23 de julho de 2020

A FRENTE É AMPLA!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 22) Ontem, foi lançada a Frente Ampla pela Renda Básica do Congresso Nacional, presidida pelo deputado João Campos. Seu presidente emérito é o ex-senador Eduardo Suplicy, que luta há décadas pela adoção da renda básica no Brasil e foi o autor da lei que estabeleceu a renda básica cidadã, promulgada em 2004. Constam da Frente todos os partidos com representação parlamentar, exceto um: o Partido Novo. Antes de prosseguir, esclareço: adesão ampla não é sinônimo de adesão total. Aqueles que escolheram ficar de fora exercem sua prerrogativa. Seus eleitores que os questionem, ou não. O que não lhes é permitido? Interpelar aqueles que apontam a sua ausência em um esforço cujos frutos podem vir a ser o grande legado positivo de um período de resto marcado pela enorme tragédia em que se transformou o Brasil de Bolsonaro.

Não foram poucos os artigos que escrevi nesse espaço sobre a importância da renda básica desde que a pandemia chegou ao Brasil. Mesmo antes dela, já havia escrito sobre programas de renda mínima, como funcionam em tese e como foram implantados em algumas partes do planeta – inclusive em algumas partes do Brasil. Entendo a renda básica como algo fundamental para reduzir os alarmantes níveis de pobreza e de desigualdade, que foi agravada pela crise humanitária decorrente da pandemia. Entendo-a, também, como uma política de Estado que visa a inclusão de todos os cidadãos, de modo transversal, em uma experiência de cidadania mais conforme às promessas da Constituição Federal. Em outras palavras, penso a renda básica como uma política pública que trará benefícios a todos, independentemente de gênero, raça, orientação sexual, entre outros status de discriminação. Em artigos anteriores publicados aqui apresentei os argumentos econômicos em favor da medida, como é possível desenhar um programa que atenda a determinados princípios sem sobrepesar no orçamento. Mostrei, em suma, como formular propostas que caibam no orçamento e que não onerem em demasia as contas públicas, nem apresentem riscos inflacionários, como alguns economistas temem.

Com a criação da Frente Ampla terei a possibilidade de discutir tais propostas com colegas membros do conselho consultivo que fui convidada a integrar. Nesse conselho há economistas, representantes da sociedade civil, ex-servidores públicos.

Somos dez pessoas. Dez pessoas com a tarefa de auxiliar os integrantes da Frente Ampla a encontrar o melhor caminho para fortalecer a proteção social com segurança fiscal e responsabilidade com toda a sociedade brasileira. Sinto-me privilegiada por fazer parte desse grupo, que me dá a oportunidade de contribuir de outra forma com meus concidadãos.

A percepção desse privilégio torna intrigante para mim o comportamento de determinados atores políticos no Brasil em um momento em que muitos se mostram empenhados em construir uma rede de solidariedade para amortecer os efeitos da crise sobre aqueles que são mais afetados por ela. Os informais. Os mais pobres. Os três-quartos de crianças brasileiras que vivem nos 50% dos domicílios mais destituídos do País. Os autônomos, que vivem na gangorra da entrada e saída do mercado formal de trabalho. A massa de desalentados que a crise humanitária e o governo Bolsonaro criaram. Tiago Mitraud, deputado pelo único partido que não integra a Frente Ampla, afirmou que ele e correligionários seus só participarão dela se suas discordâncias forem levadas em consideração. Mais especificamente, afirmou em uma mídia social que a Frente precisa “abarcar outras ideologias”. Como disse, esse posicionamento é prerrogativa da agremiação política que optou por ficar de fora da frente. Mas cabe perguntar: quais as discordâncias? Quais as ideologias não abarcadas?

Quando comentei que o Partido Novo era o único a não tomar parte na iniciativa – a constatação de um fato –, o deputado me interpelou publicamente afirmando: “você deve estar acostumada com políticos que não leem o que assinam e só querem sair na foto”. Esse é o retrato da forma como alguns atores agem politicamente no Brasil. Incomodam-se com a constatação de fatos e manifestam seu incômodo ofendendo diretamente não apenas a pessoa que os constata, como também seus pares no Parlamento que integram a Frente.

A Frente é ampla. Que venha a renda básica. Que todos saibam quem participou e quem escolheu jogar Resta Um.

22 de julho de 2020

ARBITRAGEM E PRECEDENTES JUDICIAIS!

(Luis Felipe Salomão e Rodrigo Fux – O Globo, 21) O novo coronavírus apavorou o mundo ao trazer o gene da incerteza e insegurança. No campo da Medicina, o conhecimento humano se viu imerso em dúvidas quanto à terapêutica mais eficaz para combater o vírus.

No ambiente jurídico, o desafio está no dimensionamento preciso e justo das repercussões da pandemia. No plano das obrigações e dos contratos, inúmeros impasses a respeito das implicações quanto à estabilidade do tráfego negocial já surgiram, e outros tantos logo eclodirão, impulsionando uma onda de novos litígios.

É verdade que estes novos conflitos experimentarão um grau de imprevisibilidade ampliado pelo ineditismo do cenário e pela realidade social crítica decorrente da pandemia, desafiando algumas soluções emergenciais e menos ortodoxas.

Cenários permeados por incertezas que alargam o cálculo de imprevisibilidade, como parece ser o da pandemia, colocam na pauta de discussões a importância de o julgador (magistrado ou árbitro) resolver a disputa que lhe é submetida com observância de precedentes.

O Novo CPC (Código Fux), dentre outras mudanças que implementou com a intenção de aprimorar a prestação jurisdicional e promover os valores de segurança jurídica e igualdade, instituiu um sistema de precedentes adaptado à realidade brasileira, reunindo precedentes com eficácia normativa (vinculantes) e aqueles com eficácia persuasiva. Esses últimos, embora sem produzir efeitos processuais fora das demandas que se relacionam, desempenham função argumentativa e de convencimento dos julgadores. Já os primeiros são de observância obrigatória e ostentam mecanismos para a preservação de sua força vinculante.

A nova lei, ao modificar a forma como se compreende a jurisprudência, realçou o seu atributo de fonte de direito e a supremacia da Constituição Federal no ordenamento jurídico. O sistema brasileiro de precedentes busca otimizar o trabalho dos julgadores, garantindo a todos a segurança jurídica almejada e prometida na Constituição. Casos iguais recebem soluções homogêneas.

A jurisdição se exerce nos moldes desejados pelas partes: a resolução do conflito pode ser entregue ao Judiciário, à arbitragem (nos casos em que a lei permitir), à mediação, dentre outras. O sistema de arbitragem, acolhido pela Constituição como há muito já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, se apoia em princípios informativos próprios, mas está inserido no ordenamento jurídico nacional. Portanto, tanto o magistrado togado quanto o árbitro escolhido para atuar em arbitragem de direito e com escolha da lei brasileira — ficam de fora arbitragens por equidade e arbitragens com escolha de lei estrangeira — estão obrigados a respeitar os precedentes vinculantes e aplicar as razões fundamentais do precedente (ratio decidendi) ao caso em julgamento. Também por força do sistema de precedentes, o julgador deve levar em consideração os precedentes persuasivos para a solução dos casos.

O julgador (magistrado ou árbitro) deve levar a sério o sistema brasileiro de precedentes. Do contrário, coloca-se em risco a previsibilidade das decisões e a imprescindível segurança jurídica, o que, além de ferir de morte as legítimas expectativas daqueles que buscam justiça, afeta a imagem de nosso país perante o mercado internacional.

21 de julho de 2020

O PLANO ECONÔMICO AMBICIOSO DOS DEMOCRATAS!

(Fareed Zakaria – The Washington Post/O Estado de S. Paulo, 20) Com a pandemia ofuscando a nossa realidade, às vezes nos esquecemos de que estamos em plena campanha presidencial. O que permite compreender melhor por que, nas duas últimas semanas, a mídia prestou pouca atenção quando Joe Biden divulgou seus planos para combater a mudança climática e reanimar a economia.

O plano ambiental é ambicioso e mostra uma grande visão do futuro, mas o mais interessante é o plano econômico, que promete garantir que o futuro chegue a “toda a América”. O que soa como o slogan “A América em primeiro lugar”, o que fez o presidente Donald Trump acusar Biden de roubar as suas ideias. Mas, na realidade, embora o programa seja inteligente do ponto de vista político, por avançar diretamente no terreno do nacionalismo econômico de Trump, é muito melhor do que a estratégia do presidente.

A primeira coisa, a mais importante, é o que o programa não faz. Não se trata de uma insistência mercantilista na aplicação de tarifas e em guerras comerciais, as marcas registradas da presidência. Trump falhou neste ponto em todos os sentidos. A evidência é tão clara que, quando a campanha de Biden divulgou um anúncio inflamado afirmando que Trump “perdeu” a guerra comercial com a China, a única crítica do Politifact em relação a esta afirmação foi que ele deveria ter usado o tempo presente “está perdendo”.

Os seus editores apontaram para os seguintes estudos de 2019: um relatório do Banco Central americano, que determinou que “as tarifas não contribuíram para aumentar o emprego na indústria ou a produção e elevaram os preços ao produtor”; uma análise da Moody’s que concluiu que a guerra comercial custou 300 mil empregos americanos; e um estudo do Fed que avaliou o custo dessas tarifas para as famílias americanas em aproximadamente US$ 800 ao ano, anulando os benefícios da redução de impostos de Trump. A Oxford Economics calculou que, no ano passado, a guerra comercial cortou 0,3% do crescimento do PIB dos EUA.

A ideia mais audaciosa do programa de Biden é um aumento maciço dos investimentos nas áreas de pesquisa e desenvolvimento. Ele propõe elevar os gastos em US$ 300 bilhões ao longo de quatro anos, o que representa um aumento de 60% em relação aos gastos de 2018. Se for colocado em prática, o programa reverterá o declínio persistente dos investimentos federais em ciência e tecnologia desde o seu apogeu, nos anos 50 e 60 – para chegar atualmente a esses níveis, seriam necessárias centenas de bilhões a mais. Tais investimentos permitiram produzir o computador pessoal, a internet, o Sistema de Posicionamento Global (GPS) e uma série de outras tecnologias que transformaram a economia.

Mais recentemente, é importante lembrar, um empréstimo do Departamento de Energia de US$ 465 milhões permitiu que a Tesla se estabelecesse e realizasse experimentos com carros elétricos. O plano de Biden propõe investimentos na tecnologia 5G, em automóveis elétricos, em materiais leves e inteligência artificial. Parte do dinheiro será desperdiçada – como acontece também nos investimentos das empresas de capital de risco –, mas só bastarão algumas, como a Tesla, para conseguirmos um enorme sucesso.

O programa tem também um componente de US$ 400 bilhões do “Buy American”. A teoria em que ele se baseia é sensível. Mas o perigo desse tipo de estratégia é que, frequentemente, ela pode se tornar uma “política industrial”, na qual o governo tenta reviver setores mais antigos, como o aço (como Biden quer fazer) e favorecer as empresas com os melhores lobistas.

Em geral, o histórico da maioria dos países ricos na atuação da política industrial tem sido bastante ruim. Os especialistas costumavam apontar para o Japão como o país que dominava os investimentos dirigidos pelo governo, com a exceção de que o que ocorreu foi que as melhores companhias japonesas saíram do setor privado, ferozmente competitivo. As que eram controladas pelo Estado, em geral, não tiveram sorte. A China é diferente, porque sua maior vantagem não são os investimentos inteligentes do governo, mas os baixos salários.

O melhor modelo não é aquele em que o governo cria ou subsidia companhias ou setores específicos, mas o que deixa o mercado saber que comprará certos tipos de produtos inovadores, dando ao setor privado um incentivo para produzi-los. Já em 1962, o governo americano era responsável pela compra de 100% de todos os chips semicondutores produzidos nos EUA. O que permitiu que a indústria se tornasse viável.

Do mesmo modo, as encomendas da Nasa contribuíram para o setor de computação nos anos 60. Biden quer emular esta estratégia e apoiar as tecnologias de ponta dos dias de hoje. Mas as agências fundamentais do governo federal, naquela época, eram mais eficientes e operavam em um isolamento muito maior de interesses específicos.

Uma cautela, porém. O lema “Buy American” (Compre produtos americanos) existe há muito tempo. Na realidade, começou em 1933, no último dia de mandato do presidente Herbert Hoover, respondendo ao plano “Comprem produtos britânicos”, anunciado em Londres. O resultado dessas estratégias impeliu o mundo para uma espiral descendente de protecionismo e nacionalismo, empobrecendo as pessoas comuns, criando um clima internacional perigoso. Tenhamos essa história em mente ao implementarmos a futura versão do “Buy American”.

20 de julho de 2020

DERIVA REACIONÁRIA E ANTILIBERAL FAZ POLÔNIA FLERTAR COM SEU PASSADO AUTORITÁRIO!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S. Paulo, 19) Considero Anne Applebaum como uma das melhores jornalistas dos tempos atuais. Americana, casada com um polonês democrático e liberal, vive na Polônia. Seus livros e artigos sobre a desaparecida União Soviética (URSS) e dos países do Leste Europeu, publicados por The Atlantic, costumam ser magníficos, assim como bem investigados, escritos com ordem e elegância, geralmente imparciais.

Vi sua assinatura entre os 150 intelectuais, em sua maioria de esquerda, que criticam seus colegas mais radicais por derrubar estátuas e praticar o ódio e a censura, como se um bom número deles não os tivesse ensinado a ser assim. Mas, pelo menos no caso dela, acredito que seja compatível essa singularidade: o esquerdismo e a vocação democrática.

O último artigo de Anne Applebaum a respeito do segundo turno das eleições polonesas, no domingo passado, não tem nada que possa ser deixado de lado. Expõe a campanha contra os homossexuais que permitiu ao presidente da Polônia, Andrzej Duda, do partido Lei e Justiça, ganhar um novo mandato, por pouquíssimos votos, derrotando a Rafal Trzaskowski, prefeito de Varsóvia, que havia prometido apoio à comunidade gay e difundir aulas contra a discriminação e o bullying nas escolas.

Não tenho nada contra a Polônia, um dos países mais sofridos e ocupados por seus poderosos vizinhos ao longo de sua trágica história, mas, sim, uma enorme simpatia por sua alta cultura, suas magníficas livrarias e editoras e por seu cinema e teatro, onde, há alguns muitos anos, vi uma obra minha ser encenada com mais talento e originalidade do que em qualquer outro país.

Mas, obviamente, preocupa-me a tendência cada vez mais reacionária, antiliberal e antidemocrática de um governo que, apoiado acima de tudo pela hierarquia da Igreja e pelos camponeses e cidadãos mais tradicionais, que seguem e praticam uma religião, está dissociando a cada dia mais a Polônia da Europa livre e moderna, retrocedendo-a a um passado autoritário.

Segundo o testemunho de Anne Applebaum, percebeu-se claramente como a sigla LGBT desempenhou uma função central nessa campanha eleitoral. O presidente Duda, que buscava a reeleição, declarou que “os LGBTs não são o povo; são uma ideologia mais destrutiva que o comunismo” e atacou seu adversário durante a campanha, acusando-o de querer “a sexualização das crianças” e “a destruição da família”.

A hierarquia da Igreja Católica polonesa, aparentemente também muito conservadora, acredita, como João Paulo II, que os homossexuais são “a praga do arco-íris”, e a alegação de que os gays revolucionam a sociedade não é “polonesa”, mas sim alemã e judia, e uma das TVs estatais martelou os espectadores com essa pergunta racista e estúpida, mas que, a julgar pelo resultado da eleição, foi bastante eficaz: “Trzaskowski cumprirá as exigências judias?”

E outro dos líderes do partido Lei e Justiça, Jaroslav Kaczynski, declarou que o atual prefeito de Varsóvia não tem “um coração polonês”, mas forasteiro. Portanto, o ódio aos gays desempenhou um papel importante nas eleições, como também duas velhas taras sanguinárias: o nacionalismo e o antissemitismo.

O catolicismo da população polonesa não é incompatível com a democracia, desde que, como tem acontecido em todas as democracias civilizadas – também existem as fanáticas e liberais –, a religião esteja livre de preconceitos, como na França, na Inglaterra e na Espanha, para dar apenas três exemplos que conheço de perto, de uma militância religiosa que não está manchada pelas taras nacionalistas ou pelos preconceitos racistas.

É claro que, depois de ter sido humilhada, discriminada e atordoada pela propaganda marxista-leninista durante seu status de país-satélite da URSS por tantos anos, não surpreende que grande parte dos poloneses tenha optado pelo partido da ordem e da tradição, como é o Lei e Justiça.

Mas os resultados da recente eleição, em que o prefeito Trzaskowski perdeu para o presidente Duda por uma diferença ínfima de votos, mostra que os atuais governantes já estão na corda bamba, que por qualquer excesso que cometam ao lidar com o poder, poderiam perdê-lo em uma nova eleição, que devolveria a Polônia à verdadeira democracia, como acontece com a grande maioria dos países pertencentes à União Europeia, o que não é o caso da Hungria, uma sociedade que, neste momento, é muito difícil continuar chamando de democrática.

Embora não siga nenhuma religião, estou convencido de que a maioria dos seres humanos, que teme a morte, precisa da religião para viver com certa confiança e calma, pois a ideia da extinção definitiva atordoa e atormenta as pessoas e as impede de viver e trabalhar em paz. Por isso, não é necessário acabar com a religião, feito que a história já declarou um sonho impossível, mas ela deve ser acomodada de tal maneira que não seja incompatível com a liberdade e a legalidade da ordem democrática, a única que representa, pelo menos em teoria, uma sociedade justa, diversa e solidária. Hoje, muitos países parecem ter alcançado essa homologação compatível de valores religiosos e democráticos.

Anne Applebaum pensa que isso seja possível na Polônia ou teme que ambas sejam impossíveis de coexistir nesse país ao qual é evidente que se sente muito próxima? Seu artigo, é claro, não se baseia em considerações imprecisas e ressalta que, provavelmente, após a vitória apertada, o partido Lei e Justiça fará o possível para acalmar os ânimos.

Ela vê sintomas disso na filha do vencedor, Kinga Duda, que na noite do triunfo de seu pai fez um discurso dizendo “que ninguém em nosso país deve ter medo de sair de casa” em razão “daquilo em que acreditamos, pela cor de pele, pelos valores que defendemos, pelo candidato que apoiamos e gostamos”. Tomara que sejam essas as crenças arraigadas e não “sonhos de ópio”, como as chamava Valle Inclán.

Sem dúvida, alguns dos temores que expressa em seu artigo são profundamente preocupantes. Já não se trata mais de perseguir os gays ou atacá-los, como chegou a acontecer, mas também da mídia impressa e de imagem, que ainda é bastante independente e livre na Polônia. Mas, se as intenções de certos dirigentes do Lei e Justiça se realizarem, essa realidade poderia se transformar radicalmente.

A independência da imprensa se deve, em grande parte, ao fato de seus proprietários serem empresários estrangeiros que foram, recentemente, perseguidos por inspeções fiscais ou investigações sobre supostas corrupções. Uma campanha nacionalista – a “polonização” da mídia – quis forçar a venda de jornais e TVs. É preciso que a UE intervenha de maneira decisiva dando fim a essa campanha, pois sem a existência de uma imprensa livre não há democracia que sobreviva. Os poloneses deveriam saber disso melhor do que ninguém.

O atual governo da Polônia, como todos os governos do mundo, tenta controlar a imprensa e se livrar dos porta-vozes que o vigiam, denunciam seus erros e travessuras reais ou inventadas e costumam estar nas mãos de seus opositores e de jornalistas honestos, fazendo desaparecer aqueles e a esses últimos calálos ou comprá-los.

O que acontece é que nos países com poderosas tradições isso não é possível, a própria sociedade o impede. Este é o ideal que, como o tempo, qualquer país pode alcançar. Toda democracia jovem ou recente será sempre imperfeita e talvez seja impossível alcançar a perfeição neste campo. O importante é manter viva uma imprensa livre, até que isso se torne um costume do qual a sociedade como um todo não deseja desistir. Essa já é uma grande vitória, apenas possível nos países que, acima de tudo, escolheram ser verdadeiramente livres.

17 de julho de 2020

O CUSTO DA EVASÃO ESCOLAR!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 16) Levantamento estima que o prejuízo total causado pela evasão escolar seja de R$ 214 bilhões por ano, o que equivale a 3% do Produto Interno Bruto.

Depois de ter lançado em 2019 uma campanha de mobilização de institutos, empresas, ONGS e entes públicos para definir pautas para a produção de conteúdo de 81 programas sobre educação no Canal Futura, reunindo mais de 92 parceiros, a Fundação Roberto Marinho (FRM) concentrou-se nos problemas que prejudicam a permanência de crianças e jovens no ensino básico e, agora, está divulgando os resultados de sua iniciativa.

Com o objetivo de identificar os fatores responsáveis pelas altas taxas de defasagem e, principalmente, de evasão escolar, ela atribuiu a um grupo de especialistas a responsabilidade de elaborar um estudo intitulado Consequências da Violação do Direito à Educação, que foi lançado nesta semana. E, para coordenar o trabalho, convidou o economista Ricardo Paes de Barros, PH.D. pela Universidade de Chicago, professor do Insper e consultor do Instituto Ayrton Senna. Depois de cruzar os dados do Censo Escolar de 2018 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), segundo os quais 25% dos estudantes do ensino fundamental estão atrasados em sua formação e 1 em cada 4 alunos do ensino médio abandona o curso, os pesquisadores chegaram a uma constatação trágica. Se esse ritmo não for detido, 17,5% dos jovens que hoje estão na faixa etária dos 16 anos não conseguirão concluir a educação básica até os 25 anos.

Na prática, isso representa o ingresso no mercado de trabalho de 575 mil pessoas sem escolaridade completa a cada ano, justamente num período em que o avanço da tecnologia vem obrigando as empresas a exigir mão de obra cada vez mais qualificada. Com base em análises e simulações, o levantamento estima que o prejuízo causado pela evasão escolar seja de R$ 372 mil ao ano, por estudante que abandonou a escola. No total, a perda é de R$ 214 bilhões por ano, o que equivale a 3% do Produto Interno Bruto.

Esses números atestam a baixa qualidade dos gastos do governo numa área estratégica para o futuro das novas gerações e, por consequência, do País. “Isso mostra que a máquina pública é ineficiente. Na educação, há problemas diversos, como formação inadequada dos professores e indicação política de diretores. É difícil quebrar isso, mas não se pode perder R$ 214 bilhões todos os anos em um sistema que não funciona”, diz Wilson Risolia, diretor da FRM.

“É como uma obra inacabada, que, se tivesse sido concluída, teria um tremendo impacto positivo na sociedade”, afirma Barros. Para ter ideia do alcance dessa afirmação, a evasão escolar influencia a expectativa de vida – quem conclui o ensino básico, por exemplo, tem, em média, quatro anos a mais de vida do que quem abandonou a sala de aula. A defasagem e a evasão escolar também têm reflexos no aumento dos índices de violência urbana. Segundo o estudo da FRM, cada ponto porcentual de redução nos índices de evasão escolar equivale a 550 homicídios a menos por ano.

O mais alarmante, contudo, é que os problemas da defasagem e da evasão escolar devem aumentar ainda mais. Entre outros motivos, porque as pesquisas em andamento sobre o impacto da pandemia de covid-19 sobre crianças e jovens já detectaram que 28% pensam em não voltar para a escola quando acabar o confinamento e 49% dos estudantes que planejam fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) cogitam desistir da prova. Além disso, desde o início do governo Bolsonaro a área de ensino básico está praticamente abandonada pelo Ministério da Educação (MEC).

Estudos como esse, que envolvem a colaboração de diferentes setores da sociedade, são fundamentais para subsidiar políticas públicas de qualidade. Mas, para que produzam efeitos concretos, é preciso que os dirigentes governamentais da área da educação tenham não só um mínimo de seriedade, mas, igualmente, competência para compreender a importância das colaborações que estão recebendo. Infelizmente, nos últimos 18 meses o MEC não foi chefiado por quem tivesse essas qualidades.

16 de julho de 2020

IMUNIDADE DE REBANHO!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 15) A revista Science publicou um artigo recente no qual a imunidade de rebanho é modelada como parte de uma série de modelos epidemiológicos que tentam, à luz dos dados e de diversas informações sobre a população de diferentes localidades, dar diretrizes gerais sobre o curso da epidemia. Trata-se, portanto, de um conjunto de artigos, e, em todos eles, pesquisadores têm sublinhado que seus modelos não devem ser tomados ao pé da letra para a formulação de políticas de saúde pública. Como todos os modelos, eles servem tão somente para entender algumas partes de um problema intrincado, não-linear, dinâmico e que comporta uma miríade de dúvidas, questões não respondidas e, possivelmente, outras ainda não formuladas. Contudo, há quem os esteja interpretando de forma indevida para argumentar a favor da reabertura econômica independentemente da evolução da epidemia e para afirmar, equivocadamente, que alguns lugares já podem estar próximos dessa espécie de Santo Graal da nossa era.

Esses artigos usam de recursos técnico-científicos semelhantes aos empregados por economistas em suas construções retóricas no que deveria ser um esforço por elucidar questões. Vou ilustrar o que quero dizer. Em economia, é comum valer-se de modelos em que há um agente representativo, isto é, um indivíduo cujo comportamento pode ser extrapolado para todos os demais, pois é característico de todos. Modelos com esse tipo de premissa permitem simplificações que em muito auxiliam a avaliação analítica: por exemplo, se todos os consumidores tiverem um comportamento semelhante e redutível ao de um agente representativo, o problema da agregação, típico na macroeconomia, é facilmente eliminado. Para analisar o consumo agregado, basta reduzi-lo às decisões de um único indivíduo, uma vez que todos os demais a ele se assemelharão. É claro que, na prática, não funciona dessa forma, como sabemos por intuição e como revelam os estudos de economia comportamental. Ainda assim, trata-se de um artifício útil.

A imunidade de rebanho clássica, como os modelos de agente representativo, partem do pressuposto de que a imunidade é uniformemente distribuída em uma dada população. Por força desse pressuposto, há uma forma simples para calculá-la. Os 60% a 70% de infectados para alcançar a imunidade de rebanho, supondo que o fator de reprodução do vírus causador da covid seja algo entre 2,5 e 3, são calculados a partir da fórmula proveniente da imunidade clássica. Há, porém, duas questões importantes a considerar. A primeira é que o fator de reprodução real do vírus só será conhecido quando a epidemia acabar. Por ora, temos apenas estimativas que variam de acordo com fatores diversos. A segunda é que a presumida uniformidade imunológica está associada à existência de uma vacina que confere imunidade ao vírus. Ou seja, a imunidade de rebanho clássica só tem sentido no contexto de uma vacina existente para determinar a cobertura crítica de um programa de vacinação, aquela cobertura que atinge a imunidade de rebanho.

Não temos vacina para o SARS-COV2, logo, a imunidade de rebanho clássica não é aplicável. Por esse motivo, não se pode partir do pressuposto de uniformidade imunológica. Parte-se, ao contrário, da heterogeneidade imunológica, elaborada de maneiras distintas em diferentes estudos. No entanto, premissas ainda são necessárias. No estudo da Science, há duas: a de que todos os infectados sobreviventes têm imunidade plena contra o vírus e de que essa imunidade é duradoura. Essas premissas, como a do agente representativo, são simplificações necessárias, do ponto de vista da pesquisa científica, para elucidar um aspecto daquilo que se busca entender. Como disse antes e insisto aqui, ambas carecem de evidências científicas para sustentá-las; isso não invalida um modelo que se propõe a avaliar os fatores que podem influenciar a imunidade de rebanho, mas invalida seu uso para defender a reabertura econômica prematura.

O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas. Ele expõe a população desnecessariamente – sobretudo a mais vulnerável economicamente – ao risco de contágio, com consequências sobre a desigualdade. Ele põe em risco pessoas que podem vir a apresentar sequelas, tornando-as dependentes de um sistema de saúde sub-financiado e as retirando do mercado de trabalho caso apresentem problemas mais graves decorrentes da exposição ao vírus. Para resumir, o uso indevido dos cálculos e do conceito de imunidade de rebanho põem a economia em outro patamar de risco. Economistas não usariam modelos de agente representativo para recomendar políticas de combate a uma crise econômica aguda. Da mesma forma, tudo o que existe sobre imunidade de rebanho deve ser deixado em seu devido lugar: entre os pesquisadores e cientistas que buscam compreender um vírus novo em plena evolução.

 

15 de julho de 2020

PORTA DE ENTRADA PARA A INCLUSÃO SOCIAL!

(Romeu Chap Chap, Arthur Parkinson e Juliana Marques – O Estado de S. Paulo, 14) Há décadas o Brasil fecha os olhos para o crescimento desenfreado das cidades e para a enorme deficiência no modo de vida urbano, decorrentes da desigualdade social cada vez mais acentuada. Só não vê quem não quer. E, em tempos de pandemia, não precisamos nem sair de casa para nos depararmos com essa dramática realidade.

Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) antecipou os resultados do Censo 2020 sobre os aglomerados subnormais (onde se incluem as favelas) em razão da covid-19, confirmando a crítica e alarmante situação da moradia no Brasil. São considerados aglomerados subnormais essencialmente aqueles cujos moradores não possuem a titularidade dos imóveis – e estes somam hoje mais de 13 mil, distribuídos em 734 municípios e concentrando mais de 5 milhões de domicílios em condições precárias, uma população de 35 milhões de habitantes.

Em relação ao último Censo (2010), não só não houve efetivo combate ao problema, como também perdemos o controle sobre seu aumento. O número de domicílios em situação precária, o de aglomerados subnormais e a quantidade de municípios mais que dobraram em dez anos.

Esta realidade habitacional tem revelado sua face ainda mais cruel com o avanço do coronavírus nas comunidades vulneráveis. Segundo o IBGE, nos aglomerados subnormais residem, em geral, populações com condições socioeconômicas, de saneamento e de moradia mais insatisfatórias. Como fator agravante, muitos desses aglomerados têm uma densidade de edificações extremamente elevada, o que pode facilitar a disseminação do vírus. Em São Paulo, levantamento da Prefeitura municipal mostrou que a quantidade de mortes por covid-19 disparou nas periferias: a letalidade é dez vezes maior do que em bairros mais centrais e de classe média.

O levantamento mostra que o modo de viver em precariedade continua avançando vertiginosamente nas cidades brasileiras. Em face da pandemia, as consequências são ainda mais nefastas para essa população, o que torna urgente e vital a implantação de um programa nacional direcionado para a melhoria das condições desses assentamentos.

A iniciativa privada tem demonstrado aptidão para atuar com o poder público em parcerias comprometidas em reverter a situação de carência habitacional, a exemplo do Minha Casa Minha Vida. O setor reúne condições para o estabelecimento de parcerias público-privadas focadas também no desenvolvimento de programas que objetivam a qualificar os aglomerados subnormais, melhorando a realidade urbana das comunidades vulneráveis, sem lhes tirar o endereço.

Mudar de vida sem mudar de CEP, garantindo cidadania aos moradores de aglomerados subnormais, é a base de um programa habitacional nacional preliminarmente nomeado Minha Comunidade Cidadã (MCC). A princípio, a ação se baseia na melhoria dos acessos e da circulação, no provimento de infraestrutura (essencialmente saneamento básico, o que será tremendamente estimulado pelo novo marco regulatório do setor) e na implantação de equipamentos urbanos (comércio, educação, saúde, cultura, esporte, lazer). Trata-se de um programa que visa a garantir a regularização fundiária com a titularidade dos imóveis aos proprietários; que olha para as questões de cada território e de cada comunidade, com foco na cidadania.

O programa nacional proposto é porta de entrada para a inclusão social e tem tudo para recuperar o que lamentavelmente deixamos acontecer. É o setor da construção civil em seu papel de fazer cidades com foco na cidadania.

14 de julho de 2020

ENTRE O SUCESSO E A MÁ FAMA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 13) Sucesso do agronegócio e ingresso de capital estrangeiro dependem de competência na produção, de atenção às condições de comércio e da imagem do País.

Batendo mais um recorde, o Brasil deve atingir 251,4 milhões de toneladas na atual safra de grãos, segundo o Ministério da Agricultura. Serão 3,9 toneladas por hectare, se confirmada a nova estimativa. Em 15 anos a produção por hectare aumentou 63,4%. Com base na ciência, na difusão de tecnologia e no trato eficiente do solo, o agronegócio brasileiro produziu volumes crescentes de alimentos e matérias-primas poupando terra e preservando o ambiente. Esse é o agronegócio relevante, competitivo e presente em mercados de todo o mundo. Comprometido com a preservação de florestas, sua imagem tem sido, no entanto, manchada por grileiros e aventureiros criminosos, favorecidos pela péssima política ambiental do governo e por sua retórica irresponsável.

Enquanto a pandemia derruba a atividade industrial e a produção de serviços, o agro se mantém como o setor mais firme da economia brasileira, com mais um ano de crescimento garantido.

Com a colheita de 120,9 milhões de toneladas, número calculado pelo Ministério da Agricultura, o Brasil recupera a posição de maior produtor mundial de soja, tomada em 2018 dos Estados Unidos e perdida em 2019.

Soja e derivados continuam sendo os principais itens vendidos ao exterior pelo agronegócio. O complexo soja rendeu em maio US$ 5,88 bilhões, mais de metade do valor faturado pelo setor (US$ 10,93 bilhões). Esta soma, um novo recorde, representou 60,9% da receita brasileira de exportações em maio.

As vendas externas do setor, amplamente superavitárias, têm sustentado, há anos, o saldo positivo da balança comercial de bens. Os US$ 42 bilhões faturados pelo setor nos cinco primeiros meses de 2020 superaram por 7,9% o valor vendido no mesmo período do ano passado e foram, historicamente, a maior receita obtida no período de janeiro a maio.

O aumento do volume, de 13,7%, permitiu esse resultado, porque o índice de preços foi 5,1% inferior ao de igual período de 2019. O superávit de US$ 36,59 bilhões garantiu o saldo positivo de US$ 16,35 bilhões na balança comercial. A China importou produtos no valor de US$ 16,52 bilhões, e se manteve como principal cliente. Como região, a Ásia continuou em primeiro lugar (US$ 23,62 bilhões), seguida por União Europeia, América do Norte e Oriente Médio.

Com mais uma grande safra de grãos e oleaginosas, o agronegócio deve continuar sustentando as contas externas do Brasil, enquanto os demais setores, especialmente a indústria de transformação, enfrentam severas dificuldades comerciais. O superávit no comércio de produtos agrícolas e pecuários é muito mais que um êxito setorial. Tem sido, e será provavelmente por muito tempo, um fator de segurança econômica.

O saldo positivo na balança comercial de bens compensa, em geral parcialmente, resultados negativos nas contas de serviços e de rendas. Isso mantém as transações correntes – normalmente deficitárias – em condições administráveis e seguras. O financiamento desse déficit por meio de investimento direto estrangeiro reforça a segurança e favorece o crescimento econômico.

Nenhum desses bons efeitos é uma bênção gratuita e garantida para sempre. O sucesso do agronegócio e o ingresso de capital estrangeiro dependem de competência na produção, de atenção às condições de comércio e da imagem do País. A função do governo é essencial para a manutenção dessas condições. No caso brasileiro, a imagem externa tem sido prejudicada principalmente pelo desmonte dos mecanismos de proteção ambiental, pela retórica irresponsável do presidente e de vários de seus ministros e por uma diplomacia desastrosa. Os erros diplomáticos incluem provocações e ofensas a importantes clientes do agronegócio, como a China e países muçulmanos. Pressionado, agora, também por grandes grupos brasileiros, o governo anuncia, por meio do vice-presidente, um decreto de suspensão das queimadas na Amazônia por 120 dias, como no ano passado. Mas a devastação cresceu, como indicaram dados de satélites, provavelmente continuará crescendo, se nada mais sério for feito, e a imagem do País acabará carbonizada.

13 de julho de 2020

A TOLERÂNCIA PARA O DEBATE ABERTO!

(O Estado de S. Paulo, 12) Espécie de ajuste de contas com o passado não pode levar a uma restrição do debate, fazendo com que, a cada dia, mais assuntos, temas ou opiniões sejam proibidos.

No dia 7 de julho, a revista americana Harper’s publicou em seu site uma carta assinada por mais de 150 professores, escritores e artistas de renome mundial, na qual apoiam as manifestações por justiça racial e social que se iniciaram nos Estados Unidos e se difundiram pelo mundo inteiro, após a morte de George Floyd em Minneapolis no final de maio. Ao mesmo tempo, os signatários da Carta sobre justiça e debate aberto – entre eles, Francis Fukuyama, Noam Chomsky, Gloria Steinem, J. K. Rowling e Salman Rushdie – alertam para o “clima de intolerância que se instalou por todos os lados”. O texto oferece uma interessante reflexão sobre a chamada “cultura do cancelamento”.

A carta relata perseguições que vêm ocorrendo em nome da justiça social: “Editores são demitidos por publicar materiais controvertidos, livros são removidos por suposta inautenticidade, jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos, professores são investigados por citarem livros de literatura durante a aula, um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico revisado por pares”. E constata que, “quaisquer que sejam os argumentos relativos a cada caso em particular, o resultado tem sido estreitar constantemente os limites do que pode ser dito sem a ameaça de represália”.

Trata-se, portanto, de um clima oposto ao que se deve esperar de um ambiente no qual se respeitam as liberdades. Por exemplo, a liberdade de expressão significa precisamente que cada um deve dispor de tranquilidade para expressar o que bem entender, sem medo de represália ou punição. Não pode haver em um Estado Democrático de Direito mais limites à liberdade que aqueles determinados pela lei.

No entanto, os autores da carta afirmam que “a livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, está se tornando cada vez mais restrita”. A atitude de censurar quem pensa de forma diferente já não está restrita a alguns grupos extremistas. Ela “está se expandindo em nossa cultura”, denunciam.

O clamor mundial por mais justiça racial e social deve levar a mudanças efetivas, como a reforma da polícia, a proibição de práticas discriminatórias ou a adoção de políticas públicas de inclusão. No entanto, essa espécie de ajuste de contas com o passado não pode levar a uma restrição do debate, fazendo com que, a cada dia, mais assuntos, temas ou opiniões sejam proibidos de serem ditos. “A restrição do debate, seja por um governo repressivo ou por uma sociedade intolerante, prejudica invariavelmente aqueles que não têm poder e torna todos menos capazes da participação democrática”, diz a carta. Diminuir a liberdade sempre tem consequências nefastas para todos, especialmente para os mais vulneráveis e os grupos minoritários.

É um erro, portanto, pensar que se pode promover a justiça reduzindo as liberdades. “Nós recusamos qualquer falsa disjuntiva entre justiça e liberdade, já que uma não pode existir sem a outra”, dizem os signatários da carta. Existem sim ideias perniciosas, que causam danos, reforçam estereótipos ou reproduzem desigualdades. Mas “o caminho para derrotar as más ideias é expor, argumentar e persuadir, e não tentar silenciá-las ou querer excluí-las”.

Um ponto especialmente importante é abordado no final do texto publicado na Harper’s. “Como escritores, precisamos de uma cultura que nos deixe espaço para a experimentação, o risco e até erros. Devemos preservar a possibilidade de discordar de boa-fé sem terríveis consequências profissionais”. Para existir liberdade, é preciso que seja permitido errar. Certamente, a liberdade inclui a correspondente responsabilidade. Eventuais danos e prejuízos causados devem ser reparados, por meio de um processo judicial isento, com respeito ao contraditório e ao direito de defesa. Nem por isso se deve deixar que alguns poucos, por gritarem mais alto ou serem mais desabridos no uso da violência, levem ao extermínio o que eles tacham de erro. Nesse modo de agir, não há liberdade, tampouco justiça. Há mera barbárie.

10 de julho de 2020

SEM MINISTRO E SEM RUMO!

(Zeina Latif  – O Estado de S. Paulo, 09) Muito foco tem sido dado à escolha do próximo ministro da Educação, mas muito pouco se discute sobre as medidas para reduzir o atraso educacional, combatendo a desigualdade de oportunidades e elevando a qualidade da mão de obra. É uma visão míope defender mais recursos públicos.

Nunca é demais repetir que o governo brasileiro gasta com educação mais que a média dos países da OCDE (6,2% do PIB em 2015 ante 5%) e que o aumento de recursos foi considerável na última década (4,5% em 2005).

É verdade que o gasto por aluno é bastante inferior (equivale aproximadamente a 41% da OCDE no ensino básico e 88% no superior), mas cabe lembrar que somos mais pobres que a média da OCDE (o PIB per capita do Brasil equivale a 35%) e gastamos mais do que países parecidos. O custo por aluno é sensivelmente maior aqui do que na média da Colômbia e do México, por exemplo (1,8 vez maior no ensino superior e em torno de 1,27 vez no ensino básico).

O aumento de recursos permitiu maior acesso à educação, mas houve avanço insatisfatório dos indicadores de qualidade. O momento atual demanda a melhor gestão e alocação de recursos, reduzindo a ênfase no ensino superior, mais frequentado pela elite.

São menos crianças ingressando na escola, por conta da menor fertilidade, mas ainda há muitas de fora. Apenas 29% das crianças pobres estão em creches e 7,4% delas estão fora da pré-escola. As discrepâncias regionais são elevadas, o que demanda maior flexibilidade nos orçamentos locais e a reprodução de experiências de sucesso.

São 71% dos jovens entre 15 e 17 anos matriculados no ensino médio, mas 35% não o concluem – para os mais pobres, a taxa sobe para 49,8%. A elevada evasão escolar está certamente associada à baixa qualidade do ensino. A taxa de proficiência em leitura no 3.º ano fundamental (dado de 2016) está em 45% (68% entre os mais ricos e 23% entre os mais pobres). Os números para a proficiência em matemática são parecidos.

Na comparação mundial fica ainda mais explícita a baixa qualidade do gasto com educação. As notas do Pisa estão praticamente estagnadas desde 2009 e são inferiores às da Colômbia, que exibiu sensível avanço. A diferença entre ensino público e privado é significativa.

A discussão da renovação do Fundeb será importante teste. A proposta em tramitação no Congresso propõe elevar significativamente a complementação de recursos da União – de 10% para 20%, implicando R$ 170 bilhões a mais em 10 anos. Há vários problemas: não há preocupação com a qualidade do ensino e se engessa ainda mais a alocação de recursos ao não alterar as regras vigentes desde 2009 que farão com que o aumento de recursos se traduza em elevação do piso salarial, já bastante valorizado (204% de ajuste desde 2009 ante inflação de 83%) nas regiões mais pobres.

O MEC não se manifesta, mas deveria ter proposta alternativa, com a manutenção do volume atual de recursos e estabelecendo critérios meritocráticos para a distribuição dos mesmos, levando em conta as diferentes realidades do País, e provendo maior liberdade para sua utilização. Cada administração local deveria definir suas prioridades de gastos.

Há outras tantas agendas importantes no MEC, como a coordenação de esforços regionais, propiciando replicar os vários casos de sucesso na educação.

É necessário introduzir meritocracia na universidade pública, lembrando que 85% das despesas é com pessoal, sobrando pouco para a pesquisa acadêmica.

Especialistas apontam para a necessidade de unificar programas de assistência estudantil para um direcionamento mais eficiente dos recursos, criar mecanismo de devolução de recursos de indivíduos que se beneficiaram de recursos públicos no ensino superior, reduzir a gratuidade do ensino superior para os mais ricos, viabilizar convênios entre as universidades públicas e a rede básica.

A crise atual aumenta o apelo para medidas populistas e pode afastar medidas mais estruturantes. Não podemos cair nessa armadilha.

09 de julho de 2020

PREGUIÇA MENTAL!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 08) Reforma, reforma, reforma, privatização. Repitam comigo: reforma, reforma, reforma, privatização. Agora outro. Teto, teto, teto, ou inflação. De novo: teto, teto, teto, ou inflação. Mais um: a dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. A dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. Resumese a isso o debate econômico no Brasil. Não, esqueci desse: a queda de oferta é maior do que a queda da demanda, logo, vai dar inflação. Em algum momento vai dar inflação. Aguardem aí que vai dar inflação. A palavra inflação fica ecoando no ouvido como uma taça tibetana, aquelas usadas para meditar, mais apropriadamente conhecidas em inglês como “singing bowls”. O som que emana delas é o ruído da preguiça mental, aquela névoa densa que caracteriza o debate econômico brasileiro.

Cresceu a produção industrial? É a retomada, a hora das reformas, o momento oportuno para privatizar, o tempo do teto, o desfile dos ajustes para conter a dívida. O problema? O problema é que passam-se os anos, passam-se as décadas, e as conveniências continuam as mesmas, pois impera uma preguiça mental. De nada vale um aumento pontual da produção industrial se o ponto de partida era péssimo. Trata-se daquela velha história: se algo que valia 100 caiu 50% de valor, para que volte a valer o que valia antes o aumento precisa ser de 100% — as condições iniciais importam. De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência do que quer que seja. Ah, mas a economia reabriu? Falemos sobre a reabertura da economia. Mas tratemos de não ignorar o contexto.

Temos uma epidemia que muitos ainda não entenderam. Como o vírus ataca os pulmões, prevalece a impressão de que a covid é uma doença do trato respiratório. Contudo, o que já se vê nos relatos clínicos e em estudos científicos é outra caracterização do mal que aflige o planeta, e o Brasil em particular. O vírus entra no corpo pelas vias respiratórias superiores, migra para o pulmão, mas também para a corrente sanguínea. Ele tem a capacidade de se ligar ao endotélio, a parede das veias capilares. A rede das veias capilares é a mais extensa e complexa do sistema vascular. Uma vez acoplado ao endotélio, o vírus migra com o fluxo sanguíneo para todos os tecidos e órgãos do corpo. Essa doença que chamamos de covid é, por isso, sistêmica: uma vez no sistema circulatório, o vírus trafega por toda parte. Isso explica por que os sintomas são tão variados. Também explica por que essa doença é tão traiçoeira.

Uma economia em que circula um vírus sistêmico sem qualquer controle é uma economia destroçada, ainda que os efeitos demorem a aparecer. Pois não basta que estejam abertos os estabelecimentos, as fábricas, os bares, os restaurantes. Se a população estiver desprotegida, ou se parte dela for negligente, muitas pessoas adoecerão. Quanto mais doentes, ainda que muitos apresentem sintomas leves, mais sofre a economia. Digo isso levando em conta o que sabemos. Se levarmos em conta o que não sabemos, caberá perguntar: já que o vírus é sistêmico, qual a chance de uma sequela permanente? Qual a chance de invalidez? Quantas pessoas sofrerão de fibrose pulmonar, problemas de coagulação sanguínea, problemas neurológicos? Quantas terão trombose, ou acidentes cardiovasculares? Enfim, quantas pessoas ficarão permanentemente, ou por um período muito longo, dependentes do sistema de saúde? Quantas dessas pessoas terão o SUS como única via? Nessas circunstâncias, como vamos dar os recursos necessários ao SUS? E se algumas pessoas não puderem voltar ao trabalho devido às sequelas da covid? Como haverão de se sustentar? Qual pode vir a ser o impacto de uma epidemia descontrolada na força de trabalho?

Essa lista de perguntas é apenas uma pequena amostra de tudo aquilo que nossos governantes, economistas, gestores de política pública deveriam estar se perguntando e para o que deveriam tentar mapear saídas. Sim, mapear. Respondê-las com qualquer grau de certeza é impossível. Contudo, em vez de perguntar e pensar, muitos de nossos pensadores e executores se entregam à preguiça mental disfarçada por um repeteco constante de mesmices. Se pudesse acrescentar um efeito colateral do vírus, seria esse de ele ter sido capaz de cruzar a barreira hematoencefálica provocando o adormecimento de muitos neurônios por aí.

08 de julho de 2020

ACERTO DE CONTAS!

(Folha de S. Paulo, 06) No quadro de desvalorização da moeda nacional e recessão aguda causada pelo novo coronavírus, a contrapartida é uma transformação radical nas transações do país com o restante do mundo.

As exportações caíram 6,4% no primeiro semestre, ante o mesmo período de 2019, refletindo a redução de atividade nos principais mercados. Estados Unidos, Europa e América Latina, cruciais para o Brasil, compraram muito menos, e as vendas da indústria caíram 15,1% no período.

Mais positivo é o desempenho dos produtos primários, cujas vendas chegaram a US$ 26,2 bilhões de janeiro a junho, alta de 23,8%, graças à demanda da China por itens como minério de ferro e soja.

O gigante asiático ocupa há anos o posto de principal comprador dos produtos brasileiros, e essa importância crescerá agora. A participação chinesa nas exportações deverá aumentar de 28,5% em 2019 para até 35% neste ano.

Ficam ainda mais temerários, nesse cenário, as recorrentes hostilidades ao parceiro vindos da diplomacia do governo Jair Bolsonaro.

A recessão e o real desvalorizado, por sua vez, levaram a uma retração das importações de 5,2% no primeiro semestre, mas a queda deve se acentuar com a menor demanda interna. Com isso, nas estimativas oficiais, a balança comercial encerrará o ano com saldo de US$ 55,4 bilhões, 15,2% acima do obtido em 2019.

Também há mudanças nas transações de serviços com o resto do mundo, tipicamente deficitárias, em razão de menores remessas de lucros e despesas de viagens internacionais. No agregado, as transações com o restante do mundo podem ficar perto do equilíbrio.

Trata-se de alteração substancial ante as projeções que apontavam para déficit anual na casa de US$ 60 bilhões antes da pandemia.

Compensa-se, assim, a continuada saída de investimentos estrangeiros de curto prazo. Com a taxa básica de juros em 2,25%, o Brasil se tornou —ainda bem— menos atrativo para dinheiro especulativo.

Mas com elevadas reservas em moeda forte, de US$ 348 bilhões no final de junho mesmo depois das intervenções no Banco Central nos últimos meses, não há crise de financiamento externo.

Juros baixos no mundo e o ajuste das contas externas sugerem que o país tem algum tempo para retomar reformas e favorecer o crescimento. Mas a situação é frágil e os riscos são maiores agora.

07 de julho de 2020

TEMPOS CONFUSOS!

(Fernando Henrique Cardoso – O Estado de S.Paulo, 05) Tempos confusos os que temos vivido. A tal ponto que estranhamos o que aconteceu no meio da semana: chamou a atenção o fato de o governo não haver arranjado nenhuma confusão nova. Isso depois de, sem se dar ao luxo de explicar melhor ao País as razões, o presidente haver dispensado vários ministros nas pastas da Educação e da Saúde. Pelo menos até a última sexta-feira, quando escrevo este artigo, não demitiu ninguém ou ninguém se sentiu na obrigação de abandonar o Ministério. Nem mesmo se viu o presidente ou seus porta-vozes atribuírem à oposição ou a alguém mais notório o estar “conspirando”. Daí a calmaria.

É assim que vai andando o atual governo, meio de lado. Sem que os “inimigos” façam qualquer coisa de muito espetacular contra ele, é ele próprio que se embaraça com sua sombra. De repente, quando não há nenhum embaraço novo, nenhuma “crise”, o presidente não se contém: fala e cria uma confusão.

É verdade que o governo federal não teve sorte. Não foi ele que criou a pandemia que nos aflige nem a paralisação da economia, que já vinha de antes. Mas a confusão política, desta ele se pode apropriar: foi coisa inventada pelo próprio presidente e seus fanáticos.

Por certo ela se agrava com a crise econômica e a da saúde pública. Mas o mau gerenciamento das crises e da política é o que caracteriza os vaivéns do governo Bolsonaro. No Congresso Nacional e nos tribunais (apesar de tão malfalados nos comícios pelos adeptos presidenciais) tem havido resistências à inação governamental e a suas investidas contra as instituições.

Comecemos pelo que mais importa, a saúde pública e a de cada um de nós. O governo federal desconsiderou os riscos da situação epidêmica no início e, depois, passou o bastão às autoridades locais. Compreende-se que sejam estas, mais perto das populações, a gerenciar o dia a dia. Mas o papel simbólico é sempre, para o bem e para o mal, de quem exerce a Presidência da República, tenha ou não culpa no cartório. Além disso é o que prescreve a Constituição, no seu artigo 23, sobre as competências comuns, entre as quais está a de zelar pela saúde pública, como deixou claro o Supremo Tribunal Federal (STF) em sua decisão a esse respeito.

Da mesma maneira é inacreditável que em tão pouco tempo o governo haja substituído dois ministros na pasta da Educação e que o País ainda não saiba quem será o próximo ministro. Os anteriores o pouco que fizeram foi suficiente para darmos graças por se terem afastado. Mas quem virá? E logo numa área crucial para o País.

Governo que não tem rumo nas principais áreas sociais dificilmente encontrará a lanterna mágica para nos levar a bom porto. Não são apenas pessoas mal escolhidas. É a falta de projetos, de esperança, o que nos sufoca.

Talvez esteja aí a falta maior do presidente: ele fala como qualquer pessoa, o que pode parecer simpático. É um [  ]uomo qualunque[/  ]. Diz o que lhe vem à cabeça, como qualquer mortal. Mas esse é o engano: o papel atribuído pelas pessoas ao presidente, qualquer deles, exige que ele, ou ela, mesmo sendo simples (para não dizer simplório), não pareça ser tão comum na hora de decidir ou de falar ao povo sobre os destinos da Nação.

Em certos momentos muita gente no País pode até apreciar a semelhança entre si e o chefe de Estado. A maioria mesmo: pois não foi ele quem ganhou as eleições? Afinal o presidente, dirão, é uma pessoa como qualquer outra. Mas quando há crises é quando mais se precisa que haja comando, rumo. Talvez por isso os “homens comuns” no poder acabem por ser incomuns, singulares na sua incapacidade de definir um rumo. Quando têm personalidade autoritária, investem e esbravejam contra as instituições democráticas. No Brasil, elas têm respondido bem ao desafio.

Onde iremos parar? Não tenho bola de cristal, mas é melhor parar logo. Se pudesse eu lhe diria: presidente, não fale; ou melhor, pense nas consequências de suas falas, independentemente de suas intenções. Sei que é difícil, afinal eu estava em seu lugar quando houve o “apagão” e também durante algumas crises cambiais. Não adianta espernear: vão dizer que a “culpa” é sua, seja ou não. E, no fundo, é sua mesma. Não se trata de culpa individual, mas política. Quem forma o governo (sob circunstâncias, é claro) é o presidente. A boca também é dele. Logo, queiramos ou não, sempre haverá quem pense que o presidente é responsável. Vox populi, dir-se-á…

É assim em nosso sistema presidencialista. E talvez seja assim nas sociedades contemporâneas. Com a internet as pessoas formam redes, tribos, e saltam as instituições. Por isso é mais necessário do que nunca que haja lideranças. Em nossa cultura e em nosso regime, já de si personalistas, com mais forte razão os líderes exercem um papel simbólico, falam pela comunidade. O líder maior é sempre o presidente, pelo menos enquanto continuar lá. Por isso é tão importante: se não souber falar, se tiver dúvidas, que o presidente se cale. Como nesta última semana.

Melhor, contudo, é que se emende e fale coisas sensatas, que cheguem ao coração e façam sentido na cabeça das pessoas razoáveis.

06 de julho de 2020

CESAR MAIA APROVA 9 EMENDAS AO PL DE 2021!

O vereador Cesar Maia (DEM) aprovou na tarde desta quinta-feira (02/07), durante sessão virtual da Câmara Municipal, nove emendas ao Projeto de Lei do Executivo que estabelece as diretrizes orçamentárias da Prefeitura do Rio de Janeiro (LDO) para o exercício financeiro do ano que vem, 2021.

As propostas garantem verba para a execução de programas que já existiram na Administração Pública durante as suas gestões à frente da Prefeitura.

São elas:

– Expansão do programa Ônibus da Liberdade -transporte gratuito de alunos da rede municipal de ensino, preferencialmente moradores da zona oeste, de casa para a escola e vice-versa;
– Retomada do programa Gari Comunitário -contratação de moradores de comunidades para a limpeza urbana de área onde reside;
– Retomada do Favela-Bairro;
– Implementação de novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração dos Servidores da Área de Saúde da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro;
– Retomada do programa de concessão de Carta de Crédito aos servidores municipais visando a compra da casa própria;
– Retomada do programa Remédio em Casa – entrega em domicílio de medicamentos aos diabéticos, hipertensos e pessoas com bronquite asmática crônica atendidos pela Rede Municipal de Saúde;
– Antecipação em forma de pecúnia da licença-prêmio dos servidores municipais em situações prioritárias;
– Transformação da Empresa Municipal de Informática da Cidade do Rio de Janeiro – IplanRio em Autarquia, assim como a Imprensa da Cidade – altera o regime jurídico dos funcionários, que terão seus empregos transformados em cargos, desde que tenham sido admitidos mediante prévia aprovação em concurso público.

Caberá ao Prefeito eleito nas próximas eleições a realização das propostas aprovadas.

03 de julho de 2020

EVERARDO MACIEL: UM IMPERATIVO DE RESPONSABILIDADE!

(O Estado de S.Paulo, 02) Tomo emprestado conceito desenvolvido pelo filósofo Hans Jonas (1903-1933) para, em meio às enormes incertezas que pairam sobre a humanidade em vista da pandemia, seguir explorando caminhos para enfrentar problemas que se acumulam. Infelizmente, esse imperativo de responsabilidade, no Brasil, é embaraçado por um ambiente estigmatizado por múltiplas torpezas.

É certo que esse ambiente não é de origem recente. Ao contrário, há muito a corrupção e a violência criaram raízes profundas em nossa sociedade, projetando-se sobre o Estado. Erradicá-las de nosso convívio é missão que requer muita energia política, o que não se vislumbra em horizonte próximo.

Mais grave é que a corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas, tagarelice perniciosa, linguagem chula, intolerância abjeta até mesmo contra a intolerância, sobrevalorização de questiúnculas, “militância” política de financiamento escuso, vilanias veiculadas nas redes sociais. Perdemos a amabilidade, reconhecido traço cultural brasileiro. Exilamos a moderação, a discrição e o autocontrole, que os gregos identificavam na figura mítica de Sofrósina (Sobriedade, para os latinos). Essas dificuldades não podem, entretanto, converter-se em óbice intransponível, mas desafio a ser enfrentado, que deve animar os que assumem a responsabilidade de refletir e propor.

É alentador ver prosperarem proposições que, sem pretensões megalomaníacas ou salvacionistas, ferem, de forma pragmática e consistente, temas de interesse público. No campo tributário, regozijo-me com a apresentação do Projeto de Lei n.º 3.566 de 2020, na Câmara dos Deputados, que dá concretude à proposta de moratória tributária, que suscitei em artigo (Moratória), veiculado no Jota em 24/3/2020.

A proposta é focalizada nos optantes do Simples, inclusive os microempreendedores individuais, e abrange todos os tributos devidos entre 1.º de abril e 30 de setembro deste ano, nos termos do art. 152, inciso I, b, do Código Tributário Nacional (CTN).

O montante devido poderá ser parcelado e, subsequentemente, liquidado mediante pagamento correspondente a 0,3% do faturamento mensal, o que propicia um permanente ajustamento ao fluxo de caixa do contribuinte. Aos microempreendedores individuais, será facultado liquidar o débito em 60 parcelas mensais e iguais.

Essa iniciativa parlamentar revela discernimento em relação à crise vivida pelas micro e pequenas empresas e interpreta corretamente o tratamento tributário que para elas prescreve a Constituição. Contrapõe-se, também, àqueles que, desarrazoadamente, condenam o Simples, no pressuposto de que se trata de renúncia fiscal, sem considerar que o regime decorre de mandamento constitucional e que, se fosse extinto, nenhuma receita existiria, porque esses contribuintes se encaminhariam para a informalidade, gerando por consequência um genocídio tributário.

São alentadoras, também, as reflexões consistentes dos juristas Hamilton Dias de Souza e Gustavo Brigagão que, se convertidas em projetos, darão adequado disciplinamento tributário, respectivamente, aos trusts no exterior e à exportação de serviços.

Além disso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.446, o voto da ministra relatora Cármen Lúcia admitiu a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN. Pondera, contudo, que a norma, para lograr eficácia plena, demanda fixação, em lei, de procedimentos que até hoje inexistem.

A prevalecer o entendimento da relatora, já acompanhado por quatro outros ministros, serão grandes as repercussões, inclusive em relação a julgamentos já realizados na esfera administrativa. Daí se impõe, como se buscou sem êxito na Medida Provisória n.º 66 de 2002, instituir por lei os referidos procedimentos, adotando, em relação às situações pretéritas, a transação prevista no art. 171 do CTN. Tal medida, ao resolver e prevenir litígios, seria, afinal, proveitosa tanto para o Fisco quanto para o contribuinte.

*Consultor Tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

02 de julho de 2020

ANÁLISE: CINCO CRISES SIMULTÂNEAS DOS EUA!

(David Brooks – The New York Times, 29) Cinco mudanças gigantescas ocorrendo nos EUA hoje. A primeira delas é o fato de estarmos perdendo a luta contra a covid-19. Nosso comportamento nada tem a ver com a realidade ao nosso redor. Simplesmente cansamos e, por isso, desistimos.

A segunda: todos os americanos, e em especial os americanos brancos, estão passando por um rápido aprendizado dos fardos suportados diariamente pelos americanos negros. Esse aprendizado continua, mas a opinião pública já está mudando com velocidade impressionante.

A terceira: estamos no meio de um realinhamento político. O público americano está rejeitando com veemência o Partido Republicano de Donald Trump. O sinal mais claro disso é o fato de o partido ter desistido de si, um culto à personalidade cujo líder está acabado.

A quarta: uma quase-religião está buscando o controle das instituições culturais americanas. Os acólitos dessa quase-religião chamada Justiça Social defendem uma ideologia simplificadora: a história é essencialmente uma disputa entre grupos, sendo alguns deles opressores e outros, oprimidos. Os pontos de vista não são explorações da verdade, e sim armas que grupos dominantes usam para manter sua posição na estrutura de poder. As palavras podem ser assim uma forma de violência que deve ser regulamentada.

A quinta: é possível que estejamos na beira do precipício de uma prolongada depressão econômica. O orçamento dos estados e dos lares está derretendo, algumas empresas estão falindo e outras, quase. A continuidade da emergência de saúde significa que a atividade econômica não pode ser totalmente retomada.

Essas cinco mudanças – cada qual refletindo uma imensa crise, e todas ocorrendo ao mesmo tempo – criaram um desastre moral, espiritual e emocional. Os americanos são hoje menos felizes do que em qualquer momento desde que a felicidade começou a ser medida em pesquisas, há quase 50 anos. Os americanos têm hoje menos orgulho do seu país do que em qualquer momento desde que a Gallup começou a medir esse sentimento, 20 anos atrás.

Os americanos olham para os demais países do mundo e observam que outros estão derrotando a covid-19 enquanto fracassamos. Os americanos olham ao redor e veem a violência do estado — retórica e real — voltada contra seus concidadãos. Os EUA não parecem um lugar muito excepcional. Em tempos assim, precisamos de uma teoria da mudança.

A mais estridente teoria da mudança está vindo do movimento pela Justiça Social. Esse movimento nasceu nas universidades de elite, e sua premissa básica diz que, se mudarmos as estruturas culturais, mudaremos a sociedade.

Os integrantes desse movimento prestam muita atenção aos símbolos culturais – palavras, estátuas, nomes de edifícios. Tomam o cuidado de repetir determinados slogans, como “defund the police” [redução do orçamento policial] – que podem ou não estar ligados a uma política pública. Repetem e celebram gestos simbólicos, como ajoelhar-se antes de um jogo de futebol americano. É uma forma de mudança bastante adequada em uma era de redes sociais, pois é muito performática.

Os ativistas da Justiça Social se concentram nas alavancas culturais do poder. Seu método mais comentado é o chamado cancelamento. Alguém (em geral de orientação levemente progressista) diz algo politicamente “problemático” e vê-se sem emprego como resultado da pressão. Dessa forma, são estabelecidas novas fronteiras quanto ao que pode e não pode ser dito.

Os ativistas da Justiça Social às vezes dizem que, se não gostamos de suas táticas, é porque não lutamos pela igualdade racial, pela justiça econômica ou seja o que for. Mas todos esses movimentos existiam muitos antes de a Justiça Social se apoderar desses temas e tentar mudar seus métodos.

O problema central é que a teoria da mudança da Justiça Social não traz muita mudança. As corporações se contentam em adotar alguns símbolos de conscientização e promover seminários, e bola para frente. Pior: esse método carece de uma teoria política.

Como, exatamente, toda essa agitação cultural vai resultar em leis que reduzam a disparidade de renda, criem melhores políticas habitacionais ou lidem com os grandes desafios citados acima? Essa parte nunca é enunciada. Na verdade, a histeria performática dificulta o trabalho político. Não se forma uma maioria governante insistindo na pureza ideológica.

No fim, a metodologia da Justiça Social não é a solução para o nosso problema, e sim um sintoma do nosso problema. Ao longo dos cinquenta anos mais recentes, graças à nossa ação, a política deixou de ser uma maneira prática de resolver nossos problemas em comum, convertendo-se em uma arena cultural onde expomos nossos ressentimentos. Donald Trump é o performer definitivo dessa arena paralisada.

Quem acha que a interação entre essas cinco mudanças gigantescas vai se encaixar em alguma narrativa ideológica organizada provavelmente vai se enganar. Sinto dizer, mas se alguém acha que podemos lidar com a desigualdade racial, a reforma da polícia militarizada e o enfrentamento de uma crise de saúde existencial radicalizando ainda mais a guerra cultural, me parece que essa pessoa está errada.

A superação desses problemas vai exigir a participação do governo. Serão necessárias leis, orçamentos, concessões complexas — todo o monótono trabalho governamental que mais parece material da TV Câmara do que do Instagram.

Conheço muitas pessoas que não se entusiasmam muito com Joe Biden, mas, graças a Deus, ele será o candidato do Partido Democrata. Biden começou sua carreira pública quando a ideia não era pregar sua fé, e sim criar coalizões engenhosas e propostas de lei. Ele transmite um espírito de empatia e amizade, e não de animosidade e cancelamento. O pragmático espírito do New Deal é um exemplo mais adequado para os dias que virão do que o espírito da teoria crítica da simbologia.

TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

01 de julho de 2020

QUATRO IDEIAS DESBANCADAS PELA PANDEMIA!

(Moisés Naím, O Estado de S.Paulo, 30) A covid-19 não faz vítimas apenas entre as pessoas, mas também entre as ideias. E, quando não as mata, desacredita-as e enfraquece-as. As ideias tradicionais a respeito de escritórios, hospitais e universidades, por exemplo, não sobreviverão ilesas às conseqüências econômicas da pandemia. Nem algumas das ideias mais globais na economia e na política. Essas quatro são exemplo:

1) Os Estados Unidos como fonte de estabilidade para o mundo
Washington é um grande epicentro da instabilidade geopolítica. As reações do governo de George W. Bush aos ataques terroristas de 11 de setembro, por exemplo, provocaram longas guerras: em 2008, os EUA exportaram uma grave crise financeira para o mundo. Desde sua eleição em 2017, Donald Trump mostra, quase diariamente, que em vez de acalmar o mundo e seu país, prefere fomentar conflitos e atiçar discórdia. Suas reações à pandemia reconfirmaram que a Casa Branca é um aliado volátil, desajeitado e pouco confiável.

A grande ironia do fato de os EUA irradiarem instabilidade é que um dos maiores beneficiários da ordem internacional que Trump está desmontando é o próprio país que ele preside.

2) Cooperação internacional
A pandemia confirmou que não há comunidade internacional capaz de lidar com ameaças globais em conjunto. As tragédias na Síria, Iêmen, Venezuela ou dos rohingya são apenas alguns exemplos da ineficácia da comunidade internacional. Essa comunidade internacional idealizada, que trabalha em coordenação, tem sido notável por sua ausência durante essa emergência de saúde. Assim, no momento em que enfrentamos um inimigo global, os países, em vez de se unirem para enfrentar o inimigo comum, estão entrincheirados atrás de suas fronteiras. A pandemia deveria ter fortalecido a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma entidade multilateral imperfeita, mas indispensável. Em vez disso, os EUA se convenceram que a OMS foi capturada pelo governo chinês e, em vez de liderarem uma grande coalizão internacional para reformar essa organização multilateral, decidiram se retirar dela. A desconfiança da cooperação internacional também contribuiu para fragmentar e tornar ineficaz a coordenação entre os países em relação aos padrões, à produção e à distribuição de medicamentos e materiais médicos, por exemplo. E essa é outra ironia: a perda de prestígio da colaboração internacional resultou em uma resposta essencialmente local – e inadequada – a uma ameaça global.

3) Austeridade fiscal
Essa ideia, antes muito popular como remédio obrigatório para enfrentar uma crise financeira, agora é tóxica. Diante de um colapso econômico, o governo teve que restringir severamente suas despesas e dívidas. Agora é o contrário: gastar mais e obter mais dívidas é a receita da moda. Assim, em todos os lugares, os governos aumentaram os gastos públicos para níveis sem precedentes. O déficit fiscal, que é a diferença entre a arrecadação de impostos e outras receitas do governo e os gastos públicos, subiu para níveis nunca antes vistos. Nos EUA, por exemplo, o déficit fiscal deste ano chegará a um valor equivalente a 24% do total da gigantesca economia americana. O endividamento de quase todos os países também aumentou. A maior dívida do mundo em relação ao tamanho de sua economia pertence ao Japão. Os EUA são os campeões mundiais em termos da quantidade absoluta de dinheiro devido (20 trilhões). Nos próximos anos, haverá um debate global importante e furioso a respeito de quando e como essas dívidas serão pagas (e por quem!).

4) Globalização
Esse é outro conceito que foi idealizado anteriormente e agora é demonizado. Como é frequentemente o caso, não era tão bom antes, nem é tão ruim agora. Para muitos, a globalização é expressa em termos do fluxo de produtos e dinheiro entre países. Para outros, sua principal e mais preocupante manifestação é a imigração. Na prática, as globalizações são muito mais complicadas. Ela inclui, é claro, o enorme aumento nos fluxos internacionais de produtos, serviços, dinheiro e informação. Mas inclui também atividades de terroristas, traficantes, criminosos, cientistas, artistas, filantropos, ativistas, atletas e organizações não governamentais. E, claro, vale também para as doenças que agora se movem em grande velocidade entre os continentes.

Os governos podem impedir algumas de suas manifestações ou estimular outras. O que ninguém pode fazer é parar completamente as múltiplas maneiras pelas quais os países se entrelaçam. A pandemia e suas sérias consequências econômicas incentivarão a busca e adoção de políticas para amortecer os choques externos que abalam periodicamente os países. Haverá mais protecionismo. Mas as vantagens e atrações de algumas facetas da globalização não desaparecerão.

O que essas quatro ideias danificadas têm em comum? O fato de todas os quatro serem pilares importantes da ordem mundial que surgiram após a 2.ª Guerra Mundial. Embora os quatro conceitos estejam danificados e desacreditados, é possível repará-los e melhorá-los. Este será um dos principais desafios para os próximos anos.

30 de junho de 2020

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PARA A GESTÃO DA JUSTIÇA!

(Luis Felipe Salomão, Elton Leme e Renata Braga * – O Estado de S.Paulo, 29) As grandes questões que envolvem a eficiência da Justiça passam obrigatoriamente pela ideia de gestão. Nesse campo, o uso de ferramentas tecnológicas, no universo da computação, ganhou força no início dos anos 2000.

A onda tecnológica foi rápida e não tardou a reconhecer a imprescindibilidade dos novos avanços da ciência da computação na gestão da Justiça, agora inserida na era digital.

A “inteligência artificial” destacou-se nos últimos anos na otimização e no controle de processos, na aprendizagem, no planejamento e no escalonamento de atuações e no desenvolvimento de bancos de dados dedutivos, dentre muitas outras funcionalidades. No entanto, quais são essas outras tarefas? Qual o melhor uso da inteligência artificial na gestão do sistema de justiça? Quais os campos prioritários de ação para fazer frente às demandas da sociedade por justiça?

Para responder a essas e muitas outras questões foi criado, em 2019, o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Concebido como um “laboratório de ideias”, de natureza privada, sua missão é identificar, entender, sistematizar, desenvolver e aprimorar soluções voltadas para o aperfeiçoamento da Justiça.

O centro da FGV pretende contribuir com o nosso país para a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, documento obtido na reunião dos representantes de 193 Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro de 2015. Nele há o compromisso dos países com a adoção de medidas para promover o desenvolvimento sustentável até 2030. A publicação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 da Agenda 2030 ampliou um movimento que já vinha ganhando corpo nas pesquisas acadêmicas e nos levantamentos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ): o estudo da gestão do sistema de Justiça.

Diante do indiscutível boom digital, uma das pesquisas desenvolvidas pelo centro da FGV intitula-se Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do poder judiciário: o estudo das experiências brasileiras de inteligência artificial. Seu objetivo é pesquisar o estado da arte e as experiências nacionais de aplicação de tecnologia com a utilização de inteligência artificial nos tribunais brasileiros. O levantamento inclui dados do Supremo Tribunal Federal (STF) e envolve os demais tribunais e instâncias do País.

A amostra atual – representada até aqui por 85% dos tribunais brasileiros – permitiu identificar 28 projetos de inteligência artificial no sistema de Justiça brasileiro. A pesquisa já apontou que, atualmente, o espectro da automação do Judiciário possibilita aplicações como o cadastro, a classificação e a organização da informação, o agrupamento de casos por similaridade, assim como a utilização de algoritmos para tornar a Justiça mais eficiente e otimizar a sua administração.

Interessantes achados dessa pesquisa já podem ser compartilhados. Verificou-se que soluções colaborativas têm sido desenvolvidas pelo Judiciário brasileiro. Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça firmou termo de cooperação com o Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (TJRO) para o desenvolvimento e o uso colaborativo de soluções em inteligência artificial com o objetivo de nacionalizar tais sistemas. Já no âmbito da Justiça do Trabalho há um órgão central no Tribunal Superior do Trabalho (TST) que otimiza esforços e custos dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) para criar projetos de desenvolvimento de inteligência artificial em parceria com os diversos tribunais. A cooperação entre os tribunais também tem a finalidade de aprimorar a alocação de mão de obra especializada em inteligência artificial, que é difícil de ser encontrada.

Para ter a ideia da dimensão do avanço que a inteligência artificial pode proporcionar, a experiência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) é reveladora. Nesse tribunal, as execuções fiscais representam um terço dos processos. Em abril de 2019 foi implantado na Vara de Execução Fiscal o sistema Hórus, que realiza em cerca de dez segundos diversas atividades que levariam muito mais tempo pelo sistema convencional. A meta inicial era a de trabalhar com 48 mil processos e o Hórus já superou essa meta, distribuindo automatizadamente mais de 275 mil processos da Vara de Execução Fiscal.

Para analisar e debater essas e outras experiências o centro da FGV realizará, virtualmente, o I Fórum sobre Direito e Tecnologia, hoje, 29 de junho, e na próxima quinta-feira, dia 2 de julho.

Em tempos de pandemia, mais do que nunca, o uso da tecnologia para atender às novas demandas da sociedade em geral e do sistema de justiça em particular revela toda a sua importância estratégica. Vem em boa hora a pesquisa para a construção do conhecimento que estimule a celeridade processual e a cooperação interinstitucional.

* RESPECTIVAMENTE, MINISTRO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ); DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO (TJRJ); E PESQUISADORA COLABORADORA DO CENTRO DE INOVAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PESQUISA DO JUDICIÁRIO-FGV, PROFESSORA DE DIREITO DA UFF-VR

29 de junho de 2020

NAVEGANDO A CRISE E CONSTRUINDO O FUTURO!

(Arminio Fraga – Folha de S.Paulo , 28) Tudo indica que ao final de 2020 o PIB terá tido duas quedas acumuladas de 7% ou mais em apenas sete anos. A renda per capita terá caído cerca de 14%. Trata-se do maior fiasco econômico de nossa história. Disparado. O que fazer para sobreviver à pandemia e voltar a crescer?

Desde a chegada do vírus venho defendendo uma linha geral de inspiração keynesiana e humanitária: aumentar o gasto público, com foco na assistência social e na saúde, expandir o crédito e reduzir a taxa de juros. O governo merece crítica por falhas de execução e pela falta de estratégia e planejamento, mas o gasto aumentou expressivamente e o BC vem fazendo a sua parte.

Essa resposta é necessária, mas tem custos. Há risco de exagero no gasto, em virtude da duração prolongada da crise e de uma guinada do governo em direção a um engajamento político fisiológico.

O Estado brasileiro está tomando emprestado para cobrir o buraco corrente e os juros devidos. A dívida voltou a crescer em bola de neve, a despeito da enorme queda da taxa de juros. Com o colapso da economia a relação dívida/PIB deve chegar a 100% no final do ano.

Cabe registrar que o crescimento recente do endividamento decorre da aplicação do receituário fiscal correto para se lidar com um problema temporário, no caso a pandemia: expansão fiscal forte no curto prazo, compensada por um ajuste previsível e diluído no tempo, para suavizar o impacto sobre a atividade econômica.

Mas, passada a crise, será, sim, necessário que se reduza o endividamento. Por quê? Para recompor um colchão de segurança que permita lidar com o que a ciência prevê que serão desastres naturais maiores e mais frequentes, como novas pandemias e mudanças climáticas, e também para evitar descontrole macroeconômico, uma doença crônica aqui por nossas bandas, sempre mais penosa para os mais pobres.

Os objetivos de curto e longo prazo dialogam e até competem entre si. Faz-se necessário gastar para amenizar a dor da crise, mas faz-se também necessário garantir a saúde financeira do Estado e abrir espaço no orçamento para se investir mais, sobretudo nas áreas de maior impacto social como saúde, educação, tecnologia e infraestrutura.

O gasto público vem subindo praticamente em linha reta há três décadas, chegando a cerca de 34% do PIB em 2019. No entanto, o investimento público caiu de um pico de 5,4% do PIB em 1969 para cerca de 2% em 2013, para menos de 1% neste ano. Não surpreende, portanto, que o investimento nacional tenha caído de 21% do PIB em 2013 para 15% a partir de 2018. Com essa taxa de investimento é impossível crescer mais rápido. É também impossível gerar as indispensáveis oportunidades e a mobilidade social tão ausentes.

E para onde vão os gastos? Oitenta por cento para previdência e funcionalismo, um ponto fora da curva quando se contrasta com a maioria dos países de renda média e alta. Não vejo qualquer razão para acreditar que o Brasil seja estruturalmente tão diferente dos demais.

Outra fonte importante de gastos (e desigualdades) são vultosos (e regressivos) subsídios como os implícitos nos regimes especiais do Imposto de Renda (os regimes Simples e de Lucro Presumido). Ademais, são baixas as alíquotas máximas dos impostos sobre as rendas do trabalho e do capital e sobre heranças.

Esses são os principais espaços que propiciariam uma radical correção de rumo. Acredito inclusive que não haja outro caminho. Listo a seguir um roteiro.

Será necessário buscar um ajuste maior na conta previdenciária, imagino que de mais dois pontos do PIB por ano. Alguns estados vêm tomando providências nessa área, um bom sinal.

Na área tributária, a eliminação de subsídios aliada a aumentos nas alíquotas mencionadas acima geraria pelo menos três pontos do PIB de receita e eliminaria um foco inaceitável de desigualdade.

No campo do funcionalismo, vejo espaço para uma reforma administrativa básica, mas altamente relevante, sobretudo por seu potencial de impacto na qualidade dos serviços prestados pelo Estado, uma clara demanda da sociedade. O primeiro e crucial passo seria avaliar todo funcionário público periódica e sistematicamente. Quem pode ser contra isso?

As avaliações deveriam ser a única base para promoções e aumentos salariais, assim como para eventuais demissões, respeitadas as defesas previstas no artigo 41 da Constituição. Esse primeiro passo poderia ocorrer através de lei complementar. Junto com uma modernização tecnológica seria fonte de grandes ganhos de produtividade do Estado e da economia em geral. O governo dá um péssimo sinal deixando o assunto para o futuro.

Essa reforma é visceralmente rejeitada por boa parcela do funcionalismo, que teme exageros e injustiças, e não se vê como privilegiada no contexto maior de um país onde mais do que a metade da população está na informalidade ou desempregada. Certamente não sou dos que demoniza o funcionalismo, muito pelo contrário. Do Banco Central ao SUS bem sei que o Estado brasileiro é repleto de pessoas competentes e vocacionadas. Mas, como se dizia no BC, há também muitos cuja ausência preenche uma lacuna.

Não há, portanto, justificativa para não se investir em uma área de recursos humanos para o setor público. Transparência e disciplina fariam muito bem ao sistema e prestariam contas à sociedade, que arca com os custos. E permitiriam enfrentar as corporações mais fortes, coibindo abusos e eliminando absurdos.

Essas reformas liberariam ao longo do tempo recursos da ordem de nove pontos do PIB por ano que permitiriam a recuperação da saúde fiscal do Estado e um aumento substancial de investimentos de alto impacto social e distributivo. O resultante ganho de confiança estimularia um significativo aumento no investimento privado e no consumo. O resultado seria um surto de crescimento sustentável e inclusivo.

Uma palavra final para não perder o hábito: o caminho requer comprometimento e liderança por parte do governo.

26 de junho de 2020

CHEGAMOS!

(José Márcio Camargo – O Estado de S. Paulo, 20) O Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central do Brasil (BCB) reduziu a taxa básica de juros da economia brasileira para 2,25% ao ano. É a menor da história recente do País. Pela primeira vez as taxas de juros na economia brasileira convergiram para níveis similares aos de outros países emergentes.

Ao contrário de outros episódios, não apenas os juros baixos não estão gerando pressão inflacionária, como pela primeira vez a política monetária pode ser utilizada para compensar choques negativos de oferta e demanda. No passado, os choques geravam pressão inflacionária, forçando o BCB a aumentar a taxa de juros, o que intensificava os efeitos negativos dos choques sobre o nível de atividade. Sem dúvida, são mudanças estruturais importantes. O que permitiu essas mudanças?

Desde meados de 2016, um conjunto de reformas aprovadas pelo Congresso está na origem deste resultado. Entre outras, as mais importantes foram a introdução, na Constituição, de um teto para o crescimento do gasto público, que reduziu a incerteza quanto à sustentabilidade da dívida pública; a substituição da taxa de juros dos empréstimos do BNDES por uma taxa de mercado e a redução do seu volume de empréstimos, o que reduziu o subsídio aos empréstimos do banco; a reforma trabalhista, que permitiu a negociação individual entre trabalhadores e empresas e que os contratos coletivos tenham validade sobre a legislação trabalhista; e a terceirização de qualquer atividade, o que, em conjunto com a reforma trabalhista, praticamente desindexou os salários.

Com essas reformas, a trajetória da dívida pública passou a depender do crescimento da economia, o BNDES deixou de ser um agente inflacionário e o comportamento dos salários reais passou a depender basicamente de oferta e procura. Manter este conjunto de reformas é a precondição para manter as taxas de juros baixas.

A necessidade de elevar os gastos públicos para combater os efeitos da pandemia de covid-19 forçou o governo a abandonar o teto do gasto em 2020. Para tal, aprovou-se uma emenda constitucional (o Orçamento de Guerra) permitindo que os gastos com a pandemia em 2020 ficassem fora do teto. Ou seja, em 2020 os gastos ex-pandemia têm de obedecer ao teto, mas os que se destinam a combater a covid-19, não.

É fundamental que esta exceção fique restrita ao ano de 2020. Caso contrário, a percepção de sustentabilidade da dívida pública, um fator indispensável para a manutenção dos juros baixos, simplesmente se evapora. Para que o teto volte a ser respeitado em 2021, os gastos com programas de combate aos efeitos da pandemia precisam começar a ser reduzidos no segundo semestre de 2020, quando o auge dos efeitos da doença, espera-se, tenha passado. E que sejam descontinuados já no início de 2021.

Entretanto, a pressão política pela manutenção dos programas está se intensificando. Em especial, por ser um programa bem-sucedido direcionado para os trabalhadores mais vulneráveis e que abarca mais de 50 milhões de pessoas, a pressão pela manutenção do programa emergencial de transferência de R$ 600 para os trabalhadores informais e por conta própria é particularmente intensa.

Como é um programa caro (R$ 50 bilhões/mês), sua prorrogação no mesmo valor tornaria difícil retomar a trajetória de equilíbrio fiscal em 2021. Este será um divisor de águas nesta negociação. É extremamente importante que o governo consiga prorrogar o programa com o valor do benefício menor e, simultaneamente, redesenhar e unificar os vários programas de transferência de renda hoje existentes no País, tornando-os mais eficientes. Será um sinal claro de que o objetivo de cumprir o teto do gasto em 2021 poderá ser alcançado. Afinal, chegamos. Atingimos o objetivo. Temos taxas de juros civilizadas. Para mantê-las civilizadas é indispensável que voltemos a respeitar o teto do gasto a partir de 2021. Mãos à obra!