtos para o combate ao vírus. O Instituto Gerando Falcões disponibilizou um aplicativo para conectar doadores e famílias necessitadas. O Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), que reúne investidores sociais do País, prepara uma plataforma para agregar iniciativas na luta contra a epidemia.

O vírus devasta todo o planeta e, se não for incondicionalmente vencido, voltará a nos assombrar. A OMS lançou o Solidarity Response Fund, para agregar fundos e dados para dar uma resposta global à pandemia. Organizações como a Charity Navigator e o GlobalGiving avaliam cada iniciativa, auxiliando o doador a eleger seus beneficiários. A Cruz Vermelha, a Relief International e a Heart to Heart são especializadas em doações para a saúde. A World Central Kitchen distribui comida em comunidades impactadas por calamidades.

Há males que vêm para o bem – é um repetido chavão que nada alenta na hora em que o mal chega. Agora que ele veio, se virá para o bem, é algo que depende de todos e de cada um. As perdas de vidas e recursos são inexoráveis, mas, se nesta hora extrema o País souber implementar um surto de solidariedade, pode reduzir radicalmente estas perdas e sair maior do que entrou na crise.

30 de março de 2020

COMO PAGAR PELA PANDEMIA!

(The Economist – O Estado de S. Paulo, 29) Não é hora de se preocupar com a dívida do governo. Enquanto os casos de covid-19 explodem e a atividade econômica trava, os governos têm razão em investir todos os recursos que podem nos esforços para limitar os custos humanos e econômicos da pandemia. Apesar dessa urgência, a crise empurrará os encargos da dívida soberana para um novo território. Ao longo do século passado, grandes crises globais ocasionaram empréstimos em larga escala por parte dos governos e mudanças – muitas vezes radicais – na maneira como estes lidam com seus credores.

É improvável que a batalha contra a covid-19 seja uma exceção. Os planos de recuperação econômica que estão sendo elaborados provavelmente vão superar os implementados durante a crise financeira; nos Estados Unidos, as medidas podem custar cerca de 10% do PIB. O impacto na produção e nas receitas tributárias também pode ser maior. É provável que pelo menos algumas economias acabem com dívidas muito superiores a 150% do PIB.

A história dos empréstimos governamentais nos últimos 100 anos pode ser dividida em três períodos. Entre o início da Primeira Guerra Mundial e o da Segunda, o conflito armado, a reconstrução e a Grande Depressão impuseram enormes demandas aos balanços dos governos. Durante esse período tumultuado, os governos muitas vezes se viram à mercê dos sentimentos do mercado. A Grã-Bretanha procurou manter a confiança do mercado reduzindo a dívida – que chegou a 140% do PIB logo depois da Primeira Guerra Mundial – por meio de uma austeridade dolorosa. O governo gerou superávits de 7% do PIB no orçamento primário ao longo da década de 20.

Os resultados foram desastrosos. A austeridade minou o crescimento econômico: a produção em 1928 ficou abaixo da registrada em 1918. Como consequência, a dívida continuou a subir, chegando a 170% do PIB em 1930. Ao observar essa amarga experiência, John Maynard Keynes disse que “certamente não valia a pena”.

Outras economias, forçadas a tomar medidas mais desesperadas, se saíram ainda pior. A Alemanha, enfraquecida pela guerra e incapaz de cumprir suas obrigações de dívida, afundou na hiperinflação. A deterioração do valor da moeda reduziu o fardo da dívida em relação ao PIB em 129 pontos porcentuais, mas a um custo social e econômico incalculável. Moratórias também foram comuns. Em 1933, os países que compunham quase metade do PIB global estavam sob alguma forma de reestruturação por dívida ou inadimplência.

Nova abordagem. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, os governos das economias avançadas tentaram uma abordagem diferente. Depois do trauma dos 30 anos anteriores, a austeridade deixou de ser um meio politicamente sustentável de lidar com as dívidas acumuladas no período. Alguns países decretaram moratória ou experimentaram hiperinflação no pós-guerra.

Outros governos recorreram à repressão financeira – ou seja, forçaram os credores a ceder empréstimos sob condições pouco atrativas. Muitas das ferramentas da repressão financeira haviam sido utilizadas durante a guerra para financiar o conflito. Nos EUA, por exemplo, o Federal Reserve comprou títulos do Tesouro para impedir que os rendimentos subissem para além de determinado nível. O governo também limitou as taxas de juros que os bancos podiam cobrar dos mutuários ou pagar aos depositantes, além de restringir os empréstimos bancários. Os controles de capital impediram os poupadores de buscar melhores retornos no exterior.

O efeito foi que instituições e famílias se viram forçadas a emprestar ao governo a taxas abaixo do mercado. À medida que os controles de preços dos tempos de guerra foram se abrandando, a inflação subiu para níveis relativamente modestos e a taxa de juros da dívida do governo, ajustada pela inflação, ficou negativa e assim permaneceu por boa parte das décadas seguintes.

De acordo com o trabalho de Carmen Reinhart, da Universidade de Harvard, e Belen Sbrancia, do FMI, as taxas de juros reais nas economias avançadas ficaram negativas por aproximadamente metade do tempo entre 1945 e 1980. Durante o período, o governo britânico pagou uma taxa de juros real média de apenas -1,7% e o governo francês, -6,6%. O efeito foi poderoso. Entre 1946 e 1961, a relação dívida/PIB dos Estados Unidos caiu 68 pontos porcentuais. Na década de 1970, esse número mergulhou para menos de 25% em todas as economias avançadas.

Uma terceira era começou na década de 1970. Os governos das economias avançadas afrouxaram o controle sobre os fluxos de capital e os sistemas financeiros, colocando-se mais uma vez à mercê dos mercados globais. Embora os mercados de títulos ocasionalmente tenham atormentado os políticos nas décadas de 1980 e 1990, aos poucos eles perderam o poder de instilar medo. A integração financeira global coincidiu com um aumento da poupança em relação ao investimento e um forte apetite pela segurança proporcionada pelos títulos dos países ricos com moedas estáveis.

Os custos dos empréstimos caíram constantemente, mesmo com o aumento do fardo da dívida. A crise financeira global só reforçou essa tendência. A dívida pública nos países ricos aumentou de 59% do PIB, em 2007, para 91% em 2013. No entanto, durante a última década, os governos do mundo rico puderam contrair empréstimos a taxas próximas a zero ou negativas.
Impressoras de dinheiro a todo vapor.

A covid-19 significa que vem mais dívida por aí. Uma nova era de gerenciamento da dívida soberana talvez esteja prestes a começar. Ainda não se sabe ao certo o que esse período pode trazer. O regime de dívida póspandemia do novo coronavírus pode se assemelhar ao do imediato pós-guerra.

As provações dessa crise podem inspirar uma nova onda de investimentos em tecnologia e infraestrutura, gerando uma concorrência acirrada pelas reservas disponíveis e por custos mais altos nos empréstimos governamentais. A repressão financeira permitiria que os governos gerenciassem a situação, especialmente se barreiras a bens e capitais subirem como consequência dos bloqueios nacionais.

Por outro lado, pode ser difícil retomar o crescimento à medida que a pandemia diminuir. Os bancos centrais, em um esforço para aliviar as economias em dificuldades, já estão comprando grandes volumes de dívida do governo. O Fed está comprando quantidades ilimitadas de títulos do Tesouro; o Banco Central Europeu anunciou recentemente um esquema de compra de títulos de ¤ 750 bilhões (US$ 809 bilhões).

Uma recuperação fraca poderia levar os bancos centrais a financiar grandes déficits fiscais com dinheiro que acabou de ser impresso, continuadamente. A experiência do Japão, antes considerada uma aberração econômica, será repetida em diversos lugares. Empréstimos financiados com dinheiro impresso, sem consequências inflacionárias, podem se tornar ideias populares no debate sobre os limites da dívida. Não seria a primeira vez que uma crise reescrevia a cartilha econômica.

27 de março de 2020

RODRIGO MAIA: SÓ UM ESTADO FORTE E ÁGIL VENCE O VÍRUS!

(Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados – O Globo, 25) O início e o alastramento da pandemia do Covid-19 pelo mundo impuseram a necessidade de ações rápidas. Naturalmente, as primeiras medidas voltaram-se para proteger os cidadãos e forçar o isolamento. Isso ocorreu predominantemente na China e em menor grau, posteriormente, na Europa e nos Estados Unidos.

A oferta de soluções diversas para os problemas imediatos de saúde logo cedeu espaço para o debate sobre os efeitos econômicos e sociais da crise.

Urge ampliar os gastos extraordinários na área da saúde, pois é vital deter o avanço da contaminação pelo vírus Covid-19. Eventuais desperdícios dessas verbas disponibilizadas em caráter excepcional podem ser evitados lançando-se mão das ferramentas criadas a partir das sofisticadas curvas formuladas em tempo real pelos economistas. Essas curvas são explicadas didaticamente pela imprensa; as explicações ganharam as redes sociais, onde são debatidas pela sociedade.

No entanto, maior que os desafios na compra de insumos, contratação de médicos e adaptação de hospitais, é a coordenação das ações num país de dimensões continentais e enormes desigualdades regionais como o Brasil. Ao menos nessa área, além do Estado, podemos contar com a competência da gestão dos sistemas privados de saúde.

O mesmo não ocorre com o mercado e a sociedade em geral, que ficam à mercê da desaceleração da atividade econômica, decorrente do fechamento do comércio, das escolas, e do confinamento social.

É normal que não haja suficiente certeza sobre os efeitos maléficos dessa crise, tampouco quanto às medidas que devem ser tomadas para mitigá-los. Há inúmeras propostas apresentadas pelas empresas, por associações, pela sociedade civil organizada, pelos intelectuais. Existe, contudo, muita assimetria de informação. Isso ocorre num momento em que as notícias circulam abundantemente e de forma muito rápida. Nesse contexto, só um Estado forte, unido e coordenado dará conta do caos e oferecerá soluções ao cidadão.

A sociedade precisa de previsibilidade, e isso só o Estado pode oferecer neste momento. Não se trata de superestimar os efeitos da pandemia. É preciso fazer o cidadão voltar a confiar no Estado. Para conquistar essa confiança é preciso comunicar com clareza o planejamento das ações que estão a ser pensadas. Provavelmente, haverá mudanças em algumas das ações previstas inicialmente. Os dados e o cenário se alteram a cada dia, e é até recomendável que os planos sejam revistos à medida que avança o conhecimento do inimigo – o vírus e suas curvas de propagação. Mas o norte tem de ser, sempre, claro e convergente. É essencial coordenar as ações entre a saúde e a economia, evitando que pessoas que não morram da doença terminem vitimadas pela fome. É um equilíbrio difícil.

A ocorrência de erros e de acertos nessa guerra contra o vírus era esperado. Tanto aqui, quanto lá fora. Olhando para trás, e para o sucesso e o fracasso da experiência dos países atingidos pela pandemia antes do Brasil, é fundamental ter humildade para aprender lições e reverter as ações que porventura tenham se mostrado precipitadas. Falar em fechamento de rodovias, apartando municípios e às vezes regiões inteiras do resto do país, ainda faz sentido? Isso foi posto sobre as mesas de debate. É correto? A resposta depende de uma construção coletiva e cooperativa dos vários entes da federação, coordenadas num mesmo sentido. À disposição deles, há uma infinidade de dados e informações, além de excelentes técnicos dispostos a ajudar. O mesmo precisa ocorrer na área econômica, com relação ao socorro às empresas e à proteção do emprego. Muitos são os atores envolvidos. Sou do Parlamento, o Congresso é a minha área de atuação central. E o Parlamento brasileiro tem contribuído para o debate e para tornar ágeis as políticas de enfrentamento dessa pandemia. Jamais faltamos ao país, nós deputados e senadores, e nunca faltaremos, nos momentos cruciais em que sabemos estar ao lado da construção de soluções. É imprescindível haver organização, rotinas e coordenação da porta para dentro.

Não se sabe qual será o final da história, mas é preciso construir o roteiro do filme com base nas análises existentes. Não basta um álbum de fotografias, em que cada uma delas é trocada todos os dias, deixando rasgos e buracos para trás. Nunca foi tão urgente colocar em prática a coordenação entre os poderes da República. Começarmos concordando com um diagnóstico baseado em evidências empíricas e não em opiniões, além de um claro objetivo comum no curto, no médio e no longo prazo, é o melhor passo a dar a fim de avançarmos na proteção do Brasil e dos brasileiros.

26 de março de 2020

O VALOR ESTRATÉGICO DA AJUDA AO TRABALHADOR!

(Antonio Carlos Pereira / Diretor de Opinião – O Estado de S. Paulo, 25) Mais do que questão humanitária, proteger o poder de compra das famílias tornará menos difícil o início da recuperação quando a tormenta amainar.

Socorrer o trabalhador é muito mais que uma questão de humanidade. É uma exigência, também, do mais prosaico espírito prático. Ao proteger o poder de compra das famílias, o governo tornará menos difícil o início da recuperação, quando a tormenta amainar. O ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou formas de proporcionar alguma renda ao assalariado quando houver suspensão do contrato. O governo poderá garantir um quarto do salário normal ou até um terço. Será uma compensação parcial do corte imposto pela empresa, segundo explicou numa entrevista ao Estado, publicada ontem. Faltou algo desse tipo – uma regra de remuneração – na Medida Provisória 927, revogada parcialmente, na segunda-feira, horas depois de publicada.

A omissão foi um esquecimento, explicou o ministro, e o presidente da República, segundo ele, se queixou com razão de ter apanhado dos críticos por causa disso. Mas o drama dos trabalhadores, nesta crise, vai muito além da suspensão de contratos e de redução de salários. Muitos já estavam desempregados quando o coronavírus desembarcou no Brasil. Quase nada foi feito no ano passado para reduzir o desemprego.

Além disso, em 2019 cresceu a fila de espera do programa Bolsa Família. O governo estreitou a porta de ingresso a partir de maio, condenando ao relento cerca de 1,5 milhão de famílias. Agora o Executivo promete ampliar o número de beneficiários, como parte da estratégia anticrise. Mas essa gente já estava à espera antes da crise.

Quando o vírus começou a assustar o mundo, o Brasil tinha cerca de 11,6 milhões de desocupados e 26,2 milhões de pessoas subutilizadas (desempregadas, subempregadas, desalentadas e distantes de qualquer oportunidade na chamada força de trabalho potencial).

Ao ser atingido pela epidemia, o País já estava, portanto, muito debilitado, em situação muito parecida com a de um doente desassistido ou mal assistido. Os números do varejo comprovam essa condição. Em janeiro, o comércio varejista vendeu 1% menos que em dezembro, recuando pelo segundo mês consecutivo. Foi o pior janeiro desde 2016 (-2,6%), quando o Brasil entrava no segundo ano da última recessão. O volume vendido aumentou 1,8% em 12 meses, mas o movimento diminuiu na passagem de 2019 para 2020. A média móvel trimestral caiu 0,4% no período encerrado em janeiro, em mais uma prova dos efeitos das más condições de emprego e renda. Os últimos números foram divulgados ontem pelo IBGE.

A fraqueza do comércio varejista combina com o baixo dinamismo da indústria. Com aumento de 0,9% em janeiro, a produção industrial ficou longe de retornar ao nível de outubro, anterior à queda de 2,4% nos dois meses seguintes. Mas, além da modesta expansão do volume produzido, os dados de janeiro trouxeram pelo menos um detalhe animador. O avanço em 13 dos 15 locais cobertos pela pesquisa foi o mais disseminado desde junho de 2018, quando a indústria começou a superar o impacto da paralisação desastrosa dos caminhoneiros.

Mesmo sem a crise desatada pelo coronavírus, já seria difícil desemperrar os negócios, com as condições externas desfavoráveis e um mercado interno travado pelo desemprego. Com muita ociosidade, a indústria poderia responder à demanda maior sem necessitar de investimentos iniciais. Mas faltaria o primeiro impulso. Esse impulso dificilmente virá de reformas ainda em tramitação ou nem apresentadas. Mas o desafio será muito maior se os efeitos da nova crise tornarem o quadro muito pior do que era antes do vírus. Novos danos serão inevitáveis, até por causa de medidas necessárias, como a quarentena. Dificuldades muito maiores serão evitadas, se o governo garantir algum poder de compra às famílias, com medidas como liberação do FGTS, complementação salarial, seguro-desemprego e distribuição eficiente do Bolsa Família. A liberação de R$ 1,2 trilhão para o sistema financeiro, pelo Banco Central, foi um passo notável e um exemplo de eficiência para o Executivo. Mas é preciso, desde já, evitar um empobrecimento maior de dezenas de milhões de pessoas.

25 de março de 2020

O IMPACTO GEOPOLÍTICO DO CORONAVÍRUS!

(Rubens Barbosa – O Estado de S. Paulo, 24) A epidemia do coronavírus – a pior dos últimos cem anos – terá profundas consequências sobre um mundo globalizado, sem lideranças alinhadas e pouco solidárias entre si. O impacto econômico e social vai ser profundo, com o custo recaindo nos mais pobres, fracos e idosos e em países menos preparados e desenvolvidos.

Os efeitos sobre os países e sobre a economia global estão sendo sentidos e deverão agravar-se antes de melhorar.

Como a geopolítica global poderá ficar afetada pela epidemia? O que poderá mudar no cenário global?

Duas observações iniciais. A crise atual mostrou que as fronteiras nacionais desapareceram com as facilidades do transporte aéreo e o imediatismo das comunicações. E que as políticas econômicas domésticas estão intimamente influenciadas pelo que acontece no resto do mundo. Nenhum país ou continente é uma ilha. Por outro lado, a extensão e a repercussão da crise, em larga medida, deriva do peso da China na economia global. No início da década, quando se disseminou a Sars, o país representava 4% da economia global, hoje representa 17%. A China é a segunda economia mundial, o maior importador e exportador do mundo e, para culminar, transformou-se num centro de suprimento de produtos industriais para as cadeias globais de valor.

Quais as consequências na relação entre os EUA e a China, as duas superpotências atuais? Nos últimos anos cresceu a competição entre os dois países pela hegemonia global no século 21. Os EUA, ao se isolarem e ampliarem ações confrontacionistas, protecionistas, nacionalistas e xenófobas, dificultam a interdependência dos países, como ocorre com a globalização. Enquanto os EUA apontam a China como adversária estratégica e criticam o governo pela condução da epidemia (vírus chinês), Beijing, ao invés de fechar as fronteiras, como fez Washington, favorece a abertura e a ampliação do comércio externo e manda médicos e equipamentos para a Itália, a Espanha e o Brasil a fim de ajudar a combater o coronavírus. A guerra fria econômica, a nova fase da confrontação, evidencia-se pela iniciativa chinesa da Rota da Seda, pela competição nas redes 5G e por conflitos sobre propriedade intelectual e inovações tecnológicas.

A pandemia poderá também ter efeito relevante no cenário interno dos dois países com consequências geopolíticas. Xi Jinping disse que caso a epidemia se prolongue haverá o risco de instabilidade econômica e social no país. A maneira como, de início, Donald Trump conduziu a crise epidêmica em seu país foi muito criticada e sua popularidade caiu. As prévias do Partido Democrata vêm definindo Joe Biden como o candidato contra Trump, com apoio do centro moderado. Caso essa tendência se firme, pela primeira vez seria possível pensar numa derrota do atual presidente. O resultado da eleição, em novembro, poderá ter efeitos importantes na geopolítica global caso haja uma mudança da atitude do governo de Washington em relação ao mundo.

Outra questão é como países e empresas reagirão para reduzir sua dependência do mercado e da produção de partes e componentes chineses nas cadeias produtivas. A tendência poderá ser uma gradual redução dessa dependência e alguns países mais preparados e organizados, como o Vietnã e alguns outros asiáticos, poderão sair ganhando com investimentos para substituir a China. Em médio prazo, a projeção externa das grandes economias vai depender de sua base produtiva nacional e de sua competitividade.

A estabilidade política e econômica global poderá ser significativamente afetada pela vigilância biométrica, que poderá vir a ser implantada para evitar epidemias futuras. A preocupação com a saúde poderá levar à invasão da privacidade, com possíveis reflexos em políticas totalitárias. Quanto à dramática queda do crescimento dos EUA e da China, as projeções apontam para uma redução norte-americana de 4% no primeiro trimestre e 14% no segundo. Para a China as estimativas de crescimento não são maiores que 3,5% para 2020. Caso os EUA entrem em recessão e as projeções sobre a China se confirmem, não se pode afastar a possibilidade de recessão e, no pior cenário, de uma depressão, talvez mais dramática que a de 1929, por não ficar limitada ao setor financeiro. Como os países emergentes, produtores agrícolas, sairão de um cenário tão dramático como esse?

A Europa está debilitada pela saída do Reino Unido e viu a situação humanitária, social e econômica agravada pela crise em alguns países, como Itália e Espanha. Em cenário dramático como o atual, é possível prever que o continente sairá com seu poder relativo diminuído.

O Brasil, uma das dez maiores economias do mundo, terá de se ajustar rapidamente à nova geopolítica global, sob pena de perder mais uma vez a oportunidade de se projetar como potência média em ascensão.

Em outros momentos da História, movimentos tectônicos transformaram o equilíbrio de poder entre as nações e os rumos da economia. O mundo pós-coronavirus deverá emergir com novas prioridades e com um novo cenário geopolítico, com a Ásia – em especial a China – em melhor posição para ocupar um crescente espaço político e econômico.

O mundo pós-pandemia deve emergir com novas prioridades, num novo cenário global.

24 de março de 2020

CRISE CORONAVÍRUS: PREFEITURAS PODEM VIRAR O JOGO!

(Armínio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha – O Estado de S.Paulo, 23) Na última sexta-feira (20/03), o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta declarou que o período de pico de infecções por covid-19 no Brasil será nos meses de abril, maio e junho. O ministro já admite que ao final de abril nosso sistema de saúde entrará em colapso. Esse cenário se apresenta como ainda mais severo que o vivido pelos italianos. Para evitar um caos hospitalar dessa magnitude, a semana que se inicia é crucial. O governo federal, os estados e municípios precisam tomar medidas imediatas que possam achatar a curva de contágio e organizar o fluxo de atendimento do sistema de saúde.

O impacto da covid-19 em nossos hospitais será tremendo. O Brasil já não tem capacidade hospitalar suficiente para atender o quadro sanitário existente. Persistem em nosso território os desertos sanitários: são ao todo cento e vinte três regiões sanitárias sem nenhum leito em UTI. O aumento de demanda por leitos ocasionado pelo coronavírus agrava essa situação e exigirá um aumento significativo da produção hospitalar. O Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) estima que cada um por cento de população infectada corresponderá a um bilhão de reais de gastos em hospitalizações adicionais em unidades de tratamento intensivo. Com a declaração do estado de calamidade, o Tesouro está livre para fazer este investimento, sem dúvida de alto retorno social e humanitário.

Existem outras e rápidas medidas que podem contribuir para limitar os danos da pandemia. No topo da lista está o distanciamento social. Evidências demonstram que tal medida é capaz de achatar a curva de contágio da epidemia, o que minimizaria o número de casos graves desatendidos.

No entanto, é ilusório acreditar que o terço mais pobre do Brasil, composto de pessoas que ganham menos de meio salário mínimo, deixará de circular nas cidades só com decretos impositivos, toques de recolher e outras medidas de vigilância. É necessário garantir um mínimo de assistência para compensar a extraordinária perda de renda causada pelo distanciamento social. E é necessário fazer isso já. O governo federal tem as condições de injetar recursos na economia ainda nesta semana, diretamente a mais de setenta milhões de brasileiros. O Brasil dispõe de uma base de dados organizada com informações que identificam esses indivíduos – o Cadastro Único, que lista beneficiários de todos os programas sociais focados nas famílias de baixa renda. Ao abarcar os indivíduos listados no Cadastro Único, sem necessidade de triagem adicional, o governo federal poderá evitar importantes custos e demoras de implementação.

Essas medidas de apoio socioeconômico contribuirão imediatamente ao controle do contágio. Mas elas não são suficientes: é fundamental que sejam complementadas com esforços na triagem e organização do atendimento hospitalar. Nesse sentido o SUS é fundamental, com sua rede de Atenção Básica resolutiva, cuja responsabilidade compete aos municípios. No momento, existe grande disparidade na capacidade de resposta por parte das prefeituras.

É fundamental que elas comecem a trabalhar de maneira coordenada, cumprindo um mínimo de repertório de ações. O IEPS preparou um check list de enfrentamento à covid-19 direcionado aos municípios, prevendo ações de rápida implementação em quatro dimensões essenciais. O protocolo indica como as prefeituras podem orientar suas ações a partir dos dados e evidências existentes; adaptar a organização dos serviços de saúde; fortalecer a prevenção através da comunicação com a população; e, por fim, reformular estratégias de gestão instaurando uma cadeia de comando e controle eficiente durante o período de crise. Não há tempo a perder: se quisermos evitar o total colapso do sistema hospitalar do país dentro de um mês, é necessário que governo federal e as prefeituras implementem essas ações esta semana.

23 de março de 2020

TRÊS CENÁRIOS POSSÍVEIS PARA A CRISE NO PAÍS!

(Merval Pereira – O Globo, 22) Diante da crise desencadeada pela pandemia da Covid-19, o economista Claudio Porto, fundador da Macroplan, consultoria especializada em análise prospectiva e estratégia, realizou na segunda semana de março sondagem junto a um grupo de 150 pessoas de todo o país, entre eles economistas, sociólogos, cientistas políticos, engenheiros, gestores sênior de empresas, pesquisadores e professores de universidades.

O propósito era detectar a percepção sobre a situação da economia e da política brasileiras para este ano. O cruzamento das respostas propiciou à Macroplan a criação de três cenários. No denominado “A reconquista da normalidade”, o melhor, mas de menor probabilidade, em face da intensidade da crise, o governo assumiria um comportamento cooperativo como seu novo padrão de relacionamento político-institucional, uma reviravolta surpreendente, mas positiva, no que tem pronta resposta dos principais atores políticos.

Impactos positivos diretos são produzidos nos graus de acerto, nos níveis de confiança e na melhoria e aceleração das medidas de combate às crises da saúde pública, da economia e das maiores vulnerabilidades sociais.

A melhoria do cenário externo também ajuda. Na visão da Macroplan, aceleram-se a velocidade e a intensidade das boas respostas sanitárias e aos estímulos econômicos com propagação global. Como resultado, os impactos da crise na economia brasileira são intensos, mas de duração moderada. O segundo semestre é de ampla recuperação.

O cenário mais provável é o que foi denominado “Aos trancos e barrancos”, cuja probabilidade, que era de 35% no início da sondagem, passou ao final para 60%, à medida que a situação se agravava. Esse cenário mostra uma continuidade do Brasil atual. A realidade finalmente se impõe, mas “à brasileira”, como define o estudo, isto é, pela metade, alternando momentos mais ou menos preocupantes. A mudança de comportamento dos principais atores do governo federal, o chamado “núcleo duro”, incluindo o próprio presidente Bolsonaro, é apenas temporária.

No princípio mais cooperativo, a previsão da Macroplan é que haverá sucessivas recaídas de confrontação, com resposta semelhante dos políticos. A instabilidade do relacionamento continua como “o novo normal”. Os impactos imediatos são positivos — mas não se sustentam por muito tempo.

Os níveis de confiança se mantêm baixos, e as medidas de combate às crises da saúde pública e da economia são insuficientes, deteriorando vulnerabilidades sociais. Externamente, não há novidades, especialmente no relacionamento com a China, com tensão permanente, que varia apenas nos níveis de “esticamento da corda”. Isso ocorreria mesmo com a melhoria do cenário global. Como resultado, os impactos da crise na economia brasileira são intensos e de duração prolongada. 2020 é mais um ano perdido.

O pior cenário, que Claudio Porto considera improvável, é “A marcha da insensatez”. Uma ruptura em relação ao Brasil atual, com uma escalada desenfreada de autoritarismo populista. Os laços de coesão social, já enfraquecidos, se rompem numa espiral ascendente de polarização.

As lideranças mais conservadoras e suas bases de apoio acentuam seu comportamento de confrontação e a tensão crescente — política e social— caminha para tornar-se “o novo normal” com impactos negativos no combate às crises da saúde pública e da economia.

Externamente, a novidade é uma piora progressiva no relacionamento do Brasil com a China, a Europa e alguns países “inimigos” nas Américas. Isso ocorre mesmo com a progressiva melhora do cenário global.

Como consequência, teríamos a saída dos “liberais de raiz” da equipe econômica, fazendo com que os impactos da crise brasileira tornem-se intensos e de duração prolongada, com uma ruptura progressiva nas instituições políticas.

As eleições municipais de 2020 poderiam ser adiadas a pretexto de defesa da saúde pública, enquanto uma minoria ativa da população segue nas ruas pedindo “intervenção militar já”.

20 de março de 2020

BATALHAS PERDIDAS!

(Zeina Latif – O Estado de S. Paulo, 19) É possível que um quadro epidêmico mais grave no Brasil não pudesse ser evitado, a julgar pelo que ocorre no mundo. No entanto, não restam dúvidas que o governo federal demorou a agir, podendo implicar em maiores custos, em vidas e na economia.

O mercado financeiro reage à piora do quadro doméstico. Estancar perdas não é para já.

No dia 23 de janeiro, o ministro da Saúde afirmou que o País estava em nível 1 de alerta, em uma escala de 1 a 3. Risco iminente. Mesmo com a aproximação do carnaval, não houve comunicação em massa sobre os cuidados mínimos dos indivíduos e medidas sanitárias efetivas nas fronteiras.

Somente após quase dois meses desde o alerta de Mandetta ocorreu a coletiva do presidente e seus ministros para dar satisfação à sociedade e apresentar as iniciativas a serem tomadas.

O governo fala em “operação de guerra”, mas batalhas importantes já foram perdidas, começando pela da comunicação, sendo que o presidente muito atrapalhou nessa frente.

Não houve qualquer coordenação interna do governo. Ministros das várias áreas envolvidas se omitiram e o governo ficou paralisado. O presidente, ao alimentar conflitos e fazer da epidemia uma bandeira política, impediu a coordenação de esforços com entes da federação e os demais poderes.

Na coletiva de ontem, faltou resposta à altura ao grave quadro e nada muito concreto foi anunciado sequer para conter o contágio de pessoas e preparar a rede hospitalar. Segundo o ministro da Saúde, a estabilização de novos casos da doença poderá ocorrer apenas em julho; isso em um cenário benigno.

De batalha em batalha perdida, o País caminha rapidamente para o isolamento social, sofrimento da sociedade e quadro recessivo, sem contar os riscos de desabastecimento. O que não se sabe é em qual intensidade.

Políticas macroeconômicas tradicionais para lidar com a crise são praticamente inócuas. Nem mesmo as localizadas, como as intervenções do Banco Central no mercado de câmbio.

Se em condições menos agudas as intervenções têm eficácia bastante limitada, agora, ainda mais, pois todos os vetores puxam o dólar para cima. As incertezas no mercado global se somam aos riscos internos derivados da escalada da epidemia no Brasil. Essa política, na melhor das hipóteses, pode ajudar a dirimir problemas de liquidez no mercado cambial. Mesmo a contenção de movimentos de manada, quando o mercado fica sem referências, ficou bastante dificultada.

Do lado da política monetária, não será o corte da Selic para 3,75% que mudará o cenário econômico. As respostas dos bancos centrais no mundo que reduzem as taxas de juros parecem uma tentativa de acalmar os mercados do que fruto de uma visão mais estruturada de médio prazo. O crédito na economia não irá reagir aos juros ainda mais baixos.

Por essa mesma razão, ainda que o mercado venha a reagir positivamente à medida – o que não está claro já que a decisão do Copom veio dentro do esperado e com sinalização de pausa adiante –, será algo de curtíssimo prazo. Nada que acalme os mercados efetivamente e limite o contágio financeiro na economia.

Talvez o mais adequado teria sido aguardar para cortar os juros, guardando munição para o futuro, quando as políticas de estímulo à demanda poderão ser mais eficazes. E o futuro que nos aguarda poderá ser muito difícil a depender da capacidade de ação do governo.

Trazer algum alento aos mercados, contendo perdas e o aperto das condições financeiras, dependerá de ação conjunta do governo. Não se pode esperar tanto do Banco Central.

A sociedade pede ação, o setor produtivo pressiona por ajuda e o mercado financeiro por medidas econômicas que estanquem as perdas.

Nessa guerra será necessário estratégia para definir as batalhas de cada dia e coordenação de esforços. Atirar às cegas, não.

Políticas macroeconômicas tradicionais para lidar com a crise são quase inócuas.

19 de março de 2020

COMO EVITAR A DEPRESSÃO ECONÔMICA!

(Monica de Bolle, O Estado de S. Paulo, 18) Crise pode ter longa duração, com parada quase total do mundo – situação em que é melhor errar para mais.

Acompanho as análises nos jornais brasileiros sobre a ruptura inédita causada pela pandemia e me causa angústia a falta de urgência. Não me refiro apenas à irresponsabilidade atroz do presidente da República, que põe em risco a vida das pessoas, mas também ao fato de que poucos no Brasil se deram conta do que é essa crise. Trata-se de uma parada súbita da economia mundial como jamais vimos. E, ao que tudo indica, não será uma parada súbita de curta duração, como a observada após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, ou como aquela proveniente da crise financeira de 2008. Não se trata apenas da incerteza atrelada à epidemia, mas das medidas de saúde pública que estão sendo tomadas mundo afora. Para desacelerar a propagação do vírus, fronteiras, escolas, universidades, bares, restaurantes, escritórios estão sendo fechados. Alguns países impuseram toques de recolher. As companhias aéreas já sofrem o baque do isolamento e do distanciamento social. A economia mundial sente os primeiros efeitos da parada súbita.

A crise será de longa duração. Para desacelerar a progressão da epidemia e “achatar a curva”, como o esforço pela desaceleração ficou conhecido, as medidas inéditas estarão conosco por vários meses. Uma vez alcançado o pico da epidemia, serão mais vários meses de semiparalisia até que seja seguro começar a abandonar as medidas excepcionais de saúde pública. Será um recomeço gradual. A não ser que tenhamos rapidamente uma vacina – o que hoje não parece provável – estamos falando, possivelmente, de mais de um ano de parada quase total do mundo. Para 2020, o quadro de retração global é certo. Registraremos, pela primeira vez em muitas décadas, uma queda do PIB global. É por esse motivo que países começaram a adotar políticas extraordinárias para atenuar os efeitos da crise. Em tempos de calamidade inédita e risco de depressão, metas fiscais e a evolução da dívida tornam-se absolutamente irrelevantes. Não se compara o desajuste fiscal proveniente do que é necessário agora ao quadro de depressão que se instaurará se as medidas forem insuficientes ou se governos forem contaminados pela inação. A inação mata.

Embora o governo brasileiro esteja muito longe de reconhecer a gravidade do momento – as medidas recém-anunciadas por Paulo Guedes são insuficientes – há os que começam a pensar no que fazer. Há mais de uma semana tenho defendido o que considero necessário para enfrentar a crise de longa duração a abater em breve o Brasil, que entra nela a partir de uma situação econômica muito frágil. São elas: suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; a instituição de uma renda básica universal mensal no valor de R$ 500 para os 36 milhões do Cadastro Único que não recebem Bolsa Família – esses são os grupos mais vulneráveis; a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de aumentar esse montante; acelerar e dar maior flexibilidade à aprovação do seguro-desemprego; disponibilizar recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas e médias empresas. Por fim, recomendo um programa de investimento público em infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES.

As medidas de caráter imediato – saúde, proteção social e setorial – somam cerca de R$ 310 bilhões ao longo de 12 meses, ou uns 4% do PIB. Isso é metade dos cerca de 8% do PIB que gastávamos com os juros altos de 14% há poucos anos. Embora seja um montante considerável, o mais arriscado nesse momento não é o que vai acontecer com o déficit ou com a razão dívida/PIB – até porque não há investidor no mundo, hoje, preocupado com a sustentabilidade das contas públicas. Para viabilizar o que proponho, precisamos da imediata flexibilização da meta fiscal e da suspensão do teto de gastos por um período de dois anos. Deixo claro que o teto é importante para sustentabilidade fiscal de longo prazo – mas, o momento é de calamidade.

É claro que, se a situação melhorar, se uma vacina for encontrada, se os cientistas encontrarem um tratamento eficaz para a síndrome respiratória aguda que se manifesta nos casos mais graves da doença, os montantes que sugiro poderão ser reduzidos. Mas, na situação em que estamos é melhor errar para mais do que para menos. Errar para menos significa pôr em risco a vida de dezenas de milhões de pessoas. Manter o pensamento encaixotado, hoje, é fatal.

18 de março de 2020

O ESSENCIAL INCOMPREENDIDO!

(Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal – O Estado de S. Paulo, 17) Na semana passada, o senador José Serra publicou artigo neste jornal (O que é essencial ficou de fora) criticando as propostas de reforma tributária em discussão na Comissão Mista do Congresso Nacional. Respeito muito o senador Serra por sua contribuição para o debate público e por sua trajetória política, mas neste caso entendo que sua posição está equivocada. A seguir, analiso as principais críticas apresentadas no artigo.

Uma primeira crítica é de que a reforma aumentaria a carga tributária do setor de serviços, o que prejudicaria a classe média e as classes mais baixas, que prestam esses serviços. Tal crítica carece de fundamento, por várias razões. Por um lado, a maior parte dos prestadores de serviços de baixa renda trabalha em empresas do Simples, que não serão afetadas pela reforma tributária.

Por outro lado, o IBS – imposto que, pelas propostas em discussão no Congresso, substituiria cinco tributos atuais – incide sobre o consumo, e as famílias ricas consomem muito mais serviços que as famílias pobres. Ou seja, se a harmonização da tributação sobre bens e serviços tem algum efeito, é o de melhorar a distribuição de renda. Pode-se discutir um tratamento diferenciado para saúde e educação, pois seu fornecimento pelo setor privado reduz a demanda por serviços públicos, mas não para todos os serviços.

Por fim, mesmo supondo que o aumento do imposto não seria repassado aos consumidores, ou seja, que os prestadores de serviços que não estão no Simples seriam afetados por um aumento de tributação, estes estão bem longe de serem pessoas de baixa renda. Para entender este ponto, vamos considerar duas situações: a de um consultor do regime de lucro presumido com renda mensal de R$ 200 mil e que recolhe ISS pelo regime uniprofissional; e a de um empregado de uma rede de supermercados que recebe R$ 2 mil por mês. Pelo regime atual, os tributos indiretos incidentes sobre a renda gerada pelo primeiro são de 3,65% e sobre a renda gerada pelo segundo, de 27,25%. Acho difícil de acreditar que o senador Serra defenda que o trabalho de uma pessoa que ganha R$ 2 mil/mês sofra a incidência de um imposto 7,4 vezes maior que o trabalho de uma pessoa que ganha 100 vezes mais. Antes de criticar a proposta em discussão no Congresso, é essencial avaliar se o sistema atual é equilibrado.

Uma segunda crítica do senador diz respeito ao aumento do risco de sonegação fiscal com a adoção do princípio de destino. Neste caso, cabe destacar que, no modelo do IBS, o imposto pertence ao Estado de destino, mas é cobrado no Estado de origem, por meio de um sistema de arrecadação centralizada, minimizando o risco de sonegação. Ao contrário, a adoção de regras e alíquota uniformes dificulta muito a sonegação do IBS.

Uma terceira crítica diz respeito ao aumento da complexidade do sistema tributário durante a transição, período em que os tributos atuais conviveriam com o IBS para permitir um ajuste suave ao novo sistema. Na verdade, o IBS é um imposto tão simples que a única obrigação acessória será emitir nota fiscal eletrônica nas vendas e registrar o recebimento dos bens e serviços adquiridos – que já são obrigações do sistema atual.

Por fim, o senador alega que as propostas de reforma tributária não atacam a irresponsabilidade fiscal dos governos subnacionais. Embora o objetivo da reforma tributária não seja o controle de gastos (que é uma agenda muito importante), mas sim a racionalização dos impostos, ao tornar transparente para os consumidores o custo da tributação do consumo, a reforma tende a gerar uma pressão social pelo uso mais eficiente dos recursos arrecadados.

A solução para os problemas tributários do País exige, sim, um debate técnico e fundamentado – como ressalta o senador Serra em seu artigo. Mas este debate tem de partir da compreensão dos problemas do sistema atual e de uma avaliação sem preconceitos das propostas em discussão no Congresso Nacional.

17 de março de 2020

MUSSOLINI!

(Simon Schwartzman – O Estado de S. Paulo, 13) Para entender os movimentos de extrema direita que ocorrem hoje, a leitura de M – O Filho do Século, de Antonio Scurati, recém-publicado pela Editora Intrínseca, que conta a história do surgimento do fascismo na Itália, é leitura obrigatória. É um romance documental, que faz lembrar o Romance de Perón, de Tomás Eloy Martinez, publicado em 1998 pela Companhia das Letras, que merece reedição.

O fascismo surge das cinzas ainda quentes da 1.ª Guerra Mundial, com seus 11 milhões de mortos. Vitoriosa, mas economicamente arrasada, a Itália se divide entre um governo liberal, que tenta reconstituir a economia, e um forte movimento socialista que ganha cada vez mais força no campo e nas cidades. Todos anseiam pela paz, mas Mussolini, que havia começado sua carreira como editor do jornal do Partido Socialista, Avanti!, e sido expulso do partido por defender a entrada na Itália na guerra, decide abraçar a morte, a violência e o nacionalismo como formas de ação política e busca do poder.

Seus principais parceiros, no início, são os remanescentes de uma tropa de elite desmobilizada, os Arditi, treinados para assassinar os inimigos, que depois da guerra se sentem frustrados e marginalizados. Scurati os descreve como passando o tempo embriagados, nos bordéis e envolvidos em atividades criminosas. São eles que Mussolini conquista pelo seu novo jornal, O Povo da Itália, cujo tema principal é o ataque aos que se opuseram à participação italiana na guerra, e os organiza com a criação, em 1919, do Fasci Italiani di Combattimento, os Grupos Italianos de Combate, simbolizados por uma caveira, que dão início ao movimento e ao Partido Fascista.

No início, Mussolini e suas milícias paramilitares são olhados com desprezo tanto pelos liberais, que controlam o governo nacional, como pelos socialistas, que cada vez mais controlam os governos locais e ganham espaço no Parlamento. A economia do país continua estagnada, a Itália não consegue participar da partilha do mundo colonial feita pelas potências europeias e os Estados Unidos, e o exemplo da revolução russa inspira entre os socialistas a ideia de que a hora da revolução italiana também está próxima. Mussolini, no início, ainda tentou manter um discurso a favor dos operários e camponeses; e compartilhava com os setores mais radicais do partido socialista a ideia de que o regime político liberal não servia para nada, os políticos eram, na melhor hipótese, incapazes e na pior, corruptos, e só uma revolução poderia resolver os problemas do país. Ambos acreditavam, com Marx e os anarquistas, que a violência era a parteira da história.

Com o país paralisado por greves e ocupações sucessivas de terras e fábricas, os fascistas decidem se colocar como defensores da ordem e, financiados por fazendeiros e empresários, partem para atacar com violência e desmantelar os movimentos e organizações de esquerda, ao mesmo tempo que, pelo jornal, Mussolini sobe o tom na defesa da violência e do nacionalismo como os únicos caminhos para fazer a Itália voltar aos tempos gloriosos do império de 2 mil anos atrás. Na primeira eleição de que participam, em 1919, os socialistas e o Partido do Povo Italiano, católico, conquistam a maioria, os fascistas ficam totalmente marginalizados. Nos dois anos seguintes, que ficaram conhecidos como o “biênio vermelho”, a crise econômica se aprofunda, as greves e ocupações de fábricas e fazendas se multiplicam, o desemprego continua e os fascistas intensificam sua violência, com assassinatos de líderes populares e destruição das sedes das organizações locais.

Na eleição de 1921 os fascistas se aliam aos liberais e ganham, deixando os vários partidos da esquerda na oposição. No governo, a crise econômica persiste e Mussolini continua incentivando o terrorismo, com as milícias agora organizadas em esquadrões dos camisas negras. Em 1922 organiza a “marcha sobre Roma”, em que as milícias avançam sobre a capital exigindo que Mussolini seja nomeado primeiro-ministro. O governo hesita, teria sido fácil desmantelar a milícia se o exército decidisse agir, mas todos temem a confrontação. Na chefia de governo, Mussolini trabalha para desmontar as instituições democráticas, criando dentro do governo uma polícia secreta copiada da Cheka de Stalin, para dar continuidade à violência, e em 1925 assume o poder como ditador.

Mussolini não estava sozinho em seu assalto à democracia, que incluía gestos teatrais, acordos por debaixo dos panos, o uso descarado da violência contra os opositores, o uso sistemático da mentira e a traição constante a antigos companheiros. Tinha a simpatia de empresários, como Gianni Agnelli, dono da Fiat, e intelectuais e artistas brilhantes e famosos, como o filósofo Benedetto Croce, o maestro Arturo Toscanini e sua amante, a aristocrática intelectual judia Margherita Sarfatti. Para eles, o Duce tinha seus defeitos, mas havia uma causa maior, a recuperação econômica e a renovação da Itália, que tudo justificavam. Deu no que deu.

16 de março de 2020

‘DIÁRIOS DA PRESIDÊNCIA, 2001-2002’!

(Celso Lafer – O Estado de S. Paulo, 15) A publicação deste quarto volume finaliza o disciplinado empenho de Fernando Henrique Cardoso em dar acesso ao registro que fez do dia a dia de suas atividades nos oito anos que presidiu o País. É empreitada de largo fôlego, cujo enredo esclarece como caminhou sem perder o rumo no “grande sertão” da política brasileira no democrático exercício das responsabilidades da Presidência.

É uma obra original na sua feitura. Não é um diário na acepção usual da literatura confessional da sensibilidade de estados de espírito. Nada tem que ver com uma burocrática agenda comentada do expediente do dia a dia. Não é uma autobiografia política, mesmo porque o registro feito no calor da hora não permite uma narrativa organizadora, decantada pela memória da experiência, no tempo mais longo da reflexão. Não é igualmente uma discussão elaborada com rigor acadêmico sobre como mesclar pensamento e ação. Essa mescla, no entanto, está presente nos Diários, pois com frequência FHC se posiciona como analista observador da ação, extraindo do cotidiano de sua experiência presidencial o alcance mais amplo dos movimentos das forças sociais e políticas, da lógica política das instituições e das pessoas com quem interagiu.

FHC tem os dotes da facilidade da narrativa. É o que dá sabor aos Diários, nos quais não falta o realismo político da objetividade nem, ocasionalmente, a acrimônia da irritação, sempre permeada pela educada civilidade que caracteriza o seu modo de ser.

Todos os ingredientes dos gêneros acima mencionados têm presença, mas não dão a identidade intelectual dos Diários da Presidência. Trata-se de uma obra singular, única na sua amplitude, no campo da ciência política sobre o que é o processo decisório no ápice do sistema político brasileiro. “Governar é escolher”, afirmou Mendès-France, e os Diários explicitam circunstanciadamente, com a disciplina da responsabilidade, “de dentro”, e não “de fora”, o desafio de conduzir a pauta decisória de um país grande e complexo.

Não são triviais os riscos desses desafios. Passam por não se afogar na avassaladora demanda dos pleitos da vida política, para não reduzir o governo à mera rotina da “politique politicienne” de que falam os franceses. Exige coragem e capacidade de enfrentar os graves riscos do inesperado, que tem o potencial de descarrilar um governo. Disso são exemplos as múltiplas crises financeiras que superou. Não prescinde da aptidão na lida com a resistência que a realidade impõe a uma ação inovadora.

Enfrentar esse desafio requer a qualificada competência de liderança dotada de visão do País baseada na experiência e no conhecimento e com antenas para o movimento das coisas, entrelaçada com o ânimo da “ideia a realizar” dos novos rumos a serem trilhados. Os componentes estratégicos do fim, do caminho e da vontade estão sempre presentes na impregnação dos rumos norteadores do processo decisório que permeia os Diários e no modo como FHC direcionou e acompanhou o trabalho dos seus ministros e colaboradores.

No explicar e compreender, fluem as razões das políticas públicas da gestão da economia e da sua consolidação institucional, da atenção dada às de educação e saúde e ao papel que tiveram no resgate da dívida social do País, das relacionadas à tutela dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental e de uma miríade de medidas voltadas para a melhoria das condições do País, como a elevação generalizada dos indicadores do desenvolvimento humano na sua gestão revela.

Também tem destaque a dedicação a um novo patamar de presença e de credibilidade do Brasil no globalizado mundo contemporâneo, voltado para assegurar a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Nessa matéria os Diários ilustram os méritos e o alcance de uma diplomacia presidencial, conduzida com pleno domínio das prioridades e das relevâncias de quem sabe se orientar no mundo.

É inequívoco o inventário do positivo legado da Presidência FHC. Criou condições de um futuro melhor para o Brasil, governando democraticamente e sem violência, com respeito pelo Estado de Direito, pelas instituições e pelas divergências de opinião.

Na sua pós-Presidência FHC se afastou da militância política diária. Criou com espírito universitário uma reconhecida instituição apartidária de estudo e reflexão e vem participando do debate público. Essa participação está norteada pelas preocupações com a agenda do presente na perspectiva do futuro, permeada pelo tema dos rumos e do sentido de direção que assinalou construtivamente o processo decisório de sua Presidência e que é parte de seu legado de homem público.

É esse lastro que confere autoridade à sua palavra. Autoridade, para me valer das indicações do politólogo Karl Deutsch, traduz-se na prioridade da transmissão de mensagens, na qualidade e na legitimidade do seu conteúdo e da sua relevância para a sociedade.

No errático e desestabilizador momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria acumulada de FHC merecem respeito e atenção.

13 de março de 2020

O CREPÚSCULO DO PETRÓLEO!

(Celso Ming  – O Estado de S. Paulo, 12) O petróleo é um produto sujeito a choques. Os mais importantes foram de forte alta. O de agora é choque de baixa. Em 1973, os preços saltaram de US$ 3,50 por barril para cerca de US$ 12. Em 1979, chegaram a US$ 30 e, ao longo dos anos 2000, foram para a altura dos US$ 60. A partir daí, o forte aumento da procura proporcionado pelo crescimento da China e dos tigres asiáticos puxou as cotações para a altura dos US$ 120. A crise de 2008 voltou a derrubá-las. A estocada, que acontece em sentido inverso, acentuou o declínio, da faixa dos US$ 50 a US$ 60 para os US$ 35, em vigor desde domingo.

Essa derrubada determinada pela Arábia Saudita vem sendo vista por certos analistas apenas como resultado do desacordo episódico com a Rússia sobre a proposta de reduzir a oferta, de modo a estabilizar a demanda enfraquecida pela pandemia. Mas deve ser entendida como mais do que consequência desses fatores.

O que há é a primeira manifestação impactante do declínio da idade do petróleo, que já dura 150 anos. O quadro hoje é de superprodução e o mundo está encharcado de óleo. Os grandes produtores enfrentam grandes estoques e capacidade ociosa.

Antes da decisão da Arábia Saudita, tomada no último fim de semana, de aumentar a oferta em 2 milhões de barris diários ou até em 3 milhões, se for o caso, o mercado já mostrava instabilidade e forte dependência de que a Opep reduzisse a produção.

Há 20 anos, preços atraentes em torno dos US$ 100 por barril colocaram em movimento investimentos em óleo e gás em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil. A mais importante dessas iniciativas aconteceu nos Estados Unidos na exploração de suas abundantes jazidas de xisto, onde petróleo e gás são liberados em terra por meio de bombardeio de água, areia e produtos químicos. Essa exploração tornou os Estados Unidos não apenas autossuficientes, mas também exportadores.

A primeira derrubada das cotações, por meio de aumento da oferta da Opep, há cinco anos, teve por objetivo tirar do mercado esses produtores americanos que operavam a custos acima de US$ 70 por barril. O resultado, no entanto, foi forte redução de custos desse segmento que, sozinho, produz hoje petróleo e gás em volume equivalente ao que vinha produzindo e exportando a própria Arábia Saudita.

Essa nova operação decidida agora parece ter o objetivo imediato de quebrar os produtores de óleo de xisto e também os que vinham operando com produção convencional de alto custo.

Se conseguirá ou não, parece depender da disposição do governo dos Estados Unidos de apoiar o setor.

Mas o encolhimento da demanda mundial não acontece e está sendo acentuada apenas pelo mais baixo crescimento econômico imediato e pelo alastramento do coronavírus. Em todo o planeta crescem as pressões pela redução do consumo de combustíveis fósseis, tanto na produção de energia quanto na movimentação dos motores a explosão. A Comissão Europeia (Poder Executivo da União Europeia) fixou metas drásticas para reduzir até 2050 o consumo e incentivar a produção de carros elétricos e de energia renovável, especialmente as de fontes solar e a eólica.

O súbito barateamento dos preços pode até aumentar temporariamente o consumo e adiar projetos de produção de energia limpa, mas está no horizonte o declínio da importância do petróleo na economia mundial.

Para o Brasil, este é um sinal amarelo de forte intensidade, porque o governo federal e os Estados se tornaram fiscalmente dependentes do petróleo caro. Obtiveram receitas imensas nos leilões de áreas, pagamentos de royalties e contribuições especiais e arrecadação de impostos, especialmente de ICMS pelos Estados, sobre os preços dos combustíveis. As novas cotações derrubarão as receitas do setor público, que já vinham mergulhadas com a baixa atividade econômica.

Qual será a resposta política do governo? Certos setores pedem aumento imediato das despesas públicas com base em emissões de moeda e, portanto, de pressão inevitável sobre a inflação. A outra   opção é redução das atribuições do Estado. Os debates sobre esse tema, que já vinham se acentuando com base na definição sobre a apropriação das verbas do Orçamento da União, deverão se ampliar agora. Especialmente depois que a Câmara derrubou o veto presidencial no caso da concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

12 de março de 2020

CORONAVÍRUS: POR QUE VOCÊ DEVE AGIR AGORA!

(medium.com) Políticos, líderes comunitários e líderes empresariais: o que você deve fazer e quando?

1. Quantos casos de coronavírus haverá na sua região?

O número total de casos cresceu exponencialmente até que a China o contivesse. Mas então, ele escapou, e agora é uma pandemia que ninguém possa parar.

Se você deseja entender o que vai acontecer ou como evitá-lo, é necessário examinar os casos que já passaram por isso: China, países com experiência em SARS e Itália.

Em 21 de janeiro, o número de novos casos diagnosticados estava explodindo: existiam cerca de 100 novos casos. Na realidade, houve 1.500 novos casos naquele dia, crescendo exponencialmente. Mas as autoridades não sabiam disso. O que eles sabiam era que, de repente, havia 100 novos casos dessa nova doença.

Dois dias depois, as autoridades fecharam Wuhan. Nesse momento, o número de novos casos diários diagnosticados era de cerce de 400. Observe esse número: eles decidiram fechar a cidade com apenas 400 novos casos em um dia. Na realidade, havia 2.500 novos casos naquele dia, mas eles não sabiam disso.

No dia seguinte, outras 15 cidades em Hubei fecharam.

Casos verdadeiros estavam explodindo. Assim que Wuhan é fechada, os casos desaceleram. Em 24 de janeiro, quando outras 15 cidades foram fechadas, o número de casos verdadeiros parou. Dois dias depois, o número máximo de casos verdadeiros foi atingido e diminuiu desde então.

Enquanto isso, Coréia do Sul, Itália e Irã tiveram um mês inteiro para aprender, mas não o fizeram. Eles iniciaram o mesmo crescimento exponencial de Hubei e ultrapassaram todas as regiões chinesas antes do final de fevereiro.

Os casos da Coréia do Sul explodiram, mas você já se perguntou por que Japão, Taiwan, Cingapura, Tailândia ou Hong Kong não o fizeram?

Todos eles foram atingidos pelo SARS em 2003, e todos aprenderam com ele. Eles aprenderam o quão viral e letal poderia ser, então sabiam levar a sério.

A França reivindica 1.400 casos hoje e 30 mortes. O número de casos verdadeiros na França provavelmente é entre uma e duas ordens ou magnitude maior do que é oficialmente relatado.

Quando Wuhan pensou que tinha 444 casos, tinha 27 vezes mais. Se a França pensa que tem 1.400 casos, pode ter dezenas de milhares.

A Espanha tem números muito semelhantes aos da França (1.200 casos vs. 1.400, e ambos têm 30 mortes). Isso significa que as mesmas regras são válidas: a Espanha provavelmente já tem mais de 20 mil casos verdadeiros.

Na região da Comunidad de Madrid, com 600 casos oficiais e 17 mortes, o número real de casos é provável entre 10.000 e 60.000.

Se você ler esses dados e se disser: “Impossível, isso não pode ser verdade”, pense no seguinte: com esse número de casos, Wuhan já estava em quarentena.

E se você está dizendo a si mesmo: “Bem, Hubei é apenas uma região”, deixe-me lembrá-lo de que possui quase 60 milhões de pessoas, maior que a Espanha e aproximadamente do tamanho da França.

2. O que acontecerá quando esses casos de coronavírus se materializarem?

O coronavírus já está aqui. Está escondido e está crescendo exponencialmente.

O que acontecerá em nossos países quando chegar? É fácil saber, porque já temos vários lugares onde isso está acontecendo. Os melhores exemplos são Hubei e Itália.

Taxas de Letalidade

A Organização Mundial de Saúde (OMS) cita 3,4% como a taxa de letalidade (% de pessoas que contraem o coronavírus e depois morrem). Esse número está fora de contexto, então deixe-me explicar.

Realmente depende do país e do momento: entre 0,6% na Coréia do Sul e 4,4% no Irã. Então o que é?

As duas maneiras de calcular a taxa de letalidade são Óbitos/Total de casos e Óbito/Casos encerrados. O primeiro provavelmente será uma subestimativa, porque muitos casos abertos ainda podem acabar em morte. A segunda é uma superestimação, porque é provável que as mortes sejam notificadas mais rapidamente que as recuperações.

O que fiz foi ver como os dois evoluem ao longo do tempo. Esses dois números convergirão para o mesmo resultado quando todos os casos forem encerrados; portanto, se você projetar tendências passadas para o futuro, poderá adivinhar qual será a taxa final de letalidade.

A taxa de mortalidade da China está agora entre 3,6% e 6,1%. Se você projetar isso no futuro, parece que converge para 3,8% – 4%. Isso é o dobro da estimativa atual e 30 vezes pior que a gripe.

É composto por duas realidades completamente diferentes: Hubei e o resto da China.

A taxa de letalidade de Hubei provavelmente convergirá para 4,8%. Enquanto isso, para o resto da China, provavelmente convergirá para cerca de 0,9%.

Os casos de óbitos/total de casos do Irã e da Itália estão convergindo para a faixa de 3% a 4%. Meu palpite é que os números deles também terminarão em torno desse número.

Isto é o que se pode concluir:

Os países preparados terão uma taxa de letalidade de cerca de 0,5% (Coréia do Sul) a 0,9% (restante da China).

Países sobrecarregados terão uma taxa de mortalidade entre cerca de 3% a 5%

Em outras palavras: os países que agem rapidamente podem reduzir o número de mortes em dez. E isso está contando apenas a taxa de letalidade. Agir rápido também reduz drasticamente os casos, tornando isso ainda mais fácil.

Qual será a pressão no sistema

Cerca de 20% dos casos requerem hospitalização, 5% dos casos requerem a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e cerca de 1% requerem ajuda muito intensiva, com itens como respiradores ou ECMO (oxigenação extracorpórea).

O problema é que itens como respiradores e ECMO não podem ser produzidos ou comprados facilmente. Alguns anos atrás, os EUA tinham um total de 250 máquinas ECMO, por exemplo.

Países como Japão, Coréia do Sul, Hong Kong ou Cingapura, bem como regiões chinesas fora de Hubei, foram preparados e receberam os cuidados de que os pacientes precisam.

Mas o resto dos países ocidentais está indo na direção de Hubei e Itália.

3. O que você deve fazer?

Achatar a curva

Esta é uma pandemia agora. Não pode ser eliminada. Mas o que podemos fazer é reduzir seu impacto.

Alguns países têm sido exemplares nisso. O melhor é Taiwan, que está extremamente conectado à China e ainda hoje possui menos de 50 casos.

Eles conseguiram contê-lo, mas a maioria dos países não possui esse conhecimento. Agora, eles estão jogando um jogo diferente: mitigação. Eles precisam tornar esse vírus o mais inofensivo possível.

Se reduzirmos as infecções o máximo possível, nosso sistema de saúde poderá lidar com os casos muito melhor, reduzindo a taxa de letalidade. E, ao longo do tempo, chegaremos a um ponto em que o resto da sociedade poderá ser vacinado, eliminando completamente o risco. Portanto, nosso objetivo não é eliminar os contágios de coronavírus. É para adiá-los.

Quanto mais adiamos os casos, melhor o sistema de saúde pode funcionar, menor a taxa de mortalidade e maior a parcela da população que será vacinada antes de ser infectada.

Como achatamos a curva?

Há uma coisa muito simples que podemos fazer e que funciona: distanciamento social.

O consenso científico atual é que esse vírus pode se espalhar em até 2 metros se alguém tossir. Outra forma ocorre através das superfícies: o vírus sobrevive por horas ou dias em diferentes superfícies.

A única maneira de reduzir isso de verdade é com o distanciamento social: manter as pessoas em casa o máximo possível, pelo maior tempo possível até que isso retroceda.

Aprendendo com a pandemia de gripe de 1918

Em 1918, em média, a tomada de medidas 20 dias antes reduziu pela metade a taxa de letalidade.

A Itália finalmente descobriu isso. Eles primeiro colocaram a Lombardia em quarentena no domingo e um dia depois, na segunda-feira, perceberam seu erro e decidiram que tinham que fechar o país inteiro.

Felizmente, veremos resultados nos próximos dias. No entanto, levará uma a duas semanas para ver.

Como os políticos podem contribuir para o distanciamento social?

Se você é político em uma região afetada pelo coronavírus, siga imediatamente o exemplo da Itália e peça uma quarentena.

Isto é o que foi pedido:

Ninguém pode entrar ou sair de áreas de bloqueio, a menos que haja motivos comprovados de família ou trabalho.

Os movimentos dentro das áreas devem ser evitados, a menos que sejam justificados por razões pessoais ou profissionais urgentes e não possam ser adiados.

Pessoas com sintomas (infecção respiratória e febre) são “altamente recomendadas” a permanecer em casa.

Suspensão do horário padrão de folga dos profissionais de saúde

Fechamento de todos os estabelecimentos de ensino (escolas, universidades…), academias, museus, estações de esqui, centros culturais e sociais, piscinas e teatros.

Bares e restaurantes têm horário de funcionamento limitado das 6h às 18h, com pelo menos um metro de distância entre as pessoas.

Todos os pubs e boates devem fechar.

Toda atividade comercial deve manter uma distância de um metro entre os clientes. Aqueles que não conseguirem fazer isso devem fechar. Os templos podem permanecer abertos enquanto garantirem essa distância.

As visitas ao hospital da família e dos amigos são limitadas

As reuniões de trabalho devem ser adiadas. O trabalho em casa deve ser incentivado.

Todos os eventos e competições esportivas, públicas ou privadas, são cancelados. Eventos importantes podem ser realizados sob portas fechadas.

Conclusão: O custo da espera

Pode parecer assustador tomar uma decisão hoje, mas você não deve pensar dessa maneira.

Esta é uma ameaça exponencial. Todo dia conta. Quando você está atrasando uma decisão por um único dia, talvez não esteja contribuindo para alguns casos. Provavelmente já existem centenas ou milhares de casos em sua comunidade. Todos os dias em que não há distanciamento social, esses casos crescem exponencialmente.

11 de março de 2020

CHILE, NOVA ZELÂNDIA E O BRASIL!

(Antonio Corrêa de Lacerda – O Estado de S. Paulo, 10) Os defensores das ideias neoliberais, que pregam a privatização, o “Estado mínimo”, a abertura comercial e financeira e a desregulamentação, sempre buscaram pretensas referências para seus argumentos. Durante décadas ouvimos dos nossos liberais o argumento de que o Chile era o modelo econômico de sucesso a ser seguido.

No entanto, a atual degradação chilena e o elevado índice de suicídio entre os idosos já representam, por si sós, a falência de um padrão absolutamente insustentável. O Chile, com pouco mais de 20 milhões de habitantes – menos de 10% da população brasileira –, extensão territorial de cerca de 1/10 da nossa, nunca foi um parâmetro relevante para o Brasil, mesmo numa visão a partir da Avenida Faria Lima, em São Paulo, ou da Vieira Souto, no Rio.

Embora o Chile tenha apresentado progresso econômico durante algum tempo, mostra-se claramente limitado. A sua atividade é reduzida a poucos produtos representativos – basicamente cobre, pescado, frutas e flores –, praticamente sem desenvolvimento industrial. Mas isso nunca foi possível para o Brasil, tampouco para países de estrutura e dimensão comparáveis, como uma boa análise histórica claramente comprova.

Com a derrocada chilena pela falência econômica, política e social do modelo neoliberal, os neoliberais estão em busca de novos paradigmas que sustentem seus pressupostos. A nova Meca na visão de alguns liberais de ocasião seria a Nova Zelândia.

Mas, se o Chile nunca foi base de comparação para o Brasil, muito menos a Nova Zelândia o é. Seu Produto Interno Bruto (PIB) é de apenas pouco mais de 20% do brasileiro e a população, de cerca de 5 milhões de habitantes. Sim, pouco mais que a população da zona leste da cidade de São Paulo. Portanto, querer apresentá-la como parâmetro de modelo econômico, legislação trabalhista ou coisa que o valha só pode representar desconhecimento profundo ou desonestidade intelectual.

Temos muito o que discutir seriamente sobre as alternativas de desenvolvimento para o Brasil, relativamente às experiências internacionais. Há uma farta literatura apontando a análise das experiências históricas que lograram sucesso, como EUA, Alemanha e Japão, países que alcançaram o padrão de desenvolvimento já no século 20, e pelo menos um exemplo de progressão mais recente, que é a Coreia de Sul.

Cada um dos países citados teve a sua história de progresso, mas há pontos comuns nas estratégias de desenvolvimento e políticas econômicas adotadas com êxito:

– a combinação da atuação do Estado, como empreendedor, quando necessário, mas também coordenador, articulador de políticas públicas, além do seu papel regulador e fiscalizador;
– o engajamento do setor privado, articulado com o Estado, mediante a criação de um ambiente favorável;
– a adoção de políticas macroeconômicas (monetária, fiscal e cambial) favoráveis ao desenvolvimento;
– a articulação das políticas de competitividade (políticas industrial, comercial e de ciência, tecnologia & inovação), para fomentar a atividade econômica, em especial da indústria, imprescindível para o desenvolvimento.

O Brasil, por seu potencial econômico, social e ambiental, tem todas as precondições para superar a atual estagnação e atingir um grau de desenvolvimento expressivo. Somos o único país do G-20 a combinar potencial nos macrossetores e de enorme demanda reprimida, em termos de investimentos, na infraestrutura e políticas sociais. Nossas debilidades também representam grandes oportunidades. Mas isso não se viabilizará automaticamente, pelas “forças do mercado” e baseado apenas na suposta “confiança” como único fator de desenvolvimento, ao contrário do preconizado pelas políticas econômicas em voga por aqui.

10 de março de 2020

‘RESPOSTAS À DESIGUALDADE FARIAM O PAÍS CRESCER’!

(Sonia Racy – O Estado de S. Paulo, 09) Economistas bem preparados acreditam que está havendo hoje, na Europa, um brutal “credit crunch”, um encolhimento do dinheiro na praça, como efeito do coronavírus. Os custos do crédito corporativo subiram muito. E seria uma questão de tempo para acontecer o mesmo no resto do mundo. A grande dúvida: será que os bancos centrais do mundo desenvolvido (o Fed, o BC europeu e o Banco da Inglaterra), todos dirigidos por pessoas que não são macroeconomistas de formação (diferentemente do que ocorreu em 2008), saberão responder à altura? Indagado sobre o assunto, o ex-BC Arminio Fraga se limita a duas palavras: “Existe preocupação”.

Fraga tampouco quis se manifestar sobre a conjuntura econômica ou sobre o governo Bolsonaro: “Não é o momento para isso”. O economista está se concentrando hoje na montagem de um segundo instituto, além do recém-criado IEPS, Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Preocupado com a “armadilha da renda média”, que impede o crescimento e representa, nas palavras dele, “o fim de qualquer chance de mobilidade social”, ele pondera que é preciso encontrar os recursos dentro da labiríntica teia do orçamento para que o Estado possa voltar a investir em áreas fundamentais – e, com isso, passe a prover oportunidades reais para quem mais precisa.

Para tanto, organiza um instituto “da desigualdade social”: quer desenvolver as bases de mais uma empreitada sem fins lucrativos, cuja missão é encontrar as respostas para “ampliar os investimentos e diminuir as injustiças”. E avisa: “Não existe um Plano Real para resolver essa questão!”

Um Thomas Piketty brasileiro? De forma alguma. Fraga não apoia a criação de um imposto único para melhorar a distribuição de renda. Prefere a via das políticas públicas e privadas. E dá a sua receita: um ajuste de 9% no PIB brasileiro, baseado na Previdência e no funcionalismo público, com corte de subsídios tributários. O sócio fundador da Gávea Investimentos recebeu a coluna em São Paulo. A seguir, os melhores momentos da conversa.

Qual o melhor caminho para o Brasil voltar a crescer?

O Brasil tem três fontes enormes de recursos para lidar com essas questões, que, se forem sendo mobilizadas a partir de agora, podem ter um impacto rápido e monumental a médio e longo prazos. O Brasil é um ponto fora da curva com gastos com Previdência. Alguma coisa já se fez agora, foi importante, mas é preciso fazer mais. O Brasil também é um ponto fora da curva no gasto com o funcionalismo, e isso precisa ser resolvido ao longo dos próximos 10 anos. E ainda temos subsídios que não fazem o menor sentido e precisam ser eliminados. Estamos falando de uns 9 pontos de PIB, que gerariam recursos para arrumar a situação fiscal do Brasil (que é essencial), mas, sobretudo, para investir no social.

Foi por causa desse cenário que você resolveu criar mais um instituto?

O IEPS está em pleno funcionamento e tem sido uma excelente experiência, porque é um projeto de médio prazo em um setor fascinante, importante, complexo. Mais recentemente, surgiu a ideia de criar um outro instituto, com a mesma sistemática, cujo objetivo é ajudar a construir políticas públicas de qualidade para o Brasil. Porque é um ponto de partida para criar oportunidades, para diminuir as desigualdades de uma forma mais ampla. Queremos formular respostas mais estruturais para essa questão. De uns anos para cá, tenho dedicado mais tempo a estudar e pensar no tema geral da desigualdade e no que fazer a respeito, e vejo muito espaço para trabalhar nessa área, porque a situação do Brasil não é nada boa.

Você está falando, no caso, de mobilidade social?

Tem várias dimensões, mas a mobilidade social no Brasil, sem dúvida, é muito baixa. Isso significa que uma pessoa que nasce em uma família pobre praticamente está condenada à pobreza. As possibilidades de ascensão, de melhoria de padrão, são muito limitadas. A ideia do instituto nasceu de conversas minhas com o(economista) Paulo Tafner a partir do trabalho que ele e o grupo coordenado por ele fizeram sobre a Reforma da Previdência. Falando a respeito, chegamos à conclusão de que seria excelente montarmos uma estrutura para explorar outros temas de política pública, política social, de maneira mais permanente, com equipe, com um formato que permitisse abrir o leque de estudos. Foi quando percebemos que a âncora deveria ser o tema da mobilidade social.

Que, por sua vez, está intimamente ligada à educação. Educação é a questão número 1 de todas as listas, mas o mundo da educação tem muitos subtemas, e a nossa ideia é trabalhar com as melhores ferramentas de pesquisa econômica e social. Hoje existe muita disponibilidade de dados, muita chance de se trilhar o caminho dos ganhadores do último Prêmio Nobel de Economia (Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer foram laureados, em outubro de 2019, por sua contribuição ao desenvolvimento de políticas e incentivos em benefício dos lares mais pobres). Em última instância, estamos falando de contribuir com ideias para melhorar essa situação bastante trágica da falta de oportunidade que vemos no País.

Mas houve queda significativa na pobreza extrema no Brasil. As estatísticas não mostram isso?

O Bolsa Família é o programa mais relevante e há outras iniciativas, como a política do salário mínimo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e uma série de ações ligadas à saúde, como a Atenção Primária, que é o pilar fundamental do SUS. Mas é preciso turbinar e fortalecer tudo isso.

A China é exemplo?

Eles partiram de uma situação igualitária de extrema pobreza, para índices de crescimento gigantescos. Isso gerou riqueza e, em certa medida, um país mais desigual. Porém, o crescimento foi tão astronômico que a qualidade de vida da esmagadora maioria das pessoas melhorou muitíssimo.

No Brasil, a seu ver, estamos partindo de onde?

O Brasil parte de um ponto extremamente desigual e pouco capaz de gerar crescimento. É o pior dos mundos. O País ficou preso nessa armadilha da renda média. E o atual governo, equivocadamente, está preferindo adotar uma linha bem mais liberal, sem olhar o social. Essa era a ideia original, lá atrás, de que o crescimento viria e resolveria o problema.

Mas, pelo visto, não parece estar dando resultado…

Porque o grau de desigualdade aqui é tal que o Brasil se tornou presa fácil para populismos. E estes, por sua vez, tendem a gerar políticas públicas de péssima qualidade, que não produzem melhoria de vida e bem-estar. A resposta para as extremas desigualdades é investir na criação de oportunidades, melhorando a educação, sobretudo a pública, melhorando a saúde, resolvendo o saneamento básico, investindo em infraestrutura, em bens públicos. Tudo isso é pró-crescimento. E é exatamente nesse espaço que o instituto vai trabalhar.

Um diagnóstico como esse já foi feito antes, na época do governo FHC.

Eu vejo o governo Fernando Henrique como um divisor de águas nessa área. Porque ele sabia que educação e saúde precisavam ser prioridades máximas. Além disso, era preciso arrumar as contas públicas, resolver a questão da inflação e tudo mais. Essa foi uma guinada importante na direção de uma maior mobilidade social, preservada, até certo ponto, no governo Lula. Mas aí entra o meu questionamento: por que algumas iniciativas estão dando certo e outras não? No mundo da educação, por exemplo, vejo um esforço enorme da sociedade civil, do chamado Terceiro Setor. Já em outras áreas isso não aparece com tanta clareza. Então, acho que existe algum espaço para ideias novas, para mais testes.

Existe um Plano Real para o crescimento?

Não, mas acredito, piamente, que as respostas à questão da desigualdade, da falta de oportunidades e de mobilidade fariam o País crescer. Pode-se dizer que há uma relação causal que tem a ver com esse estado de estagnação desigual que caracteriza o Brasil há muito tempo. E esse é um outro problema, porque investimentos em educação precisam de tempo para dar resultado. Coisa que não motiva os nossos políticos, que, em sua grande maioria, têm horizontes curtos de visão.

A saída seria a sociedade começar a pressionar e cobrar resultados, via ONGs, por exemplo?

É impossível um país se desenvolver sem um Estado bom. Que cumpra suas funções direitinho e que pense no bem maior, no bem público, e que aja de maneira competente. Pode ser um Estado pequeno, médio, grande, isso não importa. Como se sabe, há países que se desenvolveram com um Estado pequeno, como os EUA. E há outros, como os escandinavos, com um Estado grande. O modelo não faz diferença, desde que o Estado funcione.
Qual a chance de você vir a integrar um novo governo caso ele encampe os resultados encontrados por meio destes institutos que você e Taufner estão montando?

Seria ótimo, mas depende de muita coisa.

09 de março de 2020

OS ‘FREE RIDERS’ E O LIVRE ACESSO!

(Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura – O Estado de S. Paulo, 07) As indústrias de rede são caracterizadas pela organização vertical, ou seja, os elos da cadeia são dependentes entre si. Por isso, comumente consistem num conjunto de indústrias condicionadas à implantação de malhas para o transporte ou distribuição ao consumidor de determinado produto. Essas indústrias são intensivas em capital e resultam em significativos sunk costs (custos perdidos). Além disso, proporcionam economias de escala significativas, geram externalidades de consumo e, por vezes, tornam-se a única opção do consumidor.

As indústrias de rede dependem de altos investimentos para retornos de longo prazo, muitas vezes dependendo de incentivos regulatórios para criação e ampliação da sua infraestrutura. Também, em muitos casos, não há uma demanda prévia em escala suficiente para viabilizar uma taxa de retorno privada. Por isso, é essencial considerar a taxa de retorno social. São exemplos de indústria de rede o serviço de saneamento básico, a rede ferroviária e a transmissão e distribuição de energia elétrica e de gás natural.

As indústrias de rede exemplificam bem o conceito de monopólio natural. Isso porque operam de forma mais eficiente quando a prestação de serviço se dá por meio de uma única empresa. Por isso, estes setores precisam ser regulados. Cabe ao regulador garantir o equilíbrio entre a qualidade do serviço e o retorno dos investidores, estabelecendo uma tarifa no contrato de concessão, em razão da ausência de poder de escolha pelo consumidor.

A regulação também é fundamental nas questões relacionadas ao acesso à infraestrutura. A ideia é evitar concentrações e comportamentos que dificultem o desenvolvimento dos mercados e a competição entre agentes. A regulação deve estar voltada ao estímulo da concorrência, buscando evitar assimetrias entre o monopolista e os potenciais novos entrantes.

É neste contexto que surge o conceito de livre acesso, que funciona em segmentos de monopólio natural, como forma de estimular o compartilhamento das essencial facilities (infraestruturas essenciais), estimulando o crescimento e o aumento da concorrência. Entretanto, sua aplicação depende muito do estágio de maturação em que estes mercados de monopólios naturais estão.

O problema é que o conceito de livre acesso, tão fundamental para o bom funcionamento da indústria de rede, começa a ser empregado de forma equivocada no Brasil. O motivo está na ânsia de atrair investimentos, tão necessários ao País. E, se o conceito utilizado é errado, as políticas sugeridas para lidar com as necessidades do mercado também serão erradas. E, pior, gerarão resultados contrários aos esperados.

A teoria econômica é deixada de lado quando se exige o livre acesso em ativos que não apresentam as características de monopólio natural. Onde existir a livre concorrência, não faz sentido a utilização do conceito de livre acesso. Isso porque, neste caso, ao contrário do segmento de monopólio natural, a forma mais eficiente será a presença de mais de uma empresa promovendo a concorrência e beneficiando o consumidor. O setor de infraestrutura tem segmentos em que Conceito tão fundamental ao bom funcionamento da indústria de rede é aplicado de forma equivocada no País existem monopólios naturais e outros que são concorrenciais, como a produção de energia, de gás natural, tancagem e terminais. Nos segmentos em que existe concorrência, o investidor não dará o pontapé inicial caso tenha de conceder livre acesso às suas futuras infraestruturas.

Portanto, o conceito de livre acesso não se enquadra nesses segmentos. A imposição do conceito de forma equivocada dará abertura à ação de free riders (comportamentos oportunistas), prontos para se favorecerem dos investimentos já realizados, criando um problema de parasitismo. Com isso se promoverá uma concorrência desleal, na medida que quem correu o risco do investimento agora terá de repartir a sua infraestrutura com o free rider. Todos queremos mais investimentos e mais concorrência. O uso errado de conceitos da teoria econômica afasta investimentos, não cria concorrência e promove a instabilidade regulatória e a insegurança jurídica. Isso é tudo o que devemos evitar.

06 de março de 2020

O RIO EM TRANSE!

(Cláudio Frischtak – O Globo, 05) Cidades morrem. Podem não desaparecer, mas deixam de ser entes com dinamismo, com capacidade de atrair gente nova, gerar oportunidades. Saem os jovens, se vão os mais talentosos, criativos e empreendedores, e as empresas naturalmente os seguem. Perde-se assim a energia vital que faz das cidades espaços vibrantes de inovação, competição e cooperação, mas também de civilidade, acolhimento das diferenças.

Como as cidades morrem? Por vezes, o poder público —e a sociedade — não reagem a tempo a mudanças econômicas, a exemplo de Detroit. Há casos em que o eixo de poder se deslocou —tal qual Calcutá, quando não mais capital doRajbritâ nico. Masas forças maisd estrutivas para um acidade são derivadas da ausência de Estado, quando o crime organizado impõe suas regras, e — pior — se entranha e apoia-se no poder político. Foi a máfia — em suas diferentes versões —que levou à decadência de Nápoles, Palermo e outras cidades; não mais se recuperaram. Medellín é talvez a grande exceção: resgatada das narcomilícias pela sociedade com apoio do governo, renasceu.

Nossa cidade — o Rio — está aos poucos morrendo. Em anos recentes, sofreu um processo agudo, sem precedentes, de deterioração: da sua economia; da qualidade dos seus espaços públicos; da ordem nas ruas e praças, tomadas pela informalidade e ilegalidade; e do respeito com o cidadão pelas autoridades que encarnam o poder público — o prefeito; os legisladores; os órgãos de controle.

Talvez o mais grave: tal qual no sul da Itália e em Medellín, as milícias —em conflito com ou associadas aos narcotraficantes — exercem controle crescente em territórios onde se estima que more um terço da população do Rio. Há mais de 60 anos desfilava pela Avenida Atlântica num carro de luxo conversível e acompanhado de sua metralhadora um político folclórico, que acreditava que lugar de bandido era o cemitério. O ovo da serpente. Essa visão foi se transmutando ao longo dos anos, e quando as milícias fincaram pé, muitos acreditavam que eram um “mal menor”. Outros — políticos hoje proeminentes — as enalteciam. Agora desafiam o poder público, e o fazem muitas vezes com certeza da impunidade. Expande-se a milícia, o contrabando de armas, o narcotráfico, e o espaço do cidadão e da legalidade se encolhe. Aos poucos, o Rio como centro de civilidade perde o viço; as enormes economias que a cidade propicia, exatamente por compartilharmos ideias e recursos num mesmo espaço, se esvaem.

Temos que dar um basta neste processo, antes que se torne irreversível. Medellín chegou próximo ao ponto de não retorno; reagiu. E nós? Está nas mãos da sociedade elegermos uma administração comprometida com a recuperação da cidade, juntando os melhores talentos para resgatar o Rio da incompetência, da má-fé, dos fundamentalismos e visões tacanhas, da violência e bandidagem. Antes que seja tarde.

Necessitamos de uma nova política para o Rio. Primeiro, um compromisso inarredável com o bem-estar de todos os cidadãos, e não apenas aqueles da base eleitoral, as “igrejas”, os amigos. O Estado é impessoal; e laico. Segundo, é essencial lidar com absoluta integridade com a coisa pública. A corrupção deve ser extirpada em qualquer instância, com uso de novas tecnologias que deem transparência aos atos do governo. Terceiro, o administrador público é o responsável pelo dinheiro do contribuinte; deve —a todos os momentos —fazer o uso desses recursos que trazem maiores retornos para a sociedade. Quarto, todos os serviços públicos do município devem ser bem geridos, para assegurar uma cidade que funcione para pessoas e empresas.

Finalmente, deve-se cobrar dedicação absoluta à recuperação dos espaços públicos, das áreas de convivência em todos os bairros e regiões da cidade. O abandono do espaço público estimula a informalidade e própria ilegalidade. Destrói o comércio, e é o sintoma mais aparente da decadência do Rio.

05 de março de 2020

A MÚSICA E OS INVESTIMENTOS!

(Marcus Vinícius Gonçalves Diretor-Presidente da Franklin Templeton Investimentos – O Estado de S. Paulo, 04) Este ano marca o aniversário de 250 anos do nascimento de Beethoven, uma data que será muito celebrada ao redor do mundo. Ainda que você não seja fã de música clássica, certamente já terá ouvido algumas das mais famosas obras do compositor, mesmo que totalmente fora de contexto (como no caminhão de gás). E, mesmo que não goste, há de concordar que o fato de sua obra ser ainda tão presente após mais de dois séculos se deve não apenas à sua inegável qualidade, mas também ao seu caráter universal e atemporal, que ultrapassa fronteiras e permite que nos sintamos mais próximos, semelhantes em nossa condição humana de apreciadores de um trabalho inspirador. Isso vale para Beethoven, mas vale também para rock, pop, jazz, etc. A música é a linguagem universal por excelência.

E se a ausência de fronteiras fosse aplicada ao mundo dos investimentos?

Até recentemente, as plataformas de distribuição de investimento no Brasil, as rádios e Spotifys do mercado financeiro, não tocavam outra música que não aquela criada e executada pelos maestros locais. Competência dos gestores brasileiros à parte, os investidores não tinham acesso a acordes distintos do que convencionamos chamar de “kit Brasil”, e portanto encontravam bastante limitada a sua capacidade de “educar o ouvido” – e o bolso – para ativos com características diferentes. O fenômeno que o mercado chama de home bias era um verdadeiro “samba de uma nota só”, a bossa-nova da dívida pública com alta liquidez, rentabilidade e segurança, a famosa tríade impossível que entorpecia a todos.

Felizmente para o País, o cenário de forte redução das taxas de juros tem estimulado a procura por retornos em ativos de natureza distinta, a peculiar bossa-nova gradativamente dando lugar a outros gêneros. Neste contexto, acreditamos que o investimento em ativos globais apresenta um enorme potencial de crescimento, por sua diversidade e amplitude. Da mesma forma que a biblioteca de músicas “globais” disponíveis nas plataformas digitais supera vastamente a oferta de músicas brasileiras, a quantidade e variedade de ativos negociados fora do Brasil representa um múltiplo infinitamente maior que os ativos locais. Assim, não faz sentido falar em “ativos no exterior”, da mesma forma que não faz sentido falar em “músicas estrangeiras”. A música brasileira e os ativos brasileiros é que representam algo muito específico e peculiar, de alta qualidade decerto, mas longe de serem exaustivos, mais um caso particular de um universo infinitamente maior de possibilidades.

O que falta, então, para que os ativos globais ganhem, no Brasil, a relevância dos Beatles ou dos Rolling Stones?

Do ponto de vista regulatório, houve avanços significativos ao longo dos últimos anos, com destaque para as Instruções CVM 555 e 558 (fundos em geral) e as Resoluções 4.661 e 4.769 (entidades de previdência). Em que pese a limitação para que o público em geral tenha acesso a fundos que invistam 100% no exterior, as regras atuais são muito mais acomodativas do que jamais tivemos, e o investimento global deixou de ser visto, pelo menos pelo regulador, como algo criminalizado ou antipatriótico.

O que falta para que ativos globais ganhem, no Brasil, a relevância dos Beatles ou dos Rolling Stones?

Se a regulação avançou, a grande barreira ainda a ser vencida é a da familiaridade. Diversos estudos de Psicologia mostram que as pessoas resistem ao novo, mas que a exposição continuada reduz tal resistência. A repetição maciça da obra de determinado artista nos meios de comunicação transforma alguns de nós em “fãs de carteirinha” dos Ed Sheerans e Coldplays, ainda que o inglês não seja nossa língua corrente. No mundo dos investimentos, em contrapartida, essa oferta ainda é muito tímida por meio dos canais de distribuição, e isso talvez explique o desconhecimento do público em geral em relação ao que já pode ser feito.

Não é preciso ser letrado em música ou em línguas estrangeiras para apreciar uma bela canção ou um bom concerto. O talento não tem fronteiras, a interação e o conhecimento com outras culturas nos enriquecem.

04 de março de 2020

A ILUSÃO ESCANDINAVA DE BERNIE SANDERS!

(Fareed Zakaria – O Estado de S. Paulo, 03) O senador Bernie Sanders afirma que suas propostas “não são radicais”, citando repetidamente países do norte da Europa como Dinamarca, Suécia e Noruega como exemplos de um sistema econômico que deseja trazer para os EUA. A imagem por ele evocada é de uma democracia social amistosa onde os mercados econômicos são fortemente controlados por meio de regulamentos, os ricos pagam impostos salgados e a rede de proteção social é generosa. Mas essa é uma descrição inexata e incorreta desses países.

Veja o caso dos bilionários. Sanders é claro nesse ponto afirmando que “bilionários não deveriam existir”. Mas a Suécia e a Noruega têm mais bilionários per capita do que os EUA, e a Suécia tem um número duas vezes maior. Não apenas isso, esses bilionários passam sua riqueza para os filhos sem pagar impostos. A tributação da herança na Suécia e na Noruega inexiste e na Dinamarca, ela é de 15%. Os EUA, pelo contrário, têm o quarto maior imposto sobre a propriedade no mundo, hoje em 40%.

A visão de Sanders dos países escandinavos, como muito da sua ideologia, parece estar focada nas décadas de 1960 e 1970, um período em esses países foram pioneiros na criação de uma economia de mercado social. Na Suécia, os gastos do governo como porcentagem do PIB dobrou de 1960 a 1980, de cerca de 30% para 60%. Mas como sublinha o comentarista sueco Johan Norberg, esse experimento de socialismo democrático defendido por Sanders afundou a economia sueca. Entre 1970 e 1995, a Suécia não criou uma única nova rede de empregos no setor privado. Em 1991, um primeiro-ministro defensor do livre mercado, Carl Bidt, iniciou uma série de reformas para alavancar a economia. Em meados da década de 2000, a Suécia reduziu o tamanho do seu governo em um terço e saiu da sua depressão econômica.

Versões desse problema e a adoção de reformas de mercado ocorreram em todo o norte da Europa, criando um modelo que combina mercados de trabalho flexíveis com uma rede de programas de proteção social forte e generosa. Lembro-me de um encontro com o primeiro-ministro dinamarquês, Poul Nyrup Rasmussen, que implementou muitas reformas nos anos 1990. Ele enfatizou que a primeira parte do modelo era chave – garantir aos empregadores flexibilidade para contratar e demitir empregados de maneira mais fácil, sem regulamentos ou litígios excessivos.

Países como a Dinamarca se mantiveram abertos, sem erguer barreiras ao livre comércio, de modo a terem acesso a mercados no exterior, mantendo as companhias locais competitivas. Quando examinamos o norte europeu, o que vemos hoje são políticas inovadoras favoráveis ao mercado como os vouchers escolares, assistência médica dedutível e com coparticipação e uma carga regulatória branda. Nenhum desses países adota um salário mínimo.

É verdade que eles possuem uma rede de proteção social generosa e, para financiá-la, os impostos são altos. O que não é citado com frequência, contudo, é que para arrecadar uma receita suficiente, esses impostos recaem desproporcionalmente sobre as classes média alta, média e pobre. A Dinamarca tem a maior alíquota de imposto sobre a renda de todos os países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), 55,9%, e ela se aplica a quem auferir 1,3 vezes a renda nacional média. Nos EUA, isso significaria que uma renda acima de US$ 65 mil ao ano seria taxada em 55,9%. Na realidade, a alíquota de imposto mais alta naquele país, de 43%, é aplicada a uma renda 9,3 vezes maior do que a média nacional, o que significa que somente as pessoas com renda superior a US$ 500 mil se inserem nessa faixa de tributação.

O maior impacto para as classes média e pobre nos países do norte da Europa é o pagamento do IVA, imposto sobre valor agregado sobre todas as suas compras, de 25%. Esses países arrecadam mais de 20% dos seus impostos desta maneira. Nos EUA, o IVA em média é de 6,6% e responde por apenas 8% das receitas fiscais.

Um dado final: um estudo da OCDE de 2008 concluiu que os 10% mais ricos nos EUA arcam com 45% de todos os impostos sobre a renda, ao passo que os 10% mais ricos na Dinamarca essa taxa é de 26% e na Suécia 27%. É um ponto fundamental que vale a pena destacar, porque a esquerda americana parece desconhecer completamente. Os EUA possuem um código tributário muito mais progressista do que o da Europa e seus 10% mais ricos respondem por uma fatia muito maior dos impostos do país do que os europeus.

Em outras palavras, trazer o sistema econômico da Dinamarca, Suécia e Noruega para os EUA significaria adotar mercados de trabalho mais flexíveis, regulamentos menos rígidos e um compromisso mais profundo com o livre comércio. Significaria um programa de benefícios sociais mais generoso – a ser pago pelas classes média e pobre. Se Sanders aceitar tudo isso, será de fato radical.