25 de janeiro de 2021

MILÍCIAS: UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA – PARTE III!

(Luiz Eduardo Soares, Antropólogo e cientista político – Insight Inteligência)

Prioridades do Estado

É possível o Estado controlar as milícias? Bem, até agora o estado não foi capaz, nem se dispôs a fazê-lo. E mais: a agenda pública não impôs aos tripulantes do Estado, que são os governos, a definição do combate às milícias como prioridade. Há um exemplo anedótico que é bem expressivo disso. Eu estava em São Paulo em 2010, o filme “Tropa de elite 2” tinha feito um grande sucesso. Quem o assistiu sabe que o foco são as milícias. Subitamente aquilo ganhou uma projeção muito grande e uma projeção negativa para as milícias. Eu estava em um seminário em São Paulo e recebo um telefonema do Zé Padilha, diretor do “Tropa” dizendo: “Luiz você viu o que aconteceu? Tão fazendo ‘Tropa 3’”. “Que isso, Zé, como assim? Quem tá fazendo?” Era o início da invasão do Alemão, filmada em tempo real como se fosse efetivamente dramaturgia, ao vivo e em cores, com narradores no local e com cobertura em tempo real e as emoções todas. E qual foi o enquadramento midiático e político conferido àquela intervenção? De um lado o bem, do outro, o mal. Quem fazia o papel do mal? Eram os traficantes lá do Alemão, que fugiam pelo alto, sandália de dedo ou descalços, sem camisa, carregando algum fuzil. Esses eram a personificação do mal. Do outro lado, o Estado brasileiro, as Forças Armadas e as polícias representando o bem.

A questão das milícias, que é demanda das polícias, foi para o espaço, e a agenda sofreu uma reflexão imediata. Ora, aquilo tudo se deu com essa intenção? Não, claro que não. Mas esse foi um dos resultados. Quando naquele momento parecia que nós trazíamos para o centro da agenda a questão miliciana, surge uma situação que desloca de novo o tema, e nós retornamos à velha polaridade polícia vs. tráfico, que é um engano, um engodo total, porque não há tráfico sem polícia, e o problema nosso é justamente a degradação das ações policiais, o que não significa uma acusação aos policiais e seu conjunto, ou as instituições em que há milhares deles que pagam um preço altíssimo e são honestos e honrados, arriscando a sua própria vida com salários indignos tantas vezes.

Vamos reunir o que há de vivo, de inteligente, nas polícias, fora dela e na sociedade para pensar passo a passo. As milícias não terão mais sossego e as polícias vão começar de novo. Como é que nós começamos de novo? Há muitas propostas, mas isso se resolve daqui há 2 anos? Não. Mas em algum momento tem de ser iniciada essa transformação.

Existe ainda outro ponto a ser destacado. São Paulo assistiu a um declínio espantoso dos homicídios, e o governo nadou de braçada e se apresentava jubiloso em triunfo, como responsável por domar a criminalidade sobretudo letal etc. E nós sabemos, pois as pesquisas são fartas nesse sentido, que depois daquela crise de 2006 o PCC, que detém o controle monopolista, não pleno, não é monopólio absoluto pleno, mas lidera o universo criminal em São Paulo, embora com muita flexibilidade de centralização, mas lidera.

O PCC, que tem uma cabeça muito mais empresarial do que a dos líderes do tráfico no Rio de Janeiro, decidiu que não se mataria mais, a não ser a partir de autorização da cúpula por mediações burocráticas específicas, a partir de critérios definidos de uma maneira sólida e consistente. Claro que há falhas e decisões que se impõem e que são perdoadas ou toleradas, mas se constituiu um mecanismo interno de controle porque não interessa criar essa violência e chamar a atenção da sociedade e acabar jogando a pressão da sociedade e das polícias contra os negócios.

Isso não ajuda os negócios do crime. Então houve um refluxo, e isso foi a principal razão da queda do número de homicídios no Brasil. Houve um plano nacional, uma queda entre… não me lembro se 2015 ou 2016 até 2017.Houve dois ou três anos de queda, que se deveu também a reajustes no mundo criminal. Nós não sabemos exatamente, isso requer mais pesquisas, mas essa é uma hipótese forte, associada à mudança no perfil demográfico e algumas outras variáveis possíveis.

Zonas de simbiose e atrito entre milícias e polícias

Na Zona Oeste da cidade do Rio, o crescimento das milícias importou em menos mortes, como observo num artigo que escrevi há muitos anos sobre o que é segurança pública. A gente fala muito disso, mas poucas vezes se define efetivamente. Eu definia como estabilização de expectativas favoráveis relativamente à cooperação social, estabilização de expectativas e sua generalização. Estabilização favorável à cooperação, e eu procurava justificar com base lá nos argumentos que vêm do século XVII, da filosofia política, mostrando que simplesmente não há alternativa de entendimento, porque, se nós definimos segurança com ausência de crime, nós teríamos que reconhecer que os totalitarismos então é que garantem segurança pública, e nós não podemos confundir segurança pública com a paz nos cemitérios, com o império do medo e da coerção.

Segurança pública só pode ser um tema plausível no estado democrático de direito, senão nós podemos trocar a morte e o crime pela operação brutal do Estado. Nesse sentido, essa queda de crimes da Zona Oeste não representa um aumento da segurança pública no Rio de Janeiro. Não pode ser assim definida, pois quando o governador afastado Wilson Witzel dizia que houve uma queda no número de crimes no Rio de Janeiro, eu lhe perguntava se ele estava computando entre os crimes – ele se referia aos roubos –, se ele estava computando entre os roubos as apropriações indébitas operadas cotidianamente pelas milícias em todo o estado.

Como a polícia se beneficia da milícia enquanto corporação? Sem dúvida, dessa forma há um resultado que interessa sobretudo aos comandantes e àqueles que se beneficiam com premiações ou algum reconhecimento institucional, que provém da redução de casos, mas o que há muito é o benefício na direção contrária. As milícias se beneficiam das polícias apontando áreas que devem ser objetos de incursões, para eliminação de competidores, para liquidação eventual de traficantes e depois a subordinação dos sobreviventes. São cooptados para tarefas terceirizadas do tráfico, para ameaças, para armamento etc. As polícias abastecem e fornecem instrumentos e mecanismos para as milícias. E esses acordos vão tomando conta e degradando a instituição.

Quais as zonas de simbiose e de atrito entre polícias e milícias? Essa é a última questão e talvez a decisiva e mais difícil. Zonas de simbiose são aquelas de cooperação. A cooperação pode se dar por benefício ou por redução de dano. Benefício quando há um escambo, uma distribuição do butim; há uma partilha do que é fruto do esbulho, a partir dessas operações criminosas todas, sistemáticas. Isso acontece frequentemente, e a redução de danos se dá quando a alternativa é pior. Por exemplo, como um policial poderia se dedicar a combater seus colegas milicianos se sabe que eles não têm limites, são violentos, assassinos e conhecem o seu endereço? A sobrevivência, a paz, a tranquilidade é um benefício nesse caso diante de tantos riscos que se apresentam aos policiais.

O atrito se dá com uma contraface da redução de danos, de ameaça patente. E também o atrito se dá quando existe confronto efetivamente nos setores que resolvem enfrentar problema. Cláudio Ferraz, o delegado titular da DRACO, que foi campeão em prisões de milicianos até pouco tempo atrás, acho que até hoje, ele não citava, mas ainda conta com segurança, carros de segurança etc. O Marcelo Freixo só anda assim também. Há um preço alto a pagar. Eu mesmo tive que sair do país, de passar anos fora do Rio de Janeiro, também no período de enfrentamento. Os atritos são constantes.

Eleições 2020 e sensação de cerco

Quanto ao papel das milícias nas eleições de 2020, eu diria que há um movimento robusto em andamento e com muito sucesso. Não vou citar nomes aqui, evidentemente, mas na Baixada Fluminense é ostensivo; e aqui no Rio de Janeiro, quem conhece os sobrenomes e conhece as histórias sabe a quantidade de candidatos que representam as milícias direta e indiretamente, cada vez mais, e ocupando cargos importantes que lhes facultam acesso às informações, que são ferramentas de poder e de influência muito significativas.

Isso lhes aumenta o poder de chantagem, que não é nada de soft power, não é o poder suave, é um poder que pode se tornar cruento e brutal; de tal modo que podemos imaginar uma pessoa paranoica hoje no Rio de Janeiro, se ela trabalha nessa área e pensa sobre isso e é militante de direitos humanos. Ela, usando a razão com absoluta lucidez, sente-se definitivamente ameaçada. Entendo como justificado que pessoas se sintam sob cerco. Em artigo publicado na revista Piauí de setembro deste ano, eu dizia que vivo numa cidade sitiada, em um estado sob cerco. E o que impede o assassinato?

Nós diríamos que a visibilidade e os custos que o crime implica. E a Marielle? O motorista Anderson acabou morrendo tragicamente nessa situação, mas ela tinha toda a visibilidade, e isso não foi o bastante para protegê-la. No processo eleitoral passado, houve quem quebrasse a sua placa em público, no palanque em que estava o futuro governador do estado do Rio de Janeiro. Isso significa o segundo assassinato de Marielle. Escrevi sobre isso no meu livro “Desmilitarizar”, publicado em 2019. Chamei o ato de segundo assassinato de Marielle, porque era uma profanação.

Nós sabemos, os gregos nos ensinaram isso, que a verdadeira morte é o esquecimento. Não há pior condenação do que o esquecimento; ou seja, não há pior sentença do que a proibição de sepultamento; daí, na tragédia de Sófocles, toda a dedicação de Antígona para enterrar o irmão. Sepultar significa dar-lhe destino e constituir ali um marco que vai impedir a amnésia, vai lhe dar vida eterna em algum sentido na memória das gerações subsequentes, das gerações futuras. Quando se quebra a placa que é uma alusão à memória, que é a consagração da memória; quando se quebra o nome ao meio, e assim o símbolo mesmo da permanência, isso constitui uma profanação; mata-se pela segunda vez, porque se condena ao esquecimento simbolicamente. Evidente que isso não logrará êxito, ela não será esquecida, mas era esse propósito.

Mas isso é apenas o eco da homenagem a um torturador, violador, assassino, o Brilhante Ustra, por parte do presidente da República. Então, se o discurso e a postura são esses, como nós podemos imaginar que autoridades e lideranças se comovam sequer com ameaça à democracia e à civilidade, com o ataque à Constituição, se eles são perpetradores, profanadores. Dessa forma, nós não temos, de um lado, as instituições e, de outro, o crime. Essa é a nossa tragédia.

Desmilitarização da polícia, um caminho?

O tema da desmilitarização me é muito caro, e dediquei ao assunto um livro em 2019, cujo título é “Desmilitarizar”. Isso não é uma panaceia. Mas observem que nós temos nas milícias tanto policiais militares quanto policiais civis. A brutalidade policial letal não é um monopólio militar, nós encontramos envolvimento também de policiais civis. Aliás, me parece um contrassenso, até do ponto de vista constitucional, manter unidades bélicas ou protobélicas, unidades de ação de combate, como o Acori, que é um fac-símile do BOPE na Polícia Civil. Então quando nós discutimos a desmilitarização, nós não podemos nos iludir. Entendo que isso é imprescindível de resolver, mas está longe de solucionar nosso problema. É um passo necessário entre muitos outros.

Propus contribuir para a elaboração de uma Proposta de Emenda Constitucional, que foi apresentada pelo então senador Lindbergh Faria ao Senado Federal, em 2013, a PEC 51, em que nós elencamos um conjunto de medidas que funcionariam como uma verdadeira refundação das polícias brasileiras. Isso tudo realizado com pleno respeito aos direitos adquiridos dos trabalhadores policiais etc. Felizmente, um movimento importante, embora diminuto numericamente, dos policiais antifascismo tem na PEC 51 uma de suas principais bandeiras.

Hoje há pelo menos um discurso, uma proposta sobre a mesa para ser discutida para quem considere necessário refundar as nossas instituições na área de segurança. A PEC 51 envolve a desmilitarização como um dos pontos fundamentais. Quem tiver interesse, sugiro dar uma olhada no livro “Desmilitarizar” ou no meu site, no qual há muitas matérias e artigos meus, entrevistas em vídeo, áudio sobre desmilitarização e temas análogos. O site tem o meu nome: luizeduardosoares.com.

Eleições de 2020

Quanto às eleições de 2020, se serão as mais milicianas de todas? É muito difícil saber, pois teríamos de ter a ficha corrida de todos os candidatos dos pleitos anteriores para ter uma ideia precisa. Eu sinto que há esse avanço do milicianato, pelas razões todas elencadas, e seria natural. Essa é uma hipótese apenas, de que tivéssemos mais ambições políticas por parte de milicianos agora do que anteriormente.

Imagine só uma figura como esse rapaz, o Adriano da Nóbrega, miliciano e ex-capitão do BOPE do Rio de Janeiro, que foi morto pela polícia na Bahia. Ele era procurado pela polícia, foi membro do escritório do crime, um grupo de pistoleiros a soldo, herdeiros da velha tradição dos esquadrões da morte. Nesse caso, sem nenhuma pretensão de se venderem como justiceiros, eles eram efetivamente pistoleiros a soldo. Ele trabalhou para um e outro bicheiro, envolveu-se em confrontos entre máfias e estava ligado ao escritório do crime, do qual participavam outras figuras. E o que ele recebeu das mais elevadas autoridades da República no passado, quando já acusado de assassinato? Aliás, era uma das acusações na Cidade de Deus ao lado do Queiroz, outra figura conhecida. Esse rapaz, o Adriano, recebeu condecorações, espaços de reconhecimento; então vejam, como a situação é mesmo calamitosa.

Corregedoria

Já acerca dos policiais corretos e sobre corregedoria, infelizmente a Corregedoria não funciona. E isso é histórico em todas as polícias, umas mais e outras menos. Mas como a influência do corporativismo é muito grande, nem o Ministério Público atua, quanto mais os controles internos. Não se pode generalizar porque há esforços aqui e ali, mas o controle interno numa instituição que está atravessada por atritos dessa monta não pode funcionar.

Eu criei, quando estive no governo, a Ouvidoria da Polícia. Nós tivemos uma pessoa maravilhosa, corajosa e de grande dignidade, a juíza Julita Lemgruber, como a nossa ouvidora. Mas essa atividade acabou desativada. Nós tínhamos, entre vários inimigos que combatemos naquele tempo, dois que se tornaram protagonistas de tragédias posteriores. Uma dessas figuras que nós combatemos se chama Ronnie Lessa, que hoje está preso, acusado de ter sido o assassino de Marielle e Anderson. O outro é o tenente coronel Claudio Luiz Oliveira, que está preso pelo assassinato da Juíza Patrícia Acioli em 2011. Os dois faziam parte da equipe que atuava em um batalhão, conhecido por “batalhão da morte”. Nós enfrentamos, com todas as denúncias em mãos, mobilizando instituições, e aquilo nos tomou parte das nossas vidas. Mas acabamos derrotados, e eu tive que fugir do país. Eles venceram: um assassino de Marielle e outro assassino da juíza Patrícia Acioli.

As condições de trabalho da PM

Mas, sobre policiais corretos, que são milhares, e para vocês terem uma ideia do que eles sofrem e passam, porque estamos aqui falando desses horrores todos, e não estamos demonstrando nenhuma empatia com os trabalhadores cidadãos policiais, e pelo seu padecimento. Eles são vítimas também, milhares e milhares deles. Uma promotora muito corajosa, honrada no Rio de Janeiro, resolveu apresentar um TAC ao governo do estado há poucos anos. TAC é um termo de ajuste de conduta, um instrumento legal, cuja utilização eu defendia ao longo de anos em palestras no Brasil inteiro para membros do Ministério Público, como uma ferramenta a ser aplicada, porque ações penais acabam embaraçadas pela política e condenadas a postergações sucessivas, enquanto o TAC é mais ágil, é um termo de ajuste, propõe correções a partir de diagnósticos, mobiliza a sociedade em instâncias independentes para acompanhar as correções, negocia e oferece alternativas e possibilidades de reajustes etc.

Então essa promotora ousou em elaborar um TAC, ouvindo as denúncias de policiais contra as suas próprias instituições, particularmente a Polícia Militar, e montou a versão do seu relatório final dizendo o seguinte: “Visitei policiais militares nas UPPs A, B, C, D, e os encontrei trabalhando em condições análogas à escravidão. Eles estavam em contêineres a 50 graus à sombra, e os equipamentos de ar refrigerado evidentemente não funcionavam, sem manutenção, sem energia. Não tinham banheiros, fazendo as necessidades no mato, sem água e sem alimentação, tendo de contar com a boa vontade das biroscas e da comunidade, se sentindo absolutamente vulneráveis com coletes à prova de bala vencidos, sem treinamento e, o pior, trabalhando em condições em regimes de tempo, em jornadas que ultrapassavam inclusive aquelas previstas para momentos absolutamente excepcionais e críticos”.

Quando ela preparou essa primeira versão do relatório, me pediu que levasse alguns oficiais da PM para uma conversa informal. Eram três coronéis amigos, grandes figuras que lutam até hoje, mas que já estão fora da corporação. Eles leram comigo essa primeira versão e, quando se depararam com esse parágrafo, eles se entreolharam, nos olharam e perguntaram: “Vocês sabem por que isso acontece? Porque eles são militares. Se eles fossem civis, jamais admitiriam esse nível de exploração, de espoliação, porque eles disporiam, senão de sindicatos, mas de organizações, de associações, a justiça trabalhista interviria. Porque isso é absolutamente desumano, mas eles não podem hesitar, eles não podem dizer um ai, não podem questionar, muito menos descumprir a ordem, sob pena de prisão administrativa, sem direito à defesa, sob pena de mácula em sua carreira, irremovível e indelével”. Esse é o quadro do tratamento dos policiais da base. O que nós podemos esperar?

Incertezas quanto ao porvir

Não basta impedir a eleição dos milicianos. É preciso muito mais do que isso, porque eles não chegaram aonde estão por eles próprios. Aliás, é curioso que estou usando o masculino, mas aqui de propósito, porque só há miliciano homem. Há uma questão da violência com o patriarcalismo, machista, falocêntrico, e há uma questão das milícias com esses exercícios despóticos de poder com masculinidade, objeto de uma indagação à parte muito importante. Mas enfim, os milicianos não chegaram onde estão por eles próprios. Eles dependeram da anuência de tantas e tantas cumplicidades, de tantos apoios, de tanta pusilanimidade, com tanta covardia e tanta corrupção, no sentido mais amplo da palavra, não naquele sentido menor e falta de compromisso democrático institucional, falta de capacidade de definir agendas com base em prioridades e urgências, e isso tudo remete de volta à sociedade, que não impôs isso aos seus representantes.

Então vamos lá: primeiro ponto, estamos cientes que lidamos com uma questão vital para a história do Brasil, a democracia brasileira, que não é uma questão de segurança pública apenas, é uma questão multidimensional. Foram feitas alusões genealógicas a circunstâncias de décadas anteriores, da natureza da nossa transição, a segurança privada, o modo de estruturação de organização das polícias que nós herdamos da ditadura e nunca reformamos, nunca atualizamos, independentemente dos governos que tivemos. Falamos do racismo estrutural e das desigualdades, do capitalismo autoritário sem os quais não haveria endosso, apoio à brutalidade policial que foi alimento e instrumento, mecanismo que proporcionou a autonomização desses nichos criminosos que acabaram redundando nas milícias. Enfim, desenhamos um quadro necessariamente multidimensional. Portanto, a resposta, a nossa reação, a nossa disposição de resistência tem de ser multidimensional. Nós vamos ter de atuar em múltiplas esferas e em muitas dimensões. Na sociedade deve-se discutir todos os demais aspectos, desde a questão da política de drogas, do encarceramento em massa, temas de que trato sempre com muita intensidade e que, por falta de tempo, não chegaram a ser tratados aqui.

Nós vamos ter que lidar com uma multiplicidade grande de temas. Mas acho que há um princípio a seguir: reconhecer a gravidade do que está diante de nós. Um presidente fascista, que não consegue impor o regime totalitário, mas é motivado por valores de natureza fascista, que encontra audiência fragmentada, digamos heterogênea, mas que também se apoia numa base sólida, ainda que pequena, mas sólida, e encontra respaldo da história brasileira autoritária, o que significa dizer que estamos diante de uma situação grave, de uma ameaça à democracia. E as milícias são, no Rio de Janeiro, demonstrações ostensivas de que há agentes operando no mundo do crime, dilapidando instituições fundamentais para a democracia e, portanto, corroendo as bases da democracia.

Nós estamos diante de uma situação grave e urgente. É inadmissível e não faz nenhum sentido, que um conjunto de atores políticos, a maioria deles de persuasão democrática e progressista, continue lidando com essa realidade como se nós vivêssemos uma situação trivial, normal, comum, tratando do seu quintal, da sua carreira, do seu projeto, e os partidos tratando dos seus quintais, da sua própria reprodução, dos seus próprios projetos.

Assim como parece inconcebível, como no caso desta pandemia, que alguém que tenha consciência da gravidade do que enfrentamos não tenha parado tudo, suspendido todas as dinâmicas e lógicas e compromissos anteriores, que são absolutamente razoáveis, justificáveis, mas que agora deveriam ser suspensos, para que todos nós nos uníssemos em torno da salvação das vidas durante a pandemia, também é igualmente grave que não se mobilizem os setores responsáveis para enfrentar a ameaça à vida face às ações genocidas das políticas de segurança e da justiça criminal, encarceradora voraz. Tal enfrentamento é vital, essencialmente para a própria democracia brasileira. Todos os que se irmanam nesse sentimento, nessa percepção, não teriam por que estar divididos em torno do que quer que fosse, por mais significativas que sejam as divergências. Elas não poderiam se sobrepor à união estabelecida pelo reconhecimento da gravidade desse problema e por nossa disposição de defesa da democracia.

Então, sinceramente, não consigo entender como faltam para o nosso país os estadistas, grandes lideranças com coragem de cortar na carne, de sacrificar seus partidos e seus projetos, de falarem francamente, de deixarem os jogos todos de lado. E cá estamos no Rio de Janeiro, caminhando para esse festival inacreditável de pulverizações pela cidade, numa eleição municipal em que os democratas com sensibilidade social estão totalmente divididos, cada um tratando o lado da sua própria linha, como se nós estivéssemos numa situação democrata normal.

Estamos diante de uma pandemia que vem sendo gerenciada de forma criminosa, e também diante dos crimes perpetrados pelas instituições da ordem, que geram o genocídio, e nós continuamos com as mãos sujas de sangue ao assistir tal espetáculo, que no fundo é uma manifestação do velho racismo estrutural, das desigualdades, mas agora em escala hipertrofiada, devorando o que resta de vida civilizada e democrática. Caso eu esteja errado, que bom, tomara. Está tudo normal, tranquilo; foi só um engasgo, um susto. Mas caso eu esteja certo, então nós estamos nos afastando de qualquer possibilidade de solução, porque ninguém tem a solução no bolso; até porque, para construí-la, precisamos de um trabalho coletivo e de grande mobilização da sociedade, e isso tem de partir dessa disposição de dialogar, de superar essas divergências e de esquecer, por ora, 2022, pois talvez não haja 2022, talvez nós não cheguemos lá em condições efetivamente democráticas. Vejam o que aconteceu na Hungria e o que está acontecendo na Polônia. Temos o exemplo da Bolívia próximo de nós, com outra metodologia. Nós vimos o que aconteceu nos EUA e vamos ver qual vai ser o nosso desfecho.

22 de janeiro de 2021

MILÍCIAS: UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA – PARTE II!

(Luiz Eduardo Soares, Antropólogo e cientista político – Insight Inteligência)

O que são milícias?

Não haveria isso que chamamos milícias, que são grupos compostos por policiais e ex-policiais civis e militares e alguns bombeiros e agregados que são recrutados e aceitos, além de, cada vez mais crescentemente, por traficantes de drogas que são cooptados para as novas coalizões, que hoje tem se estendido, tem se replicado. Por que foi possível chegar a esse ponto, em que temos 57% da população da capital do nosso estado sob o domínio seja de milícias seja de facções do tráfico, sendo a grande parte de milicianos? Nós temos hoje muito mais milicianos dominando a população do que traficantes. São quase 4 milhões de pessoas sob o domínio de grupos armados criminosos, milicianos ou traficantes, sobretudo milicianos, que é o poder que mais cresce e que se aliou ao Terceiro Comando puro, se opondo apenas ao Comando Vermelho, que é uma espécie de ilha de resistência do velho modelo. Como é possível que isso tenha ocorrido? E vejam: isso significa a negação do estado democrático de direito, porque é a negação do próprio Estado, que, ao deixar de ser monopolista dos meios de força legítimos, deixa de se apresentar propriamente como o Estado.

Isso foi possível por conta da nossa história, da natureza da nossa transição, cuja expressão mais imediata é uma política de segurança, por assim dizer, que, com exceções, com raras honrosas exceções ao longo de nossa história recente, se traduziram nessas chamadas políticas de segurança e autorizações para execuções extrajudiciais em confrontos criptobélicos ou protobélicos em áreas de favela e periferia, em territórios vulneráveis, com implicações dantescas e sem que houvesse a produção de qualquer êxito, de qualquer resultado razoável de interesse da sociedade, ou que estivesse minimamente em acordo com a legalidade constitucional.

Por que a nossa história concorreu fortemente para a formação das milícias? Porque é uma história de autonomização, de nichos policiais que passam a agir com essa duplicidade de registro de referência, por isso eu falei dos esquadrões da morte, da Scuderie Le Cocq etc. São núcleos que permanecem na polícia, mas agem ilegalmente e clandestinamente. O leitor se recorda que logo no início foi dito para guardar esse advérbio; é relevante, porque isso não se converteu em padrão instituído, legalizado. Mesmo na ditadura, quando havia pena de morte, se requeria o julgamento. Mas o que está a se falar aqui é do linchamento, da execução extrajudicial, e, por favor, não confundam execução com legítima defesa, que é evidentemente autorizada pela Constituição e por todas as constituições democráticas e pelos tratados dos direitos humanos evidentemente.

Assim temos uma história de autorização tácita para a autonomização de nichos, de grupos que agem à margem da lei, permanecendo vinculados organicamente às instituições policiais. Esse modelo, na medida em que nós herdamos essa tradição acriticamente no momento inaugural da democracia que foi a transição, em que nós recebemos esse legado dessas estruturas organizacionais com essas práticas, elas trouxeram consigo os seus vícios que eram vícios intrínsecos às suas dinâmicas internas de funcionamento, e isso tudo é hipertrofiado e sublinhado pelas políticas que autorizam e recomendam as execuções extrajudiciais.

Por quê? Porque quando se concede ao policial na ponta a liberdade para matar, se lhe concede tacitamente também o direito de não fazê-lo; portanto, de negociar a sobrevivência e a vida, que é uma moeda extraordinária que está sempre se inflacionando. É uma fonte de recursos inesgotável. O que se paga para sobreviver? Tudo que se tem e mais alguma coisa. Atribuindo-lhe o direito de matar sem qualquer custo, sem qualquer condicionante, torna-se de fato o passaporte para a negociação da sobrevivência, e isso se estruturou, se organizou ao longo dos anos porque as economias acabam se compondo, se articulando segundo dinâmicas racionais.

Há uma tendência à racionalização, imperativos do cálculo etc., o que fez com que se passasse daqueles momentos iniciais de confrontos e debates no varejo, do comércio da vida no varejo, para uma situação mais estável, estruturada, que é a do “arrego”, para usar a expressão carioca, ou seja, do contrato, do acordo, do pacto, enfim, da sociedade entre polícia e tráfico. E essa sociedade fez com que se tornasse indissociáveis as histórias – a história institucional e a história do tráfico de drogas – cuja relevância no Rio não pode ser subestimada. Por mais que nós salientemos a importância desse fato, ainda estaremos salientando insuficientemente, porque isso foi decisivo ao longo de tantos e tantos anos, sobretudo quando associadas ao tráfico de armas, e isso tudo não se deu sem a participação e o protagonismo policial.

O “gato orçamentário”

Durante a transição, as políticas que autorizam execuções, facultando aos policiais da ponta fazê-las, o que havia de novo? A autonomização, a constituição nesses nichos. E a isso vem se somar, e agora nos aproximamos da conclusão, um terceiro vetor nessa rápida genealogia, que é a segurança privada informal e ilegal. É preciso compreender isso. O orçamento público na área de segurança é gigantesco, não só no Rio de Janeiro. Contudo, é insuficiente para o pagamento de salários dignos, justos, à grande massa policial, porque são dezenas de milhares, sobretudo se nós incorporarmos os inativos. Desse modo, qualquer alteração tem um grande impacto. Esse orçamento irreal se torna real, ou seja, ele é viabilizado por um arranjo ilegal que eu chamo de “gato orçamentário”, e só os cariocas e as cariocas me entenderão. Existe o “gato net”, que são conexões entre o legal e o ilegal, que se dão de forma improvisada. Aqui nós temos o “gato orçamentário”, que é essa conexão entre o legal e o ilegal. De que maneira isso se dá? Que ilegalidade é essa?

Todos os governos estaduais, não só do Rio de Janeiro, sabem que os seus policiais vão para o segundo emprego, para o bico, a fim de completar a renda, porque os salários são insuficientes. E o fazem em que área? Como todos fazemos: na área de nossa expertise, da nossa competência. Ora, os governos sabem perfeitamente que milhares de policiais vão para a segurança privada informal e ilegal. Por quê? Porque é ilegal que o policial servidor público atue na segurança privada, pois se trata de óbvio conflito de interesse. Quanto melhor for a segurança pública, pior será a segurança privada.

É evidente que há uma divergência, e o que torna ilegal é essa conexão com a segurança privada informal e ilegal. Apesar disso, os governos olham para o lado e dizem que essa é uma responsabilidade da Polícia Federal e, efetivamente, pelo ponto de vista legal, é verdade. Mas a Polícia Federal não tem contingente, nem recursos, nem tempo, e nenhum interesse em meter a mão nesse vespeiro, sabendo que lá vai encontrar não só a arraia miúda, para usar a expressão popular, mas também oficiais, delegados e autoridades das instituições policiais.

Assim, não estão na segurança privada apenas aqueles que buscam sobreviver com um pouquinho mais de dignidade, que tentam completar sua renda, honesta, perfeitamente compreensível e, digamos, até benigna, por suas motivações, embora ilegais. Temos ainda aqueles que são empreendedores e que aproveitam essa oportunidade, que não estão precisando disso para se alimentar, e estão buscando lucros em outra escala. E o fato é que, quando o governo não olha de forma consciente e negligencia como uma estratégia para viabilizar o seu orçamento, deixando que os policiais complementem sua renda desse modo, não se dá então combate ao aspecto maligno do problema. E o que é maligno? São as ações e iniciativas daqueles policiais corrompidos que geram insegurança para vender segurança. E finalmente, existem aqueles que se organizam a partir da experiência no tráfico, compreendendo que podem ir muito além das quadrilhas, e aí formam de fato as milícias, com bases em alguma experiência local etc.

E quais desses policiais querem ir muito além do tráfico? Trata-se de homens mais velhos, mais maduros, mais experientes. São profissionais que observam o quadro, analisam a situação e averiguam se há possibilidade do domínio territorial e do controle sobre uma comunidade por grupos armados. E, em vez de apenas negociar substâncias ilícitas no varejo, uma vez assumindo o controle territorial, passam a taxar de forma arbitrária e evidentemente discricionária todas as atividades econômicas e custos dessa comunidade, inclusive o acesso à terra.

Desse modo, constituem-se como verdadeiros barões feudais. E esses espaços insulados vão conformar uma geopolítica com uma configuração, uma espécie de um grande arquipélago que tomou boa parte da cidade, na capital do estado do Rio de Janeiro e áreas da Baixada Fluminense, e ainda mais, avançando o estado adentro.

O primeiro combate contra as milícias

Chegamos à política. Esses grupos experimentados de homens mais velhos perceberam que não havia sentido, como os traficantes faziam, de simplesmente alugar acesso a candidatos. Os candidatos na hora da eleição querem ter acesso para fazer campanha, os traficantes escolhiam um ou outro, de acordo com pagamentos, e permitiam esse acesso. Os milicianos pensam com mais ambição e deduzem que eles mesmos podem se candidatar e ocupar espaço no Estado, na esfera política. E isso tem acontecido sistematicamente de tal maneira que eles, agora, não só utilizam a polícia para ajudá-los a conquistar espaços, a manter seus domínios, ao submeterem a polícia aos seus interesses, permanecendo a salvo, excepcionalmente incólumes, como também ocupam espaços de poder, espaços políticos nos Parlamentos e nos Executivos na Baixada Fluminense. Converteram-se no grande desafio, não só para a segurança pública do Rio de Janeiro, pois esse é um problema que tem aqui o seu coração, mas que se irradia para todo o país, isto é, mais um o problema para a democracia brasileira.

Notemos que esse é um tipo de poder paralelo em ascensão. Diga-se de passagem, essa categoria, “milícia”, passou a ser aplicada, a partir de 2006, graças à jornalista Vera Araújo, do O Globo, aos grupos que dominam territórios em comunidades aqui no Rio de Janeiro, grupos formados sobretudo por policiais. Até então nós nos referíamos a esses grupos como “polícia mineira”, ou “polícias mineiras”. Mineiras porque garimpavam, mineravam, agiam para se beneficiar ilegalmente etc. E Vera Araújo passou a usar o termo milícia, que em seguida foi adotado porque cabia muito bem para a definição dessas máfias locais por assim dizer.

E nós tivemos, a partir de janeiro de 2007, o privilégio de contar com um delegado muito corajoso, audacioso, que tinha naquele momento o suporte da Secretaria de Segurança; Claudio Ferraz, titular da DRACO (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado). De 2007 a 2010, Ferraz prendeu quase 500 milicianos. Até então os milicianos não eram presos. Houve apenas um ou dois casos antes. Por quê? Porque, segundo as autoridades, sequer existiam, não se percebia isso; ou algumas outras autoridades se referiam à autodefesa comunitária, porque evidentemente essas milícias nasceram vendendo segurança privada, vendendo manutenção da ordem nas comunidades.

Vejamos um caso: o do irmão do deputado Marcelo Freixo, Renato Freixo, que se tornou um personagem relevante nessa história. Em 2006, foi eleito síndico do seu condomínio em Niterói e resolveu compreender que história era aquela, onde estavam os contratos, de quem era a empresa que oferecia, afinal de contas, segurança? Qual a legalidade daquilo? Foi assassinado.

Isso é um sintoma, uma demonstração muito triste, mas muito evidente e ilustrativa do que nós acompanhamos. As autoridades políticas, às quais convinha o silêncio, até porque tinham apoio nessas áreas que se convertiam em verdadeiros currais eleitorais em seu benefício, essas autoridades silenciavam ou negavam a existência das milícias ou apenas se referiam à autodefesa comunitária.

Naquele mesmo ano, Vera Araújo produziu algumas matérias importantes no O Globo, muito críticas, chamando atenção para a dimensão criminosa dessas organizações. Já em 2007, no início da nova legislatura estadual, o recém-eleito deputado estadual Marcelo Freixo apresentou, no primeiro dia, logo na primeira semana da nova legislatura, um pedido de abertura de uma CPI sobre as milícias. O presidente da Alerj, Jorge Picciani, negou e engavetou o pedido.

O delegado Claudio Ferraz começou a realizar o seu trabalho, e as matérias se reproduziram. No primeiro semestre do ano seguinte, em 2008, houve um episódio que se tornou muito conhecido no Rio de Janeiro e muito triste, em que uma jornalista, um motorista e um fotógrafo do jornal O Dia foram feitos reféns, torturados e quase executados na favela do Batan, já sob o controle das milícias. Eles faziam uma reportagem sobre esses grupos. Foram salvos porque vazou a notícia, e os milicianos os libertaram. Mas o impacto sobre a vida deles foi trágico. Isso veio à tona, ocupou as manchetes da mídia na época, e a sociedade se sentiu de fato tocada e sensibilizada. O presidente da Alerj foi obrigado a desengavetar o pedido da CPI das milícias, e o deputado Marcelo Freixo se tornou o relator da CPI, que cumpriu um papel muito importante.

A CPI conduzida por Freixo indiciou mais de 250 indivíduos ­– policiais –, alguns inclusive com cargos eletivos. O trabalho de Claudio Ferraz permitiu muitas prisões e repressão qualificada. Depois desse período, o nosso colega Ignácio Cano, com a nossa colega Thais Duarte, realizaram uma pesquisa importante, que mostrava que, a partir dessa repressão, as milícias, de uma maneira geral, tinham alterado seus comportamentos, suas táticas. E elas, em vez dos tormentos públicos, das torturas e dos assassinatos públicos que eram usados como didática para assinalar o seu poder como forma de coação, passaram a criar cemitérios clandestinos e agir, como se diz popularmente, no “sapatinho”, termo que inclusive é o título do relatório da pesquisa dos colegas Cano e Thais.

Dessa forma, houve uma alteração, um recuo, um refluxo e uma mudança de atitude. Os milicianos não se tornaram pacíficos e ordeiros, mas passaram a matar e a brutalizar de outra forma, com outros métodos. Daí se inaugurou um período muito longo, em que tiveram de novo a possibilidade de recomposição, se articulando com a política, obtendo apoios, promovendo um novo crescimento desses grupos. É claro que, quando nós temos na Presidência da República alguém como Bolsonaro, que defende a flexibilização de acesso às armas, que defende a violência policial e o faz ostensivamente elegendo um torturador como o seu herói, logicamente esses grupos se sentem estimulados, incensados, e a brutalidade recebe assim um combustível importante. Os nossos tempos são bicudos, são tempos dramáticos, difíceis.

Outro aspecto a ser enunciado é a situação dos policiais honestos. Isso não é simples, porque vamos nos colocar na posição de um policial honesto – e há milhares e milhares deles. Esses policiais honestos sabem perfeitamente o que seus colegas fazem. Mas quem de nós ousaria confrontar esses colegas criminosos, que gozam de prestígio, que sabem qual é o nosso endereço, conhecem a nossa casa, onde nossa família mora, os quais são capazes de qualquer violência? Os policiais individualmente se sentem acuados é claro. Que força externa seria capaz de, com independência, fazer face às milícias?

Intervenção militar: o laboratório fracassado

O estado do Rio de Janeiro já teve um laboratório. Em 2018, tivemos a intervenção federal. Era um grande laboratório. Era um momento para que nós verificássemos se as Forças Armadas, ou Exército pelo menos, seria essa força capaz de, com independência, enfrentar esse desafio decisivo, de vida ou morte para democracia brasileira, não só para o Rio de Janeiro. Era um grande teste para verificar se haveria alguma competência para lidar com a questão. Mas não houve nem competência nem interesse, e se havia independência ela não se manifestou na prática, e nós então continuamos assim, salvo um ou outro episódio eventual.

O assassinato de Marielle e Anderson é o sinal mais terrível da insubordinação, da arrogância das milícias. Então nos perguntamos: de onde virão essas forças? Quais serão as instituições? Por que o Ministério Público se cala com a violência policial e não age com o protagonismo, com as iniciativas que nós desejaríamos? Não compreendem as milícias como sendo um desvio ainda associado profundamente às próprias instituições cujo controle externo lhe compete. O Ministério Público não tem sido esse ator, e a Justiça muito menos; o que podem querer dizer é que abençoam a situação tal como está.

Governadores e chantagem: o problema dos dossiês

E os governos? Os governos, e eu acompanhei isso ao longo de muitos anos, se tornam presas fáceis dos grupos corruptos nas polícias. Tais grupos são muito hábeis na elaboração de dossiês e, nos primeiros dias do governo, apresentam aos governadores materiais que os incriminam. A partir dessa chantagem, os governadores se sentem acuados. Essa é uma prática reiterada.

Independentemente disso, o governador ou os governadores contam com as polícias. E as polícias são justamente as incubadoras das milícias, são a fonte do nosso problema. É um dilema extraordinariamente relevante, que tem de ser encarado pelo país inteiro e tem de ser da democracia. Deve mobilizar o que nos restar de oxigenação democrática para que, juntos, nós concebamos alternativas. Mas a prática política usual aponta na direção de envolvimentos crescentes. O fato é que não é possível ser muito otimista nesse momento.

Há um complemento que deve ser feito quanto aos dossiês. Inteligência hoje tem outros significados. Inteligência está associada à provisão de informações, sofisticação de diagnósticos, provisão de dados e evidências e de instrumentos metodológicos de análise. Inteligência é uma área efetivamente rica na articulação e na disponibilização do conhecimento produzido. Então é uma área muito interessante, que nada tem a ver com espionagem e com aqueles torneios turbulentos, arbitrários, aquelas tramas de cinema. Tem muito mais a ver com o trabalho nosso de pesquisa, universidade etc., a que coloca à disposição de gestores e de operadores, o que se conhece a respeito de questões relevantes da sociedade. Os agentes da área trabalham de outra maneira e têm uma longa tradição na ditadura; e aqui, de novo, estamos falando do que significou a continuidade ao longo da transição democrática nessa área. Essa é uma área reservada, não tangida, não transformada pela dinâmica da democratização.

Quem ouve conversa telefônica entre duas pessoas com autorização judicial ouve o que quer e o que não quer. Ouve o que busca e o que não busca, mas nem por isso deixa de ter algum interesse, se o propósito é a chantagem.

Então imaginem um político e um empresário conversando. Surgem não só informações atinentes a um caso específico objeto da autorização, do mandado judicial, como também surgem eventualmente conversas sobre amantes, sobre situações que podem ser até mais delicadas para os interlocutores do que propriamente o tema da investigação. Nos países democráticos com alguma tradição de mínimo respeito às regras do jogo, tudo aquilo que é sobra, que é excesso e que não diz respeito diretamente ao tema autorizado tende a ser destruído. No nosso caso se tornou muito comum criar bancos de dados com as sobras, com os retalhos das conversas, os retalhos da arapongagem, que poderiam ser eventualmente úteis.

Percebe-se uma conexão interessante, miúda, provinciana, rasteira, primitiva, primária; entretanto, fundamental entre uma história da repressão da ditadura treinando operadores para um trabalho sujo e a aplicação do trabalho sujo na democracia como instrumento de coação, de constrangimento sobre autoridades.

Tais práticas têm esses impactos e explicam em parte a timidez de tantos de nossos Poderes Executivos estarem acuados por intimidações oriundas dos métodos dos porões.

Milícias e lucratividade

Quanto à lucratividade das milícias, claro que esse é um obstáculo à contenção do seu crescimento. É muito atrativo, sobretudo no momento de crise, quando policiais veem seus colegas comprando carros do ano, casas, enfim enriquecendo. E quando não há uma formação ética e um comprometimento institucional muito vigoroso, isso acaba se impondo. E como nós temos instituições estilhaçadas, despedaçadas, por conta desse atrito entre as suas culturas corporativas e a institucionalidade republicana. Elas são estilhaçadas porque vivem um enclave. Aquilo que justifica o descumprimento da Constituição nas execuções extrajudiciais, justifica também a corrupção.

Esses grupos se retroalimentam, porque, no fim das contas, são justiceiros ou assim se pensam inicialmente; depois, nem eles próprios conseguem manter o discurso desse tipo. Mas vocês percebam como o desajuste, esse desarranjo, essa torção que gera o enclave refratário à democracia, gera de fato uma área de sombra que proporciona a gestação não só de práticas de violência, mas também de práticas de corrupção, corroendo os valores republicanos. Grupos muito numerosos, que têm inspiração efetivamente fascista, não acreditam e não valorizam a política, isso que chamam de sistema, constituição e leis. Engana-se quem imagina que esses policiais violentos são apaixonados pela legalidade e mantêm o que fazem por amor ardoroso às leis, sendo mais rigorosos do que o próprio rigor. Não tem nada a ver com qualquer tipo de comprometimento com a legalidade.

A lucratividade, assim, é parasitária e depende do dinamismo econômico das comunidades, e a criatividade é grande: são as vans, o gato net, o controle sobre os bares e restaurantes e o pequeno negócio. Passa-se também ao gás, o monopólio da venda de gás, cobrando-se mais caro do que a concorrência, mas impondo aquele consumo. Depois, o controle de terras públicas, a sua privatização selvagem, a apropriação e expropriação de conjuntos habitacionais, a expulsão de moradores originais, caso não sucumbam às imposições, revenda de apartamentos que são produzidos com dinheiro público e por aí vai. Construções ilegais, tais como vimos na Muzema, em cujo desastre morreram 24 pessoas, e os negócios, que vão aumentando, os transportes etc. São muitas as articulações.

É claro que um impedimento importante para reduzir a atratividade das milícias e, por consequência, reduzir a velocidade de sua reprodução e intensidade seria a criação de modos de proteção aos operadores da economia local, comerciantes, entre outros. Se as polícias honestas atuassem nesses territórios como atuam em Copacabana, no Leme, Ipanema ou Leblon, por exemplo, ficaria difícil para esses grupos coagir e impor a cobrança de taxas. Mas como esperar que isso se realize se de fato a cabeça política do estado e as lideranças institucionais não estão dispostas a esse enfrentamento por múltiplas razões?

Quanto ao envolvimento de milícias com igrejas, aqui não há o que dizer de muito específico. O que existe são trabalhos de pesquisadores, em geral com as referências conhecidas, sobre as relações entre facções do tráfico e igrejas em algumas denominações neopentecostais. Isso é muito conhecido. Nós temos traficantes religiosos que aderem de fato a esses pastores e a esses núcleos locais, que por sua vez se articulam com o tráfico de drogas e com milícias igualmente. Até que ponto servem também para a lavagem de dinheiro? Há muitas especulações nesse sentido, inclusive dentro da polícia honesta sobre essas possibilidades.

Rio de Janeiro em comparação a São Paulo: modelos de organização do crime

São as milícias um fenômeno eminentemente carioca? Essa é uma pergunta difícil. Nós encontramos modalidades de nichos compostos por policiais, sobretudo que se autonomizam e que se convertem em novos personagens do universo criminal no Brasil todo. Mas nessa escala e com essa metodologia de controle territorial, não. É um fenômeno especialmente fluminense, mais do que carioca, que reproduz um arranjo inventado e inaugurado pelo tráfico de substâncias ilícitas, que é do controle territorial e de domínio sobre comunidades.

As diferenças entre o tráfico no Rio e o PCC foram muito bem estudadas. Há etnografias preciosas sobre o PCC e sobre o tráfico. Conhece-se bastante bem o tema por meio desses retratos oriundos de tantas boas pesquisas e há uma analogia possível ao que é proposta por mim em artigo publicado no livro organizado por Gabriel Feltran, que é um desses importantes estudiosos do PCC. No artigo em questão, sugere-se alguma associação entre a economia, a sociedade paulista e o PCC e a economia, a política fluminense e o tráfico, tal como nós o conhecemos. E é bastante interessante pensar nisso.

Para usar simplificações grosseiras e caricaturais num desenho ligeiro e superficial, temos em São Paulo uma sociedade que foi fortemente industrial, com movimento popular intenso e dinamizado pelo sindicalismo, uma sociedade orgânica, estruturada em torno da divisão social do trabalho de ponta do capitalismo brasileiro. Já no Rio de Janeiro, o declínio do que havia de indústria, a decadência do setor industrial, predomínio dos serviços, a degradação econômica, o deslocamento da capital do país com uma série de implicações e uma sociedade marcada pela informalidade; por aquilo que o velho Marx chamava lumpesinato, que era um nome no fundo para designar a inorganicidade. Nós vivemos num país da inorganicidade, e organizar é uma tarefa quase inglória. Então quem é que organiza no Rio de Janeiro? Agora são as igrejas populares evangélicas que organizam na base – antes eram as igrejas católicas progressistas. Se nós não pensarmos nas igrejas, o que mais organiza?

Não temos propriamente organizações numa sociedade inorgânica, mas agregações em torno de lideranças carismáticas, como foi, por exemplo, o fenômeno Brizola. Há, neste momento, a possibilidade de endosso a uma liderança messiânica ou carismática, mesmo fascista ou pró-fascista como Bolsonaro. São agregações, ad hoc, circunstanciais, em torno de certos discursos de valores mobilizados e de certas negociações mais ou menos com esse propósito. O resto na política é também o varejão, a informalidade e a inorganicidade também num mundo partidário. Vejam o que foram o PT de São Paulo e o do Rio em termos de impacto sobre a sociedade, inclusive brasileira. Aqui as negociações ad hoc, negociações locais que a chamamos de fisiológicas para resolver problemas imediatos.

Acompanhando o raciocínio, o tráfico tal como se organiza no Rio, é absolutamente antieconômico e irracional, não tendo como sobreviver. Só pode sobreviver enquanto a decadência do Rio persistir. Por quê? Quando se iniciaram as experiências das UPPs, dei uma entrevista para o O Globo dizendo que não acreditava naquilo, porque não era uma política pública; era um programa visando basicamente propósitos mais políticos, cosméticos, porque não havia reforma da polícia, e com essas polícias aquilo seria insustentável.

Enfim, se desse certo e onde desse certo, significaria um grande salto de qualidade de racionalidade para o tráfico. O tráfico iria se modernizar, iria renascer porque teria de abandonar esse modelo de domínio territorial. Isso porque é necessário um pequeno exército fortemente armado, correndo risco de vida, inviabilizando a fluxo do que se quer conseguir, tendo de comprar a adesão, a cumplicidade policial sempre por preços superiores, numa situação instável, sobre risco permanente, para negociar substâncias ilícitas que no mundo inteiro são negociadas num método errante, nômade, com trânsito em algumas áreas da cidade.

Já para a milícia, o domínio territorial é rentável porque se trata de impor a cobrança sobre todas as atividades econômicas, mas para o tráfico não faz nenhum sentido. O tráfico em São Paulo adota um modelo empresarial descentralizado, hiperflexível, com delegação de autonomia na ponta. É um modelo de negócio que funciona, prospera com menos atrito com a polícia, menos problema, menos custo, menos risco e que corresponde a uma dinâmica econômica mais desenvolvida.

O ponto é que as milícias acompanham modelos criminais e societários, econômicos e políticos, numa sociedade inorgânica onde se torna possível criar uma geopolítica com base em baronatos feudais, entre aspas, nesse arquipélago. Isso é impossível em São Paulo. E o Rio é a capital das milícias por conta também da história das nossas polícias, da brutalidade das nossas polícias desde a época da capital do país, com a centralização, a hiperpolitização que isso implicava. Então há elementos históricos que tornaram as polícias do Rio muito mais poderosas, politizadas, incontroláveis e menos sensíveis a apelos constitucionais, menos encantadas pela simbologia republicana democrática.

Acerca das conexões internacionais existentes, o tráfico fez isso. Primeiro foi o Fernandinho Beira Mar, que substituiu aquelas mulas, os sujeitos que vinham trazer aqui as drogas das fontes colombianas, peruanas e tal, mas sobretudo colombianas. O Fernandinho Beira Mar organizou isso, e quem conta muito bem essa história são Camila Dias e o Bruno Paes Manso num livro sobre a guerra de disputa nas conexões internacionais sobretudo o PCC, mas também o Comando Vermelho mais e mais. As milícias vão ter de se internacionalizar na medida em que estão entrando no mercado das drogas com força.

21 de janeiro de 2021

MILÍCIAS: UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA – PARTE I!

(Luiz Eduardo Soares, Antropólogo e cientista político – Insight Inteligência)

Depoimento a Francisco Ourique e Marcio Scalercio

Temos diante de nós mais do que um tema, um desafio que nos angustia, nos mobiliza. É fundamental compreendermos o que significam as milícias, para que seja possível de alguma maneira definir políticas públicas, iniciativas e terapias para essa patologia tão dramática e com efeitos de fato degradantes para a sociedade, para a democracia.

É sabido que essas categorias variam historicamente e têm outras raízes, outras significações. Seguindo a trilha da história, recuo até os anos 60 ou talvez até meados dos anos 50 e, evidentemente, partindo de alguns pressupostos indispensáveis, levando em conta de que país estamos falando.

Nosso país é profundamente desigual e marcado pelo racismo estrutural. Um país cuja história tem sido muito dura e violenta. Portanto, os episódios, esses eventos, as circunstâncias e dinâmicas são profundamente violentos e, nesse sentido, compatíveis com as características da nossa sociedade. Sendo assim, dificilmente seriam possíveis em outros contextos.

Em meados dos anos 50 o chefe da polícia do Rio de Janeiro – esse episódio é narrado pelo professor Michel Misse – constituiu um grupo de policiais cuja função era executar supostos criminosos, os suspeitos para sermos mais precisos, e fazê-lo clandestinamente. Acentue-se a importância desse advérbio, clandestinamente, que evidentemente tem implicações. Nos anos 60, a partir de uma série de circunstâncias, que são inclusive bastante conhecidas, porque sempre aludidas pelos relatos, inclusive os relatos relativos à segurança pública ou à insegurança do Rio de Janeiro no início dos anos 60, formaram-se as “escuderias”, particularmente a “Scuderie Detetive Le Cocq”. Tratava-se de uma associação, um grupo de policiais inicialmente reunidos em torno de uma missão: vingar um colega, o detetive Mariel Mariscot, que havia sido morto por um criminoso.

A “Scuderie Detetive Le Cocq” se autocompreendia e se autodefinia como um grupo de justiceiros. Entretanto, cumprida essa missão mórbida, sinistra, o grupo não se desconstituiria, seguiria adiante atribuindo-se sempre novas missões, e todas elas orientadas por esse tipo de valor que lhes cabia, o de executar supostos criminosos. Ao longo dos anos 60, com desdobramentos diversos que não vêm ao caso, esse grupo original acabou se desdobrando tentacularmente, gestando um conjunto de coletivos ou de grupamentos policiais que então adquiriram um outro nome (esquadrões da morte), e que ainda eram orientados e atuavam sobretudo na Baixada Fluminense.

O professor José Claudio de Sousa estudou com profundidade única esse fenômeno, principalmente na Baixada, onde se realizava o mesmo tipo de tarefa, a execução de supostos criminosos. Esse tipo de prática depois alcançou outras vítimas. Se, inicialmente, a ideia era de que os suspeitos fossem executados, na sequência, esses grupos se converteram em pistoleiros a soldo, atendendo a demandas ad hoc no varejo do cotidiano e das políticas locais. Muitas vezes por motivos comerciais e econômicos; em outras, por motivos puramente pessoais ou políticos, executavam como profissionais do crime, profissionais do que se dizia, à época, da pistolagem. Atuaram não somente no Rio de Janeiro, pois isso foi um fenômeno conhecido Brasil afora. O Espírito Santo foi muito marcado por essa história também, assim como Minas Gerais, Norte e Nordeste. Há também episódios em São Paulo e no Sul.

Portanto, estamos diante não apenas daqueles grupos que foram gerados a partir da incubadora criminal que havia sido aquela Scuderie, inspirada já nas iniciativas dos anos 50, mas também tivemos a adoção da mesma prática e da mesma metodologia por grupos distintos de policiais Brasil afora. Os grupos aqui se converteram inclusive em protagonistas de manchetes na mídia.

Policiais fora de função, o regime militar e os bicheiros

Vários policiais foram, a partir de um certo momento, aliciados pela repressão da ditadura inaugurada em 1964 e, uma vez recrutados e treinados, serviram às práticas de tortura e de assassinato de opositores políticos do regime militar. Eles, entretanto, nunca deixaram efetivamente de estar organicamente vinculados às suas instituições policiais de origem. Com o declínio da ditadura e início do processo de transição, dedicaram-se integralmente às instituições das quais jamais deixaram de fazer parte.

Muitos deles foram perscrutando o mercado, encontraram nichos favoráveis e foram “adotados” pelos bicheiros, que eram os “capos”, os chefes no crime organizado na Baixada Fluminense e na capital do Rio de Janeiro, atuando também para além dessas fronteiras. Eles serviram aos bicheiros não apenas como seguranças. Em algumas vezes, disputaram com os chefes e acabaram ocupando um lugar entre os barões do bicho. O caso mais conhecido é o do Capitão Guimarães (Aílton Guimarães Jorge).

São figuras híbridas, fruto dessa história heterogênea, irregular, descontínua, em que se passava sucessivamente da instituição policial para a atuação na repressão política, dali para o crime organizado diretamente e para um empreendimento econômico criminoso, finalmente. Alguns retornaram e foram absorvidos mais de uma vez por suas corporações. Essa história é muito importante porque ela é reveladora em alguns aspectos. Vamos suspendê-la, por ora, para nos concentrarmos na transição política.

As mazelas da transição política  mudar para que tudo fique como antes

A referência é um processo que se conclui, que culmina, em 1988, com a promulgação da nossa primeira Constituição efetivamente democrática. Evidente que isso não significa que ela tenha sido aplicada plenamente ou que tenha correspondido à realização substantiva da democracia tal como configurada formalmente nos seus termos normativos. No entanto, do ponto de vista formal, era efetivamente um documento importante e único em nossa história. Correspondia a uma conquista extremamente significativa. Entretanto, nós sabemos que as transições no Brasil, mesmo aquelas que envolvem algum nível de ruptura, se deram por negociações entre as elites, que acabaram sempre se recompondo. O Brasil é marcado pela modernização conservadora, pela via prussiana, se envolvendo com o capitalismo, pelas revoluções passivas, enfim pelo capitalismo intrinsecamente autoritário, que exclui a participação das massas, das classes subalternas e que acaba se reproduzindo, a despeito de suas mutações, por seu dinamismo, sempre a partir de rearranjos e novas coalizões que vão se formando entre representantes, líderes e as elites políticas, econômicas e sociais.

Isso não foi diferente em 1988, e a nossa transição foi negociada. Nós saltamos do momento da verdade – para usar aquela distinção sugerida pelo Nelson Mandela e pelo caso da África do Sul, entre o momento de verdade e o momento de reconciliação –, e passamos diretamente para a reconciliação varrendo as cinzas do passado, as feridas, os cadáveres, as brutalidades, a barbárie toda, para debaixo do tapete e passamos imediatamente para o novo regime que se inaugurava com a promulgação da Constituição de 1988.

A negociação dessa passagem envolvia evidentemente os representantes do regime anterior, da ditadura militar, que ainda dispunham de alguma influência, e as demais forças políticas estabelecidas, sendo que o ambiente proporcionava aos representantes do antigo regime um poder de decisão razoável. Eles se interpuseram em alguns casos, e firmaram um pé em torno de algumas exigências; uma delas, entre outras, muito relevante para nós, aqui para nossa reflexão. Eles impuseram uma reserva na área da segurança pública. O campo institucional da segurança pública, quiçá em alguma medida, a justiça criminal, mais particularmente da segurança pública. E as estruturas organizacionais forjadas pela ditadura nos foram, portanto, legadas.

Na democracia herdamos as instituições sem qualquer reorganização, sem qualquer reestruturação. É claro que nos novos tempos, novos ares, novas referências legais, muitos procedimentos foram alterados. Mas percebam que, quando uma estrutura organizacional é preservada, é conservada, ela traz consigo seres humanos, indivíduos, homens e mulheres de carne e osso, com seus valores, suas crenças e suas disposições afetivas. Protocolos de ação, protocolos práticos, que estavam presentes na socialização, são absorvidos, incorporados, e mantidos de tal maneira que nós podemos dizer que essa reserva da área de segurança pública que, portanto, não foi atingida, não foi tocada, não foi atravessada pelo tsunami transformador da democracia, essa reserva acabou suscitando a inauguração, a instauração, de uma dupla temporalidade, se me permitem a imagem.

De um lado nós tivemos o tempo fluente, vivo, da democracia: avanços, mobilizações, ampliação da experiência da cidadania, redução da pobreza bastante significativa ao longo das décadas subsequentes, maior participação; enfim, um conjunto muito significativo de avanço de conquistas, com limites, com contradições, evidentemente. Por outro lado, a consagração dessa outra temporalidade, uma temporalidade cristalizada, congelada, que remete aos tempos imemoriais, à nossa história mais funda, que é a história da escravidão, da brutalidade, do racismo estrutural, das desigualdades.

Essa história que marcou todo o percurso das instituições policiais ao longo do tempo esteve presente na reorganização ali forjada das instituições policiais. E essa história concentrada, temperada pela ditadura, nos foi legada. Portanto, é esse passado congelado, refratário às mudanças, ao dinamismo da democracia, é esse passado que convive, com todo o seu peso, sua espessura e sua resistência com a vibração democrática da sociedade brasileira, sem idealizações, guardadas aqui todas as limitações já referidas.

Vejam que desenho paradoxal, uma dicotomia, uma dualidade, uma contradição. As corporações policiais não podem ser objeto de nenhuma descrição genérica, superficial, que sintetize toda uma complexidade em duas ou três palavras e qualificativos, mas não é equivocado dizer que depois da observação dessas últimas três décadas, no período democrático, está bastante patente que os segmentos mais numerosos desses quase 800 mil homens e mulheres que compõem as nossas instituições policiais, a maioria de fato continua ligada a uma cultura corporativa, cujos valores foram aqueles apurados, maturados, que levedaram nos tempos do nosso passado mais remoto e que foram, digamos, atualizados durante a ditadura.

Ainda são aqueles que justificam execuções extrajudiciais, que confundem justiça com vingança e que são absolutamente refratários ao poder civil, à legitimidade republicana e à autoridade política. Imaginem então, homens e mulheres em armas, essa que é uma função crucial para qualquer estado democrático de direito. O estado democrático de direito não pode prescindir da força. O Estado é detentor monopolista do uso dos meios de coerção, do uso legítimo de coerção, e os aparatos policiais são aparatos fundamentais portanto, e lhes compete no limite o exercício comedido, moderado da força, seguindo evidentemente parâmetros legais, constitucionais, observando tratados internacionais de direitos humanos etc.

Essa é uma função preciosa, fundamental, em que se joga o jogo da vida e da morte. Portanto, nós estamos falando de instituições extremamente importantes, pois elas foram relegadas ao segundo plano, e toda nossa história republicana democrática recente se dá às expensas delas, como se elas permanecessem à sombra, à margem da vitalidade transformadora reformista. E o Brasil como nação conseguiu, então, conviver com o genocídio de jovens negros e de jovens pobres nos territórios mais vulneráveis, com a brutalidade policial letal sem paralelo entre os países que oferecem dados mínimos a esse respeito, com um nível de violência endereçada sempre, claro, predominantemente aos negros, aos mais pobres e residentes dessas áreas mais vulneráveis, sistematicamente, independentemente de governos, inclusive de suas orientações políticas ideológicas.

Essa temporalidade cristalizada, congelada, refratária aos princípios democráticos, esse enclave institucional que as polícias representam, mostrava inúmeras vezes que era refratária à democracia, repelindo a autoridade política republicana civil. Como se fazia isso? Impedindo que os governadores de fato comandassem essas polícias. É um fato que é preciso reconhecer: os governadores não comandam, salvo excepcionalmente, mas de fato não comandam as suas polícias.

Os Ministérios Públicos, que são responsáveis constitucionalmente pelo controle externo das atividades policiais, a despeito de seus esforços admiráveis, infelizmente ainda são diminutos, insuficientes, minoritários. E a Justiça abençoa a cumplicidade, a que na prática nós verificamos em uma outra parte do Ministério Público, com a reprodução desse tempo congelado que é o passado redivivo que nos acompanha como uma sombra, como uma espécie de fantasma de um outro país a nos assombrar, um outro país que é o reverso, o avesso, que é o oposto daquilo que a nossa Constituição define como sendo o nosso regime constitucional legal.

Isso se dá em função da natureza da nossa transição e das dificuldades extraordinárias que o poder civil teve ao longo de todos esses anos para lidar com essa questão, de elaborá-la, de compreendê-la, de compreender sua gravidade extraordinária.

Temos agora um fenômeno diante de nós que nos impõe a reflexão e a ação. Não é mais possível o silêncio negligente, a omissão cúmplice; não é mais possível pretender ignorar o que representam as polícias como instrumentos repressivos, com bases e com vieses que são inadmissíveis, cuja exibição ostensiva, cuja explicitação em alguns países, mesmo caracterizados pela violência crucial, como os Estados Unidos, provocam revoltas, insurreições que inundam a nação. Aqui nós temos episódios que são lá excepcionais, diariamente rotinizados, naturalizados. Isso não se daria, caso segmentos numerosos da sociedade não fossem coniventes, ou de alguma maneira compartilhassem também esses valores, e isso é extremamente interessante, é fascinante do ponto de vista sociológico, antropológico e histórico, mas é dramático para nós como brasileiras e brasileiros.

O Brasil convive com essa duplicidade, o enclave dessa força que resiste à democracia e convive com ela, com a anuência de instituições republicanas aceitando o inaceitável e aplausos da sociedade por conta do fato de que a cultura dessas corporações, que é uma cultura que tem traços fascistas, é uma cultura racista, misógina, homofóbica, brutal, que justifica o linchamento etc. Os seres humanos não são apenas isso ou aquilo, frequentemente são isso e aquilo e sociedades mais ainda. Pode haver – no caso brasileiro é evidente – empatia, compaixão, disposição afetiva e solidária e ao mesmo tempo a brutalidade mais atroz, a crueldade reiterada, e nós convivemos com isso, sendo simultaneamente o nosso passado e a antecipação de um futuro idealizado que nunca se realiza.

19 de janeiro de 2021

“GOLPE” AJUDARÁ OS EUA!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 11) O 6 de janeiro foi um dia muito ruim para o presidente Donald Trump e muito bom para a democracia americana. Os mortos e feridos serão recordados como uma consequência trágica, fomentada pelo presidente. Mas o que aconteceu nesse dia — e não me refiro somente à tomada do Congresso pelos seguidores de Trump — poderia marcar o começo de um importante período de renovação e fortalecimento para a democracia desse país.

No último 6 de janeiro, as leis, instituições e normas que nos Estados Unidos limitam o poder do presidente foram postas à prova. Por sorte, sobreviveram à tentativa de Donald Trump de continuar na Casa Branca apesar de ter perdido as eleições.

Isso não quer dizer que a democracia americana tenha passado incólume por essa dura prova. Ela já estava muito enfraquecida e, ainda que tenha fracassado, o autogolpe de Trump e seus cúmplices a deixaram ainda mais golpeada e rasgada. O desprestígio internacional é enorme.

Mas, como vimos, muito mais desprestigiados ficaram Trump, alguns senadores e deputados do Partido Republicano, assim como as forças antidemocráticas que participaram da tentativa de golpe. A tomada do edifício do Congresso por grupos violentos atiçados pelo presidente foi, obviamente, um evento histórico. Algo assim não acontecia desde 1814, quando forças britânicas incendiaram o Capitólio. Por sorte, desta vez a tomada não prosperou.

Nesse dia, aconteceram coisas muito importantes para a democracia dos EUA. Na manhã de 6 de janeiro, soubemos que os candidatos ao Senado pelo Estado da Geórgia Raphael Warnock e Jon Ossoff haviam derrotado seus rivais do Partido Republicano.

Warnock é a primeira pessoa de raça negra que chega ao Senado representando a Geórgia — um Estado do sul do país, com um grande histórico de segregação e discriminação racial. Jon Ossoff, de 33 anos, será o primeiro senador judeu eleito por um Estado do sul desde os anos 1880 e o senador mais jovem do Partido Democrata desde que Joe Biden foi eleito senador, há mais de meio século. Mas a vitória eleitoral desses dois candidatos representa um marco histórico que vai mais além do ineditismo de sua eleição.

Com esses votos adicionais, o Partido Democrata, que já detém maioria na Câmara dos Deputados, também terá maioria no Senado. Isso não acontecia desde 1995. O controle do Congresso dará a Joe Biden mais liberdade e celeridade nas nomeações de cargos de seu governo que requerem a aprovação do Congresso. O mesmo vale para a nomeação de juízes federais, que o presidente propõe, e o Congresso pode aprovar ou rechaçar. E a possibilidade de iniciar profundas reformas na economia, na política e no funcionamento do Estado.

Esse dia repleto de surpresas também nos trouxe uma carta e um discurso que — mesmo sem a dramaticidade televisionada da tomada do Capitólio — mudaram o curso da história.

Mike Pence, que, enquanto vice-presidente, também tem a função de presidir o Senado, enviou uma carta aos colegas senadores. Na carta, o até então submisso, obediente, cafona, adulador e, seguramente, sofrido Pence informa aos senadores que cumpriria rigorosamente, com o limitado poder que lhe outorga a Constituição, o procedimento de certificar a eleição de presidente e vice-presidente do país.

O que Pence não diz em sua carta, mas disso todo mundo sabe, é que não era essa a ordem de seu chefe, o presidente. Trump repetiu publicamente que esperava que Pence (“que me deve tanto”) apoiasse a fraude eleitoral que ele havia montado em cumplicidade com os senadores Ted Cruz e Josh Hawley. Talvez pela primeira vez em quatro anos, Mike Pence protegeu mais a democracia de seu país que os interesses pessoais de Donald Trump. Se tivesse acontecido o contrário, o autogolpe poderia ter mais possibilidades de triunfar.

A outra surpresa foi o discurso de Mitch Mcconnell, o líder dos republicanos no Senado. Durante quatro anos, Mcconnell apoiou Donald Trump sem reservas. No dia 6 de janeiro, deixou de fazer isso. Na sessão do Senado na qual se começava a discutir a contagem dos votos eleitorais e antes que a invasão do Capitólio impedisse a continuidade do debate parlamentar, Mcconnell proferiu um discurso devastador, que colocou em evidência e efetivamente destruiu o autogolpe que Trump e seus seguidores estavam perpetrando. Se Mcconnell tivesse se alinhado com os golpistas, estaríamos hoje falando em outro tom sobre a democracia americana.

Os defeitos dessa democracia estão à vista. As ameaças que enfrenta, também. As reformas necessárias são conhecidas — e urgentes. Serão levadas adiante? Terão êxito? Não sabemos. Mas o que sabemos, sim, é que o 6 de janeiro de 2021 poderia ter passado para a história como o dia em que os Estados Unidos começaram a repensar sua democracia.

18 de janeiro de 2021

OS HERÓIS DA RESILIÊNCIA!

(Leandro Karnal – O Estado de S. Paulo, 13) A receita da resiliência é ter serenidade diante das coisas que, na verdade, não nos atingiram. Esperança ajuda sempre.

É conceito da moda. Usam em encontros motivadores. Na Física, é a volta à forma original após uma deformação. O termo se origina da capacidade de ricochetear, de saltar novamente. Por extensão, usamos para falar de quem sofre pressão e consegue manter seus objetivos.

Uma pessoa resiliente ideal teria três camadas. Na primeira, suporta: recebe o golpe sem desabar. Ouve a crítica e não “desaba”, vive a frustração sem descontrole, experiencia a dor e continua de pé. A primeira etapa da resiliência é administrar o golpe, o revés, o erro, a decepção. O tipo ideal que estamos tratando sabe a extensão da dor, mas se considera (ou é de fato) mais forte do que as ondas das adversidades.

O segundo estágio é a recuperação/aprendizagem. Combinam-se os dois conceitos. Sinto o golpe, não desmonto (fase um) e ainda recupero a posição anterior ao golpe com o acréscimo de algo novo. Toda dor contém sua lição. Ninguém duvida disso. O resiliente consegue aprender com o golpe sentido.

O terceiro momento do modelo perfeito é a ressignificação da estratégia e da consciência a partir do aprendizado. O tipo aqui descrito nunca se vitimiza, mesmo se for a vítima. Não existe lamúria ou sofrimento para o mundo. A dor existe foi sentida, houve reação com aprendizado e dele surgiu um novo ser, mais forte e mais sábio.

É bom descrever tipos perfeitos. Quase sempre são inexistentes. São como a biografia de santos medievais: sem falha, diamantes sem jaça; modelos e, como tal, inatingíveis. Existe um propósito didático de mostrar a perfeição para nós que chafurdamos no lodo da existência banal. Todos temos graus variados de resiliência diante da vida. Ninguém é o tipo ideal. Uma coisa não invalida a outra.

Etapa um: recebi um golpe. Resisto? Eu já resisti a vários e já desabei com outros. Depende da força e do tipo do agressor. Sou ótimo com debates entre inimigos. Desabo quando a estocada é de alguém de confiança. Sou forte com os dardos adversários. Fragilizo-me com fogo amigo. Como um jacaré, tudo que ataca pelo casco duro e externo é recebido com certa indiferença. O baixo-ventre é liso e vulnerável.

Etapa dois: a aprendizagem sempre existe, porém, é comum que venha com dor e mágoa, produzindo amargor quase infindo. Mais do que uma lição é uma ferida aberta que me deixa com menos ousadia, com trauma, com medo. Algumas dores provocam medo apenas. Não saio melhor, emerjo mancando e gemendo, teatralmente.

Última etapa do resiliente clássico: eu tenho momentos de aguda vitimização. Parece que a exposição teatralizada da dor é um tipo específico de grito de socorro que lançamos ao círculo íntimo. O versículo de tais ocasiões é o das Lamentações de Jeremias: “Ó vós todos que passais pelo caminho, parai e vede se há dor semelhante à minha dor” (Lm 1, 12). Eu quero que me vejam e que lamentem muito, reconhecendo a extensão atroz da minha tragédia única. A pena alheia serve como um pífio consolo, todavia é o que temos para o momento. Como carpideiras, chorem todos e todas pela minha miserabilidade. Após seu choro, tendo comungado do vale de lágrimas, minhas feridas estão lá, agora com a diferença de serem públicas e lamentadas. Por vezes, só restam a autopiedade e a reclamação ao machucado.

Creio que existe algo entre os dois modelos: o da resiliência ideal e o da vontade de desistir ou de chorar apenas. Como narrativa de santos, o modelo perfeito serve como para indicar o ponto no qual não me encontro, porém devo reagir para almejá-lo. Sempre é bom ser resiliente e todos os palestrantes e livros têm razão: sem resiliência em algum grau, épico ou homeopático, é impossível enfrentar o mundo.

Resiliência é virtude, sem dúvida. Está ao lado da sabedoria, do equilíbrio e da paz perfeita. São metas corretas, elevadas, estátuas de deuses gregos em comparação com meu corpo de gorduras muito bem localizadas e com usucapião. Devemos estudar, falar e incentivar o modelo perfeito de quem deveríamos ser. Precisamos pensar sobre quem somos de verdade, ou não haverá resiliência que dê conta da frustração entre o que gostaríamos e o que vivemos.

Oscar Wilde garantiu que, quando resistimos a alguma tentação, é porque ela era fraca. O doce não comido, o drinque recusado, a cantada evitada eram focos tênues que não me abalaram de verdade. Se fossem extraordinários, eu teria caído da minha fortaleza de virtudes. Talvez eu possa ser resiliente com as dores que, de fato, não me desestruturam. Posso até me orgulhar de ser mais forte do que outras pessoas em casos análogos. Mais interessante ressaltar minha virtude superior do que avaliar que aquela não era uma área sensível para mim.

O conto extraordinário de Kafka, Um Artista da Fome, fala de um homem com extrema resiliência para aguentar jejuns prolongados. Era um herói! Ao final, emitiu a verdade surpreendente. Ele não era um homem de vontade férrea, apenas nunca havia encontrado um prato que… o seduzisse realmente. Seu paladar nunca fora tentado. Creio ser a receita geral da resiliência: a serenidade diante das coisas que, na verdade, não nos atingiram. Esperança ajuda sempre.

15 de janeiro de 2021

A MISÉRIA DO PRESIDENCIALISMO!

(José Serra – O Estado de S. Paulo, 14) O destino dos EUA, a República mais antiga, mais estável, mais rica e mais poderosa dos tempos modernos, está em alto risco e, apesar de seus sintomas de decadência terem surgido na década de 1960, ninguém é capaz, hoje, de prever seu futuro. O destino de uma das maiores democracias do mundo, que alterna períodos de relativa estabilidade com outros de autoritarismo, períodos de alto crescimento econômico com outros de retrocesso, é incerto até mesmo quanto ao ano que começa. Refiro-me ao Brasil, onde não se pode hoje prever em que direção irá o atual retrocesso econômico e sanitário, nem se, e como, enfrentaremos os desafios do aumento do desemprego e da pobreza.

Os dois países não estão isolados nessa condição de enfrentar desafios que parecem maiores do que os recursos de que dispõem para superálos, entre os quais as ameaças à liberdade e à igualdade. Diferentemente das décadas de 1970 e 1980, em que a chamada onda democrática liberou do autoritarismo dezenas de países, as ameaças à democracia voltaram a se espalhar por todo o mundo – incluídas as Américas do Sul, Central e, agora, a América do Norte.

O fenômeno tem sido tratado como neopopulismo, ou neonacionalismo, e frequentemente associado ao surgimento de lideranças com perfil centralizador e autoritário, que defendem um regime em que o poder seja exercido contra os inimigos da nação em relação direta entre o líder e “o povo”. Alguns autores consideram que o requisito essencial para a definição do líder populista é que o principal obstáculo à sua conjunção carnal com o povo são as instituições, quaisquer que sejam. Daí a sua necessidade de esvaziar, contornar, enfraquecer ou demolir as instituições vigentes.

Nos últimos anos se multiplicaram, na literatura acadêmica, nos think tanks e na mídia, estudos e opiniões centrados na explicação do perfil dos líderes neopopulistas. Poucos são os que levam em conta que o perfil populista é um estilo de liderança muito frequente em todos os países e em todos os níveis de governo, e a questão fundamental é saber como se tornou possível que um aventureiro, muitas vezes desconhecido ou sem experiência executiva, alcance o mais alto poder em uma nação.

Dessa perspectiva, que considero a mais adequada para entender as incertezas hoje enfrentadas pelo Brasil e pelos EUA, trata-se de compreender as condições políticas que tornaram possível uma sociedade moderna e complexa entregar livremente o poder a um líder populista. Os muitos anos de vida pública que dediquei a estudar o sistema político brasileiro me permitem apontar o regime presidencialista, o sistema de voto proporcional e a relação entre os Poderes constituídos como o conjunto de fatores que tornam a Nação vulnerável ao aventureirismo em sua principal encarnação, o populismo.

O presidencialismo é um regime de governo que, por definição, produz uma divisão entre Poderes distintos de igual legitimidade, mas não garante que as maiorias que elegem esses Poderes sejam idênticas, ou sequer compatíveis. A convivência produtiva entre o presidente e o Parlamento depende sempre de um conjunto complexo de fatores, sobre os quais o presidente tem pouco ou nenhum controle – as relações entre partidos, as agendas dos parlamentares, as insatisfações, as necessidades e os ideais do eleitorado. Com isso a probabilidade de cumprir suas promessas, ou mesmo de simplesmente controlar a gestão pública, tende a ser baixa, abrindo as portas para candidatos que prometem tudo a custo de nada. Os quais, se eleitos, farão o mesmo percurso, agregando mais insatisfação ao ânimo popular, e reiniciando percurso semelhante.

Daí decorre uma tendência que vem sendo observada em toda parte: a corrosão da legitimidade das democracias representativas, uma vez que o representante é visto como um usurpador, que não ouve, não cumpre seus compromissos com os representados e nem sequer os respeita.

No regime parlamentar, que defendo, o presidente representa o Estado, mas quem exerce o governo é, por definição, o líder de um partido majoritário ou capaz de formar uma coalizão majoritária. O mandato do governo depende da maioria parlamentar, e ambos dependem de cooperar para cumprir as expectativas do eleitorado.

O sistema de voto proporcional no Brasil exacerba a perda de legitimidade da democracia representativa e os obstáculos à capacidade presidencial de governar. Exercido com lista aberta em megadistritos, ele produz, por construção, uma relação opaca entre representante e representado, o que reforça os sentimentos de frustração e impotência do eleitor, sentimentos também encontrados nos EUA.

Desde o fim do mandato de Bill Clinton, em 2000, apenas Barack Obama foi vitorioso nas urnas, graças a um colégio eleitoral concebido para limitar o voto popular direto. O sentimento de frustração e impotência do eleitor serviu de catalisador do ódio mobilizado por um aventureiro para demolir as instituições e perpetuar-se no poder. Não conseguiu, mas seu legado de desmoralização da legalidade vigente e da convivência pacífica entre cidadãos terá consequências imprevisíveis.

14 de janeiro de 2021

A NECESSÁRIA RESISTÊNCIA DE MAIA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 13) Finalmente, depois de 24 meses no cargo, o presidente Jair Bolsonaro começa a encontrar a devida resistência ao modo como vem governando o País. Ao longo da semana passada, por exemplo, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), fez declarações assertivas sobre o presidente da República.

No dia 9 de janeiro, Maia escreveu no Twitter: “Bolsonaro é covarde”. O presidente da Câmara referia-se a uma notícia da revista Veja com o título Bolsonaro culpa Pazuello por perda de popularidade e atraso da vacina.

Não cabe dúvida quanto à responsabilidade de Jair Bolsonaro pelo modo como o Ministério da Saúde vem enfrentando a pandemia de covid-19. Os dois ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, que pretenderam enfrentar o novo coronavírus de forma minimamente técnica e não aceitaram as ordens preconceituosas e negativistas do presidente da República foram sumariamente demitidos.

Para evitar novos incômodos, Jair Bolsonaro colocou o intendente Eduardo Pazuello na chefia do Ministério da Saúde. As condições eram claras: obedecer ao chefe, sem contestar. Além disso, sempre que quisesse, Jair Bolsonaro poderia repreender ou desmentir o intendente em público.

Em outubro de 2020, o intendente afirmou que o governo federal negociava com o Instituto Butantan a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac. Imediatamente, Bolsonaro mostrou quem mandava. “Tenha certeza, não compraremos vacina chinesa”, disse. Não é de estranhar que o presidente tenha de ouvir agora coisas desagradáveis sobre seu comportamento.

Rodrigo Maia também reagiu à declaração de Bolsonaro de que, sem voto impresso em 2022, “nós vamos ter problema pior que os EUA”. O presidente referia-se nada mais nada menos que à invasão do Congresso americano por apoiadores de Donald Trump.

“A frase do presidente Bolsonaro é um ataque direto e gravíssimo ao TSE e seus juízes. Os partidos políticos deveriam acionar a Justiça para que o presidente se explique. Bolsonaro consegue superar os delírios e os devaneios de Trump”, escreveu o presidente da Câmara no dia 7 de janeiro.

Na mesma semana, ao comentar uma notícia do jornal Folha de S.Paulo (Brasil deixa de pagar banco do Brics e governo acusa Congresso), Rodrigo Maia escreveu: “Governo transferindo responsabilidade. É prática de um governo incompetente. É sempre assim”.

Um dos alicerces do regime democrático é a responsabilidade de quem exerce o poder. Por isso, é especialmente perniciosa a desinformação que tenta culpar um Poder por erros, confusões e omissões que são de autoria de outro Poder. A população tem direito a saber a verdade dos fatos. Só assim, poderá depois exercer conscienciosamente seus direitos políticos. A mendacidade é inimiga da democracia – que também é um regime de responsabilidade.

Diante de desarranjos populistas e autoritários, é muito bom que haja resistência da sociedade e dos partidos políticos que a representam. É também alvissareiro constatar a prontidão do Judiciário para proteger, quando acionado, a Constituição e o Direito. Mas é especialmente importante que também o Congresso, por meio de suas lideranças, se manifeste perante assuntos de tamanha relevância pública.

A política não pode se ausentar da tarefa de recordar os limites e responsabilidades do chefe do Executivo. Assim como toda autoridade num Estado Democrático de Direito, o presidente da República não pode se esquivar das responsabilidades do cargo, tampouco pode usar sua posição de destaque para proferir ameaças, explícitas ou veladas.

Houve quem se escandalizasse com as palavras de Rodrigo Maia. Afinal, os posts do presidente da Câmara no Twitter escancararam aspectos um tanto complicados do comportamento do presidente da República. A rigor, no entanto, escandalosa é a falta de contestação por parte de Jair Bolsonaro. Como já havia ocorrido em outras situações, o presidente Bolsonaro, que tanto gosta de falar, simplesmente se calou quando confrontado. Deu a entender que, apesar de suas dificuldades cognitivas, captou o fundamento das acusações.

13 de janeiro de 2021

A MENTIRA COMO FERRAMENTA POLÍTICA!

(Andrew Higgins – NYT/O Estado de S. Paulo, 12) Em um telegrama para Washington em 1944, George F. Kennan, conselheiro da embaixada dos EUA na Moscou de Stalin, alertou sobre o poder oculto mantido por mentiras, observando que o governo soviético “tinha comprovado algumas coisas estranhas e perturbadoras sobre a natureza humana”.

A mais importante entre elas, escreveu ele, é que, no caso de muitas pessoas, “é possível fazê-las sentir e acreditar em praticamente qualquer coisa”. Não importa o quão falso algo possa ser, ele escreveu, “para as pessoas que acreditam nisso, torna-se verdade. Ela conquista a validade e todos os poderes da verdade”.

A visão de Kennan, formada por sua experiência na União Soviética, agora tem uma ressonância assustadora para os EUA, onde dezenas de milhões acreditam em uma “verdade” inventada pelo presidente Donald Trump: Joe Biden perdeu a eleição de novembro e tornou-se presidente eleito apenas por meio de fraude.

Mentir como ferramenta política não é novidade. Nicolau Maquiavel, escrevendo no século 16, disse que as pessoas não gostam de ser enganadas, mas “aquele (líder) que engana sempre encontrará aqueles que se permitem ser enganados”. A disposição, e até mesmo o entusiasmo, de ser enganado tornouse nos últimos anos uma força motriz na política mundial, principalmente em países como Hungria, Polônia e Turquia, todos governados por líderes populistas adeptos a contar meias-verdades ou inventá-las completamente.

Janez Jansa, um populista de direita que em 2018 tornou-se primeiro-ministro da Eslovênia – o país natal de Melania Trump – foi rápido em abraçar a mentira de Trump de que ele venceu. Jansa o parabenizou após a eleição de novembro, dizendo “está muito claro que o povo americano elegeu” Trump e lamentando “fatos negados” pela grande imprensa.

Até o Reino Unido, que se considera um bastião da democracia, foi vítima de mentiras evidentes, mas amplamente aceitas, votando em 2016 para deixar a União Europeia após alegações do lado pró-brexit de que sair do bloco significaria ¤ 350 milhões a mais (R$ 2,3 bilhões) todas as semanas para o serviço de saúde do país. Aqueles que propuseram essa mentira, incluindo o político do Partido Conservador que se tornaria primeiro-ministro, Boris Johnson, mais tarde admitiram se tratar de um “erro”.

Mentiras maiores e mais corrosivas, aquelas que não apenas mexem com números, mas remodelam a realidade, encontraram apoio na Hungria. Lá, o líder populista Viktor Orbán classificou o investidor e filantropo George Soros, um judeu nascido na Hungria, como o mentor obscuro de um plano sinistro para minar a soberania do país, substituir os húngaros nativos por imigrantes e destruir os valores tradicionais.

Na Polônia, o profundamente conservador Partido Lei e Justiça de Jaroslaw Kaczynski, no poder desde 2015, promoveu a própria teoria da conspiração multifuncional que muda a realidade. O partido repete a alegação, já desmascarada, de que a morte em 2010 de dezenas de autoridades polonesas, incluindo o irmão de Kaczynski – presidente da Polônia na época – em um acidente de avião no oeste da Rússia foi o resultado de um complô orquestrado por Moscou e ajudado, ou ao menos encoberto, pelos rivais do partido em Varsóvia.

Trump. Nos EUA, ao promover uma mentira colossal, de que obteve uma “vitória eleitoral esmagadora inviolável”, e se apegando a ela apesar de dezenas de decisões judiciais estabelecendo o contrário, Trump ofendeu seus oponentes políticos e deixou até mesmo alguns de seus apoiadores de longa data balançando a cabeça em relação a sua mentira.

Ao abraçá-la, no entanto, o presidente escolheu um caminho que geralmente funciona – pelo menos em países sem sistemas jurídicos fortemente independentes e meios de comunicação, assim como outras organizações, que trabalham com verificação da realidade.

Depois de 20 anos no poder na Rússia, o presidente Vladimir Putin, por exemplo, mostrou que Kennan estava certo quando escreveu da capital russa em 1944: “Aqui os homens determinam o que é verdadeiro e o que é falso”. Muitas das mentiras de Putin são relativamente pequenas, como a alegação de que jornalistas que expuseram o papel do serviço de segurança da Rússia em envenenar o líder da oposição Alexei Navalni estavam trabalhando para a CIA. Outras não são, como sua insistência em 2014 de que os soldados russos não desempenharam nenhum papel na tomada da Crimeia da Ucrânia ou nos combates no leste da Ucrânia – mais tarde reconheceu que “é claro” que eles estavam envolvidos.

Se o universo de Trump entrará em colapso agora que alguns aliados saíram de cena e o Twitter acabou com seu megafone mais potente para transmitir mentiras, é uma questão em aberto. Mesmo depois do cerco ao Capitólio por arruaceiros pró-trump, 174 integrantes do Congresso votaram contra o resultado da eleição.

Na Rússia, Hungria e Turquia, a percepção de que o “outro sujeito” não deve ter permissão de oferecer uma versão diferente da realidade levou a uma pressão constante a jornais, emissoras de televisão e outros meios de comunicação fora de sintonia com a linha oficial. O presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, fechou mais de 100 veículos de imprensa e, por meio de intimidação da polícia tributária e outras agências estatais, forçou os principais jornais e emissoras a transferir o comando a partidários do governo.

A ascensão de Trump também ajudou a capacitar um primo da grande mentira – um boom na desinformação nas mídias sociais e na ficção da teoria da conspiração de extrema direita. Isso foi mais notavelmente personificado pela expansão global do Qanon, um fenômeno outrora obscuro que afirma que o mundo é dirigido por uma conspiração de poderosos políticos liberais que são pedófilos sádicos. Trump não repudiou os discípulos da ideia, muitos dos quais participaram do caos no Capitólio na quarta-feira.

Até certo ponto, cada nova geração fica chocada ao saber que os líderes mentem e as pessoas acreditam neles. “Mentir nunca foi tão difundido como hoje. Ou mais desavergonhado, sistemático e constante”, escreveu o filósofo francês Alexandre Koyré em seu tratado de 1943, Reflexões Sobre a Mentira.

O que mais afligia Koyré, no entanto, era que as mentiras nem precisam ser plausíveis para funcionar. “Pelo contrário”, escreveu ele, “quanto mais grosseira, maior, mais imperfeita a mentira, mais prontamente ela é acreditada e seguida”.

12 de janeiro de 2021

DESAFIO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS É EVITAR NOVA DÉCADA PERDIDA NO PAÍS!

(Zeina Latif, O Estado de S.Paulo, 07) A crise atual é grave, mas será ainda mais perversa se não tirarmos lições dos erros e também dos acertos. Começando pelos acertos, o Legislativo não ficou paralisado. Além das medidas anticrise, foram aprovadas reformas – marco do saneamento básico, lei de licitações, nova lei de falências – e outras tantas avançaram – lei do gás, marco legal de cabotagem e independência do Banco Central.

A Câmara, liderada por Rodrigo Maia, teve importante papel em frear centenas de iniciativas irresponsáveis, que iam desde suspender o pagamento de contas de consumo à proibição de cobrança de juros pelos bancos. Medidas que desorganizariam a economia e pesariam nas contas públicas. Agravariam a crise e deixariam um rastro de insegurança jurídica.

O Congresso tampouco deu ouvidos a recomendações equivocadas de política econômica, como a de permitir o financiamento dos gastos públicos com emissão monetária. A PEC do orçamento de guerra proveu maior poder de ação ao Banco Central de forma prudente. A aceleração recente da inflação serve de alerta contra propostas inadequadas para um país emergente com graves problemas fiscais.

Houve muitos acertos do Banco Central, no timing e no desenho das medidas para injetar liquidez no sistema monetário e, de forma inédita, elevar substancialmente a capacidade de empréstimo dos bancos, medida que ultrapassou R$ 1,5 trilhão. Além disso, teve participação nas políticas de socorro a empresas. Também merece destaque o avanço da agenda estrutural, como o lançamento do Pix – desconhecido por Bolsonaro. O prêmio internacional de “presidente de Banco Central do ano” recebido por Roberto Campos Neto diz muito.

Os bancos contribuíram para o bom funcionamento do mercado de crédito. O setor reagiu bem às políticas governamentais. Houve expressivo aumento da repactuação de dívidas e do chamado crédito direcionado, que inclui as medidas de socorro governamental, com destaque para o crédito a micro, pequenas e médias empresas.

Na recessão anterior, os bancos foram muito conservadores. A frágil situação das empresas foi agravada pela falta de crédito, aprofundando a crise. Lições foram aprendidas. O aumento do estoque de crédito livre em novembro estava em 17% na comparação anual (25% na pessoa jurídica), ante recuo de 3% no biênio 2016-17 (queda de 12% na PJ).

Moral da história: aqueles muitas vezes vistos como “vilões” tiveram importantes acertos. Congresso, Banco Central e bancos foram parte da solução.

Já os erros foram bastante discutidos ao longo do ano, a começar pela gestão da saúde, que deixa uma sensação de que 2020 não acabou. Sem vacinação, a incerteza da recuperação da economia é grande, com graves consequências sociais. As medidas de socorro a indivíduos e empresas expiram, mas a doença, não.

O baixo crescimento torna a economia mais vulnerável a choques. Não convém se iludir com a projeção de crescimento de 3,4% em 2021 das instituições financeiras. Ela embute um quadro de estagnação, pois a cifra reflete basicamente o que os economistas chamam de carrego estatístico – uma combinação de base de comparação baixa (a média de 2020) e ponto de partida mais elevado por conta da recuperação no último semestre.

Do lado fiscal, as falas do presidente revelam grande incômodo com as restrições orçamentárias e, ao mesmo tempo, indisposição para avançar com reformas estruturais, mesmo em meio à crise, que costuma ser estímulo para enfrentar o custo político de reformas. Aumentou a chance de “furo” do teto de gastos, o que implicará mais incertezas, ainda que não a ponto de haver um choque de juros pelo BC este ano.

Apesar dos riscos para 2021, essa não é a maior preocupação, mas, sim, um governo que, ao não agir à altura dos desafios, coloca a cada dia mais um tijolo na construção de outra década perdida.

Impedir esse cenário é o grande desafio das instituições democráticas, contendo retrocessos, promovendo o debate público, reconhecendo erros e acertos e construindo alternativas políticas para o futuro.

11 de janeiro de 2021

INVASÃO DO CAPITÓLIO É RETRATO DE COMO TRUMP MUDOU SEU PARTIDO!

(The Economist / O Estado de S. Paulo, 10) O livro mais importante da era Trump não foi Medo, de Bob Woodward, nem Fogo e Fúria, de Michael Wolff, nem qualquer um dos outros best-sellers que expuseram o circo da Casa Branca. Indiscutivelmente, o livro mais importante da era Trump foi a obra instigante de dois cientistas políticos de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicada um ano após a ascensão de Donald Trump à presidência e intitulada Como as democracias morrem.

Depois de muitos anos pesquisando derrapagens democráticas no Leste Europeu e na América Latina, a dupla admitiu ter ficado surpresa ao voltar os olhos para seu próprio país: “Sentimos pavor (…) bem agora que estamos tentando nos tranquilizar, dizendo que as coisas não podem ser tão ruins assim por aqui”. A invasão do edifício do Capitólio em 6 de janeiro por milhares de seguidores de Trump brandindo tacos de beisebol e a bandeira dos confederados mostrou que as coisas estão bem ruins, sim.

Pode-se argumentar que a sessão do Senado interrompida pelos insurgentes seria ainda mais preocupante. Mais de dois terços dos membros republicanos da Câmara dos Representantes e mais de um quarto dos senadores republicanos estavam prestes a votar para magicamente reverter a derrota de Trump em vitória, rejeitando os votos do colégio eleitoral de um punhado de Estados nos quais ele perdera.

Naturalmente, com uma ladainha bem familiar aos golpistas, os parlamentares em questão alegavam que estavam tentando proteger a democracia, não a derrubar. Josh Hawley, do Missouri, que liderou a iniciativa no Senado, declarou que “as preocupações de milhões de eleitores quanto à integridade eleitoral merecem ser ouvidas”.

A grande maioria dos eleitores republicanos que afirmam acreditar que Trump ganhou a reeleição em novembro não está respondendo a preocupações racionais. Se estivessem, deveriam ter se tranquilizado diante do número recorde de decisões judiciais, verificações de segurança e recontagens gerado pelos dois meses de esforços de Trump para reverter os resultados. As sessenta e tantas contestações de sua equipe jurídica foram objeto de escárnio geral, até mesmo na Suprema Corte dos Estados Unidos. Ainda assim, a crença de que Trump foi roubado se recrudesceu entre o eleitorado republicano. Uma pesquisa do YouGov encomendada pela Economist nesta semana apontou que 64% queriam que o Congresso revogasse o resultado da eleição em favor de Trump.

William F. Buckley Junior, um dos arquitetos do movimento conservador moderno, chamou o conservadorismo de “política da realidade”. Agora parece justamente o contrário. A maioria dos eleitores republicanos aceitou a afirmação de Trump de que os democratas não podem ganhar legitimamente e de que a falta de provas de suas tramoias é prova de que houve alguma ocultação.

“É difícil imaginar um ato mais antidemocrático e anticonservador”, foi o veredicto do sempre reticente Paul Ryan, ex-líder republicano na Câmara, sobre a decisão de tantos congressistas republicanos de apoiar essa ficção. De sua parte, Ziblatt disse que vê essa manobra como um “ensaio geral” para um esforço republicano mais sério de derrubar alguma eleição, possibilidade que ele agora considera provável.

Há razões para esperar que essa previsão acabe se provando pessimista demais. Os republicanos que votaram para anular os resultados o fizeram de maneira imprudente e cínica, mas sabendo que não teriam sucesso. As autoridades republicanas que realmente poderiam ter mudado o resultado da eleição seguiram a Constituição. Entre elas se encontra o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, objeto de uma campanha de intimidação e abuso por parte do presidente e seus comparsas. Mitch McConnell, assim despojado de sua maioria no Senado, emitiu uma repreensão contundente contra Hawley e os demais. Derrubar os votos do colégio eleitoral “causaria danos à nossa república para sempre”, disse McConnell, que raras vezes é acusado de agir com base em princípios. Minutos depois, as “pessoas especiais” de Trump se lançaram à invasão do Capitólio – o que, por sua vez, encorajou os republicanos mais experientes a criticar o presidente de maneira mais direta do que jamais haviam ousado.

Ainda está longe de ser um repúdio generalizado a Trump por parte do establishment republicano. E, sem esse repúdio, é difícil imaginar que o presidente abrirá mão de sua força dentro do partido, o que daria a este a oportunidade de voltar a se comprometer com as normas democráticas. No entanto, esse repúdio agora parece mais imaginável.

O americano médio, ainda que sob intensa polarização, não gosta de violência de turbas e preza pelos símbolos de sua democracia. Um comentarista lembrou a mudança no apoio da população aos republicanos em 1995, depois que Timothy McVeigh, integrante do tipo de milícia que diz amar a liberdade até então defendida pela direita, explodiu um prédio federal em Oklahoma, matando 168 pessoas. O paralelo é inexato, mas indica até que ponto Antes mesmo dos eventos desta semana, entre a maioria dos republicanos mais experientes parecia muito forte a convicção de que Trump manteria sua preeminência sobre o partido – um caso de síndrome de Estocolmo, talvez. “A base acha que Trump é um mártir”, disse um senador republicano. “Pelos próximos dois anos, talvez quatro, ele vai conseguir ferrar todo mundo nas primárias, sem levantar um dedo”. Isto pode se revelar correto. Ainda assim, os eleitores querem um vencedor, e é por isso que Grover Cleveland foi o único presidente com mandato único a ter sido reeleito para o cargo, em 1892. E, depois que Trump deixar a Casa Branca e desaparecer da vista diária, mais e mais republicanos talvez comecem a enxergar aquilo que o mito da eleição roubada pretende ocultar: sua fraqueza eleitoral.

Os proponentes do mito citam os muitos novos eleitores que ele atraiu em novembro para explicar por que Trump não poderia ter perdido. Mas para tanto seria necessário fechar os olhos para o fato de que Biden atraiu muito mais gente. Em uma eleição que teve comparecimento recorde para ambos os partidos, o democrata ganhou os 6 milhões de eleitores que já haviam votado em algum candidato de outro partido por uma proporção de 2 para 1. E conquistou eleitores de primeira viagem pela mesma proporção.

Trump também impulsionou a maioria dos candidatos republicanos ao Congresso. Seu partido teve um ganho líquido de dez cadeiras na Câmara e quase manteve a maioria no Senado, mesmo que ele tenha perdido a disputa presidencial por uma margem considerável. Isto sugere que os republicanos podem ter um belo futuro pósTrump. Apesar de suas derrotas esta semana na Geórgia – Estado cujo eleitorado jovem e plural há muito tem apresentado tendências democratas – a marca republicana não foi muito prejudicada pelos anos Trump. O partido também tem uma grande vantagem na Flórida. Carlos Curbelo, ex-congressista do sul da Flórida, onde novos apoiadores latinos ajudaram o partido a ganhar duas cadeiras na Câmara, descreve esse avanço como “um grande processo, a coisa pela qual os republicanos estão mais animados”. Ele o considera um indicador do futuro ideal para o partido: uma coalizão multiétnica dedicada a fornecer soluções de mercado para os grandes problemas – como, por exemplo, a mudança climática – que a esquerda tende a lançar sobre os ombros do governo.

Estas são conjecturas razoáveis. Sublinham o fato de que a trajetória futura do partido ainda não está definida. Ninguém previu Trump em 2012. Mas esse futuro pós-Trump mais feliz para o partido do presidente até agora é só uma possibilidade teórica. A realidade do populismo de Trump não é o pensamento conservador heterodoxo, mas as fúrias dos populares que irromperam no Capitólio esta semana. E reprimi-los não será fácil, mesmo se Trump for embora.

É bem difícil imaginar a direita voltando deste estado fanático para o reaganismo moderado. A ideia de Marco Rubio – manter os eleitores da classe trabalhadora a bordo de políticas econômicas populistas e, ao mesmo tempo, baixar o volume da mensagem cultural o suficiente para atrair de volta alguns suburbanos – pode ser mais promissora.

McConnell e sua facção republicana deveriam ver a iminente possibilidade de cooperação com o governo Biden como uma oportunidade para este fim. O presidente eleito é um veterano negociador do Senado, disposto a governar a partir do centro. E a estreita maioria democrata no Senado não dará ao seu partido outra opção a não ser tentar fazer exatamente isto. O senso comum diz que McConnell, veterano da oposição desleal, não vai querer participar desse processo – assim como ele obstruiu o governo Obama.

Essa dinâmica empurrou Obama para a esquerda e ajudou a alimentar a crescente fúria partidária da direita. O que, por sua vez, acabou gerando o Tea Party, Trump e a vergonhosa guinada antidemocrática entre os republicanos do Senado – à qual, é preciso reconhecer, McConnell se opôs firmemente. É de se imaginar que ele e seus colegas republicanos machucados por Trump não queiram passar por tudo isso mais uma vez. Trabalhar com Biden para consertar alguns dos problemas mais graves do país seria um sinal de que eles de fato não querem.

08 de janeiro de 2021

“TEREMOS UM 2º TURNO MUITO DIFERENTE À PRESIDÊNCIA EM 2022”, DIZ CESAR MAIA!

(Valor Econômico, 08) “Ninguém é carta fora do baralho” para a próxima corrida presidencial – nem o ex-ministro da Justiça e ex-juiz Sergio Moro – e a eleição em 2022 tem o potencial de ser a mais disputada desde 1989, com as duas vagas no segundo turno em aberto, afirma o vereador e ex-prefeito do Rio por três mandatos Cesar Maia (DEM). O cenário, prevê, será bem distinto do padrão de competição que opôs petistas e tucanos por duas décadas e que desmoronou parcialmente em 2018, mas apontava ao menos duas forças políticas claras. A tendência agora é de incerteza. “Teremos um segundo turno muito diferente de 2018. Diferente porque não haverá favorito. Em 2018 os dois concorrentes no segundo turno estavam pré-definidos”, lembra, em referência a Jair Bolsonaro, então candidato pelo PSL, e Fernando Haddad (PT).

Pai do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), Cesar defende, em entrevista, a união do que classifica de “forças democráticas” para uma aliança que pode até se fragmentar no primeiro turno, mas não na segunda etapa. “O fundamental é não termos uma fragmentação no segundo turno e o poder aglutinador prevalecer”, afirma. Cesar Maia sinaliza que nesse grupo há espaço para eventual adesão à candidatura de centro-esquerda de Ciro Gomes (PDT), algo que foi rechaçado em recente entrevista ao Valor pelo correligionário Eduardo Paes. O prefeito do Rio disse que o PDT demonstrou, regionalmente, nos últimos anos, não querer praticar uma política de alianças ao lançar candidatos contra ele e, por isso, Ciro não mereceria receber apoio. “Não se pode confundir eleições nacionais com municipais. É outro panorama”, diverge o ex-prefeito.

Cesar Maia advoga a ideia de um “centro democrático” mas evita falar do futuro eleitoral do filho, um dos maiores responsáveis no Congresso por articular o campo político. Prefere não comentar a possibilidade da participação de Rodrigo na corrida presidencial – ainda que como vice. Em 2018, o pai declarou em entrevista ao Valor apoio ao tucano Geraldo Alckmin em desacordo à pretensão do filho que buscava concorrer ao Planalto. “Cabe a ele responder. Estamos muito longe de 2022. Pense em 2016”, esquiva-se.

Maia também prefere não opinar sobre eventual candidatura própria do DEM, que tem em suas fileiras o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Mas afirma que o apresentador Luciano Huck (sem partido) está no jogo e não poderia mais ser considerado um outsider, pelo grau de envolvimento com atores políticos nos últimos anos. Sobre Moro, não o afasta do páreo, como já fazem alguns analistas: “Ninguém é carta fora do baralho. Os próximos meses dirão”.

Cesar Maia é contundente quando analisa o desempenho do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, cuja gestão classifica como um desastre. “Um desastre que pelos atrasos está produzindo uma mortalidade muito além do previsível em meses de verão. Isso aponta para um ciclo de pandemia muito, muito maior do que seria razoável”, critica.

A atuação de Pazuello só é possível pelo respaldo de Bolsonaro. E a insistência do presidente em manter o negacionismo – depois de dez meses e a morte de 200 mil brasileiros – se beneficia da falta de manifestações de rua, devido a medidas de distanciamento social. “A pandemia gerou uma imobilização popular. Sobre ela, a base do presidente se afirmou. Mas olhando as pesquisas em seu conjunto a situação de Bolsonaro não é tranquila”, diz.

Estudioso de levantamentos de opinião, Maia argumenta que “as pesquisas às vezes enganam”. Em sua opinião, as eleições de 2018 foram uma entressafra e produziram a “sensação de uma virada”. Mas foram ponto fora da curva, argumenta. “Em 2020, a curva voltou a seu leito”, aponta. O ex-prefeito não vê Bolsonaro com uma substancial popularidade, pois teria cerca de 30% de apoio num cenário “em que ainda não há um quadro definido de alternativas”. “O único que se pode garantir é que teremos segundo turno em 2022”, afirma.

Nesse momento, Maia não vê razões para a abertura de um processo de impeachment, mesma posição do filho, que não deu prosseguimento aos pedidos de afastamento de Bolsonaro. “Seria uma agitação inócua”, diz. O vereador, por outro lado, também não vê motivos para que o presidente avance sobre a independência do Congresso. Bolsonaro defende a candidatura de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara contra Baleia Rossi (MDB-SP), aliado de Rodrigo Maia, que lidera um bloco cujo principal discurso é o risco de interferência do Executivo no Parlamento. Cesar Maia minimiza: “A dinâmica política, desde 1988, tem sido a estabilidade institucional, com a afirmação do Estado de Direito, e aponta para a afirmação da independência dos poderes, independentemente de nomes”.

O pai de Rodrigo Maia afirma não acreditar que a distribuição de cargos por Bolsonaro possa favorecer Lira, já que o apoio em contrapartida não pode ser garantido, dado o sigilo do voto. “O voto secreto afeta os dois lados e não gera obrigações e inibições”, diz. Para o ex-prefeito, a eventual vitória de Baleia Rossi, com a adesão formal de partidos de esquerda, não significa que essas legendas o forçariam a exercer uma presidência menos amistosa que a de Rodrigo. “Certamente não. O que vale são as instituições e a estrutura legal. É isso que vai guiar o legislativo. Que enfrentará eleições também em 2022”, afirma.

Economista, Cesar Maia discorda da declaração de Bolsonaro, feita na terça-feira, sobre a suposta insolvência do país. “O Brasil não está quebrado. O problema é o governo federal não ter se envolvido nas reformas. E o ministro da Fazenda [Paulo Guedes] ter se inibido ao lado do presidente”, critica.

Mas, agravada pela pandemia, a situação fiscal pode piorar ainda mais, com o prolongamento das crises sanitária e econômica. Maia considera inevitável os movimentos feitos por prefeitos e governadores, como o de São Paulo, João Doria (PSDB), ou da iniciativa privada, por meio de clínicas particulares, que buscam imunização própria, diante da inércia do governo federal. “O processo de vacinações por coordenação nacional no Brasil sempre foi exemplar. Essa descentralização é muito mais uma reação ao imobilismo federal. Não é saída, é um recurso ao desespero que as pessoas, os Estados e municípios enfrentam”, diz.

No âmbito local, Cesar Maia assistiu à filha Daniela, irmã gêmea de Rodrigo, assumir a presidência da Riotur, que foi epicentro do escândalo “QG da Propina”, que levou o ex-prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) à prisão. Há pouco mais de 20 anos, Maia foi contrário à entrada do filho na política. Queria que Rodrigo seguisse no mercado financeiro. Em relação à Daniela, porém, conta que não fez esforço para dissuadi-la do cargo. “Ao contrário, porque encaixa bem no perfil e na experiência dela”, diz.

07 de janeiro de 2021

‘GRUPOS MAIS ORGANIZADOS TRAVAM REFORMA TRIBUTÁRIA’!

(Adriana Fernandes – O Estado de S. Paulo, 06) Presidente do Insper, o economista Marcos Lisboa é um observador atento do desenrolar da reforma tributária no Congresso. Ele considera que o caminho para uma boa reforma é garantir que os “iguais” paguem a mesma carga de impostos. Lisboa alerta, porém, que, na hora em que se tenta tratar todo mundo como igual, os grupos organizados se mobilizam e dizem: “comigo não, começa pelos outros”. Essa é a resistência, segundo ele, que vem sendo enfrentada pela proposta que não avançou no ano passado.

“Vamos aceitar os grupos terem pequenas perdas organizadas em troca de um ambiente de negócios mais saudável, mais competição, justiça tributária e maior abertura ao comércio, com maior acesso às tecnologias? Ou vamos continuar nessa situação ruim em que ninguém quer abrir mão?”, questiona ele. A seguir, trechos da entrevista.

• Por que é tão difícil avançar na agenda de corte de renúncias?

É um desafio porque, em geral, cada um desses gastos está regulamentado por uma lei específica ou até mesmo pela Constituição. Não é possível fazer uma abordagem geral, uma lei geral, para reduzi-los. Tem de enfrentar caso a caso. Mas cada vez que se vai entrar num caso particular, os grupos beneficiados se opõem. Vai discutir Zona Franca de Manaus, Simples (regime que simplifica o pagamento de impostos e oferece tratamento diferenciado para micro e empresas de pequeno porte), isenções, recebe a reação dos diversos grupos que são beneficiados.

• A reforma tributária ajuda a desatar esse nó?

A proposta que está na Câmara enfrenta o problema da tributação sobre consumo. Cria uma regra comum. Qualquer decisão de consumo, independentemente se é um serviço ou a compra de um bem durável, passará a pagar a mesma carga tributária.

• Para os críticos, vai gerar um aumento da carga, e que não seria o momento porque o Brasil está saindo de uma recessão.

Se a alíquota for bem calibrada, não é verdade que vai aumentar. Vai ser cobrada a mesma alíquota de todas as decisões de consumo, deixando-se de privilegiar algumas decisões em detrimento das demais. Aumentará em alguns casos e cairá em outros. Por exemplo, alguns serviços são muito onerados, como energia elétrica, que tem uma carga tributária muito elevada. Telecomunicações é a mesma coisa. Isso seria desonerado. Significa menos preços desses insumos para as empresas, as famílias.

• O corte de renúncias, não relacionados diretamente à reforma tributária, deveria ser aprovado antes dela ou pode vir junto?

O sistema do Brasil é tão caótico que é difícil corrigir todas as distorções de uma vez só. Há muitas distorções e muitas injustiças. Famílias em situações muito parecidas de renda, número de filhos, pagam alíquotas muito diferentes de imposto sobre a renda. Se é um empregado formal, a alíquota é bastante alta. Por outro lado, se você se organiza como uma pequena pessoa jurídica, paga muito menos. O caminho para uma boa reforma tributária é garantir que os iguais sejam igualmente tributados.

• Por que o brasileiro reclama que paga muito imposto, mas não briga para acabar com essas distorções e desigualdades?

No Brasil, se paga muito imposto para um país emergente. Isso decorre de termos gastos obrigatórios do setor público muito altos. A segunda parte da história é que esse imposto é desigualmente distribuído sobre as decisões de consumo e sobre as famílias. Aí, os grupos reagem. Quem paga menos imposto, não quer ser tratado como os demais. Vimos na discussão da reforma tributária diversos setores que ficaram preocupados de ter um pequeno aumento da carga tributária porque pagam menos. A reação foi de que querem pagar menos do que os demais: ‘não quero pagar imposto como o resto da sociedade’. Essa é a resistência à reforma.

• O governo terá de aumentar impostos para pagar os gastos da covid-19 em 2021?

O ideal seria uma reforma tributária que equalizasse a tributação para as famílias com a mesma renda. Isso daria um alívio para o País e tiraria todo esse contencioso tributário gigantesco que temos hoje, que paralisa os negócios e penaliza a produção. Isso permitiria ganhos de produtividade.

• Governo e Congresso estão convencidos dessa agenda?

A sociedade não está convencida dessa agenda. Vemos diversos grupos organizados da sociedade e do setor privado contra uma agenda de modernização e maior justiça tributária e redução dos subsídios. O que acaba acontecendo no Congresso é o reflexo de uma falta de consenso da sociedade. Mas tem também uma falta de liderança do Executivo nessa agenda. O próprio governo dá sinais contraditórios do rumo que quer retomar.

• 2020 provou que não dá para avançar na agenda de reforma tributária sem o governo?

É extremamente difícil. Estamos num regime presidencialista, o Executivo é quem tem as informações consolidadas da política pública. É quem tem a liderança do processo. Mas o próprio governo não sabe bem o que quer.

• A tributária é aquele tipo de reforma que todo mundo quer, mas sem que saia perdendo?

A reforma tributária tem o mérito de equalizar a cobrança de tributos. Mas na hora que vai tratar todo mundo como igual, os grupos organizados se mobilizam e dizem: ‘comigo não, começa pelo outros’. Isso trava o processo.

• A reforma tributária tem interesses muito mais pulverizados e é mais complexa que a da Previdência. Como captar apoio?

Estamos crescendo pouco e há muito tempo. Perdemos essa década. Os brasileiros empobreceram nessa década. Parte do problema vem dessa série de distorções setoriais e distribuição de benefícios. Para o País voltar a crescer como os demais, tem de começar a superar essas restrições. É uma escolha do País. Vamos aceitar os grupos terem pequenas perdas organizadas em troca de um ambiente de negócios mais saudável, com mais competição, justiça tributária e maior abertura ao comércio, com maior acesso às tecnologias? Ou vamos continuar com essa economia estagnada porque ninguém quer abrir mão do seu pequeno privilégio?

06 de janeiro de 2021

SHE-CESSION!

(Cecilia Machado – Folha de S.Paulo, 05) He-cessions —recessões econômicas com impactos diferenciados no emprego dos homens— têm sido a norma desde que as mulheres passaram a participar de forma mais permanente no mercado de trabalho. Na última grande recessão, em 2007-2009, não foi diferente: a perda de empregos concentrou-se em setores da indústria e da construção, sendo maior para os homens.

Na depressão de agora, os impactos no mercado de trabalho são ainda mais expressivos, mas, ao contrário de antes, estão drasticamente concentrados nas mulheres.

Os efeitos já eram dados como certo no início da pandemia, e o termo she-cession não demorou para ser inaugurado.

Uma política de distanciamento social —que afeta os setores nos quais as mulheres estão mais inseridas, como em serviços—, combinada com o fechamento das escolas, é a receita perfeita para fazer das mulheres as maiores perdedoras desta recessão.

As recentes estatísticas de emprego confirmam de forma impressionante o tamanho do desastre. No Brasil, o número de pessoas ocupadas caiu de 93 milhões para 82 milhões entre os terceiros trimestres de 2019 e 2020, uma perda de 11 milhões, repartida igualmente entre os gêneros, apesar de a participação das mulheres na população ocupada ser menor, de apenas 43%.

Pior ainda é o aumento da população fora da força de trabalho, que passou de 64 milhões para 78 milhões, uma alta de 14 milhões no número de pessoas que saíram do mercado de trabalho —nem trabalham, nem procuram emprego—, das quais 5,1 milhões são homens e 8,5 milhões são mulheres.

Ou seja, a cada 10 pessoas que saíram da força de trabalho, 6 eram mulheres e 4 eram homens. Nos Estados Unidos, a razão chegou a atingir 8 para 2, em setembro de 2020.

As preocupações com relação às amplificações das desigualdades de gênero ganham corpo quando se consideram que afastamentos, ainda que temporários, têm efeitos duradouros mesmos muitos anos após a recessão. Diversos estudos mostram que separações e afastamentos do emprego durante as recessões resultam em perdas salariais expressivas e menores chances de reemprego, assim como também efeitos que transbordam para a saúde e o bem-estar dos indivíduos.

E, mesmo que a recuperação fosse em “V”, nada indica que a recomposição de empregos irá compensar as perdas desiguais no mercado de trabalho. De fato, a retomada da economia vem favorecendo justamente mais os homens e menos as mulheres.

Hoje já se coloca bastante em dúvida se a recuperação se dará de forma rápida, e muitos analistas consideram que a crise sanitária permanecerá por boa parte de 2021, especialmente em economias periféricas.

As implicações para a amplificação das desigualdades de gênero são reais e concretas, e seus desdobramentos, persistentes no tempo. Alguns estudos (Alon et al. 2020) estimam que a pandemia implicará um gap de gênero aumentado por mais de uma década de agora, já que o salário relativo das mulheres cai durante a pandemia, como também mantém-se abaixo do nível inicial durante toda a recuperação.

Mas não só isso. Para além da desigualdade, a participação das mulheres no mercado de trabalho tem implicações para a própria recuperação da economia. Intuitivamente, a propagação de um choque econômico depende de como as famílias ajustam consumo, e o impacto é tanto menor quanto maior a possibilidade de emprego das mulheres, o que ficou bastante prejudicado com o fechamento das escolas.

A natureza de uma she-cession —como nesta pandemia— é bastante distinta das recessões anteriores. E as ações e políticas de enfrentamento à crise precisam considerar essas particularidades.

Entre elas, cabe reconhecer que reabertura das escolas tem implicações econômicas. Ela libera mão de obra para trabalho produtivo e favorece mais que proporcionalmente as mulheres. Permite não apenas que pais com filhos pequenos possam trabalhar como também reduz as barreiras da mobilidade social das crianças em situação de pobreza e estimula o crescimento econômico.

É um dos principais pilares da retomada da economia e precisa urgentemente passar a fazer parte do plano de recuperação em escala nacional, coordenado pelo Executivo federal, com planos e metas integrados.

Entre bares e escolas, a abertura das escolas promete exibir retornos econômicos muito maiores.

05 de janeiro de 2021

SELVA DE NOTÍCIAS!

(O Estado de S. Paulo, 04) As redes sociais produziram um aumento quantitativo formidável de fontes de informação. Mas isso não implica uma melhora qualitativa para o leitor. Na verdade, as evidências sugerem o contrário. Uma pesquisa do Pew Research Center revela que o público que utiliza as redes sociais como principal fonte de notícias é menos engajado e menos informado em comparação com o público de outras fontes, como mídia impressa, TV, rádio ou sites de notícias. Para agravar este quadro, o público das redes sociais está mais exposto à desinformação e mostra menos capacidade de discernimento.

A pesquisa se restringiu à população norte-americana, mas, dada a mecânica comum das redes sociais, seus resultados podem ser generalizados. Os pesquisadores mensuraram aspectos subjetivos do público (o seu interesse e engajamento) e objetivos (o seu domínio dos fatos e compreensão das narrativas).

Demograficamente, o público que utiliza primordialmente as mídias sociais como fonte de notícias é mais jovem e menos escolarizado. De um modo geral, este grupo tende a prestar menos atenção às notícias. Por exemplo, apenas 8% daqueles que formam a sua opinião a partir das redes sociais estão acompanhando “muito de perto” as eleições presidenciais norte-americanas de 2020. Para aqueles que se informam principalmente pela TV a cabo ou mídia impressa, esse contingente é quatro vezes maior (35% em média). A disparidade foi similar em relação aos protestos antirracistas desencadeados pelo assassinato de George Floyd.

Essa desproporção não está circunscrita à política, e vale mesmo para a maior notícia do ano – a pandemia. Apenas um quarto dos adultos que têm nas redes sociais sua fonte principal de informação está acompanhando “muito de perto” as notícias sobre a covid-19, enquanto para os usuários de outras fontes o contingente dos muito atentos sobe para a metade.

Consequentemente, o público das redes sociais está mais mal informado. Isso foi mensurado a partir de 29 perguntas sobre uma variedade de fatos relacionados às notícias, da economia ao processo de impeachment do presidente norte-americano até a covid-19. Em média, quatro em dez dos informados pelas redes sociais deram as respostas corretas, enquanto nos outros grupos foram seis em dez. Se entre os usuários das redes sociais apenas 17% foram considerados “muito bem informados” na esfera política, entre os usuários de fontes tradicionais foram cerca de 42%.

Os usuários das redes sociais também têm uma probabilidade muito maior de ouvir alegações falsas ou infundadas, como as teorias da conspiração sobre uma origem dolosa da covid-19. Apesar disso, este público se mostra menos preocupado com o impacto das notícias falsas. Apenas 37% mostraram esta preocupação, enquanto para aqueles que se baseiam em outras plataformas o contingente foi de quase 60%.

A pesquisa mostra ainda que aqueles que se nutrem prioritariamente das mídias sociais não só estão menos inteirados dos fatos, mas mostraram menor compreensão das narrativas do noticiário. Assim, além de estarem menos atentos e engajados, e mais desinformados e expostos à desinformação, os usuários das mídias sociais mostram ainda uma tendência maior a não compreender certas histórias-chave da esfera pública.

Desta forma, a pesquisa mostra que, ao contrário do que prega uma opinião bastante popularizada, a multiplicação de notícias e de fontes de informação proporcionada pelas redes sociais tornou o jornalismo mais, não menos importante para garantir um debate público de qualidade. De resto, o fato de que aqueles que se informam pelas redes sociais são mais jovens e têm índices menores de escolaridade revela a importância de políticas públicas para promover o letramento digital das camadas sociais menos favorecidas e das futuras gerações. A verdade é que o recurso à apuração profissional é hoje ainda mais decisivo do que no passado, não apenas para os cidadãos que quiserem exercer sua participação democrática, mas até mesmo – como mostram as métricas sobre a covid-19 – para questões de vida ou morte.

04 de janeiro de 2021

AUTORITARISMO SOB NOVAS VESTES!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 03) Seja qual for a cor ideológica ou o meio utilizado, o autoritarismo é sempre nefasto. É preciso estar alerta. A liberdade e a democracia são inegociáveis.

O País tem uma Constituição democrática vigente e realiza rigorosamente eleições no seu devido tempo. Pode-se, assim, ter a impressão de que o autoritarismo e outras violações do regime democrático sejam temas distantes dos brasileiros, como problemas do passado já superados. No entanto, nos dias de hoje continua havendo ataques à democracia, por novos e insidiosos meios, alertou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, em recente palestra. Nesses novos ataques, até mesmo as eleições são utilizadas para desacreditar o regime democrático.

Segundo Luís Roberto Barroso, “uma versão contemporânea do autoritarismo são essas milícias digitais que atuam na internet, procurando destruir as instituições e golpeálas, criando um ambiente propício para a desdemocratização”.

Nas eleições de 2020, o País assistiu a uma tentativa de desmoralizar o seu sistema eletrônico de votação. No dia do primeiro turno, hackers tentaram derrubar o site do TSE e houve vazamento na internet de dados de servidores obtidos por meio de um ataque virtual realizado dias antes. Ainda que essas duas operações não tenham provocado nenhum risco para a apuração dos votos, elas foram utilizadas para disseminar desconfiança em relação à segurança do sistema eleitoral.

Nesse ataque contra a democracia, os liberticidas ainda se valeram de um atraso do processamento de dados do TSE, ocorrido por questões técnicas alheias a qualquer atuação dos hackers. O atraso de algumas horas na divulgação dos resultados não interferiu na apuração dos votos, mas, para os que querem desacreditar a democracia, os fatos pouco importam. O que vale é o discurso distorcido, com o qual tentam disseminar desconfiança.

É interessante notar que, ao contrário do que afirmaram as fake news, as eleições municipais de 2020 foram um excelente exemplo do vigor da democracia no País. “Conseguimos fazer uma eleição (na pandemia), evitamos uma prorrogação (dos mandatos atuais ), adiamos para um momento em que foram feitas com mais segurança, conseguimos que o plano de segurança fosse observado e que não houvesse disseminação da doença, conseguimos uma abstenção bem baixa, de 23%, e conseguimos controlar as fake news e divulgar o resultado no mesmo dia”, lembrou o presidente do TSE.

No entanto, a despeito de todos esses fatos muito positivos, houve quem quisesse reduzir as eleições de 2020 ao problema operacional no computador do TSE, que, sem afetar a apuração, provocou atraso na divulgação dos resultados. Essa tentativa de distorcer a realidade não é ingênua e tampouco é casual. É parte da tentativa de minar os fundamentos do regime democrático.

“Com muita frequência, muitas vezes, mesmo nas democracias, há um esforço de desacreditar o processo eleitoral”, disse o ministro Luís Roberto Barroso. Citou, como exemplo, as últimas eleições presidenciais dos Estados Unidos, com a recusa de Donald Trump em aceitar a vitória de Joe Biden. Sem nenhuma prova, Trump repetiu durante semanas que o resultado das urnas era uma farsa, em clara tentativa de desacreditar as eleições.

Os ataques ao sistema eleitoral, tanto as ações de hackers como a disseminação de desinformação nas redes sociais, são graves ameaças ao regime democrático, já que contêm a essência do autoritarismo. Todas essas perversas manobras têm em comum a não aceitação de que o poder seja investido a terceiras pessoas, conforme o resultado das urnas. Os autoritários não gostam do voto. Por isso, disseminam tanta desconfiança em relação ao processo eleitoral.

“Há uma onda populista, autoritária e conservadora radical no mundo”, disse Luís Roberto Barroso. “Eu me refiro ao conservadorismo radical que se manifesta pela intolerância, pela agressividade, procurando negar e retirar direitos de quem pensa diferente”. Seja qual for a cor ideológica ou o meio utilizado, o autoritarismo é sempre nefasto. É preciso estar alerta. A liberdade e a democracia são inegociáveis.

30 de dezembro de 2020

CENA INTERNACIONAL MUDOU, POLÍTICA EXTERNA TERÁ DE SE AJUSTAR!

(Sergio Amaral – O Estado de S. Paulo, 30) As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.

Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.

Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.

Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.

Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.

O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.

A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:

1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.

2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potências. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.

3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.

4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.

No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.

29 de dezembro de 2020

ESTRAGO FISCAL MENOR DO QUE ESPERADO!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S.Paulo, 28) Quando os países desenvolvidos anunciam medidas de expansão de gastos, como os bilionários pacotes para compensar os danos econômicos da pandemia, o mercado financeiro torna-se otimista, com reflexos altistas nos preços das ações e redução da aversão ao risco. Aqui, no Brasil, ocorre exatamente o contrário. Qualquer suspeita de aumentos das despesas públicas tem forte impacto negativo sobre as expectativas dos agentes econômicos. Há várias razões para esse comportamento tão oposto, e as duas principais são as seguintes.

A primeira é que o Brasil, mais de uma vez, declarou moratória. A última foi em fevereiro de 1987, com a suspensão unilateral do pagamento dos juros sobre a dívida externa. Sem falar da redução forçada (haircut) do valor real da dívida interna, ocorrida nos vários planos econômicos para conter a hiperinflação. Ou seja, nosso passado nos condena.

A segunda é que nosso sistema político é frágil e pouco eficaz na condução de políticas públicas, o que gera muita instabilidade na economia. Desde a década de 1980 o País não consegue engatar um ciclo duradouro de crescimento. Isso, obviamente, põe a sustentabilidade do passivo público permanentemente em xeque.

Essas são as maiores restrições à validade, entre nós, da chamada Moderna Teoria Monetária, que tem como maior defensor no Brasil o brilhante economista André Lara Resende. Essa teoria tem como princípio fundamental a ideia de que todo governo que emite a moeda na qual sua dívida está denominada não possui restrição orçamentária.

Tudo isso para dizer que não é necessário ser um economista ortodoxo radical, tampouco um fiscalista extremo, para entender a necessidade premente de manter as contas públicas sob controle. Felizmente, o custo fiscal da pandemia no Brasil ficou muito menor do que o esperado.

Tornou-se lugar comum, e continua sendo utilizada por economistas de grande reputação, a expressão “com a dívida bruta em quase 100% do PIB…”. De fato, durante o segundo trimestre deste ano, projetava-se um resultado primário negativo de quase 15% do PIB, e a dívida bruta, conceito Banco Central, alcançaria e logo superaria a marca psicológica de 100% do PIB. Ocorre que alguns fatos mudaram completamente esses números:

1) queda real do PIB em 2020 bem inferior à inicialmente projetada;
2) revisão, para maior, feita pelo IBGE do crescimento real do PIB desde 2018;
3) surpresa (para cima) nas variações de diversos índices de inflação que, entre outros efeitos, deve fazer com que o deflator, usado para estimar o valor nominal do PIB, supere 5% em 2020; e
4) como consequência dos pontos 1 e 3, a arrecadação do governo também superou bastante as expectativas.

Segundo estimativas da MCM Consultores, o déficit primário deste ano deve ficar em R$ 761 bilhões, 10,2% (e não 15%) do PIB. A relação dívida bruta/PIB (DBGG/PIB) deve fechar o ano em 89,7%. Para 2021, se forem observados os parâmetros da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e se o BNDES pagar ao Tesouro R$ 100 bilhões para amortizar sua dívida, como tem sido anunciado pelo Ministério da Economia, a relação DBGG/PIB tende até a cair ligeiramente.

E quanto à trajetória de longo prazo da dívida? Pode-se mostrar que, com algumas medidas, já com debates bastante avançados, destacando-se a reforma tributária, nos moldes da PEC 45, e a manutenção do teto de gastos, até 2036, com mudanças nas regras, a partir de 2023, como a proposta pelos economistas Fábio Giambiagi e Guilherme Tinoco, a relação DBGG/PIB é benigna, tendendo à estabilidade e, posteriormente, à queda.

O governo insiste em mostrar números piores, talvez como argumento contra a criação de pautas-bomba no Congresso Nacional. Isso não é uma boa prática. Dados fiscais precisam ser críveis e transparentes.

28 de dezembro de 2020

AS VIDAS DAS MULHERES IMPORTAM E ISSO É CULTURA, É EDUCAÇÃO, DEPENDE DO ESTADO E DE CADA UM DE NÓS!

(Eliane Cantanhede – O Estado de S. Paulo, 27) O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.

Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.

Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar.

É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da “normalidade”. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.

É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade.

O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que “ninguém apanha de graça”, “não está nem aí para a Lei Maria da Penha” e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor.

A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.

Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.

Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam.

23 de dezembro de 2020

JOE BIDEN E HANNAH ARENDT!

(Celso Lafer – O Estado de S. Paulo, 20) Em 28 de maio de 1975 o senador Joe Biden escreveu uma pequena carta a Hannah Arendt para solicitar o envio da conferência que ela pronunciara em Boston em foro voltado para discutir o bicentenário dos Estados Unidos. Indicava que tinha tido notícia da reflexão arendtiana em artigo de Tom Wicker e observava que o conhecimento do texto era de seu interesse como integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

A carta integra os arquivos de Arendt, é de conhecimento público e teve alguma circulação no correr da campanha presidencial deste ano nos Estados Unidos. É, por si só, um exemplo de que Biden desde o início de sua vida pública tinha antenas para os grandes desafios do sistema político americano.

É sem conta o número de motivos que me levam a olhar com simpatia a eleição de Joe Biden, o que significa para os valores e a prática da democracia e o que deverá representar para um papel mais construtivo dos Estados Unidos no mundo. Para um estudioso da obra de Arendt, e sem forçar a mão, é natural buscar no seu texto de 1975, que interessou a Biden, elementos que contribuem para o entendimento do alcance da sua vitória eleitoral.

O texto de Arendt, na versão para o português, intitula-se Tiro pela culatra, para indicar que não se pode escapar da avaliação e das consequências de uma crise da república americana, tema que abordou. Hoje integra a coletânea de seus ensaios reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, organizado por Jerome Kohn e publicado em 2003.

O texto de Arendt resulta de suas reflexões sobre um momento de depreciação da vida política americana, que foi o da crise da presidência Richard Nixon e seus antecedentes, que acabou na sequência, observo eu, levando à eleição de Jimmy Carter, com sua dimensão de purgação moral. Tem como pano de fundo o livro de 1972, significativamente intitulado Crises da República, no qual tratou da mentira na política, da desobediência civil e da violência, e como lastro o seu Sobre a Revolução. Neste ela destacou que foi a Revolução Americana que implantou a primeira República moderna, instaurou o governo das leis por meio de uma duradoura Constituição dotada de autoridade que, atenta à pluralidade da condição humana, ensejou a gramática da ação e a sintaxe do poder.

As instituições democráticas republicanas, por mais sólidas que sejam, como as dos Estados Unidos, exigem para a sua durabilidade a prática de costumes democráticos, nisso se incluindo o virtuoso zelo do bem da República.

A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela “alma” dos Estados Unidos. Nessa batalha, Biden personificou uma afirmação de continuidade de valores e das instituições americanas, de suas práticas e seus costumes. Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do soft power de atração dos Estados Unidos. Além do mais, foi um esforço de operar um regime do “governo dos homens”, no caso, ele, em detrimento do “governo das leis”. É, por via de consequência, uma faceta da crise da República. Para essa dimensão o texto de Arendt oferece subsídios relevantes.

São muitos os pontos importantes da análise arendtiana de 1975 que comportam analogia com o deletério que a presidência Trump instalou na “alma” e no espírito das instituições americanas. Destaco: a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e nesse caminho pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados; o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência; o inserir da criminalidade nos processos políticos do país; o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder; o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio; o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (palavras de Arendt em 1975!); o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.

Em síntese, a fabricação da imagem como política global norteou a presidência Trump, atropelando no seu ímpeto as instituições republicanas dos Estados Unidos e os seus costumes e práticas. A fabricação da imagem como política global, realçou Arendt, se insere “no imenso arsenal da insensatez humana”. A derrota eleitoral de Trump foi o choque da realidade do despropósito de sua conduta.

Recolocar a República americana nos seus trilhos será a tarefa de Biden e de seus colaboradores. Não será tarefa fácil, como é sabido, e não apenas pela impregnação que Trump retém na sociedade americana e no Partido Republicano, mas também pelo radicalismo das polarizações que permeiam a vida do país e a complexidade do desafio da sua pauta. Nesse contexto, no entanto, as lições de Hannah Arendt de 1975 serão úteis a partir de janeiro de 2021.

22 de dezembro de 2020

DÉCADAS PERDIDAS!

(Editorial Folha de S.Paulo, 20) O Brasil perdeu a década que chega ao fim. Em termos objetivos e mensuráveis, conforme reportagem publicada nesta Folha, é mais pobre hoje do que há dez anos, condição impensável para um país de tantos atrasos, carências e desigualdades. Entretanto um fracasso dessa magnitude não se limita aos aspectos econômicos.

A considerar só estes, o desastre de agora pode ser tido como menos traumático que o do período 1981-90, a primeira década a merecer o epíteto de perdida —aqui e no restante da América Latina.

Naquele decênio entrava em colapso um modelo de desenvolvimento que proporcionara, desde meados do século 20, taxas aceleradas de expansão industrial, urbanização e enriquecimento, ainda que com distorções e disparidades.

Agora, o país conta com protocolos econômicos para evitar uma explosão inflacionária como a que se seguiu à crise da dívida externa de 40 anos atrás —ao menos até a tempestade perfeita formada pela pandemia, por Jair Bolsonaro e pela necessidade de ajuste fiscal anterior até mesmo a este governo.

No mais, o Brasil se encontra integrado ao comércio e aos mercados financeiros globais; no decênio, ampliou o aparato de seguridade social para minorar os impactos da pobreza e do desemprego.

Rupturas na trajetória de desenvolvimento se correlacionam, de modo inevitável, com abalos nos alicerces políticos e institucionais.

Se a derrocada dos anos 1980 contribuiu para que o término da ditadura fosse menos lento, seguro e gradual do que gostariam os militares, a dos 2010 abrigou a pior recessão desde o restauro da democracia, gestada na desastrosa gestão de Dilma Rousseff.

Houve pane no que parecia um consenso mínimo para o funcionamento do país pós-Constituição de 1988 —a convivência entre um Estado amplo, com missões sociais, e o respeito a normas básicas de responsabilidade econômica, ambos geridos por coalizões partidárias que esvaziavam radicalismos.

Assim se deu ao longo de quatro mandatos presidenciais, divididos entre o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Esse aprendizado em governança, porém, não se mostrou sólido o bastante.

O primeiro pilar a ruir, já no final dos anos Lula, foi o da prudência orçamentária. Uma quadra de prosperidade, impulsionada pela fartura chinesa e global, inebriava o Planalto e encorajava o presidente a escolher uma sucessora que não deveria lhe fazer sombra.

O malogro estrepitoso da gestão Dilma, que converteu alquimia econômica em política pública, fez-se acompanhar da eclosão de mal-estares na sociedade —o que dificilmente terá sido mera coincidência.

As mais notórias e espantosas manifestações do fenômeno foram as jornadas de 2013, quando protestos contra o reajuste de tarifas de transporte coletivo deram origem a uma onda de atos populares, não raro violentos, com as mais difusas bandeiras.

A insatisfação caótica com governantes e legisladores ganharia contornos e alvos mais definidos a partir do ano seguinte, quando a Lava Jato devastou —com méritos indiscutíveis e excessos consideráveis— expressivas parcelas da elite dirigente acusada de corrupção.

No mesmo 2014, a disputa pelo poder se tornaria mais desleal com a reeleição de Dilma —que negou a crise e satanizou ajustes que ela própria proporia sem convicção em seu segundo mandato, atiçando seus cada vez mais numerosos adversários a promover boicotes e sabotagens no Congresso Nacional.

Sucedeu-se o processo de impeachment da petista, que, como temia esta Folha, manteve envenenado o ambiente político, com novas doses de ressentimento e polarização. Àquela altura, estava em curso uma recessão só comparável, talvez, à dos anos 1980.

Reformas urgentes e necessárias feitas surpreendentemente durante a breve gestão de Michel Temer (MDB) se viram prejudicadas pela carência de legitimidade do ex-vice, agravada pela revelação de uma conversa nada republicana sua com um grande empresário.

É notável que também a primeira década perdida tenha chegado aos estertores com a eleição de um aventureiro despreparado que renegava a política tradicional —muito embora Fernando Collor, deposto em 1992, pareça hoje um aprendiz comparado a Jair Bolsonaro.

A diferença entre aquela década e a atual é que esta se beneficia do legado da estabilidade econômica das gestões de FHC e de Lula. Sob o duo fortaleceu-se a democracia, que funciona, e aperfeiçoou-se o sistema de freios e contrapesos, que evoluíram quase ao nível de um país desenvolvido.

Espera-se que, além do que mal que já fez no combate à pandemia, Bolsonaro não coloque também essas conquistas a perder.