18 de dezembro de 2020

12 PERGUNTAS PARA CESAR MAIA!

(Época) Ex-prefeito do Rio por três gestões, vereador reeleito, ele é, hoje, o “pai do Rodrigo Maia” (presidente da Câmara dos Deputados). A ÉPOCA, defende a formação do “centro radical” liderado por seu filho e vê as ações da PGR contra o primogênito como políticas.

1. O DEM voltou a comandar o Rio e ganhou novas prefeituras em outras regiões do país. Como o senhor, que por 12 anos foi prefeito carioca, avalia esse crescimento da legenda?

A ascensão do DEM sublinha a importância de nossas lideranças nacionais com forte base estadual. Rodrigo (Maia), ACM Neto, (Ronaldo) Caiado, são exemplos. Com isso veio a impulsão geral em torno do partido, que despontou como a principal força de centro nas eleições municipais.

2. Ter quadros tão díspares como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e o ministro Onyx Lorenzoni de um lado e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o prefeito de Salvador, ACM Neto, do outro não pode atrapalhar a construção de um projeto próprio para o DEM em 2022?

Cabe ao presidente do DEM, ACM Neto, dar as diretrizes de unidade.

3. Como o senhor vê a atuação de Rodrigo Maia no Legislativo?

Tenho repetido isso há muitos anos. Rodrigo tem perfil diferente do meu. Ele tem uma extraordinária capacidade de ouvir e assim articular, e, com isso, conquistou a confiança e a liderança entre seus pares no Congresso e nos estados.

4. O DEM tem espaço para ter protagonismo em 2022?

Eu não tenho dúvida. Certamente cumprirá uma função decisiva na campanha de 2022.

5. Rodrigo Maia pode se tornar um líder político nacional?

Acredito que já o seja. Basta acompanhar sua mobilidade nacional pelos estados com os governadores, deputados e senadores.

6. É a hora de ele sair da “sombra” e disputar quadro executivo em âmbito nacional?

Rodrigo está sob as luzes pela posição que ocupa e por seu talento. O processo político superou as relações anteriores. Já estamos assumindo o centro radical.

7. O senhor governou o Rio de Janeiro por 12 anos valendo-se de um estilo mais agressivo. Rodrigo Maia é mais discreto. Como o senhor vê essa diferença?

Com a ascensão do Rodrigo na Câmara dos Deputados, fiz a opção por opinar muito pouco nas questões nacionais. Meu estilo não o ajudaria em nada e poderia ser polemizado, prejudicando o desempenho dele. Conversamos quando ele passa aqui por casa, mas pontualmente. E uma vez ou outra envio um Twitter, quase sempre sobre política internacional, que aliás é minha função no DEM.

8. Ele evoluiu como político?

Lembro que em suas primeiras campanhas ele era percebido como muito tímido. Com o tempo, pôde-se ver que na verdade esse estilo, de ouvir muito, e com muita atenção, a seus interlocutores, em todos os níveis, era seu perfil, que se aprofundou com o tempo.

9. Rodrigo Maia é um dos alvos preferenciais dos bolsonaristas nas redes. Como o senhor observa essas ameaças e ataques?

Ele fez um mestrado quando eu era prefeito e as ameaças eram constantes pela presença do crime organizado aqui no Rio. As ameaças via guerrilha digital só têm função de tentar produzir desgaste. Essa eleição para presidência da Câmara dos Deputados mostra que não surtiram efeito. Aqueles mudaram de time com outros políticos. Ele permanece onde sempre esteve.

10. O senhor crê que nesta eleição o eleitor desacreditou de uma nova política?

A eleição de 2018 foi um ponto fora da curva. Agora a curva voltou a seu leito. Aprendi com a Democracia Cristã (DC), quando estive exilado no Chile, que o centro como meio-termo entre direita e esquerda apenas tem efeito amortecedor. O centro que setores da DC na época buscavam era uma instância em outro plano, fora da direita e da esquerda. Anos atrás, Anthony Giddens chamou de centro radical, trazendo novos temas como Meio Ambiente, a questão urbana, a democracia sem adjetivos, a política de gêneros etc. Esse é o centro que ele (Rodrigo Maia) busca. O centro radical conforme Giddens. Se chegar em 2022 e ele estiver liderando uma corrente expressiva, será natural a ascensão. Sobre nova política, o tempo dirá. Joe Biden (presidente eleito dos Estados Unidos) entrou nas primárias como outsider e os fatos o colocaram no trono. No parlamentarismo as projeções são mais fáceis.

11. O que esperar da Câmara dos Deputados sem o comando de Rodrigo Maia. Há algo a temer?

Temer não. A presidência da Câmara dos Deputados pode ter vários tamanhos. Dependendo do tamanho, a Câmara cresce e passa a ser um poder efetivo num círculo com o Executivo, o Judiciário e a Federação. Ou será apenas intermediária de clientelas olhando apenas para a reeleição dos parlamentares. Como disse, adotei um estilo de não opinar nos conflitos nacionais. Isso cabe ao Rodrigo. Assim como o futuro que terá ou não nas eleições majoritárias de 2022.

12. O presidente da Câmara voltou a ser alvo de uma investigação que havia sido arquivada na gestão passada da Procuradoria-Geral da República (PGR). A reabertura é interpretada como uma retaliação política a ele?

Nada de novo. É o mesmo processo que já foi arquivado pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge. (Esse tipo de ação) faz parte das buscas de desgastes que cercam a eleição para presidente da Câmara.

17 de dezembro de 2020

SERÁ?

(Ana Carla Abrão – O Estado de S. Paulo, 15) A crise fiscal de Estados e municípios e a necessidade de colocarmos de pé um amplo programa de ajuste estrutural dos entes subnacionais talvez sejam o tema mais frequente nas minhas, hoje, quase 150 colunas neste espaço. Permeados por algumas sugestões e outras tantas provocações, esses textos buscaram expor a realidade, além da urgência e relevância de enfrentarmos uma agenda de reformas que devolva a governadores e prefeitos a possibilidade de irem além de uma administração de crise e de escassez.

Neste final de ano, o tema volta mais uma vez à tona com o Projeto de Lei Complementar (PLP) 101/2020, O PLP estabelece o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal e o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (PEF), além de alterar regras fiscais ordinárias e extraordinárias como, por exemplo, as regidas pelas Leis Complementares 101 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), 156 (que tratou da renegociação das dívidas em 2016) e 159 (que institui o Regime de Recuperação Fiscal (RRF).

Os eixos principais do PLP são a harmonização e a transparência de regras contábeis, em particular as com despesa de pessoal, e a definição de critérios e exigências para que os entes subnacionais possam compatibilizar reequilíbrio fiscal com o pagamento das dívidas contraídas com a União. Redefinem-se alguns aspectos fundamentais do RFF, em particular o monitoramento e prazo de atendimento das ações de recuperação. Aprovado o projeto, a revisão do cumprimento dos termos do regime passará a ser anual (ao invés dos três anos do modelo original), incorporando pagamentos anuais de parcelas crescentes de dívida. A exclusão do ente do regime de recuperação passa a ser a punição pelo não cumprimento, evitando repetir o caso do Rio de Janeiro, notabilizado pelo descumprimento impune do seu plano. Cria-se ainda um regime intermediário, o PEF. Apelidado de Plano Mansueto, em referência ao ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, o novo regime chega mais brando que o RRF, mas também exige algumas contrapartidas de ajuste. O PLP mexe-se ainda no teto de gastos, excluindo aumentos com educação e saúde que estejam vinculados a crescimento de receita. Melhor seria cortar outros gastos para compensar, possível por meio de uma reforma das carreiras dos servidores, mas a vinculação constitucional cria de fato desafios.

O eixo de transparência merece destaque. Afinal, qualquer número que se busque identificar no cipoal de regras contábeis desarmônicas ou na obscuridade de contas lançadas em linhas pouco naturais do balanço de contas traz sempre, como resultado, uma surpresa negativa, quando não inconsistente. Esses orçamentos não resistiriam a um escrutínio contábil rigoroso, a começar pelos conceitos adotados, por exemplo, para o lançamento de despesas de pessoal. Mas é no descompasso entre as trajetórias de receitas e despesas que reside o pior dos problemas e que faz saltar aos olhos o desequilíbrio que compromete a capacidade de provisão de serviços e impossibilita o aumento dos investimentos públicos.

Mas o PLP 101 não deixa de ser um novo voto de confiança depois de alguns tiros n’água na tentativa de se buscar um ajuste mais profundo dos entes subnacionais. Ele reforça a constatação de que os entes continuam falidos, a despeito de algumas louváveis ações locais de ajuste, e tenta criar mecanismos de ajuste que não existem – ou se mostraram falhos.

De tudo, o mais importante no projeto são as contrapartidas impostas à adesão aos regimes de recuperação. Sem elas, tudo ficará, como nas vezes anteriores, perdido no meio de mais uma protelação. Sem elas, a qualidade dos serviços de saúde, educação e segurança continuará sendo a variável de ajuste para acomodar gastos crescentes com despesas de pessoal, financiar os privilégios de membros dos Poderes autônomos e garantir subsídios tributários a empresas que se acostumaram a trocar baixa eficiência por benefícios fiscais.

Por isso, ressurgem as mesmas questões que dominaram as discussões anteriores sobre Estados e municípios: será que as contrapartidas serão aprovadas ou apenas as medidas de alívio? Será que o Congresso Nacional entendeu que, sem um ajuste estrutural, ele continuará empurrando os entes subnacionais mais fundo nesse poço? Será que teremos uma lei de socorro que dê aos seus gestores locais os instrumentos para que ajustes estruturais sejam feitos? Será que o STF entenderá que as penalidades previstas nesta e em outras leis são formas de incentivar a adoção de medidas de ajuste em favor da população? Será que governadores e prefeitos adotarão essas medidas de forma responsável, ao invés de burlálas sob as bênçãos das instituições locais e mirando apenas a próxima eleição?

A resposta a tantos “serás” começará a surgir no texto aprovado pelo plenário da Câmara de Deputados. Quiçá, seja sim.

16 de dezembro de 2020

QUEBRANDO O GARGALO DO ENEM!

(Simon Schwartzman – O Estado de S. Paulo, 11) Dizem que a vida vai voltar ao normal. E em 2021 o Ministério da Educação pretende começar a implantar o novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com duas modificações importantes. A primeira, desde já, é o “Enem seriado”, em que os alunos do ensino médio serão avaliados a partir do primeiro ano, com uma nova versão da Prova Brasil. A segunda, a partir de 2024 ou 2025, é a adaptação do Enem à reforma do ensino médio, que prevê que os estudantes possam escolher seus itinerários de formação. Como a maioria dos candidatos ao Enem não vem diretamente do ensino regular, a prova geral vai continuar existindo, ao lado do sistema seriado.

Imagino que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) tenha estimado o custo desse novo formato, a maneira como os resultados das avaliações seriadas vão ser utilizados para melhorar a qualidade do ensino e como compatibilizar os dois sistemas para que um não se torne mais valorizado do que o outro. Digo “imagino” porque não encontrei nenhum documento oficial que explique mais em detalhe as razões e os custos dessa mudança.

Tomara que o Ministério da Educação (MEC) saiba o que está fazendo, mas há pelo menos três coisas importantes que precisam ser discutidas antes de embarcar nesse caminho sem volta. A primeira é se precisamos realmente continuar tendo um vestibular nacional unificado como o Enem. Quando o exame foi criado, em 1998, o objetivo era ter um marco de referência de qualidade para o ensino médio brasileiro, como a Prova Brasil. Em 2009 ele se transformou em vestibular nacional e as universidades renunciaram à sua autonomia e responsabilidade por selecionar seus estudantes. A justificativa foi que assim os estudantes não precisariam mais se inscrever em diferentes concursos e poderiam se candidatar a vagas em qualquer parte do país.

Mas o Enem transformou o ensino médio num grande cursinho de preparação para a prova, com resultados totalmente previsíveis – as vagas mais disputadas são quase todas ocupadas por filhos de pais de nível universitário que estudaram em escolas privadas e em algumas poucas escolas federais. O Brasil não é o único país que tem um exame desse tipo e em todo mundo se discute, hoje, se esses exames realmente medem o que pretendem – ou seja, a capacidade de o aluno adquirir uma boa formação e se transformar em bom profissional e cidadão – e se não existem formas melhores de tornar o acesso ao ensino superior melhor e mais equitativo.

No Brasil cerca de metade dos alunos que entram no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o mecanismo de escolha de cursos do Enem, são cotistas, mas as notas de corte para os cursos são semelhantes para cotistas e não cotistas, o que significa que elas não beneficiam quem realmente precisaria. A tendência, ao menos nos Estados Unidos, é reduzir o peso dos resultados em provas padronizadas como o ACT e fazer uma seleção mais rica e complexa dos estudantes, tomando em conta capacidade de liderança, motivação, experiência escolar, vínculo com suas comunidades de origem, etc. Essa seleção precisa ser feita pelas universidades, até para fortalecer seus vínculos com a população das regiões onde estão.

A segunda questão é se a prova geral e os itinerários formativos que o novo Enem pretende implementar estão alinhados com as intenções da reforma do ensino médio iniciada em 2017. Se a prova geral for um resumo de tudo o que estava no currículo tradicional, do português à física, passando pela filosofia e sociologia, o Enem continuará mantendo o ensino médio brasileiro na camisa de força do currículo único. E se as provas específicas, dos itinerários formativos, continuarem submetidas à esdrúxula classificação de áreas de conhecimento adotada pelo MEC, vão retirar a força da principal inovação do novo ensino médio, que são os itinerários. A sugestão é tornar a prova geral mais leve, semelhante ao Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), e alinhar os itinerários com as áreas de formação mais próximas ao mundo da educação superior e do trabalho, adotadas de forma semelhante em outros países: ciências exatas, matemática e tecnologia (STEM); ciências biológicas e da saúde: ciências e profissões sociais; e humanidades, letras e artes.

A reforma do ensino médio abriu também a possibilidade de um “quinto itinerário”, de capacitação técnica para quem precisa entrar logo no mercado de trabalho, e é necessário associar ao Enem sistemas adequados de certificação pelo menos para as áreas de formação técnica de maior demanda – enfermagem, administração, informática, agropecuária, segurança no trabalho.

A terceira questão é se não seria o caso de criar uma avaliação individualizada ao final do ensino fundamental, aos 15 anos, como faz a Inglaterra com o exame GCSE. O chamado “fundamental II” é o patinho feio da educação brasileira, é aí que os eventuais resultados de melhora dos resultados do antigo primário se perdem. Um exame desse tipo ajudaria a estabelecer um padrão de qualidade para esse nível e orientar os estudantes para que encontrem seus caminhos nos anos seguintes. Investir e exigir mais da educação fundamental e abrir o leque de alternativas no ensino médio, quebrando o gargalo do Enem, esse parece ser o caminho que precisamos.

15 de dezembro de 2020

A DIMENSÃO FEDERATIVA DA CRISE!

(José Serra – O Estado de S.Paulo, 10) A economia brasileira está lidando com desequilíbrios das contas públicas simultâneos com uma pandemia imprevisível. Há forte pressão da sociedade por aumento de gastos na área social, ao mesmo tempo que os orçamentos das três esferas de governo – União, Estados e municípios – não apresentam capacidade fiscal para dar conta dessa necessidade de apoio estatal. Neste cenário incerto, uma certeza pode ser considerada apartidária: a crise fiscal tem dimensão federativa.

Sabe-se que o Brasil é uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos Estados, municípios e do Distrito Federal. É o que está escrito no primeiro artigo da nossa Constituição. Mais ainda, nossa República se apresenta como uma organização político-administrativa que compreende três esferas de governo autônomas, nos termos do artigo 3.º da nossa Lei Maior.

Pode-se debater o tema, mas não se pode negar que nosso federalismo começa com duas palavras: união e ampla autonomia. Na maioria dos sistemas federativos os governos locais são “extensões” dos Estados federados, ao passo que no Brasil os municípios não estão subordinados a nenhuma outra esfera da Federação. É o acordo que se estabeleceu na Constituição, como condição de cláusula pétrea.

Bem, essa noção de que precisamos manter a integridade do nosso federalismo fiscal, um dos pilares da nossa Constituição, é fundamental no contexto da crise atual. Tenhamos claro que o País só vai sair desta crise e conseguir deslanchar, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos – os objetivos da República previstos no mesmo artigo 3.º – se tornar viável um plano de curto e médio prazos, politicamente acertado com a participação das lideranças das três esferas de governo e da sociedade.

Ainda assim, o desafio é maior: essa concertação política deve envolver os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou alguém ainda duvida de que medidas e ações precipitadas, ou autoritárias, de algum modo desequilibradas em matéria federativa, serão provavelmente revertidas pelo Congresso Nacional e/ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? Aqui cabe lembrar nosso histórico de decisões tomadas por esses dois Poderes, alterando ou moldando iniciativas do Poder Executivo federal.

Nota-se nesse contexto próprio que importar o federalismo de colisão patrocinado pelo presidente americano, Donald Trump – União versus Estados –, é uma estratégia perigosa. Basta perceber que, se os Estados e municípios brasileiros não forem capazes de financiar suas despesas, o Brasil simplesmente para de prover bens e serviços públicos para a sociedade. Isso porque somos uma das Federações mais descentralizadas do planeta, em que quase a metade do gasto público total está alocado nos orçamentos dos governos estaduais e municipais.

Vejamos alguns números sobre o nosso federalismo fiscal a fim de evidenciar a perspectiva federativa da nossa crise fiscal em tempos de pandemia.

Os gastos com salários no setor público, sem considerar proventos de aposentadorias, representaram cerca de 13,3% do produto interno bruto (PIB) em 2019, sendo 9,1% referente a Estados e municípios. Isto é, para cada R$ 100 que são gastos com salários no setor público brasileiro, basicamente R$ 70 se referem a servidores estaduais e municipais. Em relação à contratação de bens e serviços, o Estado brasileiro gasta cerca de 5,3% do PIB, sendo que os Estados e os municípios respondem por 85%. E com relação às despesas com consumo de capital fixo? Mais de dois terços são realizados pelas administrações públicas estaduais e municipais.

Foi nessa conjuntura do sistema federal brasileiro que o Congresso Nacional aprovou o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Assim que a pandemia invadiu o País – paralisando a atividade econômica e colapsando o sistema público de saúde –, a arrecadação de tributos despencou. Ao mesmo tempo, houve significativo aumento das despesas com ações governamentais adicionais para o enfrentamento da proliferação do vírus nas cidades brasileiras.

A espinha dorsal do pacote de ajuda consistiu em dois tipos de socorro financeiro: um auxílio financeiro de R$ 60,1 bilhões e a suspensão das dívidas dos entes da Federação com a União e os bancos públicos, totalizando uma folga no caixa dos Estados e municípios de R$ 47,5 bilhões. Algumas questões ainda estão sendo discutidas no Congresso, como a retomada gradual dos pagamentos das dívidas com a União, levando em consideração que os efeitos negativos da redução da atividade econômica e as ações de combate à pandemia ainda persistirão, pelo menos, no médio prazo.

É importante ter claro que as medidas a serem tomadas daqui para a frente devem assumir a dimensão federativa da crise. O governo federal precisa assumir a liderança das negociações sobre as necessárias reformas na área econômica, sem perder de vista a responsabilidade fiscal e as características do nosso sistema federativo. Bom é dizer que a solução passa por um federalismo de cooperação, como, aliás, vem apontando o novo presidente dos EUA, Joe Biden, no contexto norte-americano.

14 de dezembro de 2020

TE­TO PA­RA DÍ­VI­DA: MÁ RE­GRA FIS­CAL!

(Clau­dio Adil­son Gon­ça­lez – O Estado de S. Paulo, 14) Fe­liz­men­te o se­na­dor Már­cio Bit­tar (MDB-AC) re­sol­veu re­es­tu­dar seu subs­ti­tu­ti­vo da PEC 186 (PEC Emer­gen­ci­al), que veio a pú­bli­co na se­ma­na pas­sa­da. A PEC de­cep­ci­o­nou aque­les que aguar­da­vam com an­si­e­da­de as tão pro­me­ti­das no­vas nor­mas fis­cais, mas pre­fi­ro es­pe­rar a re­for­mu­la­ção da pro­pos­ta pa­ra me­lhor ana­li­sá-la.

No en­tan­to, des­de a ver­são ini­ci­al da PEC, apre­sen­ta­da pe­los se­na­do­res Fer­nan­do Be­zer­ra Co­e­lho (MDB-PE) e ou­tros, em 2019, ba­se­a­da na pro­pos­ta do Mi­nis­té­rio da Eco­no­mia, há um pon­to pre­o­cu­pan­te e que pro­va­vel­men­te se­rá man­ti­do na re­for­mu­la­ção.

Tra­ta-se da in­clu­são, no ar­ti­go 163 da Cons­ti­tui­ção fe­de­ral, do in­ci­so VIII, que es­ta­be­le­ce a obri­ga­to­ri­e­da­de de lei com­ple­men­tar (LC) dis­por so­bre a sus­ten­ta­bi­li­da­de da dí­vi­da pú­bli­ca. En­tre ou­tras me­di­das, se­rá obri­ga­tó­ria a in­di­ca­ção da tra­je­tó­ria de con­ver­gên­cia do mon­tan­te da dí­vi­da pa­ra os li­mi­tes da­dos. Ou se­ja, de­ve­rá ser es­ti­pu­la­do um li­mi­te pa­ra a dí­vi­da, mui­to pro­va­vel­men­te co­mo por­cen­ta­gem do PIB (D/P), que é o mais usu­al. A LC tam­bém de­fi­ni­rá qu­al con­cei­to de dí­vi­da pú­bli­ca se­rá ado­ta­do, já que exis­tem vá­ri­os e al­guns são mui­to ina­de­qua­dos pa­ra es­se fim.

Há pro­ble­mas de or­dem prá­ti­ca e con­cei­tu­al em uti­li­zar li­mi­te de dí­vi­da co­mo re­gra fis­cal.

A di­nâ­mi­ca da re­la­ção D/P de­pen­de de vá­ri­os fa­to­res, mui­tos fo­ra do con­tro­le do go­ver­no, que ge­ram di­fi­cul­da­des pa­ra a sua acu­ra­da pro­je­ção e, con­se­quen­te­men­te, pa­ra a fi­xa­ção de li­mi­tes a se­rem per­se­gui­dos. Es­sa tra­je­tó­ria de­pen­de do ní­vel de en­di­vi­da­men­to atu­al, do di­fe­ren­ci­al en­tre a ta­xa re­al de ju­ro (r) in­ci­den­te so­bre a dí­vi­da e a ta­xa re­al de cres­ci­men­to do PIB (g), e do re­sul­ta­do pri­má­rio.

A di­fi­cul­da­de de pro­je­tar es­sas va­riá­veis é mai­or do que pa­re­ce à pri­mei­ra vis­ta. To­me a re­la­ção (r-g). A ta­xa re­al de ju­ro (r) é cal­cu­la­da de­fla­ci­o­nan­do-se a ta­xa no­mi­nal pe­la in­fla­ção ao con­su­mi­dor (IPCA). No en­tan­to, a in­fla­ção em­bu­ti­da no va­lor do PIB no­mi­nal, co­nhe­ci­da co­mo de­fla­tor do PIB (DP), tem si­do mui­to di­fe­ren­te da va­ri­a­ção do IPCA. De­pen­den­do da hi­pó­te­se que se fa­ça so­bre a evo­lu­ção no tem­po des­se di­fe­ren­ci­al, po­dem-­se ob­ter tra­je­tó­ri­as to­tal­men­te di­ver­sas pa­ra a re­la­ção D/P, sem que is­so te­nha qual­quer ori­gem na me­lhor ou na pi­or ges­tão da po­lí­ti­ca fis­cal.

E a di­fe­ren­ça, no Bra­sil, en­tre o DP e o IPCA tem si­do mui­to ex­pres­si­va. No pe­río­do 1997-2018, o DP foi 1,28 pon­to por­cen­tu­al ao ano su­pe­ri­or ao IPCA (1,37, se to­mar­mos a me­di­a­na). Quan­do se tra­ta de ava­li­ar a sus­ten­ta­bi­li­da­de da dí­vi­da pro­je­tan­do a tra­je­tó­ria D/P pa­ra o mé­dio e o lon­go pra­zos, es­se di­fe­ren­ci­al tem enor­me im­por­tân­cia. Além dis­so, o PIB apu­ra­do pe­lo IBGE tem so­fri­do sig­ni­fi­ca­ti­vas re­vi­sões, em ge­ral pa­ra ci­ma. Ou se­ja, uma de­ter­mi­na­da re­la­ção D/P, que se mos­trou aci­ma do li­mi­te es­ta­be­le­ci­do e en­se­jou me­di­das cor­re­ti­vas na po­lí­ti­ca fis­cal, po­de não ter ocor­ri­do, o que só se sa­be­rá após a re­vi­são do PIB.

A prin­ci­pal ques­tão con­cei­tu­al é que es­se te­to in­duz po­lí­ti­ca fis­cal pró­cí­cli­ca, ou se­ja, ten­de a pro­vo­car con­tra­ção de des­pe­sas nos pe­río­dos re­ces­si­vos, quan­do a re­cei­ta e o PIB ca­em, e a es­ti­mu­lar a ex­pan­são de gas­tos, nos pe­río­dos de bo­om. Es­sa é uma pro­pri­e­da­de ex­tre­ma­men­te in­de­se­já­vel em re­gras fis­cais.

Ex­ce­len­te tra­ba­lho do FMI, de 2018, de­no­mi­na­do How to Se­lect Fis­cal Ru­les, ar­gu­men­ta que um dos ob­je­ti­vos das re­gras fis­cais é pro­mo­ver a sus­ten­ta­bi­li­da­de da dí­vi­da pú­bli­ca, mas não re­co­men­da me­tas de dí­vi­da pa­ra nor­te­ar a po­lí­ti­ca fis­cal. Após ana­li­sar van­ta­gens e des­van­ta­gens de vá­ri­as pos­sí­veis re­gras fis­cais, é ní­ti­do que a pre­fe­rên­cia é por nor­ma que dis­ci­pli­ne a evo­lu­ção das des­pe­sas, da­do que são mais fá­ceis de se­rem co­mu­ni­ca­das e mo­ni­to­ra­das, per­mi­tem es­ta­bi­li­za­ção ma­cro­e­conô­mi­ca e for­ne­cem cla­ra ori­en­ta­ção ope­ra­ci­o­nal. O te­to de gas­tos vi­gen­te no Bra­sil per­ten­ce a es­sa ca­te­go­ria, em­bo­ra de­va, em bre­ve, ser aper­fei­ço­a­do pa­ra per­du­rar.

11 de dezembro de 2020

RETRATO FIEL DE SAMUEL WAINER!

(Ubiratan Brasil – O Estado de S. Paulo, 09) Samuel Wainer era um homem de compleição física frágil, mas com grande ambição pessoal. Jornalista, morreu em setembro de 1980, vítima de problemas pulmonares resultantes de uma tuberculose mal curada e décadas fumando sem cessar. Mas deixou um dos principais legados da imprensa brasileira, fundando publicações que se tornaram históricas como a revista Diretrizes e o jornal Última Hora. Mais: manteve relações intrincadas com três presidentes da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart), que lhe permitiram participar ativamente da história do Brasil.

Foi um homem que sempre lutou por seus ideais, ainda que conquistados por meios ilícitos – esse é o personagem de Samuel Wainer – O Homem que Estava Lá (Companhia das Letras), biografia de fôlego escrita por Karla Monteiro, desde já um dos principais lançamentos do ano. Para isso, ela entrevistou cerca de 100 pessoas, além de ter analisado milhares de documentos, entre cartas íntimas, negociação de dívidas e as fitas que deram origem ao livro Minha Razão de Viver – Memória de um Repórter (Record), autobiografia em que o jornalista deixou preparada pouco antes de morrer, mas com diversas lacunas.

A polêmica sempre rondou a trajetória de Wainer, desde a data precisa de seu nascimento (1912 ou 1914), até o local: ele sempre sustentou que veio ao mundo em uma rua do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, o que lhe garantia juridicamente o direito de ser dono de um jornal – mas Karla comprovou que Wainer nasceu na Bessarábia (hoje Moldávia), filho de família de judeus.

Determinado em seus objetivos, Wainer ganhou notoriedade nos anos 1940, quando criou a revista Diretrizes, publicação que contava com uma redação estrelada: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz eram apenas alguns dos nomes. Dali, saltou para os Diários Associados, a maior cadeia de comunicações do Brasil de então, comandada por Assis Chateaubriand.

Foi lá que, em 1949, Wainer publicou seu maior furo, uma entrevista com Getúlio Vargas que, desde que fora deposto do poder, em 1945, vivia recolhido em seu sítio, no Rio Grande do Sul. A reportagem (que não foi casual, como se acreditava) anunciou, em primeira mão, o retorno do velho caudilho ao cenário político. Eleito em 1950, Vargas facilitou que Wainer fundasse o jornal Última Hora, que revolucionou a imprensa nacional, desde com um moderno projeto gráfico até a cobertura de esportes e causas sociais. De forte cunho nacionalista e trabalhista, também era o órgão que, de longe, melhor pagava os jornalistas.

A aliança com Vargas foi um dos mais fortes motivos que provocaram o rompimento da amizade de Wainer com Carlos Lacerda que, à frente da Tribuna da Imprensa, tornou-se seu mais ferrenho adversário, questionando, por exemplo, sua nacionalidade e, portanto, a legitimidade de comandar um jornal.

Para Wainer, órgãos de imprensa deveriam apoiar uma causa política, o que o levou a ficar ao lado de Kubitschek e, principalmente, de Jango, até seu último dia como presidente antes de ser deposto pelo golpe militar, em 1964. Opções, aliás, eram constantes em sua trajetória, marcada por enfrentamentos contra inimigos poderosos ao mesmo tempo em que criou intimidade com generais, ministros e empresários, sempre tirando proveito quando possível.

Ao mesmo tempo, revelou-se um notável jornalista, em busca da notícia exclusiva, o que o levou a cobrir, por exemplo, o Julgamento de Nuremberg, entre 1945 e 46, que condenou líderes nazistas, além de conseguir entrevistas exclusivas, como com o marechal Josip Broz Tito, que foi presidente da Iugoslávia entre 1953 e 1980, ano em que morreu.

Além de desembaraçar a intrincada teia política que marca a trajetória de Wainer, Karla Monteiro
se ocupa também de uma não menos agitada vida amorosa. Oficialmente, foram dois casamentos – primeiro com Bluma, que o flagrou com outra mulher na cama. O contra-ataque veio em seguida, quando ela o traiu com seu amigo e cronista Rubem Braga, chegando a abortar.

A outra grande paixão foi com a modelo e jornalista Danuza Leão, com quem teve três filhos. Já a lista extraconjugal foi extensa, com Wainer namorando mulheres bonitas e, em geral, mais novas que ele – como a atriz Joana Fomm. “O Samuel é um Macunaíma. Um Macunaíma judeu, versão semita do Macunaíma”, como afirmou Francisco de Assis Barbosa, que foi repórter da Última Hora, ressaltando o herói sem caráter de Mário de Andrade. Sobre o livro, Karla respondeu, por e-mail, as seguintes perguntas.

O subtítulo da biografia, “O Homem que Estava Lá”, faz lembrar a vinheta da revista “Manchete” (“Aconteceu? Virou Manchete”). Brincadeira à parte, como se explica o agudo senso de oportunidade de Samuel Wainer?

Exatamente: Aconteceu, Virou Manchete. Boa lembrança. Aliás, Samuel Wainer acreditava piamente que o fato só se tornava fato se havia um jornalista para testemunhar – e contar depois. Do contrário, não aconteceu. E também sua carreira indica que sabia bem que o fato depende de quem conta. Isenção? A fake news da imprensa. Agora… como se explica o agudo senso de oportunidade de Samuel Wainer? Acho que pela inteligência realmente aguda, rápida, desprovida de preconceitos. Ele não tinha preconceitos. Tinha metas. E também não tinha piedade. Piedade aqui como sinônimo da moral burguesa, judaico-cristã.

A conflituosa relação política entre Wainer e Carlos Lacerda pode ser comparada ao dualismo político de hoje, entre esquerda de direita?

Num artigo na revista Quatro Cinco Um, o veterano Cláudio Bojunga escreveu que houve um tempo em que bastava mencionar Samuel Wainer e Carlos Lacerda nos bares para identificar a esquerda e a direita na mesa. Os primeiros viam em Lacerda a mistura de Catão e Mccarthy. Conservadores reduziam Samuel a sanguessuga do poder. Dito isto, acho, sim, que é possível traçar diversos paralelos entre o tempo que coube a Samuel Wainer e Carlos Lacerda. E o tempo hoje. Na briga dos dois, está, por exemplo, os meandros, as entrelinhas, as maneiras como as forças se organizam e desorganizam a democracia brasileira. E, sobretudo, escancara o papel da imprensa como força política. Como parte e não fiscal do poder.

O que Wainer mais admirava em Lacerda e o que mais desprezava?

Wainer e Lacerda foram inimigos íntimos, um conhecia muito bem a ambição do outro. Acho que nem Lacerda acreditava que Samuel era um corrupto e nem Samuel acreditava que Lacerda era a encarnação do mal, o “doido do Lavradio”. Arrisco dizer que Samuel admirava a inteligência de Lacerda, mas desprezava sua demagogia – ou hipocrisia de bastião da moral. Como diria Antônio Maria, ninguém segurava a sua alma de tira.

O desmentido sobre o casual encontro entre Wainer e Getúlio Vargas, em 1949, como um dos vários pontos altos do livro. Você alimentava essa suspeita ou se surpreendeu com a descoberta?

Alguns autores, como Lira Neto e Fernando Morais, já haviam levantado a lebre. Mas eu me surpreendi, sim. Lendo a correspondência entre Getúlio e Alzira Vargas, durante os anos em que o ex-ditador estivera “exilado” em São Borja, eu me deparei com a sequência que derruba o mito do furo ao acaso. Então, a história do repórter que foi ao Sul fazer uma reportagem sobre o trigo e voltara com uma entrevista inédita não passava de “pós-verdade”, “fakenews”… Mas aí, analisando mais detidamente o caso, acho essa passagem muito reveladora da personalidade de Wainer. Nunca perdia cavalo celado. Ao sair do Rio no meio do carnaval, sem avisar ninguém, como escreveu Alzira Vargas numa das cartas ao pai, deu a volta. Pegou Getúlio Vargas de toalha, antes que este tivesse sido avisado pela filha da entrevista combinada. E fez uma entrevista espontânea, viva… foi um sucesso absoluto, repercutindo inclusive na imprensa internacional. A melhor parte vem depois, no entanto. Uma das frases mais famosas de Getúlio Vargas, “Eu voltarei, mas não como líder de partidos, e sim como líder das massas”, é de Samuel Wainer.

Até que ponto a alusão feita por Paulo Francis, comparando Wainer a Jay Gatsby, personagem de Scott Fitzgerald, é real?

Paulo Francis acertou na mosca, eu acho. Samuel Wainer é um “Gatsby” brasileiro, de certa forma. Assim como o personagem de F. Scott Fitzgerald, a pobreza extrema o tornou voraz por possibilidades, por se diferenciar, se destacar no meio. Viveu em constante, ininterrupto tumulto, seguindo o instinto em direção ao futuro glorioso. Desde cedo, acreditou que poderia se reinventar no mundo. Poderia ascender, se intrujar nas altas rodas. Acredito, inclusive, que o próprio Samuel Wainer tinha consciência do papel de invasor. Aliás, representava com maestria este papel, como um “Gatsby”: misterioso, sofisticado, charmoso, sedutor, boêmio. Baby Bocaiúva contava que os íntimos brincavam: “filho do trovão com o raio, sem pai nem mãe, capaz das coisas mais terríveis e das mais nobres”. Sobretudo, assim como o Gatsby de Fitzgerald, Samuel nunca comprou a moral burguesa, judaico-cristã, entendedor das sutilezas da moralidade endinheirada. Citando o Francis, viveu “O Deleite do Gatsby”.

10 de dezembro de 2020

DESENVOLVER E PRESERVAR A AMAZÔNIA!

(Claudio Sales e Alexandre Uhlig – O Estado de S. Paulo, 09) A Amazônia é uma região de contrastes. Ao mesmo tempo que possui uma riqueza natural inestimável reconhecida internacionalmente, a região apresenta baixos índices de desenvolvimento socioeconômico. Os mais de 3 milhões de espécies de seres vivos que habitam a maior floresta tropical do mundo convivem com uma população de cerca de 25 milhões de pessoas que possuem PIB per capita equivalente a 70% da média brasileira. Destas, 1 milhão não tem acesso à eletricidade. A tão propalada “riqueza amazônica” é pouco percebida pelos seus habitantes.

Com área de aproximadamente 6 milhões de km2, a Amazônia abrange 9 países sul-americanos. No Brasil, ocupa praticamente metade do território nacional e concentra 80% do volume de água do País. No entanto, os recursos naturais pouco contribuem para a atividade econômica da região: os municípios que compõem a Amazônia Legal são responsáveis por apenas 8% do PIB brasileiro.

Em termos de preservação, cerca de 50% do território amazônico está legalmente protegido em unidades de conservação e terras indígenas. Apesar disso, 20% da floresta nativa já desapareceu. Essa degradação, contudo, não ocorreu como efeito colateral de processos que melhoraram a qualidade de vida da população, pois a região carece de infraestrutura nas áreas de energia, transportes e comunicações.

Diante desta realidade, uma pergunta é inevitável: é possível conciliar preservação ambiental e o desenvolvimento socioeconômico por meio de projetos de infraestrutura na Amazônia?

Com a expansão do agronegócio e a diversidade de investimentos planejados em logística de transporte, energia e mineração, a Amazônia é a fronteira de desenvolvimento no Brasil. Se, por um lado, existem oportunidades de crescimento econômico com efeitos sociais positivos, por outro lado, a dimensão socioambiental pode ser prejudicada caso não sejam adotadas medidas de proteção para evitar processos como perda de habitats, interferências em comunidades indígenas e conflitos agrários.

A resposta para a pergunta, portanto, passa pela construção de um modelo de desenvolvimento sustentável amplo e inclusivo, que valorize a diversidade sociocultural e ecológica e reduza as desigualdades regionais. O modelo deve ser proposto a partir de pesquisa científica e sustentar-se no diálogo e na formação de consensos entre órgãos governamentais, organizações da sociedade civil e setores empresariais. A concepção de ferramentas que permitam o planejamento e a gestão territorial é essencial para que este esforço conjunto surta os efeitos desejados.

Olhando para o setor elétrico, cujo planejamento decenal prevê empreendimentos de geração e transporte de energia elétrica e gás natural na Amazônia, quatro naturezas de ação permitirão que os projetos previstos se tornem vetores de desenvolvimento sem abrir mão da preservação: 1) ações legais – com a aprovação de projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional e que trarão segurança jurídica para empreendedores e a população que vive na região; 2) ações de planejamento territorial – com a incorporação de todos os setores produtivos no Zoneamento Ecológico-econômico; 3) ações de regularização fundiária – envolvendo a demarcação de Terras Indígenas e Unidades de Conservação, além da regularização de terras públicas não destinadas; e 4) ações econômico-financeiras – com o estabelecimento de mecanismos de repartição de benefícios associados a atividades econômicas e à definição de critérios para o pagamento por serviços ambientais.

O equilíbrio necessário para a promoção do desenvolvimento sustentável da Amazônia foi tema do XII Fórum Acende Brasil, que ocorreu em outubro e contou com as visões de investidores, do terceiro setor e do poder público. Seu conteúdo está disponível em https://bit.ly/31aciaj.

Sua degradação não é efeito colateral de processos que melhoraram a qualidade de vida da população.

09 de dezembro de 2020

CRÍTICAS INCONSISTENTES À PEC 45!

(Bernard Appy, Eurico De Santi e Nelson Machado – O Estado de S. Paulo, 08) No período recente foram publicados alguns artigos com críticas à PEC 45, que propõe uma reforma da tributação indireta centrada na substituição de cinco tributos atuais (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Uma característica comum a essas críticas é sua inconsistência técnica, o que sugere que o principal objetivo dos autores é impedir o avanço da reforma tributária, apelando a qualquer argumento, por mais frágil que seja. A análise feita a seguir deixa claro esse ponto.

Um primeiro argumento contra a PEC 45 é de que a adoção de um imposto sobre o consumo com alíquota uniforme estimularia a pejotização, ou seja, a substituição de empregados pela contratação de pequenas empresas prestadoras de serviços – pois nesse modelo a empresa que contratou o PJ teria direito a recuperar o crédito de IBS, o que reduziria seu custo. Tal argumento é totalmente equivocado, pois no IBS só é possível haver crédito (para o contratante) se houver recolhimento do imposto na etapa anterior (pelo PJ), o que significa que é impossível reduzir o montante de imposto devido via pejotização. Ao contrário, o que estimula a pejotização é o sistema atual, no qual um PJ pode recolher Pis-cofins à alíquota de 3,65% e gerar um crédito de 9,25% para o contratante.

Um segundo argumento é de que a cobrança no destino nas operações interestaduais prevista na PEC 45 estimularia a “fraude carrossel” e levaria ao acúmulo de créditos do imposto no Estado de origem. Tal crítica revela completo desconhecimento da PEC 45, pois tais problemas só poderiam ocorrer se o IBS fosse cobrado individualmente por cada Estado e as operações interestaduais estivessem sujeitas à alíquota zero. O modelo proposto da PEC 45, no entanto, prevê arrecadação centralizada e a incidência cheia do imposto nas transações interestaduais, o que inviabiliza a “fraude carrossel” e evita o acúmulo de créditos.

Outro argumento que revela total desconhecimento da PEC 45 é o de que a transição proposta para a distribuição da receita do IBS para os Estados e os municípios levaria a um aumento da carga tributária. O texto é absolutamente claro ao definir que o financiamento da transição se dá entre os próprios entes da Federação, ou seja, aqueles cuja participação no total da receita cresce financiam – temporariamente – aqueles cuja participação diminui. Vale lembrar que, por causa do impacto muito positivo sobre o crescimento da reforma, todos os entes da Federação tendem a ser beneficiados no longo prazo.

Em quarto lugar, argumenta-se que a rápida aprovação da reforma tributária seria injustificável no atual contexto, pois o setor de serviços, já prejudicado pela covid, seria ainda mais afetado pela reforma tributária. Mesmo desconsiderando os estudos que mostram que o setor de serviços tende a ser beneficiado pela reforma, o argumento está incorreto. A principal razão é que a aprovação da PEC 45 não teria qualquer impacto setorial antes de três ou quatro anos (considerando o tempo de implantação e o período de teste). Ou seja, não só não há sobreposição entre os efeitos da pandemia e os da reforma tributária, como o impacto da aprovação da PEC 45 sobre as expectativas e os juros de longo prazo poderia ajudar muito na saída da crise atual.

Por fim, há alguns argumentos contra a PEC 45 que beiram o esdrúxulo. É o caso da afirmação de que a regulamentação do IBS por lei complementar não contemplaria os municípios, pois estes não estão representados no Congresso Nacional por um “Senado municipal”. É o caso, também, do argumento de que não existem estudos sobre o impacto da aprovação da PEC 45, quando o Centro de Cidadania Fiscal colocou à disposição dois estudos estimando esses impactos. O mais estranho é que as pessoas que fazem essa crítica já propuseram mudanças no sistema tributário sem apresentar qualquer estudo sobre o seu impacto.

07 de dezembro de 2020

A LÍNGUA OCULTA!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S. Paulo, 06) Qual foi a principal contribuição da Espanha para a América Latina, quando a descobriu e conquistou? A esta pergunta os crentes respondem a Igreja Católica, Cristo, a verdadeira religião. Os evangélicos, agora tão numerosos no novo continente, embora discordem um pouco, provavelmente acabariam aceitando essa resposta.

Os não crentes, como este que lhes escreve, responderíamos que, sem a menor dúvida, a principal contribuição foi a língua, castelhano ou espanhol, que tomou o lugar das mil e quinhentas (alguns linguistas falam em até quatro ou cinco mil) línguas, dialetos e vocabulários falados na América do Sul por tribos, povos e impérios. Como não se entendiam, viveram muitos séculos dedicados ao hobby de matar uns aos outros.

Muitos índios e um bom número de espanhóis morreram sob espada e pólvora naqueles séculos conturbados, nos quais a Espanha cobriu a América de igrejas, cidades, conventos, universidades e doutrinadores, nos quais milhares de famílias espanholas se estabeleceram nas novas terras, onde deixaram uma vasta descendência. Latino-americanos nos sentimos orgulhosos de sermos herdeiros desses humildes espanhóis, muitos deles analfabetos, vindos de todas as cidadezinhas da península.

O espanhol logo se popularizou em todos os lugares, unificando culturalmente o novo continente de um extremo a outro. Desde então esse idioma – sem que nenhum governo o impusesse, dada a apatia geral de todas as autoridades – tem tido a sorte, por seu dinamismo interno, pela clareza e simplicidade de suas formas e de sua conjugação, bem como por sua vocação de universalidade, de se expandir pelo mundo até ser falado hoje em dia nos cinco continentes, por cerca de seiscentos milhões de pessoas, tendo em um único país, os Estados Unidos da América, onde é a segunda língua mais falada, cerca de cinquenta milhões de falantes.

A língua não é apenas um meio de comunicação; é uma cultura, uma história, uma literatura e algumas crenças e experiências acumuladas, as quais foram permeando as palavras que a compõem e impregnando-as de ideias, imagens, costumes e, claro, conquistas científicas. A implantação do espanhol nos trouxe aos hispano-americanos Grécia e Roma, Cervantes, Shakespeare, Molière, Goethe e Dante, além das instituições que ao longo de sua trajetória criaram a Europa ocidental. Agora são tanto nossas quanto da Espanha. E já não era sem tempo.

O mais importante de tudo são as instituições que determinaram o progresso e a modernidade, bem como a filosofia que permitiu acabar com a escravidão, que definiu a igualdade entre raças e classes, os direitos humanos e, em nossos dias, a luta contra a discriminação contra as mulheres. Em outras palavras, democracia e o apetite de liberdade que a torna possível. Tudo isso e muito mais a América Latina adquiriu ao adotar a língua castelhana.

Sem ela, não se explicariam nem Inca Garcilaso de la Vega nem Sóror Juana Inés de la Cruz. Nem, é claro, Sarmiento, Rubén Darío, Borges, Alfonso Reyes, Octavio Paz, Cortázar, Neruda, César Vallejo, García Márquez e tantos outros grandes poetas e prosadores hispano-americanos que enriqueceram o espanhol.

No entanto, ao contrário do que seria natural, a alegria e o orgulho de um país cujo idioma foi assumindo com o correr dos séculos uma universalidade que só perde para a da língua inglesa – uma vez que o mandarim e o hindi são muito complicados e locais para serem verdadeiras línguas internacionais –, na própria Espanha, terra onde essa língua nasceu e evoluiu para então ganhar o mundo inteiro, como descobriram, entre outros, o grande Dom Ramón Menéndez Pidal e seus discípulos, os independentistas e extremistas têm feito campanha para rebaixá-la e diminuí-la, estreitando seu caminho e tentando (muito ingenuamente, claro) aboli-la ou substituí-la.

Acaba de acontecer mais uma vez, com a nova lei educacional que o atual governo do Partido Socialista e do Podemos aprovou com apenas um voto a mais que o necessário, com o apoio do Bildu, a continuação do ETA, organização terrorista que assassinou quase 900 pessoas e que agora abandonou a luta armada e aderiu à lei. Além, é claro, da Esquerda Republicana, cujos principais dirigentes foram condenados pelos tribunais espanhóis por convocarem um referendo sobre a independência da Catalunha, o que era explicitamente proibido pela Constituição de 1978, atualmente em vigor.

A negociação que possibilitou essa aliança, da qual alguns socialistas discordam, foi muito simples. O governo de Pedro Sánchez precisava aprovar seu projeto de orçamento nas Cortes. Para tanto, o Podemos atraiu os votos do Partido Nacionalista Basco (PNV), do Bildu e da Esquerda, que logo se apressaram em concedê-los, desde que o governo concordasse em modificar a lei, suprimindo o caráter “veicular” do espanhol, especificamente afirmado pela Constituição.

Esta é a razão pela qual o castelhano ou espanhol se tornou, segundo esta lei, uma língua oculta ou clandestina. Quem lê essa lei, chamada de “Lei Celaá” pelo ministro da Educação que a concebeu, surpreende-se que, em um projeto que estabelece as formas de educação em todo o país, o espanhol ou castelhano apareça só de passagem. O espanhol, a língua que nasceu em Castela, quando o país era semiocupado pelos árabes e que se tornou uma língua universal, onde está? É uma língua diminuída, silenciada, preterida pelas línguas locais, faladas pelas minorias.

E um dos ministros do governo teve a audácia de dizer que todo o escândalo que surgiu em torno desse tema teria sido evitado se o espanhol não houvesse “envenenado” o clima escolar da Catalunha, onde algumas escolas, que respeitam as leis, ofereciam as horas de aulas de espanhol que são obrigadas a dar, norma que a maioria das escolas catalãs desrespeita.

A lei estabelece que as aulas de espanhol ou castelhano constituem um direito de todas as pessoas nascidas na Espanha. Em quantas comunidades autônomas bilíngues esta disposição é cumprida? Receio que apenas em uma minoria. Pois, embora pareça impossível, a campanha contra o espanhol na terra onde Cervantes nasceu ainda segue sua marcha. Seria um verdadeiro suicídio se essa idiotice prosperasse, não para o espanhol ou para a língua castelhana, que têm seu futuro mais que garantido no resto do mundo, mas sim para a Espanha, a quem arrancar a língua seria arrancar a alma.

É simplesmente impensável que o país onde nasceram a língua castelhana, Quevedo e Góngora, bem como centenas de escritores que deram prestígio e dimensão universal ao espanhol, seja alvo de uma vitoriosa campanha de discriminação. Ela não pode e não deve prosperar.

Nós, falantes de espanhol, que formamos uma grande maioria no país, precisamos impedir essa tentativa absurda de subestimar e diminuir o espanhol frente às línguas periféricas. Assinemos os manifestos necessários e tomemos as ruas quantas vezes for preciso: o espanhol é a língua da Espanha e ninguém vai enterrá-la.

04 de dezembro de 2020

TAXA DE INVESTIMENTOS BRASILEIRA, EM 16,2%, SEGUE ANÊMICA!

(Érica Fraga – Folha de S.Paulo, 04) Não existe milagre do crescimento sem investimento em máquinas, tecnologia, inovação e expansão de fábricas.

Os países cujas economias se expandiram de forma acelerada nos últimos anos —antes da catástrofe do coronavírus— evidenciam essa antiga constatação da literatura acadêmica.

China, Índia, Vietnã, Irlanda e Botsuana são exemplos de nações que cresceram perto ou acima de 5%, em média, entre 2010 e 2019.

As taxas de investimento desses cinco países —tão diversos entre eles— em relação aos seus PIBs (Produtos Internos Brutos) foram de, respectivamente, 45%, 33,7%, 27,8%, 26,6% e 32,8% nesse período.

No mesmo intervalo de tempo, o Brasil teve expansão econômica pífia de 1,4% ao ano, em média. O resultado não é surpreendente considerando que o país mobilizou investimentos equivalentes a apenas 18,4% do PIB nesse período.

Das cerca de 170 nações para as quais o FMI (Fundo Monetário Internacional) tem dados, o Brasil costuma estar entre os 20 com os níveis mais baixos desse indicador.

A série histórica das contas nacionais brasileiras calculada pelo IBGE com sua metodologia atual começa no início de 1996. Nos 99 trimestres registrados desde então, a taxa de investimentos brasileira atingiu ou ultrapassou 20% em apenas 20 ocasiões. Seu teto em todo esse período foi 21,5%.

Os dados divulgados nesta quinta-feira (3) pelo IBGE mostram que o país saiu com força da crise causada pela pandemia da Covid-19, ainda que tenha frustrado as expectativas do mercado, que esperava um crescimento mais robusto do PIB.

A questão, que explica por que toda a numeralha aqui citada sobre taxa de investimento importa, é: o que esperar daqui para a frente?

Uma combinação entre má gestão da economia e baixo apetite da sociedade brasileira por reformas – que mexeriam em privilégios adquiridos – são a principal causa do desempenho econômico fraco brasileiro.

O temor recorrente em relação a crises fiscais, o ambiente de negócios complexo, a alta carga tributária e a baixa qualidade da educação são alguns dos fatores que explicam porque os investimentos privados não decolam no Brasil.

Houve avanços para evitar o colapso das contas públicas nos últimos anos, como a adoção de um teto para controlar os gastos do governo e mudanças nas regras do regime de aposentadorias.

Mas, até agora, a taxa de investimentos brasileira segue anêmica.

A saída do fundo do poço da pandemia foi suficiente apenas para levar o indicador de volta para 16,2%, exatamente o mesmo patamar baixo do terceiro trimestre de 2019 e de 2018.

A confiança empresarial dependerá de novos passos para resolver os antigos problemas, mas também de medidas para atenuar os novos trazidos pela pandemia.

Há incertezas grandes em relação a ambos.

Não está claro que haja apetite político para avançar em reformas importantes, como a administrativa e a tributária em 2021, quando as atenções em Brasília já estarão voltadas para as eleições do ano seguinte.

Tampouco parece haver segurança, dado o desencontro de declarações oficiais em relação a vacinas, de que o Brasil será um dos países que avançará rapidamente na difícil tarefa de imunizar sua população.

Enquanto isso não ocorrer, a necessidade de distanciamento social e a impossibilidade de renovação do socorro emergencial à população vulnerável, no contexto do elevado desemprego, frearão o consumo.

No contexto da incerteza em relação à crise sanitária, a desigualdade na aprendizagem de crianças e jovens, outro problema antigo do país, se agrava a cada dia.

Sem uma ação política bem coordenada nas frentes de saúde e educação, que aumentem a confiança nas perspectivas futuras do país, dificilmente o motor do investimento —crucial para o crescimento econômico— acelerará.

03 de dezembro de 2020

CARINHO POR D. PEDRO II, NASCIDO HÁ 195 ANOS, É MELANCOLIA SAUDOSA E UTÓPICA!

(Leandro Karnal – O Estado de S. Paulo, 02) Quero aproveitar a data para cumprimentar Vossa Majestade pelo aniversário de 2 de dezembro. Quem diria, o Senhor chegou a 195 anos! Há tanto a comemorar. Pedro II é um nome de referência. Afinal, foi o brasileiro que mais tempo governou o Brasil. O segundo lugar, Getúlio Vargas, tem menos da metade do seu tempo. Tecnicamente, o senhor era rei desde 1831. Na prática, o poder começou em 1840. Não tinha 15 anos e já havia um jogo complexo correndo na Corte.

Sei que seu começo não foi fácil. Impossível se lembrar da sua mãe austríaca: ela faleceu quando o senhor tinha 1 ano. Teria sido uma boa mãe, porque suas parentes, Maria Teresa e Antonieta, criaram os filhos com dedicação. Seu pai? O senhor se despediu dele com pouco mais de 5 anos. As lembranças devem ser nebulosas. O consolo da sua infância foram suas irmãs, Januária e Francisca. Sei que os livros viraram o refúgio para sua timidez.

Até sua madrasta, Dona Amélia, foi uma referência na vida adulta e o senhor a visitou com carinho. Ironia: ela pertencia ao ramo indireto de Napoleão, motivo pelo qual seu avô, o príncipe d. João, fugiu de Portugal.

Uma vez o senhor disse que, se não fosse imperador, teria sido professor. Eu sou professor e já pensei o contrário: tentaria a sorte com a Coroa se não fosse um educador. Um biógrafo seu, José Murilo de Carvalho, falou do choque entre Pedro de Alcântara e Pedro II, entre o homem e o cargo: afinal, não seria esse o drama universal?

Sabemos que a simpática Teresa Cristina não foi o amor da sua vida, todavia foi uma esposa dedicada e mãe zelosa. O senhor amou suas duas filhas e seus netos. Entendo sua paixão por Luísa Margarida de Barros Portugal, a condessa de Barral. Era uma mulher fascinante mesmo. Comparado com seu pai, o senhor foi quase pudico. Acho muito azar perder esposa e amante em período difícil como o exílio. Acho que aquele passeio final em Paris foi quase uma sabotagem derivada da tristeza.

O senhor fez bem em repousar na sua amada Petrópolis. Sei que o calor do Rio o incomodava. O Rio deixou de ser capital e vive um momento complicado. Nem os túmulos estão em paz na antiga Corte.

O senhor desejou paz e prosperidade ao país que o exilou. Morreu com um travesseiro de terra brasileira. São gestos tocantes. O País cresceu muito. No primeiro censo que fizemos, por sua ordem, em 1872, tínhamos 10 milhões de pessoas. Somos mais de 210 milhões hoje. O Brasil era rural e com um índice de analfabetismo enorme. Mulheres? Apenas 13,4% delas sabiam ler e escrever, os homens um pouco mais. Mudou nossa fé: 99,72% da população era católica no ano do primeiro censo. Tanta coisa mudou e continua mudando.

Querido imperador Pedro II: feliz aniversário! O senhor sonhou com um país grande e ele cresceu muito durante a República. Continuamos com problemas enormes, alguns tradicionais, como a questão da participação de negros nesse crescimento. Muitos dos governantes republicanos fizeram seu nome crescer por perspectiva e comparação. Tivemos cada tipo desde Deodoro… Já falei de tempo de governo. Seria bom acrescentar que, provavelmente, com 1m90 (ou 91) o senhor talvez tenha sido nosso maior governante. Getúlio Vargas, que governou mais tempo depois do senhor, tinha 1m63cm. Em vários sentidos, o senhor seria um gigante entre os chefes do Brasil.

Sempre imaginei que, se tivessem a chance profética de analisar a história posterior, alguns republicanos teriam tido mais dúvidas com aquele novembro de 1889. Os positivistas, que tanto o incomodaram, são uma quase fantasmagoria. Nossa bandeira registra um Ordem e Progresso, porém, claro, pouca gente pensa muito nisso. Os vizinhos com os quais guerreamos, notavelmente Paraguai e Argentina, enfrentam seus próprios desafios. O Brasil cresceu pacifista no plano externo.

O senhor foi o único brasileiro educado para governar. Seu interesse pelo Brasil era genuíno. Havia os limites do tempo, aquilo que, hoje, chamamos de “consciência possível”. Sim, a luta contra a escravidão poderia ter sido mais rápida e a condenação das eleições fraudadas, mais incisiva. Houve problemas variados que pareciam enormes naquele momento. Quem resiste ao tribunal da história? No século 21, por interesses políticos, passaram a construir um Segundo Reinado róseo e perfeitamente feliz. É um erro histórico.

Espero que o senhor não tenha ficado ofendido com o plebiscito de 1993. A monarquia ganhou pouco mais de 10% dos votos. Seu nome foi bastante invocado na campanha, mas o momento era outro.

Comparando com o Império, somos mais numerosos, mais alfabetizados, menos católicos e a demografia deslocou-se para o Sudeste. Feliz Aniversário, Majestade! A notícia boa é que ainda nos lembramos do senhor com carinho. A ruim é que esse carinho aumenta ano a ano como uma melancolia saudosa e utópica. É preciso ter alguma esperança no nosso futuro republicano…

02 de dezembro de 2020

CIVILIZAÇÃO MAIA, A MAIS NOTÁVEL!

(Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada – Folha de SP, 02) Após vencerem os astecas, que dominavam o planalto mexicano, os invasores espanhóis se depararam com vestígios de uma cultura muito mais sofisticada, espalhados em Iucatã (sul do México), Guatemala, Honduras, Belize e El Salvador. São monumentos impressionantes em misteriosas cidades perdidas na selva, suas paredes cobertas com símbolos complicados, chamados glifos.

Era o que sobrara da brilhante civilização maia, cujo período de glória teve lugar entre os anos 250 e 900. Os descendentes ainda habitavam a região, mas, como eram empobrecidos e reduzidos a uma agricultura de subsistência, era difícil acreditar que pudessem ter algo a ver com a cultura que erguera tais monumentos.

Os europeus preferiram atribuir a autoria a algum povo desconhecido vindo do Velho Mundo, talvez até as Tribos Perdidas de Israel, e os maias foram esquecidos até a década de 1840, quando os viajantes John Lloyd Stephen e Frederick Catherwood publicaram o magnífico “Incidentes de viagem na América Central, Chiapas e Iucatã”. Repleto de suas observações, traduzidas em ilustrações espetaculares, esse livro foi responsável pela fascinação que os maias passaram a exercer sobre os intelectuais do Ocidente.

Infelizmente, fascinação não acarreta compreensão: os maias passaram diretamente do esquecimento para o mito.

Quando li pela primeira vez sobre eles, ainda prevalecia a ideia de que teriam sido um povo pacífico e contemplativo, voltado à busca dos valores espirituais, liderado por uma casta benevolente de sacerdotes astrônomos-matemáticos regidos pela moderação em todas as coisas, a disciplina, a cooperação, a paciência e o respeito pelo próximo.

Para perceber até que ponto era bobagem, tivemos que decifrar os escritos dos antigos maias, cuja leitura seus próprios descendentes tinham esquecido ao longo dos séculos. Hoje sabemos que, embora os seus avanços em astronomia e matemática tenham sido notáveis, isso não trouxe outra sabedoria: os maias viviam em guerra quase permanente, e suas elites eram particularmente sedentas de sangue e adeptas da tortura.

Stephens não duvidara que os glifos constituíam um sistema completo de escrita e pedira que “um Champolion” (referência ao descobridor da escrita hieroglífica egípcia) aplicasse seu talento para decifrá-los.

Mas esse desafio foi essencialmente ignorado —as principais obras sobre escritas antigas nem sequer o mencionavam— até meados do século 20, quando foi vencido no espaço de duas décadas. Fica para semana que vem.

01 de dezembro de 2020

2020, O ANO QUE NÃO TERMINA!

(Paulo Hartung – O Estado de S. Paulo, 01) Hoje é o primeiro dia do último mês do ano. E o fim não parece próximo. É evidente que no continuum dos dias, dos meses, enfim, da vida compartimentada em calendários, nada nunca termina abruptamente, tudo transborda limites. Mas esta passagem de ano terá ainda menos ares de virada dado o acúmulo de questões a resolver no futuro próximo, em volume e significação inéditos.

Em múltiplos campos, temos questões surgidas ou incrementadas neste 2020 cujas repercussões já pautam atenções, decisões e desfechos nos dias de 2021. Ainda estamos em plena travessia da pandemia do novo coronavírus, pois enquanto não houver vacina disponível não haverá um ponto final possível para esta tragédia humanitária que assola o planeta.

Além de impor reveses dramáticos ao convívio social, a pandemia desligou a economia planetária, com variações de gravidade diretamente proporcionais à capacidade e à racionalidade dos gestores nacionais. Salta aos olhos o desempenho extraordinário de duas mulheres, em nações democráticas, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita em plena pandemia, Jacinda Ardern. Esse fato alentador pode e deve chamar a atenção para a impositiva oxigenação na seara das lideranças, hoje tão esvaziada de boas novidades e carente do vigor de olhares diferentes sobre a existência humana.

A relevância da diversidade e da inovação nessa área aumenta ainda mais quando se tem em conta que, com o almejado efetivo controle da covid-19, o mundo precisará debruçar-se sobre uma verdadeira tarefa de reinvenção, imposta por fatores como a piora das desigualdades socioeconômicas, o terremoto na esfera produtiva, especialmente nos modos de trabalhar e na extinção de atividades, e o empobrecimento das populações, via desemprego e recessão, entre outros.

Mas não é só de repercussões desafiantes deste ano que viverá o próximo. Ainda que dinamizados por deveres de casa árduos e complexos, movimentos promissores se colocaram em 2020 e projetam um ano com alguns toques de relevantes novidades. Ao menos três âmbitos estão com luzes amarelas à frente, tendendo fortemente ao sinal verde, nesta travessia anual: o fortalecimento do multilateralismo, a busca da sustentabilidade no planeta e as vastas experiências da digitalidade.

A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos acena com uma mudança crucial para a vida em bases civilizadas. A caminhada política é cheia de desvios, obstáculos e surpresas, mas com a nova presidência estadunidense ao menos retomamos o rumo da lucidez. Impôs-se um freio de arrumação na marcha da insensatez que estava guiando o planeta para o precipício de nacionalismos radicais, obscurantismos tantos e negação da ciência, a mesma que rapidamente conseguiu sintetizar conhecimentos sobre uma doença desconhecida e em menos de um ano dotou a humanidade de vacinas capazes de nos livrar da maior crise sanitária em um século.

Também ganham energia com esta mudança política o multilateralismo e todos os seus preceitos de democracia, enfraquecendo a onda global de populismo conservador. Da mesma maneira, a preservação do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações se fortalecem com a anunciada decisão norte-americana de voltar ao Acordo de Paris e suas premissas de mitigação das mudanças climáticas. Mas temos de estar atentos ao fato de que continuaremos a testemunhar a disputa de hegemonia entre China e EUA, prejudicial por diminuir o dinamismo econômico mundial, e ainda num cenário de países mais endividados no pós-pandemia.

A remediação da covid-19 via isolamento social, que tantos males tem provocado às relações humanas, acabou incrementando como nunca a migração digital. Educação, trabalho, consumo, medicina, entre tantos outros aspectos da nossa vida, ganharam novos modos de fazer, abrindo-se ainda um universo de oportunidades de acesso a serviços e de melhorias na vida urbana, entre outras.

Mas vale lembrar que esse movimento também ampliou o espaço para verdadeiras pragas, como as fake news e as trevas da intolerância, potencializando o animalesco que habita o humano, cujos instintos só se freiam por limites civilizatórios assumidos como organizadores dos laços sociais. É um desafio sociopolítico investir na apropriação humanística das mais dóceis técnicas jamais inventadas, como salientou o saudoso geógrafo Milton Santos.

Como se vê, ainda que o ano acabe oficialmente na virada de 31 de dezembro para 1.º de janeiro, desafios desta dúzia de meses atormentados ainda ecoarão firmemente no correr dos dias do novo ano. Assim, que sejamos capazes de enfrentar um 2021 com uma certa cara de 2020, com aprendizados, com a esperança da mudança sempre possível e a certeza de que a História não tem destino prescrito. Que sigamos inspirados rumo à experiência das possibilidades e à superação das demandas postas em meio a um tempo trágico, mas que, como toda crise, terá efetivo fim, porta lições, abre caminhos.

30 de novembro de 2020

EQUIDISTÂNCIA POLÍTICA!

(Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale – Folha de SP, 30) Em “O Tempo da Memória: De Senectude e outros escritos autobiográficos”, Norberto Bobbio descreve o ambiente político do pós-Guerra italiano em termos que paradoxalmente remete ao debate atual em nosso país. Bobbio refere-se às críticas que eram feitas a setores da esquerda e de centro, com os quais, então, se identificava, e que se engajaram na resistência ao fascismo, de não manterem equidistância quanto aos extremos políticos.

A acusação era de “termos sido, como anticomunistas, muito brandos e, como antifascistas, muito severos. Em uma única palavra, não sermos equidistantes.” Bobbio reconhece em suas memórias a validade da acusação, mas repudiava algumas de suas extensões, em particular a suposta “simetria entre fascismo e antifascismo”, apontando para a “diferença entre um estado de exceção e um estado de direito”. O antifascismo, argumenta, é um simulacro se a crítica tolera posições autoritárias.

A inteligência europeia do pós-Guerra enfrentou esse debate com grande intensidade na década de 50, quando vieram à tona os crimes de Stálin, o que levou a uma forte ruptura entre os intelectuais que continuaram a apoiar o estalismo e o maoísmo e os que se tornaram críticos.

A França foi o palco privilegiado desse debate, que envolveu Sartre, Aron e Camus, entre outros. Sua recepção na opinião pública qualificada européia e no mundo anglo-saxônico em particular levou à forte desprestígio da intelectualidade francesa, como mostrou Tony Judt em seu magnífico panorama em torno do assunto.

Mutatis mutantis, observamos na América Latina transformação similar após a redemocratização dos anos 80 e 90: a rejeição das ditaduras militares produziu forte reação antiautoritária, mas fora de sintonia com o apoio em muitos setores a governos autoritários “populares”. Cuba converteu-se no equivalente funcional da experiência do estalinismo na região. A dinâmica partidária nas democracias do pós-Guerra até a recente onda populista foi marcada por certa convergência programática centrípeta (mais forte nas democracias majoritárias do que nas consociativas). A irrupção do populismo autoritário quebrou a trajetória: posições extremistas não se deslocam mais ao centro na disputa eleitoral.

O debate em torno de assimetrias e equidistâncias políticas emergiu com força entre nós. Para além da validade empírica da localização de posições no continuum de preferências políticas, o crescente desconforto de setores variados em relação à distribuição de partidos e políticos nas diversa métricas adotadas é benfazejo e deve ser festejado. Ele revela que apoio a regimes autoritários tem custos na disputa política.

27 de novembro de 2020

A INCÔMODA VISITA DA ALTA DOS PREÇOS!

(Míriam Leitão – O Globo, 27) Há uma distância entre o número da inflação oficial e como ela é sentida pelos brasileiros. No meio de uma recessão, com impacto maior sobre os alimentos, com queda da renda e alta do desemprego, ela pesa muito mais do que os 4,22% dos últimos 12 meses do IPCA-15. Hoje, sairá o IGP-M de novembro e pode superar 3%, como no último mês. Os IGPs estão nas alturas, em torno de 25%, por causa dos preços por atacado. A inflação tem natureza e peso diferentes desta vez. Não existe hora boa para a chegada da inflação, mas agora ela é uma visita ainda mais incômoda.

Em ambiente recessivo, os preços não deveriam subir. Mas já aconteceu recentemente. Em 2015 e 2016, quando houve o descongelamento de tarifas de energia, o índice passou de 10%. Agora, de novo, há vários motivos específicos. Uma forte desvalorização do dólar, o aumento das exportações de alimentos, um descompasso dentro da cadeia produtiva e até uma pressão de demanda em plena recessão. O auxílio emergencial produziu um aumento de renda temporário, mas a maior alta de preços bateu exatamente nos alimentos, que são os itens que mais pesam no orçamento das famílias.

O Brasil viveu no começo deste ano uma maxidesvalorização. Em 31 de dezembro a moeda americana estava cotada em R$ 4,03. No dia 14 de maio, o pior momento, havia saltado para R$ 5,93. Alta de 47% em cinco meses. De lá para cá, caiu para R$ 5,32, mas ainda acumula uma valorização de 32% este ano. O real mais fraco tem o efeito econômico positivo de estimular as exportações, mas também representa aumento de custos para diversos setores. A indústria utiliza insumos, peças e máquinas importadas, e até alguns segmentos dos serviços sentem o efeito. Nos transportes, por exemplo, os combustíveis estão atrelados a preços internacionais. Há setores que reajustam preços sem dó nem piedade, independentemente da baixa demanda. Passagens aéreas dispararam 39% em outubro e mais 3,5% em novembro.

Outra razão da inflação deste ano é o forte salto nos preços por atacado. Em grande parte, reflexo da desvalorização cambial. Hoje, o IGP-M de novembro será divulgado e a projeção é de uma nova alta forte, de 3,3%, segundo a LCA Consultores, acima dos 3,23% de outubro. Os preços agropecuários no atacado devem disparar mais 8,63%, com aumentos no milho, trigo e na soja, que são matérias-primas para outros elos da cadeia de produção de alimentos. Os preços industriais também estão subindo, e a estimativa é de alta de 2,48%.

O Banco Central alegou que era um impacto temporário, concentrado nos alimentos, e que vários países do mundo estavam enfrentando o mesmo problema. Mas as histórias são diferentes de país para país, como mostrou o próprio presidente Roberto Campos Neto em apresentação na última semana. Nos EUA, os alimentos subiram mais de 5% na taxa anual, no pior momento da pandemia. Mas no Reino Unido o aumento não chegou a 2%. Entre oito países emergentes comparados pelo BC, o Brasil neste momento é o mais foi afetado pela inflação de alimentos, com elevação acima de 15%. Na China, subiu muito, mas está desacelerando. No Peru, não passou de 3%. A principal explicação é, de novo, a forte desvalorização do real.

As projeções de mercado apontam inflação na meta para este ano e o próximo, mas os números têm sido revistos para cima, semana após semana. Essa mudança de cenário tem sido encarada pelos economistas como um “vento contrário não esperado”. Se as estimativas aumentarem muito, o Banco Central terá que elevar a Selic, e o mercado de juros já tem mostrado um descolamento entre as taxas mais curtas e as mais longas.

Alguns economistas começam a olhar preocupados para essa inflação que nos visita em hora totalmente imprópria. A renda caiu, mas os preços que mais sobem são de produtos que não se pode deixar de comprar, os alimentos. Como várias indústrias fecharam as portas durante a pandemia, está havendo em plena recessão uma falta de insumos dentro da cadeia produtiva. Na reabertura, as empresas estão produzindo menos porque não querem acumular estoques num cenário de incerteza. E isso faz com que qualquer retomada econômica possa alimentar a inflação.

Essa é uma inflação bem diferente dos outros eventos do passado recente. Acontece num contexto difícil para as famílias e para o governo, que está muito mais endividado. Uma visita realmente incômoda.

26 de novembro de 2020

A TRANSIÇÃO!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 25) No fim, as profecias mais pessimistas sobre “o fim da democracia americana”, entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil, não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J. Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo funciona conforme se espera.

O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.

Para falar sobre a transição de Biden, é preciso discorrer sobre os absurdos que testemunhamos desde a coletiva no estacionamento da hoje famosa Four Seasons Total Landscaping. Para quem não se lembra do episódio, ele aconteceu no dia em que Biden foi declarado vencedor pelos principais veículos de notícias. Nesse dia, Rudy Giuliani, advogado de Trump, convocou a imprensa para falar sobre a estratégia jurídica da campanha. Desafortunadamente para ele – para muitos foi uma delícia –, alguém da equipe apontou e acertou no Four Seasons errado. Por força do erro, a entrevista se deu não no sofisticado hotel, mas em um dilapidado estacionamento que fica entre o crematório e a “Ilha da Fantasia”, nome do sex shop ao lado. A Four Seasons Total Landscaping desde então faz sucesso com a venda de camisetas e máscaras protetoras com dizeres variados.

O segundo episódio dentre aqueles absurdos se deu na semana passada, quando um Giuliani de aparência desarranjada suava em frente às câmeras, a tinta do cabelo escorrendo pelas bochechas. A imagem foi menos lúdica do que a do famoso estacionamento, mas, no conjunto, os dois episódios ilustram bem por que o ar grave no trato do resultado das eleições e as sentenças de morte da democracia eram descabidos. O que havia era não um ato ominoso, mas uma chanchada, algo burlesco.

Na segunda-feira, a agência responsável liberou os recursos federais e deu permissão para que a transição se inicie. Mas Biden não está perdendo tempo. Antes mesmo de ser “oficializada” a troca de comando, já tinha se reunido com aqueles que pretendia indicar para os cargos mais importantes. Em pouco mais de um par de dias, anunciou quem seriam os principais assessores da Casa Branca, quem ocuparia a chefia do Departamento de Estado, do Tesouro, da Segurança Nacional, entre outros. Para o Departamento de Estado, escolheu Antony Blinken, diplomata de carreira, tarimbado e experiente tanto em assuntos externos quanto em temas de segurança nacional. O presidente eleito sinaliza, assim, que seu governo retomará as rédeas do multilateralismo achincalhado por Trump e por adeptos da tese do globalismo malvado mundo afora. Tal grupo inclui vários membros de alto escalão do governo Bolsonaro, gurus de seus filhos, além de seus filhos.

Para o Tesouro, Biden chamou Janet Yellen. Yellen foi a primeira mulher a presidir o Fed, durante o governo Obama. Agora ela será a primeira mulher a chefiar o Tesouro. Tive o prazer de conhecê-la e estar com ela em várias ocasiões aqui em Washington, tanto em palestras no Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, quanto em ocasiões mais prosaicas. Yellen era frequentadora assídua de uma cafeteria onde eu costumava almoçar antes da pandemia. Sempre em companhia ilustre, a economista nunca deixou de me cumprimentar. Yellen reúne qualidades únicas: é uma acadêmica de peso, além de uma grande gestora de política econômica. Sua visão sobre os males que afligem os EUA passa por um entendimento sofisticado e abrangente das mazelas estruturais responsáveis pela desigualdade no país. É de alguém como ela que precisamos na futura liderança do Ministério da Economia.

A transição de Biden, ainda que a pandemia esteja se agravando por aqui, tem deixado claro algo que precisa ser internalizado também no Brasil. Os surtos de anomalia aguda, os gravíssimos acidentes históricos representados pela ascensão de Trump e de Bolsonaro, são parte da história. Vêm e vão. O Brasil não está destinado a perecer nas mãos da incompetência, assim como não o estavam os EUA. Tudo muda. Tudo está sempre em transição.

25 de novembro de 2020

A ELEIÇÃO MUNICIPAL RESTAUROU O SISTEMA POLÍTICO!

(Coluna Andrea Jubé – Jornal Valor, 24) “A eleição municipal restaurou o sistema político, o “outsider” perdeu valor no mercado político e o centro institucional saiu consagrado”, disse à coluna o cientista político Nelson Rojas de Carvalho, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Para ele, este resultado reduz as chances de “players” de fora da política cotados para a sucessão presidencial, como Sergio Moro e Luciano Huck.

O pesquisador aponta a derrota da “nova política” neste pleito, mas, não a do presidente Jair Bolsonaro como cabo eleitoral. Isso porque a eleição municipal não tem determinantes nacionais, mas, sim, consequências no plano nacional.

“A eleição municipal tem uma dinâmica local que gera efeitos nacionais”, argumenta o autor de “E no início eram as bases – Geografia política do voto e comportamento legislativo no Brasil”.

Ele aponta dois efeitos principais do pleito municipal no âmbito nacional: uma configuração mais sólida do quadro sucessório, e a composição de forças no Congresso Nacional na próxima legislatura.

O primeiro efeito do pleito municipal na sucessão presidencial, na visão de Nelson Rojas, é a fragmentação das forças de centro-direita, que tendem a avançar separadamente após o resultado deste ano.

Para o pesquisador, o desempenho do DEM, principalmente nas capitais, levará o partido a lançar candidatura própria em 2022. “O partido não aceitará ser vice do PSDB de novo”.

Um dos nomes colocados é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Correm por fora o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

No primeiro turno, o DEM reelegeu Rafael Greca, em Curitiba; Gean Loureiro, em Florianópolis; elegeu Bruno Reis em Salvador; e avança rumo à vitória de Eduardo Paes, que deverá governar o Rio de Janeiro pela terceira vez.

De igual forma, se o PSDB reeleger o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, não terá por que renunciar à cabeça de chapa na disputa presidencial em 2022. O nome mais provável é o do governador João Doria, embora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também seja cotado para a empreitada.

Mas se Covas for à lona, abatido pelo ativista Guilherme Boulos (PSOL), “o PSDB se perde”, e ficará difícil encabeçar a chapa, diz Nelson. Em especial, após o desempenho de Geraldo Alckmin em 2018, que obteve 4,7% dos votos válidos.

No espectro da esquerda, o pesquisador vê Ciro Gomes (PDT), ou um candidato apoiado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais competitivos numa conjuntura de crise econômica, em um paralelo com a Argentina, onde a derrocada levou à vitória de Alberto Fernández.

“Se a economia chegar em 2022 em um diapasão tolerável”, as chances aumentam para a centro-direita”, diz o professor, que foi colunista convidado do Valor.

O segundo reflexo das eleições municipais na conjuntura nacional, segundo Nelson Rojas, vai se consumar na eleição dos deputados federais e senadores para a legislatura de 2023-2026.

Ele afirma que a nova correlação de forças que emerge da eleição municipal vai se refletir na composição do novo Congresso, e os partidos que elegeram mais prefeitos serão hegemônicos no Legislativo. As seis siglas que mais conquistaram ou preservaram prefeituras foram MDB, PP, PSD, PSDB, DEM e PL, todos representantes do centro político.

Nelson discorda da interpretação de que o primeiro turno das eleições municipais foi um “plebiscito” sobre o governo Bolsonaro. Ele acha equivocado atribuir o mau desempenho do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), ao apoio de Bolsonaro. O presidente perdeu, na sua visão, ao não conseguir organizar o seu partido, e com ele, ocupar espaço no pleito municipal.

24 de novembro de 2020

INSEGURANÇA INFLACIONÁRIA!

(O Estado de S. Paulo, 24) Pesadelo da maior parte das famílias, a inflação estimada para o ano subiu pela 15.ª semana consecutiva, segundo a pesquisa Focus, uma consulta feita pelo Banco Central (BC) junto a cerca de cem instituições do mercado financeiro. Em um mês a mediana das projeções para 2020 subiu de 2,99% para 3,45%. No mesmo intervalo a alta de preços calculada para o próximo ano passou de 3,10% para 3,40%. São más notícias para os consumidores, especialmente num período de pouco emprego, renda baixa e muita insegurança. Mas o quadro inclui pelo menos um aspecto positivo, ou menos sombrio. Se as expectativas se confirmarem, a inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), continuará abaixo da meta, de 4% neste ano e de 3,75% em 2021.

Com a inflação abaixo da meta, a taxa básica de juros, a Selic, deve ficar em 2% até o fim do ano, segundo a pesquisa Focus divulgada ontem. O superendividado Tesouro Nacional encerrará 2020 carregando juros excepcionalmente baixos. Para o fim de 2021 a projeção indica, no entanto, uma taxa de 3%, 0,25 ponto superior àquela estimada quatro semanas antes.

Essa projeção pode parecer estranha, à primeira vista. No Brasil, como na maior parte do mundo, os dirigentes dos bancos centrais têmse mostrado dispostos a manter a política de juros baixos e crédito fácil por muito tempo, para dar espaço à recuperação dos negócios e do emprego.

No caso brasileiro, a orientação será mantida, segundo a autoridade monetária, enquanto duas condições forem observadas: 1) a expectativa de inflação deve permanecer compatível com a meta; 2) o Executivo deve manter o compromisso de condução responsável das contas públicas.

Deste compromisso dependerá a evolução da dívida bruta.

Dúvidas sobre o compromisso com a responsabilidade fiscal continuam marcando o dia a dia do mercado. As preocupações aparecem na oscilação dos juros e, de modo mais sensível, na instabilidade cambial. O dólar tem estado mais barato do que até recentemente, mas sem sinal de acomodação. A cotação da moeda americana caiu, na manhã de ontem, mas em seguida subiu, depois de uma fala do ministro da Economia, Paulo Guedes. A fala, segundo fontes do setor financeiro, decepcionou quem esperava alguma indicação positiva sobre as condições fiscais em 2021.

A cobrança de sinais mais claros sobre a condução das finanças públicas tem sido feita, de modo muito diplomático, também pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. Executivos do mercado financeiro também têm mostrado inquietação diante do cenário fiscal obscuro. O Orçamento federal do próximo ano continuava indefinido ontem. Não se sabia se a programação financeira do poder central para 2021 estará mais clara no fim de novembro.

A incerteza sobre as contas públicas pode afetar perigosamente as expectativas de inflação. A instabilidade cambial é uma das formas de transmissão da insegurança para os preços.

O efeito inflacionário da alta do dólar tem sido facilmente observado. Mas o desajuste das contas fiscais pode afetar os preços de forma ainda mais desastrosa.

Um amplo desarranjo das finanças oficiais pode produzir, nos casos mais graves, a chamada dominância fiscal. Quando isso ocorre, o aperto da política monetária pelo BC deixa de funcionar como remédio para a inflação. Pior que isso: produz o efeito contrário.

Uma elevação de juros pode normalmente gerar duas consequências, a contenção de preços e o encarecimento da dívida pública. Em situações de dominância fiscal, a desconfiança crescente em relação à dívida afeta o fluxo de recursos, mexe no câmbio e realimenta a inflação. O aperto monetário deixa de funcionar como instrumento de ajuste e se converte em fator inflacionário, gerando uma situação descrita por alguns economistas como o pior dos mundos. Não há, até agora, dominância fiscal no Brasil. Mas sobram razões para o governo se comprometer claramente com a seriedade fiscal e com o controle da dívida, deixando em segundo plano os objetivos pessoais do presidente da República.

23 de novembro de 2020

DESEMPENHO DA ESQUERDA NAS GRANDES CIDADES NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS!

(Arko) Apesar de a ida de Guilherme Boulos (Psol) para o segundo turno em São Paulo (SP) ser uma vitória política para seu partido, e de as esquerdas retornarem em segundo turno em Porto Alegre após oito anos, com Manuela D’Ávila (PCdoB), o campo progressista não venceu nenhuma eleição em primeiro turno nas capitais.

No segundo turno, as esquerdas estarão presentes em oito disputas. Em Rio Branco e Recife, com o PSB. Em Aracaju e Fortaleza, com o PDT. O PT disputa em Recife e Vitória. O Psol, em São Paulo e Belém. E o PCdoB, em Porto Alegre.

Como PSB e PT se enfrentam em Recife, essa é uma conquista certa para as esquerdas. As demais são possibilidades. A tendência é que o PSB, com exceção de Recife, não vença em nenhuma outra capital. O PDT é o favorito em Aracaju e Fortaleza. O PT tende a ser derrotado em Recife e Vitória. O PCdoB enfrenta uma eleição muito difícil em Porto Alegre. E o Psol é o favorito em Belém, mas está em desvantagem em São Paulo.

Ou seja, no cenário mais otimista, as esquerdas conquistarão quatro capitais. E, no mais pessimista, terão apenas uma vitória. Mesmo que as esquerdas conquistem essas quatro capitais, esse será o seu pior desempenho desde 1988. Até então, o pior resultado havia sido em 2016, quando elas venceram em oito capitais.

Apesar desse revés, alguns nomes da chamada nova geração conseguiram ser projetados. É o caso de João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT), no Recife; Guilherme Boulos (Psol), em São Paulo; e Manuela D’Ávila (PCdoB), em Porto Alegre.

No entanto, o pior resultado das esquerdas em capitais desde a redemocratização deve provocar uma reavaliação de suas estratégias. No Rio de Janeiro, por exemplo, reduto do bolsonarismo, a divisão das esquerdas acabou levando seu candidato mais competitivo – Marcelo Freixo (psol) – a desistir de concorrer. Fragmentada em quatro nomes – Benedita da Silva (PT), Martha Rocha (PDT), Bandeira de Melo (Rede) e Renata Souza (Psol) –, a esquerda assistirá ao segundo turno entre Paes x Crivella.

Nas outras cidades com mais de 200 mil eleitores, apenas PDT e PSB venceram em primeiro turno. O PT disputa o segundo turno em 13 cidades, podendo vencer em seis. O PDT disputa o segundo turno em duas cidades e pode vencer em uma. E o PSB está no segundo turno em seis e pode vencer em três.

Se tudo der certo para a esquerda no segundo turno, ela faria 20 prefeitos nas capitais e no chamado G-96 (grupo que reúne as capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores). Esse desempenho seria apenas um pouco melhor do que o apresentado em 2016, quando esses partidos somaram apenas 13 prefeituras. Ou seja, as esquerdas caminham para apresentar, novamente, um desempenho ruim nas grandes cidades.”

19 de novembro de 2020

PROJEÇÃO DE CENÁRIOS POLÍTICOS NUM QUADRO DE INCERTEZA: O CONCEITO DE PRÉ-MORTEM!

1. Pré-Mortem é um conceito que se aplica inteiramente numa conjuntura política de incertezas como a atual. Foi apresentado no livro Freakonomics. Poderia ser aplicado em decisões sobre fusões de partidos, campanhas políticas com alto grau de incerteza, decisão anteciapada sobre apoio ou oposição a governos…

2. Pré- Mortem é um conceito desenvolvido pelo psicólogo Gary Klein. A ideia é simples. Muitas instituições –há anos- já procedem a um post-mortem de projetos fracassados, na esperança de descobrir o que matou o paciente, e o que fazer.

3. O Pré-Mortem tenta descobrir o que poderia dar errado antes que seja tarde demais ou mesmo antes que a decisão seja tomada. São reunidas todas as pessoas ligadas a um projeto, para que tentem imaginar que ele foi lançado e fracassou terrivelmente. Em seguida, cada uma delas analisa por escrito os motivos exatos do fracasso.

4. Klein constatou que o Pré-Morten contribui para revelar falhas ou dúvidas sobre um projeto de que ninguém estava disposto a falar.  E se necessário se deve garantir no Pré-Mortem algo eficaz: garantir o anonimato.