10 de outubro de 2022

SALVANDO A PRÓPRIA PELE!

(Lourival Sant’Anna – O Estado de S. Paulo, 09) Ao longo desses sete meses de guerra, uma pergunta me tem sido feita constantemente: como ela vai terminar? A resposta sempre residiu na situação política de Vladimir Putin. Pois sempre sustentei que essa não é uma guerra movida por fatores geopolíticos, mas pela intenção de Putin de se perpetuar no poder.

Nas últimas semanas, os ucranianos recuperaram milhares de quilômetros quadrados no nordeste e centenas no sul. Desde a fantasiosa anexação das províncias de Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzia, no dia 30, os russos perderam território nas quatro, deixando para trás soldados mortos e equipamentos.

Estima-se que 60 mil militares russos tenham sido mortos desde fevereiro, entre eles integrantes das forças especiais e oficiais de alta patente. A mobilização decretada no dia 21 apenas agravará o problema. Os recrutas estão sendo enviados sem treinamento, equipamento e comando adequados.

INVERNO. Tragicamente, eles desempenharão o papel de carne de canhão – uma contenção temporária aos avanços ucranianos, enquanto Putin imagina os próximos passos, com o auxílio do inverno, que também pode frear a contraofensiva.

A dinâmica no terreno tornou realista o objetivo ucraniano de recuperar todo o território perdido, desde a primeira invasão, em 2014. Isso inclui a Crimeia. Essa reconquista teria impacto político devastador sobre Putin: como justificar a morte de dezenas de milhares de russos?

O emprego de uma ou mais armas nucleares táticas não mudaria o quadro. Os ucranianos, motivados e equipados, continuariam avançando. E o cruzamento dessa linha vermelha causaria envolvimento mais direto da Otan.

MANOBRA. Restaria a Putin tentar mascarar a derrota como vitória, recrudescer o controle sobre a internet e calar os ultranacionalistas, que têm denunciado a incompetência das Forças Armadas russas.

A probabilidade de golpe continua baixa. Os russos com ambições políticas estão exilados, presos ou mortos. A Rússia não tem histórico de golpes militares. Mas as tensões internas crescem rapidamente.

Depois de se queixar do sacrifício de seus homens e do alto custo das derrotas na Ucrânia, o líder checheno Ramzan Kadyrov foi condecorado general por Putin na tentativa de apaziguá-lo. Yevgeni Prigozhin, amigo de Putin e dono do grupo mercenário Wagner, também tem criticado acidamente as Forças Armadas.

Segundo a página gulagu.net no Telegram, um mercenário atirou contra um tenente-coronel em Donetsk, e não foi o primeiro incidente. A ascensão dessas milícias, a desmoralização das Forças Armadas e a revolta da população com as mortes e a mobilização poderiam conduzir a uma guerra civil. Para se concentrar em salvar a própria pele, Putin pode ter de se desengajar da Ucrânia.

03 de outubro de 2022

A GLOBALIZAÇÃO REALMENTE MORREU?!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 03) A globalização acabou. O protecionismo de Trump, o Brexit, os problemas nas cadeias de fornecimento criadas pela covid-19 e a agressão criminosa de Vladimir Putin puseram fim à onda de integração global disparada pela queda do Muro de Berlim, em 1989. Estes tempos de mercados de ações em baixa e juros altos darão a última badalada no sino do enterro da globalização.

Esta opinião está em moda – e está quase totalmente errada. Principalmente do ponto de vista da economia, mas também do ponto de vista social e cultural. De fato, a surpresa dos dois último anos foi a resiliência que a globalização demonstrou. Em um período excepcionalmente turbulento, a integração econômica e social do mundo – a conexão entre os países – nos surpreendeu mais por sua resistência do que por sua fragilidade.

RECESSÃO.

De fato, os dados sugerem que a crise financeira mundial de 2008-2009 e a Grande Recessão que ela desencadeou impactaram negativamente a economia e a política mundial mais do que os demais eventos de importância global que ocorreram na década passada.

O volume de comércio internacional cresceu muito durante o período de hiperglobalização (1985-2008), passando de aproximadamente 18% para 31% do valor total da economia mundial. Com a crise de 2008, essa cifra caiu, se situando em cerca de 28%. E aí mais ou menos ficou desde então: mantendo-se estável apesar de todos os choques econômicos e convulsões políticas dos últimos anos.

O protecionismo de Donald Trump reduziu a integração dos EUA ao restante do mundo. Nos EUA, o comércio caiu de 28% do PIB, em 2015, para 23%, em 2020. As exportações do Reino Unido para a União Europeia caíram fortes 14% no ano seguinte ao Brexit. Mas essas oscilações, por maiores que sejam, foram compensadas por uma maior integração econômica na Ásia Oriental e na África, onde as conexões de interdependência entre os países continuam se aprofundando e se ampliando.

PROTECIONISMO.

Mesmo com seus custos, problemas e acidentes, a integração entre os países não morreu

A integração econômica parece ter uma inércia própria, que resiste a tudo, incluindo a embates tão grandes quanto as guerras comerciais iniciadas por Trump ou o voto dos britânicos a favor do Brexit. Uri Dadush, um reconhecido especialista em economia internacional, constatou que as barreiras protecionistas que foram erigidas nesses últimos anos tiveram um efeito insignificante no comércio global. Certamente as cadeias de fornecimento se viram submetidas a tensões e interrupções que estimularam as empresas a mudar algumas de suas fábricas para locais mais próximos aos mercados consumidores. A Europa está experimentando agora, sem dúvida, as dolorosas consequências econômicas de sua dependência energética em relação à Rússia. Mas, segundo os dados disponíveis, o efeito global líquido, considerando essas mudanças transcendentais, não foi uma redução da integração econômica.

Recordemos também que a globalização vai muito além do comércio. A globalização se baseia tanto na circulação global de ideias, atitudes, filosofias e pessoas quanto no comércio de mercadorias. E, nesse sentido mais amplo, a globalização parece acelerar, não ratear. O Tiktok possui 1,4 bilhão de usuários espalhados por 150 países, por exemplo.

Outra prova de globalização ativa e acelerada é a ciência. Cientistas do mundo inteiro competem com colegas de outros países. É normal. Fora do normal foi a velocidade com que eles conseguiram atuar e, em certos casos, se coordenar para conseguir inventar as vacinas contra a covid-19, produzi-las em grande escala e distribuí-las pelo mundo, salvando desta maneira milhões de vidas. Se esse exitoso exemplo de globalização foi possível virar realidade uma vez, poderá se repetir em muitas outras oportunidades.

RISCOS GLOBAIS.

Naturalmente, a globalização não é invulnerável e nem todas as suas consequências são positivas. Os níveis de desigualdade que coexistem com a globalização são inaceitáveis, por exemplo. Se a guerra na Ucrânia se prolongar muito mais ou – tragicamente – se tornar nucelar, ela poderia cortar fornecimentos cruciais de energia, alimentos e fertilizantes que constituem a coluna vertebral da globalização econômica.

Ainda pior, um ataque militar chinês contra Taiwan poderia acabar com grande parte da capacidade de fabricação de microchips, incapacitando um mundo que depende cada vez mais das tecnologias digitais. No futuro próximo, a criptografia quântica poderia deixar obsoleta toda a criptografia que existe atualmente na rede. Isso causaria uma severa crise de cibersegurança e limitaria a globalização digital.

Essas ameaças existem. São reais e graves. Mas se conjugam em tempo futuro. No presente, o mundo está integrado mais profundamente do que uma década atrás. Apesar de seus custos, problemas e acidentes, a integração entre os países não morreu. O objetivo adiante é como proteger-nos de seus defeitos e aproveitar ao máximo as portas que ela abre.

28 de setembro de 2022

ATERRORIZADOS, RUSSOS NÃO TÊM PARA ONDE IR!

(Ilia Krasilshchik, diretor do website que oferece apoio a pessoas afetadas pelo governo russo – O Estado de S. Paulo, 28) “Olá, minha mulher está grávida e estou pagando hipoteca. Ela está em pânico, e eu não tenho dinheiro para ir ao exterior. Como consigo escapar do recrutamento?” Recebemos esta mensagem no Help Desk, website que eu e outros jornalistas colocamos no ar em junho para ajudar as pessoas.

O homem que a escreveu, após completar o serviço militar obrigatório, sete anos atrás, está sendo recrutado para lutar na guerra na Ucrânia. O governo russo não se interessa em quem vai pagar a prestação de sua hipoteca ou cuidar de sua mulher grávida. Após a mobilização decretada por Vladimir Putin, recebemos dezenas de milhares de mensagens como esta. A julgar pela reação, os russos estão apavorados.

SEM SAÍDA.

Para cidadãos comuns, que querem escapar desse destino infernal, não há muitas opções. Alguns cruzaram a fronteira de Belarus, mas recebemos informações de que as autoridades belarussas, cúmplices de Putin, planejam deter os russos. Dias antes da mobilização, Letônia, Lituânia, Estônia e Polônia proibiram a entrada de quase todos os russos.

A fronteira de 1,6 mil quilômetros com a Ucrânia está, evidentemente, fechada. A Finlândia ainda permite a entrada de russos, mas eles precisam ter um visto Schengen – o que apenas 1 milhão de russos têm. A Geórgia está aberta, mas a fila para atravessar demora mais de 24 horas, e muitos têm acesso negado se não apresentarem alguma justificativa. Também há destinos mais remotos, como Noruega, Casaquistão, Azerbaijão e Mongólia. Chegar a qualquer um desses países a pé, de bicicleta ou de carro é uma empreitada intimidadora.

Os russos viraram párias. Ninguém quer recebê-los. Além disso, não se sabe por quanto tempo a Rússia permitirá que eles deixem o país. Algumas autoridades regionais já proibiram homens de deixarem suas cidades.

Muitos se perguntam por que os russos não protestam? Pois muitos estão protestando. Na primeira noite após o recrutamento, a polícia prendeu mais de mil em 30 cidades. Alguns foram espancados. Sobre depor Putin, duvido que haja alguém capaz de dizer como fazê-lo. Não há nenhum caminho visível de um futuro melhor para os russos.

27 de setembro de 2022

EXTREMA DIREITA À ITALIANA!

(O Estado de S. Paulo, 27) Os italianos elegeram o governo mais à direita desde a era fascista. O Irmãos da Itália, liderado por Giorgia Meloni, levou 26% dos votos. Sua coalizão com o Liga Norte e o Força Itália conquistou, com 44% dos votos, uma confortável maioria parlamentar.

O Irmãos da Itália é resolutamente nacionalista e conservador e descende de movimentos neofascistas do pós-guerra. Na juventude, Meloni elogiou Mussolini. Também defendeu a saída da União Europeia e bombardeou a agenda progressista. “Não pode haver mediação possível”, disparou há poucos anos: “Sim à família natural! Não ao lobby LGBT! Sim à identidade sexual! Não à ideologia de gênero! Não à imigração em massa! Sim aos empregos para os nossos! Não às grandes finanças internacionais! Não aos burocratas de Bruxelas”.

Não surpreende que Bruxelas esteja apreensiva e que a esquerda tenha enquadrado sua campanha como uma ameaça à democracia, alertando que Meloni inaugurará uma “autocracia eleitoral” na Itália, como fez Viktor Orbán na Hungria. Mas há razões estruturais e conjunturais para temperar esses temores.

Uma constituição talhada para evitar a volta do fascismo garante há décadas um sistema razoavelmente descentralizado e a resiliência de instituições como a presidência, o Banco Central, a Suprema Corte ou a burocracia estatal, mesmo com governos proverbialmente instáveis e propensos ao populismo.

O contexto importa. O eixo das políticas econômicas da União Europeia pós-pandemia e na crise energética mudou da austeridade para o assistencialismo. A Itália é a maior beneficiária dos fundos de recuperação europeus, e para receber seus ¤200 bilhões terá de se comprometer com reformas já aprovadas.

O momento pede mais adaptação que radicalização. Meloni parece saber disso. Ao contrário de seus colegas de coalizão, ela pavimentou uma campanha rumo ao centro e os votos ao seu partido (em 2018 foram só 4%) mostraram que os italianos querem isso.

Meloni enfrentará um inverno rigoroso, que não lhe deixa margem para queimar capital político em pautas de costume ou imigração. Mesmo mantendo o credo estatista, corporativista e nacionalista de seu partido, Meloni repudiou abertamente a tradição fascista. Hoje, apoia inequivocamente a aliança ocidental contra Vladimir Putin. Os cortes de impostos aliados a subsídios às famílias e empresas prometidos pelo partido terão de ser forçosamente ponderados em um país cuja dívida é periclitante.

Na campanha, Meloni alertou várias vezes para a responsabilidade fiscal. Após as eleições, prometeu “unir o povo” e “governar para todos”. Isso dependerá em boa parte da sua capacidade de mitigar as arestas de sua coalizão e agregar quadros técnicos a um partido com pouca experiência de governo.

Sua reorientação mais moderada é conveniência ou convicção? A dúvida é pertinente. Mas o fato é que os italianos querem mudanças que nem a esquerda nem a centro-direita tradicional lhes proveram. Há riscos na escolha por Meloni. Mas que tenha sido ela ao invés de seus colegas mais extremistas é mais reconfortante do que inquietante.

20 de setembro de 2022

VICTORIA E SUA TATARANETA, DOIS REINADOS SIMILARES!

(O Estado de S. Paulo, 20) Elizabeth II e sua tataravó Victoria, as monarcas mais longevas do Reino Unido, chegaram de maneira inesperada ao trono quando eram jovens, mas permaneceram firmes em épocas de mudanças dramáticas. Quando nasceram, ambas tinham poucas chances de herdar a coroa. As duas, porém, aceitaram o papel e se tornaram matriarcas queridas.

O estilo monárquico de Elizabeth foi inspirado no de sua tataravó. “Tanto Elizabeth como Victoria eram conscienciosas e determinadas a atuar da maneira mais correta possível”, disse o escritor Andrew Gimson.

No funeral de Elizabeth, o caixão foi transportado pela mesma carruagem utilizada no funeral de Victoria. Elizabeth reinou por 70 anos e 214 dias, a primeira soberana a celebrar um jubileu de platina. O reinado de Victoria durou 63 anos e 216 dias, um recorde superado apenas por Elizabeth.

REINADO.

Victoria subiu ao trono em 1837, após completar 18 anos, e reinou até sua morte, aos 81 anos, em 1901. Elizabeth nasceu em 1926. Ela reinou a partir de 1952, quando tinha 25 anos, e morreu aos 96. “O trono que Elizabeth assumiu continuava sendo a instituição imperial que havia se tornado nas últimas décadas do reinado de Victoria”, escreveu David Cannadine no Guardian. “Mas os temas do reinado de Elizabeth foram a ‘desvictorianização’ do Reino Unido e a redução de seu império.”

Victoria emprestou seu nome a uma época de invenções e descobertas, bem como a uma visão moralista da vida. A era victoriana viu o Reino Unido no auge, com avanços industriais e científicos. Em comparação, o reinado de sua tataraneta é descrito como uma segunda era elisabetana, marcada pela transformação das cinzas da 2.ª Guerra em uma nação diversa, que perdeu seu império pacificamente.

“Elizabeth e Victoria compartilhavam uma fé cristã realista e liberal”, escreveu Richard Chartres, ex-bispo de Londres, na revista Spectator. Vastas áreas da Antártida foram batizadas com o nome de Elizabeth, uma linha de metrô, ilhas no Canadá e o maior navio de guerra britânico da história. As torres dos extremos do Parlamento têm os nomes das duas. Assim como Victoria, Elizabeth foi enterrada em Windsor.

19 de setembro de 2022

A PREOCUPANTE EXPANSÃO DAS MILÍCIAS!

(O Estado de S. Paulo, 18) Há quatro décadas grupos armados expandem seu domínio territorial na região metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo o Mapa dos Grupos Armados, do Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 16 anos o crime organizado ampliou seus territórios em 131%, saltando de 8,7% da área urbana habitada para 20%. O fato novo é que as milícias estão se tornando a principal ameaça à segurança no Rio.

Nesse período, enquanto as áreas sob domínio do Comando Vermelho (CV) cresceram 59% e seu controle sobre a população cresceu 42%, o domínio territorial das milícias aumentou 387% e o populacional, 185%. Sua participação sobre as áreas controladas pelo crime subiu de 24% para 50%, enquanto a do CV caiu de 59% para 40%. No domínio sobre a população, se a participação do CV caiu de 54% para 46%, a das milícias subiu de 22% para 39%.

A pesquisa destaca dois marcos na expansão das milícias. O primeiro no início dos anos 2000, quando havia ambiguidade sobre o papel das milícias no debate público e nas arenas políticas. Esse crescimento foi freado a partir de 2008, quando a CPI das Milícias desbaratou parte da arquitetura do crime. Desde 2017, contudo, a expansão explodiu, em parte pelas disputas entre o CV e o PCC pelas rotas internacionais da droga, em parte pela crise socioeconômica de 2015, e em parte pela gestão de segurança estadual, que, desde o governo de Wilson Witzel, se caracterizou pelo incentivo ao uso desmedido de força letal e pela autonomização das polícias em relação a diretrizes, metas e protocolos estabelecidos por políticas de Estado.

A expansão das milícias não só é quantitativamente maior que a do narcotráfico, mas é qualitativamente mais complexa. “O tráfico de drogas é a criminalidade desorganizada; ele atua na interface com o Estado de maneira muito mais precária”, explicou um pesquisador. “Já os milicianos têm uma relação de tolerância e participação direta de agentes públicos. É um mercado de atuação muito mais diversificado e articulado do que o do tráfico, que é, basicamente, um varejo de droga. Os milicianos controlam a água, a internet, o transporte; ou seja, toda a infraestrutura urbana da cidade é produzida com a mediação desses grupos.”

Trafegando na zona cinzenta entre a legalidade e ilegalidade, as milícias contam com uma dupla vantagem, política e econômica. O que as diferencia é precisamente a participação de agentes públicos, como policiais da ativa e da reserva, juízes ou parlamentares. Assim, elas não só são mais eficientes que o narcotráfico em criar um “Estado paralelo” em seus territórios, como se infiltram no Estado, pervertendo-o a seu favor. Isso facilita, por exemplo, a obstrução de investigações, assim como o emprego das forças policiais para retaliar adversários do narcotráfico – os dados mostram que as ações policiais são bem menores em áreas controladas pelas milícias do que nas controladas pelas facções. Além disso, as milícias são favorecidas por agentes públicos em seu mercado legal e ilegal, sobretudo imobiliário.

A sua expansão impõe novos desafios. Primeiro, uma atualização da legislação, já que o complexo de crimes das milícias ultrapassa os delitos tipificados no Código Penal. Além disso, não há uma dimensão oficial do fenômeno nem políticas integradas de prevenção e enfrentamento. Operações policiais, além de frequentemente ineficazes e catastróficas para a população, vêm sendo instrumentalizadas pelas milícias a favor de sua expansão. Mais importante seria sufocar a fonte do vigor das milícias, o clientelismo de atores estatais, com mais regulamentação, transparência e prestação de contas sobre o que se passa nos mercados urbanos.

Em suma, a expansão das milícias é triplamente alarmante: pela sua velocidade e diversificação; pela sua capilarização na economia e na política; e pela defasagem das instituições responsáveis por investigá-la e reprimi-la. A menos que esse mal seja extirpado pela raiz, no futuro o Rio de Janeiro será lembrado como apenas o foco de uma metástase nacional.

15 de setembro de 2022

UCRÂNIA DERRUBA MITO MACHISTA DO TRUMPISMO!

(Paul Krugman – O Estado de S. Paulo, 14) Em 29 de agosto, Tucker Carlson, da Fox News, atacou a política do presidente Joe Biden em relação à Ucrânia. Ele afirmou, entre outras coisas: “Segundo qualquer medida verdadeira, com base na realidade, Vladimir Putin não está perdendo a guerra na Ucrânia. Ele está vencendo a guerra na Ucrânia”. Aliás, Carlson foi além, afirmando que Biden apoia a Ucrânia apenas porque pretende destruir o Ocidente.

O timing de Carlson foi impecável. Poucos dias depois, uma grande seção da linha de frente russa nas proximidades de Kharkiv foi sobrepujada por um ataque ucraniano. É importante notar que as forças de Putin não foram apenas obrigadas a recuar; parece que elas foram escorraçadas.

Conforme relatou o Instituto para Estudo da Guerra, entidade independente, os russos foram obrigados a uma “retirada desordenada, em pânico”, deixando para trás “grandes quantidades de equipamentos e suprimentos que as forças ucranianas podem usar”.

O colapso russo pareceu validar análises de especialistas que têm afirmado há meses que as armas do Ocidente têm alterado o equilíbrio militar em favor da Ucrânia, que falta desesperadamente ao Exército de Putin soldados qualificados, que as forças russas têm sido arruinadas pelo desgaste e por ataques de mísseis em suas áreas de retaguarda.

LIMITE.

Essas análises sugeriram que o Exército russo pode eventualmente chegar a um limite crítico de esgotamento, mas poucos esperavam que esse limite chegaria tão cedo e tão dramaticamente.

É verdade que Carlson e outros torcedores de Putin não são as únicas pessoas apegadas a ilusões sobre o sucesso russo. Existe toda uma escola de autoproclamados “realistas” que considera fútil a resistência ucraniana à Rússia e, apesar do fracasso do ataque inicial de Putin, passou os últimos seis meses conclamando a Ucrânia a fazer grandes concessões para uma potência russa supostamente superior.

Mas há algo especial a respeito do trumpismo abraçar a mística do poderio russo: uma visão de mundo que associa jactância de sujeito durão à eficácia. Essa visão de mundo distorceu a percepção da direita não apenas a respeito do Exército russo, mas também em relação à maneira de lidar com muitos outros temas. E vale perguntar de onde isso vem.

ELOGIOS.

Muitos republicanos admiram Putin há muito tempo – mesmo antes de Donald Trump dominar o partido. Em 2014, por exemplo, Rudy Giuliani afirmou sobre Putin: “Isso que é líder”. E Trump continuou a elogiar Putin mesmo depois que ele invadiu a Ucrânia.

Portanto, não é difícil perceber de onde vem a admiração da direita trumpista pelo putinismo. Afinal, a Rússia é autocrática, brutal e homofóbica, com um culto à personalidade construído ao redor de seu líder. O que há para desgostar?

Ainda assim, admirar os valores de um regime não significa ter fé em sua destreza militar. Enquanto defensor de uma rede de seguridade social, tenho em grande conta Estados de bem-estar social, como a Dinamarca. Mas não tenho absolutamente nenhuma opinião a respeito da eficácia do Exército dinamarquês (sim, existem Forças Armadas dinamarquesas).

Na direita, contudo, a aprovação de regimes autoritários está completamente vinculada a afirmações a respeito de sua destreza militar. Por exemplo, no ano passado, o senador Ted Cruz fez um tuíte comparando imagens de um soldado russo com pinta de durão e cabeça raspada com um vídeo de recrutamento do Exército americano que conta a história de uma oficial mulher criada por duas mães. “Talvez um Exército lacrador e emasculado não seja a melhor ideia”, opinou Cruz.

Na realidade, o Exército americano é sim meio lacrador, no sentido de que é altamente diverso e inclusivo, encoraja o pensamento independente e a iniciativa de jovens oficiais e, nos níveis superiores, é bastante intelectual.

O Exército russo, por outro lado, não é lacrador. Conscritos são submetidos a trotes brutais. De acordo com Mark Hertling, ex-comandante das forças americanas na Europa, o Exército russo é repleto de corrupção “em estilo mafioso” e seus oficiais são péssimos.

A questão mais ampla é que parecer durão não faz com que guerras modernas sejam vencidas. Coragem – que os ucranianos têm demonstrado – é essencial. Mas coragem não tem tanto a ver com fortalecer os bíceps. E a bravura deve caminhar de mãos dadas com inteligência e versatilidade, qualidades em falta no Exército russo.

MULHERES.

Eu já mencionei que mulheres compõem mais de um quinto das Forças Armadas ucranianas? A relevância desses fatores deveria ser óbvia. A guerra moderna é como a economia moderna (exceto pelo elemento adicional de terror absoluto). O sucesso depende mais de habilidade, conhecimento e receptividade para ideias do que de força bruta.

Mas o caráter trumpista é totalmente vinculado à exaltação do papo de durão e à difamação do conhecimento. A direita americana precisou ver Putin como um líder que se tornou poderoso em razão de sua rejeição aos valores progressistas. Admitir que a Rússia provou não ser uma grande potência colocaria em dúvida toda a filosofia trumpista.

O resultado é que a guerra, ainda que seja a luta pela liberdade da Ucrânia, tornou-se também um dos fronts das guerras culturais e políticas dos EUA. Existe uma crescente especulação a respeito do que acontecerá na Rússia se a invasão à Ucrânia terminar em derrota. Mas também temos de imaginar como a direita americana lidará com a revelação de que, certas vezes, caras durões terminam em último.

14 de setembro de 2022

COMO NÃO FAZER POLÍTICA TRIBUTÁRIA!

(Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal – O Estado de S. Paulo, 13) Duas propostas que ganharam destaque nas últimas semanas são um exemplo claro de como não se deve fazer política tributária.

A primeira é a redução da contribuição sobre a folha de salários do setor de saúde, visando a compensar o impacto da fixação de um piso salarial nacional para os enfermeiros. A tributação da folha de salários no Brasil de fato é elevada, mas a pior forma de resolver esse problema é por meio de desonerações setoriais.

Tributos bem desenhados são uniformes para todos os setores. Quando se desonera um setor, e não os demais, cria-se uma série de distorções, a começar pelo problema da classificação. A necessidade de classificação quase sempre leva ao litígio tributário, pois o normal é que os contribuintes e o Fisco divirjam sobre quem está dentro ou fora do setor beneficiado.

Adicionalmente, tratamentos setoriais diferenciados quase sempre levam a distorções na forma de organização da economia, pois as empresas se estruturam de forma a reduzir seu custo tributário, ainda que à custa de menor eficiência produtiva.

Por fim, ao permitir que um setor tenha tributação favorecida, abre-se a caixa de Pandora para que outros setores também venham a pleitear a desoneração da folha.

Que os políticos proponham saídas como essa até é compreensível. O que é difícil de entender é que a medida conte, segundo a imprensa, com o apoio do ministro da Economia, que também está sugerindo a tributação dos dividendos recebidos pelos “super-ricos” para financiar o aumento permanente do Auxílio Brasil, além da redução da alíquota incidente sobre o lucro nas empresas.

Embora a proposta do ministro não seja clara, aparentemente ele está defendendo o projeto aprovado na Câmara dos Deputados (ainda não apreciado pelo Senado Federal), pelo qual dividendos distribuídos por empresas com lucro até R$ 4,8 milhões por ano (R$ 400 mil por mês) seriam isentos.

A aprovação desse projeto seria um enorme erro, pois reduziria ainda mais a tributação da renda de profissionais de altos rendimentos que hoje já são pouco tributados (ver a respeito meu artigo de 2 de agosto, neste espaço).

Adicionalmente, a mudança estimularia a fragmentação de empresas com faturamento de dezenas de milhões de reais em empresas com faturamento até R$ 4,8 milhões, gerando ainda mais distorções na economia.

Sou favorável à tributação na distribuição de dividendos. Mas essa mudança, assim como qualquer outra mudança no sistema tributário, tem de ser baseada em análises técnicas, e não em palavras de ordem.

13 de setembro de 2022

SÃO GONÇALO E LESTE METROPOLITANO, DESAFIOS E PROPOSTAS!

(Mauro Osorio) O Leste Metropolitano é composto pelos municípios de São Gonçalo, Itaboraí, Niterói, Maricá, Cachoeiras de Macacu, Rio Bonito e Tanguá. São Gonçalo possui 1.098.357 habitantes e 670.644 eleitores. O conjunto do Leste Metropolitano possui 2.182.902 habitantes e 1.512.232 eleitores.

São Gonçalo já foi considerada a Manchester Fluminense, no entanto, nas últimas décadas, tem passado por uma forte desestruturação. Atualmente possui 8 empregos privados formais para cada 100 habitantes. Enquanto a Região Sudeste apresenta 22 empregos privados formais para cada 100 habitantes.

Já o município de Itaboraí possui 10 empregos privados formais para cada 100 habitantes.

É necessário ter uma política de industrialização no Leste Metropolitano, com centralidades em São Gonçalo e Itaboraí. Para tanto, é essencial concluir a refinaria existente em Itaboraí. Existe um gasoduto que já está pronto para trazer gás natural do pré-sal para Itaboraí. O que falta é concluir 10% da obra da Unidade de Processamento de Gás Natural (UPGN).

A partir disso, é preciso, em parceria entre o Governo do Estado e o Governo Federal, construir um plano de industrialização para São Gonçalo, Itaboraí e o conjunto do Leste Metropolitano.

Falta infraestrutura nos municípios de São Gonçalo e Itaboraí, que apresentam péssimos indicadores sociais. De acordo com o IDEB/MEC, para o 1º ao 5º ano do ensino fundamental público, esses dois municípios, entre os 1.646 municípios avaliados da Região Sudeste, estão apenas, respectivamente, na 1.639ª e 1.602ª posição.

De acordo com o Índice FIRJAN de Desenvolvimento Municipal para a área de Saúde, São Gonçalo e Itaboraí estão apenas, respectivamente, na 1.302ª e 1.031ª posição, entre os 1.668 municípios da Região Sudeste.

É necessário, portanto, articular uma política de educação e saúde para esses dois municípios, que os tire dessa situação.

Ao contrário disso, o que tem ocorrido em São Gonçalo e Itaboraí é que os recursos da privatização da CEDAE e o orçamento “secreto” da Câmara dos Deputados têm jorrado dinheiro nesses municípios para ações eleitoreiras, sem lembrar das obras e políticas sociais estruturantes que os dois municípios precisam.

Entre 2019 e 2021, a receita municipal por habitante em São Gonçalo e Itaboraí cresceu, respectivamente, elevados 70% e 39%, já descontada a inflação.

12 de setembro de 2022

A AMÉRICA LATINA DIANTE DA GUERRA NA UCRÂNIA! 

(Lucas Carlos Lima – O Estado de S. Paulo, 12) Seis meses se passaram desde o início da autodesignada operação militar especial russa em solo ucraniano, caracterizada pela Assembleia-geral da ONU como uma agressão. De lá para cá, fóruns e instituições internacionais condenaram de diferentes maneiras as graves violações ao Direito Internacional cometidas.

Sabemos que houve uma violação da Carta da ONU,O grande pacto contra o uso da força do pós-segunda Guerra, vedação prevista desde seu artigo 2.4. Com base nessa proibição, a Corte Internacional de Justiça já ordenou uma cessação da operação russa. No presente momento, crimes de guerra e crimes contra a humanidade continuam ocorrendo e as Convenções de Genebra continuam sendo desrespeitadas em relação a civis e alvos não militares. Já conhecemos este lado da história. Além disso, começa-se a negociar a aquisição de território pela força militar – algo banido do Direito Internacional pós-1945 – e, possivelmente, violando o dever de não reconhecimento imposto aos Estados pelas obrigações derivadas do regime de responsabilidade internacional dos Estados por atos ilícitos. Quanto a esses pontos, graves como são, não há muita divergência entre países latino-americanos. Contudo, parece haver divergência de comportamento em reação a essas crônicas de violações anunciadas.
No discurso, os Estados latino-americanos defendem o respeito ao Direito e às instituições internacionais. Na prática, poucos estão efetivamente dispostos a adotar sanções ou medidas mais significativas para impactar, cessar ou até mesmo mediar o conflito. Há, entre os Estados latino-americanos, até mesmo uma divergência quanto à eficácia e a necessidade de aplicar sanções contra a Rússia. Para além do discurso, estamos divididos sobre o quanto queremos mobilizar nossas economias para reagir às violações. Alguns Estados parecem estar mais dispostos do que outros, assim como alguns Estados parecem mais afetados economicamente do que outros em virtude da guerra.

Há Estados latino-americanos que assumem um tom mais duro em relação a Moscou.

Diante da violação de normas fundamentais à ordem global, não era esperada, passados seis meses, uma reação mais articulada da AL?

O México propôs resoluções no Conselho de Segurança e o Chile aderiu moderadamente a sanções. E há outros que, como o Brasil, parecem ambicionar uma equidistância pragmática que garantiria bons termos com os diferentes grupos envolvidos. Há, também, aqueles que se apoiam na Rússia por diversas razões e, por isso, preferem condenar um Ocidente não engajado no conflito, mas fonte de suporte indireto à Ucrânia. Venezuela e Nicarágua estão entre estes últimos. Os interesses relativos às posições e interesses de cada Estado parecem variar de acordo com uma série de fatores. Entre eles, a posição política do atual governo, a tradição diplomática e jurídica, os interesses econômicos e, também, a posição em relação aos valores jurídicos que a guerra na Ucrânia representa. Mas há, ainda, muita ambiguidade, alguma contradição e posicionamentos antagônicos.

A posição jurídica assumida pelos Estados diante de tais eventos é fundamental porque também nos oferece indicativos das reações que merece a violação dessas normas. Um exemplo vem da seara judicial. Alguns Estados decidiram participar, como terceiros interventores, do processo perante a Corte Internacional de Justiça relacionado à Convenção contra o Genocídio movido pela Ucrânia contra a Rússia, como o Reino Unido, a Nova Zelândia, Letônia e Lituânia. Até o momento, nenhum Estado da América Latina decidiu intervir nesse processo judicial. Até que ponto estamos dispostos a defender certos valores jurídicos?

A fragmentação das políticas externas latino-americanas não é necessariamente nova na história de nossa região. Uma posição de pragmatismo (ou pluralismo, segundo Juan Pablo Scarfi) é uma das mais proeminentes tradições diplomáticas do subcontinente.

Desse modo, os países americanos mobilizam o multilateralismo e o Direito Internacional para, então, conter alinhamentos automáticos contra seus interesses nacionais, defender a pluralidade de valores na ordem internacional e proteger a diversidade de regimes políticos. No frigir dos ovos, os interesses nacionais, as relações comerciais e uma contestável posição de conforto são preferíveis à confrontação direta. Há muito mais em jogo no labirinto de Borges.

Adotar uma posição comum e acordada talvez não seja um caminho imprescindível. Contudo, devemos refletir sobre o significado de nossas posições sobre as regras em jogo neste conflito: a proibição da anexação territorial, a proibição do uso da força, a autodeterminação dos povos e os princípios básicos do direito humanitário. Aceitaremos que qualquer tipo de referendo seja suficiente para garantir a secessão e anexação no Direito Internacional? Qual será o papel da América Latina e do Brasil nos próximos (e talvez inevitáveis) seis meses de guerra?

Algumas das regras violadas nesta guerra são regras superiores, fundamentais à ordem global e expressam valores da própria comunidade internacional como um todo. Diante da violação de tais normas, não era esperada, passados seis meses, uma reação mais articulada da América Latina?

08 de setembro de 2022

O QUE O CHILE TEM A ENSINAR!

(Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap – Folha de SP, 07) A fala do presidente do Chile, Gabriel Boric, conhecidos os resultados do plebiscito sobre a nova Constituição nacional, o alça ao diminuto rol dos estadistas democráticos que a América Latina conheceu ao longo de sua conturbada e não raro trágica história.

Rejeitado por robusta maioria, o texto era mais do que uma proposta para substituir aquele herdado da ditadura pinochetista (1973-1990) e emendado pelos governos livres que a sucederam. Em mais de três centenas de artigos, expressava a utopia de uma esquerda democrática e renovadora que Boric encarna.

De fato, a sua eleição e a chamada Convenção Constitucional resultaram ambas da imensa vaga de protestos de 2019-2020, que os chilenos chamam de “el estallido” (o estrondo) e que pareceu destroçar um sistema partidário conhecido por sua solidez e previsibilidade.

Sem exceção, as siglas que haviam vertebrado a disputa eleitoral desde o fim do cruento regime militar sofreram uma sangria de eleitores; o sistema se pulverizou em um emaranhado de legendas e movimentos. O ex-líder estudantil chegou ao Palacio de La Moneda aos 35 anos, embora só tivesse recebido 25,8% dos votos no primeiro turno e dependesse do apoio da centro-esquerda —cuja legitimidade ele contestava— para se eleger na segunda rodada. Na assembleia escolhida para redigir a nova Carta, com paridade de gênero garantida de antemão, os representantes dos movimentos sociais prevaleceram sobre os políticos profissionais.

O desfecho do plebiscito mostra que a parcela organizada e politicamente ativa da sociedade não se confunde com as preferências da maioria, tampouco a exprime, mesmo quando se enxerga como a sua tradução mais legítima e generosa.

Em face da ofuscante vontade de seus concidadãos, Boric a ela se curvou, saudando-a como expressão da força da democracia chilena, apelou ao diálogo e aos acordos para superar as “fraturas e dores” do país e se comprometeu a buscar com o Congresso e a sociedade o “itinerário constitucional” capaz de produzir uma versão que reflita o sentimento majoritário dos chilenos.

Ao fazê-lo, mostrou vigoroso compromisso com os valores e regras da democracia, que sempre se assenta no acatamento da voz das urnas e na busca de convergências possíveis.

Tudo o contrário do que se tem aqui: um presidente que não perde oportunidade para tratar adversários como inimigos, fomentar a cizânia na população —até no dia em que se comemoram os 200 anos da Independência— e fabricar suspeitas sobre as eleições que podem apeá-lo do poder e sobre as instituições que zelam pelo respeito às escolhas da cidadania.

06 de setembro de 2022

SOB O REGIME DE DANIEL ORTEGA, NICARÁGUA AFUNDA NO TOTALITARISMO!

(José Fucs – O Estado de S. Paulo, 04) “Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não? Por que o Felipe González pode ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”, disse Lula, logo após a reeleição de Ortega para o quarto mandato consecutivo, em novembro do ano passado.

Ao defender a permanência de seu amigo Ortega no cargo, porém, Lula “se esqueceu” de que Merkel e González foram reconduzidos sucessivamente aos seus postos em eleições limpas e democráticas. Enquanto isso, El Comandante, como Ortega é chamado na Nicarágua, garantiu um novo mandato num pleito manchado por acusações de fraude, contestado pela comunidade internacional e precedido pela prisão dos sete pré-candidatos da oposição, que postulavam a indicação do bloco para a disputa.

DEMOCRACIA BURGUESA. “O Daniel Ortega tem DNA stalinista”, afirmou ao Estadão o jornalista nicaraguense Carlos Chamorro, fundador e diretor do site independente Confidencial, de notícias e análises políticas. Exilado na Costa Rica há cerca de um ano, ele é irmão de Cristiana Chamorro, que pretendia concorrer à presidência, em 2021, e acabou presa por Ortega, e filho da ex-presidente Violeta Chamorro (1990-1997) e de Pedro Joaquín Chamorro, ex-publisher do jornal La Prensa, assassinado em 1978 durante a ditadura de Anastasio Somoza, cuja família governou a Nicarágua por 45 anos. “O Daniel Ortega nunca teve compromisso nem com a democracia nem com os direitos humanos. Ele quer imitar o tipo de liderança que o Fidel Castro representou em Cuba.”

Esta reportagem sobre a Nicarágua faz parte da série lançada pelo Estadão sobre o avanço da esquerda na América Latina. O caso nicaraguense revela, de forma emblemática, os riscos envolvidos na eleição de líderes esquerdistas na região, que se aproveitam das regras democráticas para chegar ao governo e depois instauram uma ditadura, perpetuando-se no poder. Foi assim na Venezuela com Hugo Chávez, que ficou 14 anos na presidência e morreu em 2013 no exercício do cargo, herdado por Nicolás Maduro, e está sendo assim com Daniel Ortega, na Nicarágua.

Ironicamente, Ortega exerce hoje um papel semelhante ao desempenhado no passado por Somoza, contra quem ele se insurgiu como um dos líderes da chamada Revolução Sandinista, que o apeou do poder em 1979. Do Ortega revolucionário só restou a retórica contra a “democracia burguesa” e o “capitalismo selvagem”, amparada em símbolos do sandinismo, que ele explora com certa habilidade. “A população não vê que o Daniel Ortega fez parte de uma luta contra outra ditadura”, diz Chamorro. “Simplesmente o vê como um ditador que está à frente de uma ditadura familiar que tem muitos pontos em comum com a dos Somoza.”

CULTO À PERSONALIDADE. Isolado pelas sanções impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia, Ortega se escora hoje, mais que nunca, em países como Cuba, Venezuela, Irã, Coreia do Norte, China e Rússia. Contra as grandes democracias ocidentais, ficou do lado de Vladimir Putin na invasão da Ucrânia pela Rússia, e expulsou a OEA (Organização dos Estados Americanos) da Nicarágua, após a entidade criticar as “eleições” realizadas em novembro de 2021.

O culto à personalidade de Ortega está presente no dia a dia da população e tornou-se parte da paisagem do país. Há cartazes e outdoors de Ortega e de sua mulher Rosario Murillo, vice-presidente e porta-voz do governo, por todo o país. Encarregada da propaganda oficial e de filtrar declarações públicas de autoridades, Murillo tem também um programa diário de rádio e TV, no qual divulga mensagens de autoexaltação do regime e de ações governamentais.

“Eles aparecem como centro de tudo, como os que decidem o destino da população”, afirma a socióloga nicaraguense Elvira Cuadra Lira, pesquisadora associada do Instituto de Estudos Estratégicos e de Políticas Públicas (Ieepp), hoje também vivendo no exílio, na Costa Rica. “Isso tem a ver com as personalidades megalomaníacas que eles têm e com suas vocações autoritárias.”

A centralização do poder e o fechamento do regime ampliaram o espaço para a apropriação de dinheiro público pelo casal Ortega-Murillo. De acordo com informações do site Confidencial, baseadas em documentos de registro público e do Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS), Ortega usou recursos do fundo da cooperação venezuelana, que chegaram a US$ 5 bilhões em dez anos, para erguer um império empresarial.

Como revelou a apuração, ele detém o controle de pelo menos 22 empresas nas áreas de petróleo e energia, imóveis, comunicações e publicidade, por meio de familiares e “testas de ferro” (veja o quadro ao lado). “Os Ortega se tornaram milionários”, diz o ex-ministro da Educação na gestão de Violeta Chamorro, Humberto Belli, que vive nos Estados Unidos desde junho de 2021.

JULGAMENTOS DE FACHADA. A escalada autoritária, que já vinha se insinuando por meio do controle da Assembleia Nacional e do “aparelhamento” da Suprema Corte, do Tribunal Eleitoral, da Procuradoria, do Exército e da polícia, intensificou-se após os protestos de 2018 contra a reforma da previdência proposta por Ortega, que deixaram um saldo de 355 mortos, segundo a Comissão Interamericana de Diretos Humanos. “O que aconteceu em 2018 determinou a evolução de uma ditadura institucional para uma ditadura sangrenta”, afirma Carlos Chamorro.

A imprensa independente foi silenciada. Os partidos de oposição tiveram os registros cassados. Seus líderes foram presos e condenados em julgamentos de fachada, feitos na própria prisão. Hoje, há 190 presos políticos no país, de acordo com entidades de defesa dos direitos humanos.

Num movimento que já levou o papa Francisco a expressar sua “preocupação” com a situação, o regime desencadeou também uma onda repressiva contra autoridades da Igreja Católica, que culminou com a prisão do bispo Rolando Álvarez e de seus auxiliares, em meados de agosto, depois de eles ficarem duas semanas confinados no arcebispado de Matagualpa (a 131 km de Manágua). “O regime está tentando silenciar a Igreja porque ela tem sido a única voz independente na Nicarágua”, diz Belli.

Nem mesmo ex-companheiros de Ortega – que deixaram o partido da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e fundaram o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), hoje rebatizado de União Democráti

ca Renovadora (Unamos) – escaparam das garras do regime.

O general aposentado Hugo Torres, um dos líderes da guerrilha sandinista , morreu na prisão em fevereiro, enquanto aguardava “julgamento”. Num vídeo gravado em junho de 2021, antes de ser detido, ele declarou: “Há 46 anos, arrisquei a vida para tirar Daniel Ortega e outros políticoscolegas da prisão. Hoje, tenho 73 anos. Nesta fase da vida, nunca pensei que estaria lutando contra outra ditadura mais brutal, mais inescrupulosa e mais autocrática que a de Somoza”.

FAKE NEWS. Para amparar suas ações autoritárias, Ortega atuou para aprovar uma série de leis que cerceiam os direitos e as liberdades desde 2018. Uma delas, aprovada em 2020 pela Assembleia Nacional, criminalizou a divulgação de conteúdo que o governo considera como fake news. O dispositivo vem sendo usado para embasar processos contra críticos de Ortega e mostra os riscos de se adotar medidas do gênero, que alguns defendem no Brasil, para conceder às autoridades o poder de definir o que é ou não informação falsa.

Antes de sua posse, em 2007, Ortega já trabalhava para viabilizar seu retorno ao poder, depois de duas tentativas frustradas, em 1996 e 2001. Graças a um acordo firmado com o então presidente Arnoldo Alemán, do Partido Liberal Constitucional (PLC), de centro-direita, ele conseguiu aprovar uma alteração na legislação eleitoral feita sob medida para ele.

Com a mudança, o candidato que alcançasse 35% dos votos no primeiro turno das eleições, justamente o teto de Ortega, seria declarado vencedor. Só assim, em 2006, auxiliado também pelo “racha” da oposição, ele conseguiu, enfim, ganhar o pleito.

Cumprida essa etapa, Ortega passou a trabalhar para permanecer no cargo por tempo indeterminado. Em 2009, conseguiu com que os magistrados da Suprema Corte derrubassem o dispositivo que proibia a reeleição, viabilizando sua candidatura nas eleições de 2011. Em 2014, conseguiu acabar com o limite à reeleição, pavimentando o caminho para disputar o pleito de 2016.

Como se pode observar, mesmo tomando medidas que parecem respeitar as regras do jogo, Ortega minou a democracia e deu um jeito de ficar no poder até quando quiser ou puder. A melhor vacina contra essa chaga, que no Brasil também tem seus adeptos, é rechaçar candidatos que se identifiquem com ditaduras como as da Nicarágua, de Cuba e da Venezuela. Depois, como se vê, não adianta chorar.

05 de setembro de 2022

O DESPERTAR TARDIO DE UM FALCÃO!

(Paulo Leme, professor de finanças na Universidade de Miami e presidente executivo do Comitê Global de Alocação da XP Private – O Estado de S. Paulo, 04) Na última semana de agosto, o banco central americano (Fed) organizou em Jackson Hole o seu prestigioso simpósio anual sobre política monetária. O grande destaque deste ano foi o discurso do Presidente do Fed, Jerome Powell. Ele mandou um recado curto e grosso para o mercado: o Fed vai continuar subindo a taxa de juros bem acima das expectativas do mercado.

Para reduzir a inflação, o Fed terá de usar duramente as suas ferramentas (alta de juros e contração do seu balanço) para contrair a demanda agregada e esfriar o mercado de trabalho. Ele alertou que este processo será penoso para famílias e empresas. Powell disse que outra alta de 0,75% talvez seja necessária, mas que 0,50% seria suficiente caso os dados de inflação e de atividade estejam em queda.

Na palestra, Powell jogou outro balde de água fria nos pombos do mercado ao afirmar que, apesar de bem-vinda, a queda da inflação observada em julho é devida à queda do preço do petróleo.

Powell afirmou que o Fed só cortará a taxa juros quando a inflação cair de volta à meta de 2%, o que só ocorrerá em princípios de 2024. Portanto, acabou com sonho dos neófitos em matéria de inflação, que ingenuamente sonhavam que o Fed daria um pivô para iniciar o ciclo de corte de juros no segundo trimestre de 2023.

O mais provável é que, em setembro, o Fed aumentará novamente os Fed Funds em 0,75% (para 3%), reduzindo o ritmo de alta de para 0,5% só em novembro e 0,25% em dezembro. Desta forma, os Fed Funds terminarão o ano em 3,75%. Em 2023, o Fed dará mais duas altas de 0,25%, mantendo a taxa de juros em 4,25% até o final de 2023. Os primeiros cortes só virão em 2024. Além do aumento dos juros, o Fed apertará mais ainda a política monetária ao encolher o seu balanço.

A boa notícia é que o despertar do falcão em Jackson Hole aumentou as chances de o Fed reduzir a inflação. A má notícia é que isto virá ao custo de uma recessão e aumento do desemprego. O aperto da política monetária aumentará as taxas longas de juros, mantendo os mercados de renda fixa e variável em um bear market. Além disso, o dólar continuará a se valorizar em relação às outras moedas e o fluxo de capitais para as economias emergentes diminuirá, desvalorizando o real e reduzindo o crescimento da economia brasileira.

O viés de risco da inflação americana é de alta, porque gastos públicos e privados com defesa e meio ambiente manterão parte da demanda agregada aquecida. Assim sendo, é provável que os EUA terminarão com uma taxa de juros bem acima de 4,25% e uma recessão longa e profunda

02 de setembro de 2022

O CÍRCULO VICIOSO DO RIO, COMO SAIR DESSA?!

(Mauro Osorio, 31) Este “Não é bem assim…” trata da crise estrutural do estado do Rio de Janeiro. Desde 1970, o estado perdeu cerca de 37% de participação no PIB nacional.  

Para sair da crise é necessário, em primeiro lugar, reestruturar o setor público. É essencial passar a ter, como rotina, uma política de concursos públicos.  

Também é necessário organizar uma política integrada de investimentos em infraestrutura. Definir quais são os sistemas produtivos com maior potencialidade e uma estratégia adequada de fomento. 

O estado do Rio de Janeiro, entre dezembro de 2014 e julho de 2022, perdeu 490.892 empregos com carteira assinada e está apenas na 13ª posição em termos de receita de ICMS per capita, entre as unidades federativas. Ter uma política de diversificação da estrutura produtiva fluminense é fundamental para gerar empregos e ampliar a base para arrecadação de impostos.

31 de agosto de 2022

IRÃ FECHA FRONTEIRA COM IRAQUE APÓS CONFRONTOS POR RENÚNCIA DE CLÉRIGO!

(O Estado de SP, 31) O Irã determinou ontem o fechamento de sua fronteira com o Iraque e pediu que seus cidadãos deixem o país vizinho enquanto durarem os violentos protestos que se seguiram ao anúncio de aposentadoria do clérigo xiita Moqtada al-sadr. O número de mortos nas manifestações aumentou para 22 – mais de 250 pessoas ficaram feridas.

Na segunda-feira, grupos ligados a Sadr invadiram a Zona Verde de Bagdá, área que concentra ministérios e missões estrangeiras, após o anúncio da aposentadoria do clérigo xiita e do fechamento dos escritórios de seu partido.

O Iraque vive uma crise política desde as eleições de outubro, vencidas pelo partido do clérigo xiita. Nenhuma força foi capaz de costurar uma maioria no Parlamento.

Dentro da Zona Verde, o grupo leal a Sadr entrou em confronto com grupos xiitas pró-irã, rivais na política nacional. Diante da invasão, as forças de segurança intervieram com violência. O Exército decretou um toque de recolher no país todo. CRISE POLÍTICA. A tensão foi reduzida ontem após Sadr pedir a seus apoiadores que se retirem da Zona Verde e anunciar uma greve de fome até que os confrontos terminem.

Antes conhecido por seu papel na resistência contra o regime de Saddam Hussein e pelos sermões inflamados, nos quais afirmava ser dever sagrado dos xiitas atacar as forças dos EUA, Sadr passou por uma transformação de imagem ao entrar na política iraquiana pós-ocupação.

30 de agosto de 2022

ATAQUE NAZISTA MATOU MAIS DE 600 PESSOAS E FEZ ARACAJU VIVER 2ª GUERRA!

(UOL, 27) Era uma noite agradável de sábado, dia 15 de agosto de 1942. Os moradores de Aracaju, como os de todas as cidades brasileiras, apenas ouviam de longe as notícias sobre a Segunda Guerra Mundial, que à época devastava Europa, Ásia e até a África. Mas essa realidade mudaria naquele mesmo dia.

Três navios brasileiros a menos de 10 km do continente foram atacados e afundados pelo submarino nazista U-507. A ação da temida Kriegsmarine (a Marinha de Adolf Hitler) deixou cerca de 600 mortos —o número exato nunca foi calculado.

Submergiram naquele fim de semana as embarcações Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo. O navio com mais mortos foi o Baependy, que tinha 323 pessoas e levava filhos de oficiais do 7º Grupo de Artilharia de Dorso —nenhum deles escapou com vida.

“Os afundamentos foram o estopim para a declaração de guerra do Brasil à Alemanha e à Itália, naquele que foi descrito como o nosso próprio ‘Pearl Harbor'”, contam em artigo os historiadores Andreza Maynard e Dilton Maynard, pesquisadores do Grupo de Estudos do Tempo Presente da UFS (Universidade Federal de Sergipe).

Pela primeira vez, os ataques em águas sergipanas trouxeram o conflito para o Brasil e foram repudiados por vários países do continente, como os EUA.

À época, o governo brasileiro havia emitido um comunicado oficial:

O inominável atentado contra indefesas unidades da Marinha de um país pacífico, cuja vida se desenrola à margem e distante da guerra, foi praticado com desconhecimento dos mais elementares princípios de direito e humanidade.”

A ação dos nazistas revoltou o presidente Getúlio Vargas, que declarou guerra contra o Eixo, formado por Alemanha, Itália e Japão. O resto da história é mais conhecida fora de Sergipe: o Brasil montou a FEB (Força Expedicionária Brasileira) e foi lutar na Itália contra tropas fascistas e nazistas.

Oitenta anos depois, Aracaju, única capital brasileira a viver a guerra de perto, relembra o episódio, que causou grande comoção, indignação e medo.

Nos dias seguintes ao ataque, cadáveres e destroços chegaram ao mar de Aracaju e em algumas praias da região sul de Sergipe.

Contam os jornais à época que corpos nus, mutilados e até comidos pelos peixes boiaram até a costa. O combustível dos navios destruídos também manchou as águas. As notícias levaram a população a exigir vingança por parte das autoridades.

“Para termos dimensão do ataque, até ali haviam morrido 135 pessoas nos afundamentos de 11 navios brasileiros vítimas de ataques durante a guerra, iniciada em setembro de 1939”, compara Dilton Maynard, que é professor de história contemporânea na UFS.

O episódio também matou mais brasileiros do que na guerra na Itália —dos 20.573 enviados, 467 morreram nos combates na Europa.

Àquela época do atentado, o Brasil já tinha deixado a neutralidade na guerra. Em janeiro de 1942, o Brasil havia sediado a 3ª Conferência de Chanceleres do continente americano, quando o governo declarou apoio aos aliados.

“A partir de então, navios brasileiros passaram a ser alvo de ataques de submarinos do Eixo em águas internacionais. Vargas registrou em seu diário pessoal o descontentamento com a decisão. Mas o Brasil só declarou guerra após os torpedeamentos”, ressalta Andreza Maynard, que é professora do Colégio Aplicação da UFS.

Entretanto, ela afirma que os ataques fizeram a população viver sob forte tensão e temer novos ataques —inclusive aéreos.

Com cerca de 60 mil habitantes à época, Aracaju não estava preparada para uma tragédia daquela magnitude. Os trabalhos de resgate de corpos e destroços levaram dias e foram precários. “A área não era de fácil acesso. O aparecimento de corpos e destroços em praias do litoral durou dias. Tudo teve que ser improvisado”, conta Dilton Maynard.

Na realização das autópsias, é possível ver entre as fotos muitos corpos jogados ao chão. “Já os sobreviventes que chegaram a Aracaju foram espalhados pelos hotéis da cidade, residências e mesmo as instalações do quartel do Exército na cidade também foram utilizadas”, relata.

Aracaju também foi invadida por boatos. A polícia passou a investigar a presença de apoiadores ou mesmo infiltrados no Eixo na cidade. A população, revoltada com os ataques, também pressionava por respostas das autoridades.

Os relatórios policiais apontaram para um pequeno grupo identificado com possíveis atividades oposicionistas ao apoio aos aliados.

Eram dois blocos: o primeiro formado basicamente por brasileiros do movimento integralista (conhecido também como o fascismo brasileiro) e um segundo de estrangeiros que moravam em Aracaju e cidades próximas.

Entre os estrangeiros, dois chamaram a atenção da polícia: Nicola Mandarino (italiano) e Herbert Merby (alemão), sendo que o primeiro estava com armamento e explosivos em sua propriedade.

“Não bastasse o retrato de Hitler, o italiano teve dificuldades para explicar a origem e a finalidade do material apreendido: 456 cartuchos de guerra ogivais, 1.402 balas de rifles, 75 cartuchos de guerra pontiagudos, além de 19 bananas de dinamite”, detalham os historiadores em artigo.

Do episódio, Aracaju tem lembranças até hoje. A exposição “Aracaju: A Capital que Viu a Guerra” vai até outubro no Centro Cultural de Aracaju e conta como a cidade viveu aqueles momentos.

“Ficou na nossa história um fato tão chocante que ocorreu dentro do nosso território e com tantas embarcações. Lembre que Pearl Harbor não fica na plataforma continental dos EUA, mas a mais de 3.000 quilômetros da costa dos EUA. No nosso caso, os ataques ocorreram próximo à costa. O submarino estava a poucas milhas do nosso litoral”, diz Dilton Maynard.

29 de agosto de 2022

CHILE ESQUENTA CLIMA PARA PLEBISCITO DE NOVA CONSTITUIÇÃO COM MANIFESTAÇÕES!

(Sylvia Colombo – Folha de SP, 27) A uma semana da votação em que os chilenos decidirão se aprovam ou rejeitam a nova Constituição, as ruas das principais cidades do país tornaram-se palco de manifestações. São esperados 15 milhões de votos no plebiscito, no qual a participação é obrigatória.

Com a população dividida —porém inclinada a votar contra a proposta, segundo as pesquisas mais recentes—, o que se vê nos atos são grupos focados em discutir questões pontuais do novo texto. Nos últimos dias, por exemplo, milhares foram às ruas de Santiago pedindo o “sim” para a Carta pela garantia de acesso à habitação.

Foram realizadas marchas de mulheres defendendo os artigos da nova Constituição que preveem acesso ao aborto e a paridade de gênero na administração pública. Estudantes e indígenas se organizaram em passeatas em apoio à cláusula que define o Chile como um Estado plurinacional e intercultural e reconhece a soberania das nações indígenas —os povos nativos correspondem a 12% da população, mas nem sequer são mencionados na Constituição vigente, herdada da ditadura de Augusto Pinochet.

Grupos de ambientalistas se manifestaram andando de bicicleta, e muitos portavam bandeiras defendendo a aprovação do texto, com reivindicações de pautas ecológicas e símbolos dos mapuches, o grupo indígena mais numeroso do país. A redação da nova Carta preconiza que “a natureza tem direitos” e que “o Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los”.

Os que afirmam rejeitar a proposta também fazem campanha nas ruas do Chile. Em Puente Alto, um dos bairros mais pobres de Santiago, um grupo de mulheres carregou faixas em que se liam frases contra o texto.

“Nossa vontade não está expressa na Carta”, afirma Marcela Sepúlveda, líder da Corporação de Mulheres e das Tradições Chilenas. “Não aprovamos as novas leis de gênero e queremos deixar isso claro, queremos nossas tradições respeitadas.”

O texto que pode se tornar a nova Constituição também encontra forte oposição no sul do país, onde há conflitos violentos entre grupos mapuches e proprietários de terra. As marchas na região marcam posição contra artigos relacionados à soberania indígena, acesso à educação nos idiomas originários e a Justiça indígena, que permitiria a grupos nativos manter sistemas jurídicos ligados a tradição ancestral de cada tribo —modelo semelhante ao adotado na Bolívia, por exemplo.

Para a cientista política Claudia Heiss, há um descompasso entre o “sim” e o “não” no que tange à maneira como essas pautas são apresentadas à opinião pública.

“A campanha pela aprovação carece de verbas, há poucas doações e pouca propaganda pública, mas isso está sendo compensado pelas manifestações nas ruas, pela ação de organizações civis e estudantis, que estão promovendo eventos culturais e de conscientização.” Já o movimento pela rejeição, segundo Heiss, conta com forte apelo de propaganda nas ruas e nos meios de comunicação.

Esse pode ser um dos fatores que explicam a mudança nas intenções de voto nos últimos meses. Em janeiro, 56% dos chilenos diziam que votariam a favor da nova Carta, ante 33% que votariam contra, de acordo com pesquisa do instituto Cadem. A diferença foi diminuindo e, desde abril, o cenário se inverteu, com o “não” em vantagem sobre o “sim” —o último levantamento permitido pela legislação eleitoral aponta 46% contra, 37% a favor e 17% indecisos.

Há nuances, porém, de ambos os lados. Entre os eleitores que querem enterrar de vez a Constituição da era Pinochet, há grupos defendendo que, depois da promulgação do novo texto, alguns pontos sejam reformados. Movimento semelhante se dá também no outro campo: parte dos que devem votar pela rejeição não se opõe a todas as cláusulas, de modo que há uma intersecção entre os dois extremos.

“A rejeição deve ganhar, não para que se enterre todo o esforço, mas para que voltem a ser debatidos temas que foram colocados no texto às pressas, quase como um rascunho”, diz Carol Brown, legisladora que pertence ao partido de direita UDI.

O governo do esquerdista Gabriel Boric, que se posiciona a favor da proposta, foi forçado a pensar em um plano B diante da potencial rejeição. Uma vez que a Constituição atualmente em vigor já foi reprovada no plebiscito de 2020, o mandatário afirma que há espaço para negociar uma nova redação do texto —movimento que já recebeu o aval dos principais partidos da direita chilena.

Quem vem explicando como será o plano é o secretário da Presidência, Giorgio Jackson. “Teremos de chegar a um consenso, por meio do Congresso, para estabelecer o mecanismo para a renegociação dos artigos que causam rejeição, além de um novo sistema de aprovação. Haverá ajustes necessários que devem ser debatidos e aprovados pelas vias institucionais”, afirmou.

25 de agosto de 2022

MODELO PERONISTA SE ESGOTOU’, DIZ HISTORIADOR ARGENTINO!

(O Estado de S. Paulo, 25) O historiador e jornalista argentino Carlos Pagni, comentarista político do diário La Nación e do Canal 13, é um crítico do peronismo e do modelo implementado por Néstor Kirchner (2003-2007), morto em 2010, e pela mulher dele Cristina (2007-2015), concentrado na ampliação de subsídios e de programas sociais sem lastro orçamentário.

Pagni vê na tentativa de recriar os tempos de bonança vividos durante o governo do caudilho Juan Domingo Perón (1946-1955), no pós-guerra, parte da explicação para as crises inflacionárias cíclicas da Argentina e para a perda de relevância econômica do país na América Latina.

Nesta entrevista, que faz parte de uma série de reportagens especiais lançada pelo Estadão sobre a ascensão da esquerda na região, feita num café no bairro de Retiro, Pagni também analisa a provável derrota dos peronistas nas eleições de 2023. “O modelo peronista se esgotou”, afirma.

Qual o papel do peronismo nas crises cíclicas vividas pela Argentina?

Simplificando, eu citaria a obra de Tulio Halperin, um grande historiador argentino. A tese dele é que, nos anos 1940, Perón produziu uma espécie de revolução social, beneficiado pelas condições excepcionais do pós-guerra, quando a Argentina era credora da Inglaterra. Perón percebeu que esse modelo era insustentável, mas em 1955 “fizeram o favor” de tirá-lo do poder. Aí, essa experiência peronista, que gerou uma bonança que marcou a história argentina, virou um mito possível.

De que forma o kirchnerismo se encaixa nisso?

Todos os governos posteriores tentaram recriar esse mito. Quando chega o ciclo das commodities, entre 2003 e 2013, e o crescimento da China inunda a América Latina de dólares, Néstor e Cristina (hoje vice-presidente) dizem: “É a nossa chance de reconstruir aquele mundo do Perón”. Essa ilusão é a essência do kirchnerismo em matéria econômica. Só que isso é insustentável. Halperin tinha razão. O modelo da Argentina peronista se esgotou.

Até que ponto é possível dizer que essas crises se devem à questão cambial?

O dólar na Argentina teria de ser mais caro do que o valor estabelecido pelos governos peronistas. Mas, pela forma como a sociedade argentina se acostumou a viver, uma grande desvalorização do peso levaria qualquer um à derrota eleitoral.

Que estilo de vida é esse?

Aqui na Argentina, todos querem viajar para Miami, ter um carro importado e viver acima das possibilidades. É para satisfazer as necessidades de consumo da sociedade argentina, sobretudo nos setores médios, que os governos sobrevalorizam o peso. É esse atraso cambial que gera crises cíclicas. Desvalorização. Pobreza. E começa tudo de novo. É isto que está acontecendo hoje no governo de Alberto Fernández.

O que difere Fernández de Gustavo Petro, na Colômbia, e Gabriel Boric, do Chile?

A diferença é que é impossível hoje na Argentina chegar ao equilíbrio fiscal subindo impostos, algo que Boric e Petro até podem conseguir no Chile e na Colômbia. O governo argentino precisa cortar gastos com urgência. É essa a discussão que o governo Fernández tem pavor de fazer. Isso acaba criando uma paralisia, porque Cristina não aceita fazer isso de jeito nenhum. Ela não entendeu que as condições da economia mudaram.

Com uma inflação batendo quase 90% ao ano, qual seu prognóstico para as eleições de 2023?

Bom, a coalizão Juntos por El Cambio (opositora) é favorita. Mas não sei se (o ex-presidente) Mauricio Macri (2015-2019) tem chance. Ele tem um problema de rejeição muito alto. O nome mais competitivo da centro-direita é o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. A ex-ministra Patricia Bullrich também está bem cotada. A briga dentro da coalizão vai ser grande.

Por que Macri não conseguiu deixar o peronismo para trás?

Se você olhar a trajetória econômica do governo dele, o ajuste fiscal que ele precisava fazer era quase impossível de ser feito. Macri precisaria de um capital político enorme. Só que ele não tinha isso. Um ajuste fiscal numa recessão é duro, porque agrava o problema.

Isso prejudicou também outros governos de direita e centro-direita?

Sim. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Paulo Guedes, no Brasil. Os ministros ortodoxos da “direita neoliberal” são excelentes num ciclo expansivo. O (ex-presidente) Lula está pensando que vai encontrar o mesmo mundo feliz de quando era presidente, mas terá uma dura surpresa se for eleito.

24 de agosto de 2022

SOBRE DITADORES E SUPERÁVITS COMERCIAIS!

(Paul Krugman – The New York Times/O Estado de S. Paulo, 24) Segundo nova pesquisa NBC News, os americanos agora consideram “ameaças à democracia” o problema mais importante que o país enfrenta, o que é tanto perturbador quanto um sinal bem-vindo de que as pessoas andam mais atentas. Também vale notar que não se trata apenas de um problema dos EUA. A democracia está se erodindo em todo o mundo – segundo a Economist Intelligence Unit, existem hoje 59 regimes totalmente autoritários por aí, abrigando 37% da população mundial.

Mas, desses 59 regimes, apenas 2 – China e Rússia – são poderosos o suficiente para representar desafios maiores para a ordem internacional. As duas nações são, evidentemente, muito diferentes. A China é uma superpotência autêntica, cuja economia superou, segundo algumas medidas, a dos

EUA. A Rússia é uma potência menor em termos econômicos, e os eventos ocorridos desde 24 de fevereiro sugerem que suas forças militares são menos poderosas do que a maioria dos observadores imaginava. Mas os russos possuem armas nucleares.

EXCEDENTES. Uma coisa que China e Rússia têm em comum é que administram enormes superávits comerciais. Esses excedentes são sinais de força? São provas de que autocracias funcionam? Não, em ambos os casos, são sinais de fraqueza. E a atual situação oferece um corretivo útil à noção comum – defendida, entre outros, por Donald Trump – de que um país que vende mais do que compra é “vencedor”.

Comecemos com a Rússia, cujo excedente comercial inflou desde que Vladimir Putin invadiu a Ucrânia. O que será que aconteceu? A resposta é que isso resulta, em grande medida, das sanções econômicas do Ocidente, que têm sido surpreendentemente eficazes – apesar de que não da maneira que muitos esperaram.

Quando a invasão começou, houve chamados generalizados

Há um problema peculiar das ditaduras – não se pode dizer ao líder que ele está errado

por embargos às exportações russas de petróleo e gás natural. Mas a Rússia conseguiu facilmente manter suas exportações de petróleo – o país está vendendo o insumo com desconto, mas os preços globais elevados resultam em bastante dinheiro entrando.

E, ainda que tenha havido uma acentuada queda nas exportações russas de gás natural para a Europa, isso é reflexo dos esforços do regime de Putin para colocar pressão sobre o Ocidente, não o contrário.

As sanções, por sua vez, minaram a capacidade de a Rússia importar, especialmente sua capacidade de comprar produtos cruciais para a indústria.

Portanto, o superávit comercial da Rússia é, na realidade, má notícia para Putin, um sinal de que seu país enfrenta problemas para conseguir usar o dinheiro que tem para comprar as mercadorias de que necessita para manter seu esforço de guerra.

O problema da China é diferente: seu superávit comercial é resultado de problemas internos antigos que podem, finalmente, estar tomando a frente. Observadores notam há muito que uma parte pequena demais da receita nacional chega ao público, tanto que o gasto da população em consumo tem permanecido baixo, apesar do rápido crescimento econômico.

Em vez disso, a nação tem mantido aproximadamente o pleno-emprego canalizando crédito barato para um investimento cada vez mais improdutivo, principalmente um mercado imobiliário habitacional inflado, sustentado pela sempre crescente dívida privada.

IMPORTAÇÕES. Neste momento, o mercado imobiliário habitacional chinês parece estar ruindo, e a demanda dos consumidores parece estar despencando. Esse fenômeno diminui o fluxo de importações – o que faz o superávit comercial aumentar. Repito, um excedente pode ser sinal de alguma fraqueza, em vez de força.

Outros dois pontos em relação à China: primeiro, sua economia também está sofrendo com a recusa do governo em revisar sua fracassada estratégia em relação à covid, dependendo de vacinas produzidas domesticamente, relativamente pouco eficazes, e impondo lockdowns draconianos para conter a pandemia. Segundo, sob as atuais condições, a fraca demanda chinesa é um trunfo para o restante do mundo. INFLAÇÃO. Dez anos atrás, a economia mundial sofria de uma demanda inadequada, e os superávits da China pioraram o problema ao sugar o poder de compra do restante do planeta. Hoje, porém, a economia mundial sofre de uma oferta inadequada, o que ocasionou inflação em muitos países.

Nesse contexto, a fraqueza chinesa é, na realidade, boa para todos os demais: a demanda chinesa em queda está colocando um limite sobre os preços do petróleo e de outras commodities, reduzindo a pressão inflacionária global.

Então o que podemos aprender com ditadores e superávits comerciais? Como afirmei, estamos diante de uma prova de que exportar mais do que importar não significa que você está vencendo – de maneiras distintas, os superávits de Rússia e China representam fracassos.

Em nível mais amplo, testemunhamos o problema peculiar das ditaduras, nas quais ninguém pode dizer ao líder que ele está errado. Putin parece ter invadido a Ucrânia porque todos estavam assustados demais para alertá-lo a respeito das limitações do poderio militar russo.

E a resposta da China contra a covid passou de modelo exemplar a alerta, porque ninguém ousa dizer a Xi Jinping que as políticas com a sua assinatura não estão funcionando. Portanto, a autocracia pode estar em marcha, mas não porque funciona melhor que a democracia.

23 de agosto de 2022

BORIC ENFRENTA ‘CHOQUE DE REALIDADE’ APÓS CINCO MESES DE PODER NO CHILE!

(Luiz Raatz – O Estado de S. Paulo, 21) Ele não é apenas um dos grandes apoiadores da nova Carta, considerada radical pela maioria dos chilenos, segundo as sondagens de opinião, mas um defensor inflamado de seus pontos mais polêmicos, que são caros à sua base de apoio, como a transformação do Chile num Estado plurinacional, formado por diversas etnias, o pluralismo jurídico, que prevê um sistema exclusivo para cada etnia, e a extinção do Senado.

Por sua identificação com as propostas de mudança nos pilares da república chilena, Boric personaliza, de certa forma, o projeto que será apresentado à apreciação popular, finalizado em julho, depois de um ano de debates na Assembleia Constituinte. A rejeição da nova Constituição, portanto, deverá representar para o novo presidente do Chile uma derrota pessoal, de alto custo político.

“É inevitável que a vitória do ‘não’ seja vista como uma derrota para ele”, diz Claudia Heiss, doutora em ciência política e professora da Faculdade de Governo da Universidad de Chile. “O Boric e os Constituintes superestimaram o apoio que teriam para promover as reformas que defendem. Eles receberam apoio da população para certo tipo de reforma, mas levaram isso muito mais longe do que as pessoas queriam”, afirma Nicolás Saldías, analista para a América Latina e o Caribe da Economist Intelligence Unit (EIU), ligada ao grupo que publica a revista britânica The Economist.

Diante da perspectiva de rejeição da nova Constituição, Boric chegou a dizer que, se isso se confirmasse, haveria um novo processo constituinte. Mas, com a reação desencadeada contra a proposta, ele teve de recuar e buscar uma saída negociada para a questão.

ACORDO. Na semana passada, numa tentativa de viabilizar a aprovação do projeto no referendo, o governo fechou um acordo com uma parte dos parlamentares se comprometendo a alterar os pontos mais polêmicos do texto, que são justamente aqueles defendidos com mais entusiasmo por Boric. Só que, como a possibilidade de vitória do “sim” parece remota no momento, o acordo provavelmente nem será colocado em prática.

Esta reportagem, dedicada à análise das dificuldades que Boric terá para governar e cumprir as promessas de campanha, faz parte de uma série lançada pelo Estadão sobre o crescimento da esquerda na América Latina, que aborda casos de diferentes países em que o grupo assumiu o poder nos últimos anos e discute os riscos que isso poderá representar para o futuro.

Chefe de Estado mais jovem da América Latina, Boric, de 36 anos, representa uma face “pós-moderna” da esquerda, nas palavras do escritor Alvaro Vargas Llosa, coautor dos livros Manual do Perfeito Idiota Latino-americano e A volta do idiota, nos quais ironiza a atuação e a mentalidade do grupo.

POLÍTICAS IDENTITÁRIAS.

Além de apoiar as ideias tradicionais da esquerda, como maior intervenção do Estado na economia, aumento dos gastos públicos, elevação de impostos e ampliação de programas sociais, Boric incorporou a defesa do meio ambiente e de políticas identitárias em sua agenda política.

Com isso, obteve o apoio da parcela dos chamados millenials que se identifica ideologicamente com a esquerda e esteve à frente dos violentos protestos realizados em 2019 no Chile. Até agora, ele tem adotado também uma postura crítica em relação às ditaduras de Cuba, Venezuela e Nicarágua, o que reforça, aparentemente, as suas diferenças com a maioria dos líderes da esquerda na América Latina.

Boric, porém, está enfrentando um choque de realidade no governo. Sua popularidade está caindo rapidamente, no mesmo ritmo ou até de forma mais acelerada do que a sua ascensão no cenário político chileno. Eleito com 56% dos votos válidos, com apoio do centro, que se distanciou do candidato da direita José Antonio Kast, especialmente depois de ele defender a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), Boric se tornou em tempo recorde um dos governantes com a menor taxa de aprovação na América Latina.

Segundo um levantamento da consultoria Cadem divulgado há uma semana, apenas 38% dos chilenos aprovam a sua atuação – uma queda de quase 20 pontos em relação ao resultado que ele obteve nas urnas em dezembro do ano passado.

Embora seu apoio à nova Constituição explique, em boa medida, a baixa aprovação popular, seus problemas vão muito além disso. Sem maioria no Congresso, onde os partidos tradicionais dos dois lados do espectro político ainda detêm grande influência, Boric terá, provavelmente, de ceder em muitas de suas propostas, como a elevação de impostos e a taxação das grandes fortunas, para conseguir governar. “Ele precisa dos votos do centro e da direita moderada para fazer alguma reforma”, avalia Claudia Heiss.

EFEITOS COLATERAIS. Na Câmara, de um total de 155 deputados, Boric tem 44, enquanto os partidos tradicionais de centro-direita e a direita têm 53. A centro-esquerda, que nem sempre vota com o governo, conta com 37 assentos, e as demais cadeiras estão nas mãos de partidos nanicos, que podem ser o fiel da balança nas votações mais importantes. No Senado, a oposição de direita tem metade das vagas.

“O Boric tem um problema sério no Congresso. Lá, as forças políticas são muito distintas do que o seu governo representa”, observa Claudia. “Ele não tem votos nem para alterar dispositivos constitucionais no varejo nem para aprovar leis que impliquem em mudanças mais radicais.”

Mesmo que Boric consiga apoio para transformar em realidade ao menos parte de seus planos, as mudanças deverão produzir efeitos colaterais que acabarão por complicar ainda mais o quadro atual. “Quando você coloca propostas de aumento de gastos públicos e elevação agressiva de tributos, a desconfiança do setor privado cresce, exacerbando as dificuldades políticas”, afirma o cientista político Christopher Garman, diretor-executivo para as Américas da Eurasia, uma consultoria internacional especializada em avaliação de riscos.

Numa perspectiva histórica, as propostas de Boric para a economia colocam em xeque o bem-sucedido modelo econômico chileno, que transformou o país numa ilha de prosperidade na América Latina.

PODER DE COMPRA. Nos últimos 50 anos, desde a queda do governo socialista de Salvador Allende (1970-1973), o Chile cresceu bem acima da média da América do Sul (veja o quadro). A renda per capita, ajustada pela paridade do poder de compra, chegou a US$ 29,1 mil em 2021, a mais alta da região e quase o dobro da média da América Latina. O Chile também tem, hoje, o maior grau de liberdade econômica entre os países lati

Mãos atadas Sem maioria no Congresso, Boric terá de ceder em muitas propostas de campanha para governar

no-americanos, segundo o ranking elaborado pela Heritage Foundation, dos Estados Unidos.

“O Chile alcançou um grande progresso econômico, em termos de PIB (Produto Interno Bruto) per capita e também de outros indicadores, nas últimas décadas”, afirma o historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, autor do livro O capitalismo não é o problema, é a solução, lançado recentemente no Brasil. “Mas as pessoas votaram num candidato socialista. Elas esqueceram a razão que levou o país a ser bem-sucedido.”

As propostas de aumento de gastos públicos e de impostos, defendidas pelo novo presidente chileno, chocam-se com as medidas necessárias para combater a alta da inflação, que atingiu 13,1% nos últimos 12 meses, a maior taxa em 28 anos. Apesar de não ter criado o problema, decorrente da desorganização das cadeias produtivas e da alta dos combustíveis e dos alimentos causadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, Boric terá de lidar com ele.

Para conter a escalada inflacionária, que também tem uma influência significativa em seus índices de aprovação popular, o Banco Central chileno terá provavelmente de subir mais os juros, que já estão em 9% ao ano, a taxa mais alta em duas décadas, como está ocorrendo no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países. Isso vai encarecer o crédito, aumentar as despesas do governo com a rolagem da dívida pública e desacelerar ainda mais a economia, que deverá crescer apenas 1,5% em 2022, conforme as previsões do FMI.

CRIMINALIDADE. Neste cenário já tão complicado, aumentar impostos para engordar o caixa do governo, como defende Boric, só vai potencializar o efeito perverso da alta dos juros, sufocando ainda mais o setor privado e os cidadãos. Além disso, se o Banco Central aumentar os juros para esfriar a economia de um lado e o governo abrir os cofres para cumprir as promessas de campanha de outro, uma coisa acabará anulando a outra e a inflação continuará alta, com prejuízos maiores para os mais vulneráveis.

Como se tudo isso não bastasse, Boric ainda terá de lidar com o aumento considerável da criminalidade no país. Embora o Chile ainda tenha índices bem menores do que outros países latino-americanos neste quesito, a segurança pública se tornou, de acordo com uma pesquisa do Instituto Ipsos, a principal preocupação da população nos últimos anos. As próprias autoridades dizem que o país vive hoje sua pior crise na área desde o retorno à democracia, em 1990.

Isso significa que Boric terá de dar uma atenção especial a uma questão que, muitas vezes, é deixada de lado pela esquerda, sob os argumentos de que se trata de uma questão social que tem de ser resolvida com a melhoria das condições de vida dos mais pobres e de que a polícia atua de forma seletiva, discriminando certos estratos da sociedade.

No entanto, para melhorar a percepção de segurança por parte dos cidadãos, é provável que Boric tenha de aumentar os investimentos em equipamentos e pessoal, em detrimento de outros áreas. Para isso, como afirma Alvaro Vargas Llosa, terá de deixar de lado suas convicções ideológicas e lidar com o problema de forma pragmática. “Isso pode acontecer”, diz Vargas Llosa. “Nós já vimos pessoas da esquerda traírem suas ideias”, diz. Agora, só o tempo dirá se Boric seguirá por este caminho.