23 de fevereiro de 2021

A AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S. Paulo, 22) O penoso caminho até a autonomia do Banco Central (BC) começou mesmo antes de sua criação (Lei 4.595/64). Roberto Campos – o avô, não o neto, que hoje dirige com competência a instituição – defendia que seus diretores tivessem mandatos fixos, não coincidentes com o do presidente da República. Campos não logrou seu objetivo, mas foi um dos principais idealizadores das normas legais que possibilitaram o desenvolvimento do sistema financeiro nacional em bases modernas.

Desde então, a autonomia do BC não saiu do debate. Posições populistas e equivocadas levaram ao fracasso de várias tentativas de aprová-la. Basta lembrar o bordão “agora querem entregar o BC aos banqueiros”, um erro lógico primário, pois a história mostra que os grandes vilões da política monetária no mundo foram os governantes populistas. Crises bancárias e negligência com a inflação tiveram custo enorme para a sociedade, principalmente para os mais pobres.

No entanto, é preciso olhar o outro lado da moeda. Economistas que se declaram ortodoxos têm criticado, erroneamente, a meu ver, o projeto aprovado na câmara, tachando de desnecessária e populista parte do parágrafo único do art. 1.º, aqui transcrito: “Sem prejuízo de seu objetivo fundamental o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego” (grifo meu). Observe-se que o objetivo fundamental, constante do caput do artigo, é a estabilidade de preços.

Zelar pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro já faz parte do arcabouço legal vigente. Vejamos os outros dois objetivos.

O segundo, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica, enriquece, no lugar de reduzir, a autonomia.

Em primeiro lugar, porque funciona dos dois lados. O BC pode endurecer a política monetária para evitar booms exagerados que aticem a inflação ou ser arrojado com a redução dos juros, nas fases de escassez de demanda, evitando longos períodos de aumento acentuado no desemprego.

Em segundo lugar, porque a suavização das flutuações da atividade econômica está de acordo com as numerosas constatações empíricas internacionais sobre a existência de histerese do ciclo econômico.

Em física, histerese pode ser entendida como “retardo” ou, de acordo com o Dicionário Houaiss, “fenômeno apresentado por determinados sistemas físicos cujas propriedades dependem de sua história precedente”. Em economia, significa que os ciclos econômicos acentuados podem, de fato, afetar a taxa de crescimento de longo prazo, ao contrário do que a teoria, até pouco tempo dominante, apregoava.

Há vários canais pelos quais a histerese pode se manifestar, dentre os quais, destacam-se: (1) longos períodos de desemprego acentuado resultam em perdas de habilidades e desatualizações, erodindo o estoque de capital humano; (2) maior e mais rápida obsolescência do estoque de capital; (3) fuga de cérebros; (4) redução da autoestima e das expectativas dos trabalhadores, que se acostumam no subemprego ou na informalidade; (5) piora das expectativas, diminuindo a disposição de assunção de riscos, entre vários outros.

Finalmente, tendo a concordar que o terceiro objetivo, fomentar o pleno emprego, é desnecessário, porque os bancos centrais que adotam o regime de metas já levam em conta, em seus modelos, o grau de sacrifício imposto pelas políticas monetárias contracionistas. No entanto, há exagero no entendimento de que o BC poderia ser cobrado judicialmente por isso. O projeto de lei fala em pleno-emprego, não em desemprego nulo. Não há meta quantitativa para a taxa de desemprego. Caberá ao BC estimar qual é a taxa compatível com seu objetivo fundamental, a estabilidade de preços.

A autonomia do BC, tal como foi aprovada na Câmara, é um importante avanço institucional no Brasil.

22 de fevereiro de 2021

PANDEMIA E CRIME ORGANIZADO NA AMÉRICA LATINA!

(José Miguel Cruz Brian Fonseca – O Estado de S. Paulo, 20) Durante os primeiros dias da pandemia, alguns acreditavam que a covid-19 poderia ser ruim para o crime organizado, como o MS-13 e o cartel de Sinaloa. O lockdown em várias cidades do mundo impediu as pessoas de saírem de casa, minando o comércio, tanto legal quanto ilegal. Na média, a recessão atingiu as economias latino-americanas com mais força do que qualquer outra, significando menos dinheiro no bolso dos consumidores. À medida que os governos mobilizavam verbas e equipes para enfrentar o desafio, falava-se de um novo nível de engajamento que poderia fortalecer os laços entre os cidadãos e o Estado, possivelmente eliminando as organizações criminosas transnacionais em algumas áreas.

Um ano depois, ficou claro que não foi isso que aconteceu. A capacidade operacional, adaptabilidade, redes extensas e cofres recheados das organizações criminosas propiciam oportunidades para explorar os vazios deixados por instituições sobrecarregadas e cadeias de suprimento estressadas em toda a região. Embora ainda seja muito cedo para avaliar quaisquer mudanças duráveis ou resistentes, as organizações criminosas transnacionais estão mostrando indícios de que se adaptaram rápido e até se tornaram mais fortes de várias maneiras, algumas delas surpreendentes.

De fato, a pandemia pode, em última análise, ser um ponto de virada que marca a aceleração de tendências desastrosas relacionadas ao crime e à segurança registradas durante as últimas três décadas. A questão é o que governos podem fazer para impedir que isso continue.

Mesmo antes de a pandemia atingir a região, a América Latina e o Caribe eram o berço de alguns dos grupos criminosos mais dominantes, adaptáveis e violentos do mundo. Desde a década de 90, essas quadrilhas evoluíram de estruturas criminosas altamente centralizadas e hierárquicas para redes em expansão e ágeis envolvidas em uma ampla gama de atividades ilícitas.

Hoje, elas administram diversos portfólios de atividades ilegais que incluem desde o tráfico de drogas, de humanos, de armas, de minerais e outras mercadorias ilícitas até extorsão, sequestro, crime cibernético e lavagem de dinheiro. Esses grupos também evoluíram, de empreendimentos criminosos amplamente focados no hemisfério, com base em dinheiro vivo, para redes criminosas globais que estão profundamente entrelaçadas aos setores público e privado em toda a região.

A história recente ilustra a tremenda resiliência desses grupos. Na América do Sul, os países andinos Bolívia, Colômbia e Peru continuam sendo os principais produtores de cocaína, apesar de décadas de políticas de erradicação. As antigas insurgências colombianas e peruanas resistiram às forças de segurança e evoluíram para organizações criminosas de fato com alcance global e extensos portfólios de atividades. Após a desmobilização dos paramilitares colombianos em 2006, bandos criminosos, também chamados de bacrim, surgiram como parte de uma terceira evolução das organizações de tráfico ilícito muito mais abrangentes e diversificadas que suas antecessoras.

De acordo com a Insight Crime, uma organização que estuda segurança na América Latina, a Colômbia enfrenta hoje uma quarta geração de organizações criminosas que possuem uma tremenda perspicácia empresarial, maior sofisticação tecnológica e são melhores tanto na estratégia de se integrar à sociedade quanto de fundir negócios legítimos com atividades ilícitas.

Na Venezuela, o regime de Nicolás Maduro transformou o país em um importante polo de drogas que partem da região com destino aos EUA, África Ocidental e Europa. O cartel dos Sóis é uma importante organização do narcotráfico composta em grande parte por militares venezuelanos. O país também atua como fonte de tráfico sexual.

O Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, expandiu sua presença além das fronteiras do Brasil para assumir uma participação maior no tráfico internacional de entorpecentes ilícitos produzidos no Cone Sul. Os cartéis de drogas mexicanos continuam entre as organizações criminosas mais dominantes e poderosas do mundo. Entre eles, o cartel de Sinaloa, o Jalisco Nova Geração, o cartel do Golfo e o cartel Los Zetas operam em todo o mundo e são responsáveis por mais de 61 mil desaparecimentos e um número ainda maior de mortes desde os anos 60.

No fim de 2020, o México estava a caminho de registrar o ano mais violento de sua história, com mais de 40 mil assassinatos e uma taxa de homicídio projetada acima de 27 para cada 100 mil habitantes. A recente prisão e subsequente libertação do ex-ministro da Defesa do México, General Salvador Cienfuegos Zepeda, destaca como as organizações criminosas estão infiltradas no Estado mexicano.

Na América Central, gangues como MS-13 (Mara Salvatrucha) e Barrio 18 sobreviveram a quase duas décadas de políticas severas do governo destinadas a desmantelá-las e, talvez por causa dessas políticas, essas gangues ainda crescem de forma desenfreada com mais de 50 mil membros em El Salvador, Honduras e Guatemala. A região atrai outras organizações que estão se mudando para lá para tirar proveito de condições econômicas calamitosas, governos debilitados, um estado de direito enfraquecido e da proximidade de mercados importantes nos EUA.

Finalmente, o Caribe está mais uma vez fornecendo às organizações criminosas rotas de contrabando vitais que conectam produtores a consumidores. Fracas restrições a liberação de vistos e cidadania por meio de esquemas de investimento estão atraindo grupos que procuram usar o Caribe como um centro para várias atividades criminosas, incluindo tráfico ilícito e lavagem de dinheiro.

Por causa da pandemia, o crime está se expandindo para outras áreas, incluindo aquelas que o Estado, sobrecarregado, simplesmente não tem condições de administrar. Os grupos criminosos têm proporcionado uma espécie de governo paralelo em áreas praticamente abandonadas por instituições estatais. Por exemplo, na América Central as gangues assumiram a tarefa de fazer cumprir as medidas de controle da pandemia emitidas pelo governo e distribuir alimentos para a população em suas comunidades. No México, vários grupos criminosos, como a organização de Chapo Guzmán e o cartel Jalisco Nova Geração, têm distribuído alimentos às comunidades que controlam como forma de ganhar legitimidade pública.

No Brasil, facções em várias favelas do Rio de Janeiro impuseram toques de recolher e distanciamento social aos moradores e ao comércio local, ao mesmo tempo que distribuíam produtos de saneamento, suprimentos médicos e alimentos. Se os cidadãos continuarem a recorrer a grupos criminosos para a prestação de serviços, os governos serão forçados a pagar um alto preço para desalojar essas quadrilhas quando a pandemia acabar.

A covid-19 também está criando novas oportunidades econômicas para esses bandos. À medida que a recessão empurra um número cada vez maior de latino-americanos para as sombras da economia informal, o comércio de mercadorias ilegais pode se tornar ainda mais atraente. Por exemplo, há registros de um aumento no tráfico de suprimentos médicos, desde máscaras cirúrgicas, desinfetantes e álcool em gel a medicamentos e kits de teste. Recentemente, o secretário-geral da Interpol, Jürgen Stock, alertou que grupos criminosos planejavam se infiltrar nas cadeias de fornecimento de vacinas.

Dificuldades econômicas estão criando uma “epidemia paralela” de angústia emocional, aumentando a demanda global por substâncias psicotrópicas, muitas fortemente controladas ou totalmente ilegais. As organizações criminosas contam hoje com um mercado maior e mais exigente e instituições enfraquecidas. Alguns países, como o Brasil, podem emergir como novos atores transnacionais no fluxo de bens ilícitos, graças à interrupção do canal existente aliada à nova demanda registrada em regiões como a Europa.

A maioria das sub-regiões das Américas deve experimentar uma consolidação de suas redes criminosas transnacionais. Os Andes podem ver um aumento nas safras ilegais, pois elas se tornarão uma das fontes de receita mais seguras para os agricultores locais. Os grupos criminosos da América Central garantirão a continuação de seu status ao controlar centros de tráfico e proporcionar empregos para populações carentes, em muitos casos com a ajuda de políticos e agentes estatais corruptos.

Nesse ambiente, atores estatais e não estatais de Rússia, China e outros países poderão fazer parceria com organizações criminosas e instituições corruptas nas Américas de forma mais fácil. Esses países e seus setores privados são conhecidos por contornar o estado de direito e, geralmente, preferem trabalhar com atores corruptos. A influência crescente da China tem ajudado Maduro, em particular, permitindo que sua cleptocracia sobreviva.

Os custos sociais da pandemia serão enormes, especialmente considerando que as economias da região podem não se recuperar totalmente aos níveis pré-covid antes de 2025, de acordo com o FMI. Segundo o Banco Mundial, antes da covid-19, já havia mais de 20 milhões de “ninis”, neologismo em espanhol que se refere aos jovens que não trabalham nem estudam, na América Latina. Para milhares de jovens, a participação em grupos criminosos pode se tornar a única chance de sobrevivência.

O desemprego generalizado e o subemprego também aumentarão a pressão da migração legal e ilegal, alimentando as cadeias de tráfico humano. Relatórios mostram, por exemplo, que quando o governo colombiano fechou sua fronteira com a Venezuela para conter o surto de covid-19, milhares de migrantes venezuelanos desesperados acabaram caindo nas garras de organizações criminosas que operam na área.

Muitos governos nacionais reagirão ao poder crescente das organizações criminosas, e a revolta da opinião pública resultante, redirecionando recursos para expandir as instituições de segurança. Outros governos podem se ver forçados a negociar com organizações criminosas, uma prática já em vigor em El Salvador e comum no nível subnacional, onde os governos locais são fracos. Esse tipo de negociação parecerá politicamente conveniente, especialmente em países com eleições nos próximos 18 meses, mas na ausência de controles institucionais adequados e reformas nas instituições-chave, tais táticas raramente tiveram sucesso no passado.

Qualquer resposta governamental eficaz deve encarar as devastadoras consequências econômicas da crise de saúde, a erosão da capacidade do Estado e o colapso da legitimidade institucional. Os governos devem cavar fundo e desenterrar vontade política para expandir a luta contra a impunidade, a corrupção generalizada e a falta de capacidade institucional. Eles precisam expandir as reformas estruturais em instituições-chave, como o Judiciário, as forças policiais federais, estatais e locais, e melhorar a capacidade de fornecer aos cidadãos as necessidades mais básicas, como educação e saúde pública.

Sem esforços para uma reforma das instituições responsáveis pelo bem-estar da população e um esforço de investimento sustentado em capital humano, qualquer iniciativa tradicional com foco na segurança está fadada ao fracasso. Investimentos em capital humano e social devem ser acompanhados por uma maior cobrança das instituições políticas responsáveis. A regressão ao autoritarismo que vários países enfrentam agravará as crises desencadeadas pela pandemia. Portanto, enfrentar o crime organizado nessas circunstâncias exige que a resiliência dos governos democráticos seja maior do que a resiliência dos grupos criminosos da região.

Dado o tamanho da emergência e a crescente expansão transnacional das redes criminosas, os governos devem trabalhar multilateralmente para otimizar recursos, compartilhar informações e melhorar a coordenação intergovernamental. O combate ao crime transnacional é um desafio global que exige uma colaboração multilateral mais significativa que reúna países dentro e fora do hemisfério.

19 de fevereiro de 2021

OS COMBUSTÍVEIS NA REFORMA TRIBUTÁRIA!

(Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal – O Estado de S. Paulo, 16) Na semana passada o presidente da República enviou ao Congresso Nacional projeto de lei complementar alterando a forma de cobrança do ICMS nas operações com combustíveis. O projeto visa a regulamentar dispositivo constante da Constituição Federal há 19 anos (e nunca aplicado), o qual estabelece que, nas operações com combustíveis e lubrificantes, o ICMS incidirá uma única vez, e terá alíquota uniforme em todo o território nacional.

Em princípio, a regulamentação do modelo de cobrança de ICMS sobre combustíveis previsto na Constituição é positiva, pois torna o modelo mais simples e reduz distorções decorrentes da grande diferenciação na tributação entre Estados – como grande variabilidade na relação de preço entre o etanol e a gasolina. No entanto, o objetivo do governo federal ao enviar o projeto não parece ter sido esse, mas sim tentar transferir indevidamente para os Estados a responsabilidade pela alta do preço dos combustíveis, num momento em que os caminhoneiros ameaçam entrar em greve por conta do aumento do custo do óleo diesel. A proposta do governo apresenta ainda vários problemas, que dificultam a sua adoção.

Por um lado, há questionamentos sobre a constitucionalidade do projeto, que, segundo algumas interpretações, estaria invadindo a competência dos Estados, ao definir que a alíquota do ICMS seria específica, ou seja, um valor fixo por litro.

Por outro lado, dada a grande variabilidade na cobrança de ICMS sobre combustíveis entre os Estados, a adoção de alíquota uniforme teria um impacto muito diferenciado sobre a receita dos entes da Federação, com ganhos e perdas relevantes. Essa é, provavelmente, a razão pela qual o dispositivo constitucional que prevê alíquota uniforme nunca foi regulamentado.

Por fim, a mera adoção de alíquota uniforme de ICMS não garante a redução do custo do óleo diesel, podendo até ter o efeito oposto. Como aumentos de tributos tendem a ser imediatamente repassados aos preços e o repasse de reduções de custos tende a ser mais lento, o efeito inicial da mudança pode ser até um aumento do preço médio dos combustíveis.

Isso só não ocorreria se houvesse uma redução generalizada do ICMS cobrado sobre combustíveis, o que é muito pouco provável, dados a situação fiscal dos Estados e o elevado peso dos combustíveis na receita do imposto – 18% do total, na média, em 2018.

Todos esses problemas deixariam de existir se a uniformização da tributação dos combustíveis ocorresse no âmbito de uma ampla reforma dos tributos sobre o consumo de bens e serviços, como a atualmente discutida no Congresso Nacional.

Neste modelo, os combustíveis seriam tributados por meio de um imposto sobre bens e serviços, cuja alíquota poderia ser homogênea em todo o território nacional, além de um imposto regulatório federal. Isso não apenas asseguraria a uniformidade na tributação, como deixaria toda a responsabilidade pela tributação regulatória dos combustíveis com o governo federal.

Como a transição para o novo modelo seria longa (até dez anos), haveria tempo para que, mesmo mantendo a arrecadação, a redistribuição da carga entre os Estados fosse integralmente repassada para os preços – para baixo e para cima –, não elevando o custo médio dos combustíveis.

De modo semelhante, não haveria nenhum impacto relevante de curto prazo sobre a arrecadação dos Estados, pois a reforma tributária contempla uma transição ainda mais longa (de até 50 anos) para a distribuição da receita entre os entes da Federação.

Por fim, em um modelo bem desenhado da tributação do consumo, o custo dos tributos sobre combustíveis não seria arcado pelos caminhoneiros, que recuperariam integralmente, na forma de crédito, o imposto incidente sobre o óleo diesel. Nesse modelo, o imposto é efetivamente suportado pelos consumidores finais dos bens e serviços, e não pelos agentes que atuam no meio da cadeia de produção e comercialização, como é o caso dos caminhoneiros.

18 de fevereiro de 2021

AS RAÍZES DA DECADÊNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO!

(Sidney Rezende – O Dia, 14) O professor Mauro Osório pertence ao seleto grupo de acadêmicos que une teoria e prática quando o assunto é entender os graves problemas do estado do Rio de Janeiro. Títulos não lhe faltam. Bacharel em Economia pela UFRJ (1979), Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ (2004) e professor Associado da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, desde 1994, aprovado em primeiro lugar por concurso de provas e títulos. Provocado a refletir as raízes da decadência do Rio de Janeiro, Osório deu várias explicações. Uma delas, bem curiosa: “A transferência da capital [para Brasília] ocorreu sem compensações federais. O Rio até hoje tem pouca tradição de reflexão regional. Isso nos leva a diversos equívocos nos diagnósticos e no desenho das estratégias, quando elas existem. O golpe de 64 e as cassações atingiram particularmente a lógica política do Rio. A historiadora Maria Helena Versiani mostra em sua dissertação de mestrado que a bancada federal eleita pelo Rio em 1962 tinha tradição de participar dos debates nacionais. Já a eleita em 1970 fazia hegemonicamente discursos clientelistas”.

Como começa a crise estrutural do Rio?

O Rio que conhecemos nasce como porto e fortificação militar, como aponta Carlos Lessa no livro “Rio de todos os Brasis”. Posteriormente, vira a capital do Brasil. A partir da vinda da Família Real portuguesa para o Brasil, em 1808, o Rio se moderniza e, usando o conceito do historiador de arte Giulio Argan, vira o eixo da capitalidade brasileira, passando a ser a principal referência internacional do país. Entre 1930 e 1980, a economia brasileira, em média, dobra de tamanho a cada dez anos. Quem “puxa” esse dinamismo é São Paulo. No entanto, o Rio, como capital do país, sede de empresas nacionais e internacionais que atuam no Brasil, principal centro financeiro e cultural, acompanha o dinamismo brasileiro. Porém, a partir da transferência da capital para Brasília, a cidade e o estado do Rio passam a ser lanterna em termos de dinamismo econômico.

Esse é o único motivo da decadência do Rio?

Não. Além da transferência da capital, que ocorreu sem compensações federais, o Rio até hoje tem pouca tradição de reflexão regional. Isso nos leva a diversos equívocos nos diagnósticos e no desenho das estratégias, quando elas existem. Além disso, o golpe de 64 e as cassações atingiram particularmente a lógica política do Rio. A historiadora Maria Helena Versiani mostra em sua dissertação de mestrado que a bancada federal eleita pelo Rio, em 1962, tinha tradição de participar dos debates nacionais. Já a eleita em 1970, fazia hegemonicamente discursos clientelistas. Isso traz problemas para a lógica de gestão no estado e nos municípios fluminenses, o que é mais um problema no círculo vicioso que o Rio atravessa, principalmente desde a década de 1970.

O que ocorre com o Rio na crise política e econômica pela qual o país passa desde 2015?

O Rio, por sua trajetória, já entra nessa crise brasileira de forma mais frágil. Além disso, sofre questões específicas e sua economia afunda. Em primeiro lugar, em 2015, o preço do barril do petróleo despencou, passando de US$ 112,36, em junho de 2014, para US$ 37,28, em dezembro de 2015. Isso afeta sobremaneira a receita fiscal do governo do estado e de várias prefeituras. Em segundo lugar, a política liberal, a partir do governo Temer, com forte enxugamento da Petrobras e a paralisação que a empresa sofre com as investigações da Lava-Jato também afetam a economia do Rio. Isso sem falar que várias das empreiteiras investigadas também têm ou tinham sede no Rio. Além disso, o fim dos megaeventos deixam diversas dívidas bancárias para a Prefeitura do Rio e, com o fim das obras, o emprego na construção civil despenca.

Como evolui o emprego no Rio a partir de 2015?

A cidade e o estado do Rio têm uma trajetória de ocupação e emprego dramática, entre 2015 e 2020. Entre janeiro de 2015 e dezembro de 2020, pelos dados do Ministério da Economia, o estado do Rio de Janeiro perdeu 702.148 empregos com carteira assinada. Ou seja, o estado do Rio sozinho representou quase 50% do total de empregos com carteira assinada perdidos no país, de 1.593.541 empregos. A cidade do Rio perdeu mais empregos do que a cidade de São Paulo, apesar da economia da cidade de São Paulo ser mais que duas vezes maior do que a economia da cidade do Rio.

Como está a situação fiscal do Rio?

O estado do Rio de Janeiro atualmente se beneficia de uma legislação votada pelo Congresso Nacional que libera o estado de pagamento de suas dívidas até 2026. Essa suspensão de pagamentos foi o principal motivo que permitiu recolocar o salário do funcionalismo estadual em dia. Alguns pensam que o problema fiscal no Rio se resolve com apenas cortes de despesas. Ledo engano. A crise no estado do Rio de Janeiro é principalmente de receita. De acordo com dados do Governo Federal, o estado do Rio de Janeiro, apesar de ter o segundo PIB do país e o terceiro PIB per capita, está apenas na 17ª posição em termos de receita estadual per capita em um ranking das unidades federativas.

Por que isso?

Porque o Rio, pelo baixo dinamismo econômico que apresenta desde os anos 1970, tem pouca base para arrecadação de impostos. Além disso, o Rio não pode se beneficiar de receitas de ICMS quando o petróleo é extraído do litoral fluminense. Ao contrário de quase todos os demais bens e serviços, o ICMS sobre a extração do petróleo é cobrado no destino (onde é consumido) e não na origem (onde é produzido). Por último, mas não menos importante, nos estados do Rio e de São Paulo, o governo federal arrecada muitos impostos e devolve muito pouco. No caso do Rio, arrecadou em 2019 R$ 174 bilhões e devolveu para o governo do estado e as prefeituras apenas R$ 36 bilhões. Pela decadência do Rio desde os anos 1970, é um equívoco o atual pacto federativo continuar a tratar esses dois estados como igualmente ricos. Em Minas Gerais, o que o governo arrecada e devolve é praticamente igual.

Como reverter essa crise estrutural?

É importante discutir os sistemas produtivos em que o estado do Rio de Janeiro tem mais potencialidades e como utilizá-los de forma adequada. Através da Assessoria Fiscal da Alerj, fizemos uma Nota Técnica em que mostramos que 80% dos fornecedores da Petrobras estão fora do estado do Rio de Janeiro. Além disso, mais de 50% do gás extraído do pré-sal na Bacia de Santos é reinjetado. Além disso, a Assessoria Fiscal está realizando uma nova Nota Técnica sobre o Complexo Econômico Industrial da Saúde-CEIS. A pandemia mostrou como é importante ampliar a produção de produtos e serviços vinculados à saúde no país. O Brasil gasta com importações, atualmente, de acordo com o economista Carlos Gadelha, da Fiocruz, perto de US$ 20 bilhões/ano. O estado do Rio de Janeiro ainda possui uma indústria farmacêutica significativa. Aqui estão o Instituto Vital Brazil, grupos de pesquisa extremamente importantes na área de saúde e a Fiocruz, que no momento inicia a implantação de uma nova planta industrial em Santa Cruz.

Há uma convicção corrente da importância do Turismo para o Rio de Janeiro. É possível pensar o setor de forma mais abrangente? É viável atrelar o setor turístico aos polos culturais?

Existem muitos sensos comuns equivocados na reflexão sobre o Rio. Por exemplo, quem sabe que o Rio é a cidade no estado que mais gera ocupações na agropecuária, entre os 92 municípios fluminenses, de acordo com o Censo de 2010? O turismo tem como crescer muito no estado, no entanto o seu tamanho atual é bastante pequeno. Só cinco municípios do estado vivem principalmente do turismo: Búzios, Paraty, Itatiaia, Mangaratiba e Arraial do Cabo. Na cidade do Rio, de acordo com dados do Ministério da Economia, existem apenas cerca de 20 mil empregos com carteira assinada em hotéis e pousadas. No mês do Carnaval, o ISS na cidade do Rio não é maior do que na média dos demais meses do ano. Isso pelos seguintes motivos: somos uma cidade de mais de seis milhões de habitantes. Muita gente vem gastar dinheiro no Rio, no Carnaval, mas muitos moradores saem do Rio ou ficam em casa. Além disso, na semana do Carnaval, a grande maioria das atividades e serviços na cidade do Rio fica fechada e, portanto, não gera receita de ISS. É importante desenhar uma proposta sistêmica de apoio ao turismo no estado do Rio, que busque integrar as atrações de mar, montanha, culturais e históricas existentes no estado e articular essa política a outras atividades indutoras no setor serviços, na cidade do Rio, como esporte, entretenimento e cultura. Sobre isso, fizemos um livro para o Sebrae intitulado “Atividades indutoras do setor serviços no estado do Rio de Janeiro”.

A milícia e o tráfico são focos de poder que vieram para ficar? É possível derrotá-los?

É claro que é possível derrotá-los. O Rio de Janeiro tem uma dimensão de problemas com milícia e tráfico que não existe nas demais unidades federativas. É uma questão de vontade política e organização de uma estratégia que leve à reversão dessa situação, à melhoria da qualidade de vida e facilitação da vida econômica, e, principalmente, à preservação da vida de jovens e crianças, principalmente pobres e negros.

17 de fevereiro de 2021

A ELEIÇÃO DE BIDEN E O FUTURO DA EXTREMA DIREITA!

(Simon Schwartzman, sociólogo – O Estado de S. Paulo, 12) Com a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais americanas, a grande pergunta para os Estados Unidos, que interessa também ao Brasil e a muitos outros países, é se o radicalismo de extrema direita de Donald Trump, Jair Bolsonaro e semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi esse o tema de recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que deve ser publicado no Brasil proximamente.

O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos, e os costumes que defendem –, mas o ataque que fazem às normas e às instituições do Estado de Direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais. É o respeito a essas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chávez, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram.

Foi esse o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e jogar seus militantes contra o Congresso. E tem sido esse também o caminho buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, quando eles ainda pareciam independentes, e ameaçar desde já não reconhecer os resultados de uma futura eleição da qual eventualmente saia derrotado.

Impressiona, ao ver essa lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem, uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder, graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm problema em jogar seus escrúpulos às favas em nome de seus interesses práticos mais imediatos. É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo a sociedade e afeta não só os valores mais abstratos do Estado de Direito e da democracia, mas coisas muito mais concretas, como a tolerância à corrupção, à discriminação social e à violência. Isso talvez se explique pela noção, dada como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo do homem.

Se isso é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e a permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, essa superioridade é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso também ver se, e em que medida, o Estado de Direito e os regimes democráticos também podem trazer benefícios práticos para a população que os tornem mais interessantes do que os autoritários. Com raras exceções, basta comparar as sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais vantajosas. Nelas as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia floresce e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são conduzidas pelas pessoas mais competentes e os conflitos de interesses, em vez de serem disputas sangrentas e sem limites, se resolvem de forma civilizada, segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita.

Mas as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem e padecem da “tragédia dos comuns”, que acontece sempre que os interesses individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo prazo. Por isso elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas por elites capazes de pensar no longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os interesses individuais e o interesse coletivo.

Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo de direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética, também construtiva, ao bolsonarismo.

15 de fevereiro de 2021

‘NO DIA EM QUE MOMO FOR EXILADO, O MUNDO SE ACABA’, ESCREVEU MACHADO DE ASSIS SOBRE ANO SEM CARNAVAL!

(Folha de S.Paulo, 13) Em 1894, disputas políticas levaram à suspensão do Carnaval no Rio de Janeiro. O escritor Joaquim Maria Machado de Assis, então cronista da revista A Semana (1900-1959), publicou o texto abaixo em 4 de fevereiro.

Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de l’homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.

Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as ri roupas de veludo e cetim. A única veste que poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça, que dispensa agora os coletes e dá mais graça ao corpo. Esta moda quer-me parecer que pega; por ora, não há muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas? Mas toda religião começa por um pequeno número de fiéis. O primeiro homem que vestiu um simples colar de miçangas, não viu logo todos os homens com o mesmo traje; mas pouco a pouco a moda foi pegando, até que vieram atrás das miçangas, conchas, pedras ver e outras. Daí até o capote, e as atuais mangas de presunto, em que as senhoras metem os braços, que caminho! O chapéu baixo, feltro ou palha, era há 25 anos uma minoria ínfima. Há uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chapéus altos em toda a parte, nas portas, vidraças, balcões, cabides, dentro das caixas, tudo chapéus altos. Anos depois, passando por ela, não vi mais um só daquela espécie; eram muitos e baixos, de vária matéria e formas variadíssimas.

Não admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe não é uma reminiscência da tanga do homem primitivo? Quem sabe se não vamos remontar os tempos até ao colar de miçangas? Talvez a perfeição esteja aí. Montaigne é de parecer que não fazemos mais que repisar as mesmas coisas e andar no mesmo círculo; e o Eclesiastes diz claramente que o que é, foi, e o que foi, é o que há de vir. Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabarão algum dia alfaiates e costureiras. Um colar apenas, matéria simples, nada mais; quando muito, nos bailes, um simulacro de gibus para pedir com graça uma quadrilha ou uma polca. Oh! a polca das miçangas! Há de haver uma com esse título, porque a polca é eterna, e quando não houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar às trevas, últimos dois ecos da catástrofe derradeira usarão ainda, no fundo do infinito, esta polca, oferecida ao Criador: Derruba, meu Deus, derruba!

Como se disfarçarão os homens pelo carnaval quando voltar idade da miçanga? Naturalmente com os trajes de hoje. A Gazeta de Notícias escreverá por esse tempo um artigo, em que dirá:

“Pelas figuras que têm aparecido nas ruas, terão visto os nossos leitores até onde foi, séculos atrás, já não diremos o mau gosto, que é evidente, mas violação da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando possuíam as melhores casacas e calças, que são a própria epiderme, tão justa ao corpo, tão sincera, inventaram umas vestiduras perversas falsas. Tudo é obra do orgulho humano, que pensa aperfeiçoar a natureza, quando infringe as suas leis mais elementares. Vede o lenço; o homem de outrora achou que ele tinha uma ponta de mais, e fez um tecido de quatro pontas, sem músculos, sem nervos, sem sangue, absolutamente imprestável, desde que não esteja a da pessoa. Há no nosso museu nacional um exemplar dessa ridicularia. Hoje, para dar uma ideia viva da diferença das duas civilizações, publicam um desenho comparativo, dois homens, um moderno, outro dos fins do século XIX; é obra de um jovem pintor, que diz ser descendente de Belmiro; foi descoberto por um dos redatores desta folha, o nosso excelente companheiro João, amigo de todos os tempos.”

Que não possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compará-las, e repetir os ditos do Eclesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse tempo que a civilização mudará outra vez de camisa! Irei antes, muito antes, para aquela outra Petrópolis, capital da vida eterna. Lá ao menos há fresco, não se morre de insolação, nome que já entrou no nosso obituário, segundo me disseram esta semana. Não se pode imaginar a minha desilusão. Eu cria que, apesar de termos um sol de rachar, não morreríamos nunca de semelhante coisa. Há anos deram-se aqui alguns casos de não sei que moléstia fulminante, que disseram ser isso; mas vão lá provar que sim ou que não. Para se não provai nada, é que o mal fulmina. Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha; também se morre de insolação. Morreu um, morrerão ainda outros. A chuva destes dias não fez mais que açular a canícula.

De resto, a morte escreveu esta semana em suas tabelas, algumas das melhores datas, levando consigo um Dantas, um José Silva, um Coelho Bastos. Não se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do que aos que se afundam; a sua democracia não distingue. Mas há certo gosto particular em dizer aos primeiros, que nas suas águas tudo se funde e confunde, e que não há serviços à pátria ou à humanidade, que impeçam de ir para onde vão os inúteis ou ainda os maus. Vingue-se a vida guardando a memória dos que o merecem, e na proporção de cada um, distintos com distintos, ilustres com ilustres.

Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma… Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o princípio e o fim da crônica. A razão de o não termos este ano, é justa; seria até melhor que a proibição não fosse precisa, e viesse do próprio ânimo dos foliões. Mas não se pode pensar em tudo.

12 de fevereiro de 2021

 

O BONDE DA 4ª REVOLUÇÃO INDUSTRIAL!

(Robson Andrade, presidente da CNI, e Soumitra Dutta, presidente do Portulans Institute – O Estado de S. Paulo, 10) A pandemia de covid-19 gerou uma das mais severas crises já enfrentadas pela humanidade. O Produto Interno Bruto (PIB) chinês registrou o menor patamar em mais de quatro décadas, com crescimento de apenas 2,3% em 2020, e o alemão pode recuar até 5%. Para retomar trajetórias de crescimento, governos e agências internacionais debatem estratégias ambiciosas, que incluem maior investimento em ciência, tecnologia e inovação, e compromissos rigorosos com sustentabilidade ambiental. O Brasil também precisa tomar decisões urgentes e ousadas para evitar o agravamento de sua situação econômica, diante da drástica queda do PIB nacional em 2020, que, de acordo com projeções, deverá ser superior a 4%.

Ressalte-se que não foi só a pandemia que empurrou a economia brasileira ladeira abaixo. Estudo recente do Portulans Institute – think-tank com sede nos EUA –, elaborado em parceria com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), demonstra que há diversos problemas estruturais que põem a competitividade do País em xeque. O trabalho revela que uma das principais deficiências é o fato de o Brasil investir 50% menos em inovação que a média dos 47 países avaliados. Consequentemente, está em patamar inferior (44.ª colocação) na comparação internacional.

Denominado Preparando o Brasil para um futuro mais competitivo: um roteiro para a prontidão em inovação, tecnologia e talentos, o relatório reforça pontos já problematizados no âmbito da Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI). É fundamental, por exemplo, expandir a internet para todo o País e aumentar os investimentos em tecnologias como 5G e inteligência artificial, com vistas à transformação digital das empresas e sua inserção na 4.ª revolução industrial. A aproximação do sistema financeiro – principalmente o que suporta os empreendedores – dos níveis de sofisticação observados em economias avançadas é apontada como outra providência crucial. Isso implica fazer uso mais ostensivo de mecanismos como compras governamentais de tecnologia e incentivo fiscal ao investimento privado em startups, como forma de promover atividades de maior conteúdo tecnológico.

Não menos importante é o investimento na formação e qualificação de recursos humanos, sobretudo para atuar em áreas intensivas em conhecimento. É urgente, ainda, melhorar a qualidade do ensino, desde a educação primária, a fim de preparar os jovens para carreiras científicas e tecnológicas e para a liderança de processos de inovação. O estudo do Portulans Institute, que traz 15 recomendações relacionadas às áreas de inovação, tecnologia, recursos humanos, instituições e infraestrutura, deixa claro que o relógio corre contra o Brasil. Se não forem tomadas medidas céleres e coordenadas, o País perderá a capacidade de inovar e reduzirá ainda mais seu potencial de competição global.

Diante deste cenário, o veto do governo ao projeto que determina a proibição de contingenciamentos dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), aprovado pelo Congresso Nacional, é um obstáculo a mais para que o País navegue na mesma direção que seus concorrentes. Estima-se que mais de 50% dos R$ 7 bilhões previstos no orçamento do Fundo para 2021 já estão contingenciados. Vale destacar que, enquanto o Brasil investe cerca de 1% do PIB em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), os países integrantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) investem, em média, 2% da soma total de suas riquezas nessa área.

Portanto, investir mais e melhor em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) é um fator vital para o futuro da indústria e da economia brasileira. Governo, setor empresarial e comunidade científica precisam, mais do que nunca, estar juntos na construção e implementação dessa agenda. O estudo produzido pelo Portulans Institute e pela CNI dá pistas do caminho que o País precisa trilhar para não perder o bonde da Indústria 4.0.

11 de fevereiro de 2021

SOS INDÚSTRIA!

(Rubens Barbosa – O Estado de S. Paulo, 09) Basta de diagnósticos. A crise no setor industrial exige ação imediata dos empresários e do governo para recuperar o tempo perdido e reverter a tendência de seu gradual enfraquecimento. Se essa questão não for enfrentada de imediato, a perda da competitividade da indústria se tornará irreversível.

Nos últimos seis anos, 36,6 mil fábricas fecharam as portas no Brasil, 17 por dia. A saída da Ford e da Mercedes põem em risco todo o setor automotivo. No ano passado, com a crise econômica nacional agravada pela covid-19, o setor registrou sua menor participação no produto interno bruto (PIB) desde o início da série histórica, em 1946. O Brasil deixou de figurar como uma das dez maiores economias globais.

O processo de desindustrialização precoce está avançando pela ausência de políticas públicas voltadas para seu fortalecimento. A situação está tão grave que há até quem defenda a ideia de que o governo deixe de apoiar o setor industrial e se foque nas atuais vantagens comparativas do agronegócio e da mineração. Com mais de 200 milhões de habitantes e mais de 14 milhões de desempregados, o campo não tem como oferecer as oportunidades de emprego e renda que a indústria propicia.

A reindustrialização e a modernização industrial deveriam ser prioridades nacionais, aceleradas pela implementação da atual agenda de reformas horizontais (mudança estrutural) e pelo aumento da produtividade, complementadas com uma verdadeira política industrial que induza negócios estratégicos de alto impacto econômico e social, visando à geração de empregos e renda. Nesse sentido, caberia fortalecer mecanismos de apoio à indústria como financiamento, compras governamentais e estímulos à produção e exportação de bens de média e alta tecnologia; definir como áreas prioritárias as indústrias de alto conteúdo tecnológico e inovadoras; identificar nichos de mercado para a nacionalização de produtos essenciais estratégicos na área da saúde e outros (em quatro décadas, o Brasil reduziu de 55% para 5% sua capacidade de produção de insumos farmacêuticos); identificação de áreas para criar cadeias de valor agregado na América do Sul a partir de interesses da indústria nacional; apoio com políticas públicas à internacionalização da empresa nacional.

A agenda de competitividade poderia ser levada adiante mediante ação política junto ao Executivo e ao Legislativo para aprovação da reforma tributária, o fator mais importante para aumentar a competitividade da economia e das empresas nacionais. Outras políticas incluiriam a isonomia de tratamento entre produtos importados e nacionais; aprovação da reforma do Estado, com a desburocratização e simplificação de regras e regulamentos a fim de facilitar os negócios (portal único e OEA); fortalecimento de uma política de incentivos à inovação com estímulos a P&D para a iniciativa privada (universidades e centros de pesquisa) e os órgãos governamentais existentes em áreas estratégicas (mas não limitadas), como indústria 4.0, inteligência artificial e biotecnologia; incentivos à formação e capacitação de profissionais e dirigentes empresariais com a concessão de bolsas de estudo e estágios, no País e no exterior; licitação da tecnologia 5G ou autorização de redes particulares para acelerar o processo de modernização da indústria (4.0–inteligência artificial, automação avançada); alinhamento de políticas internas, principalmente a ambiental, com a política de comércio exterior para evitar medidas restritivas contra produtos brasileiros; medir os impactos sociais após a revisão completa dos tributos e outros projetos estratégicos no nível federal (sustentabilidade).

Com a pandemia surgiu a política de “autonomia estratégica”, que busca substituir importação em áreas limitadas e específicas, como saúde e alimentação, que interessam à segurança nacional. Nessas áreas, a vulnerabilidade dos países pela ausência de produção interna teria de ser superada. A autonomia estratégica, combinada com os avanços do 5G e da inteligência artificial, poderia ser nova referência para a definição de políticas para dar início a um ciclo de reindustrialização que ajudará a impulsionar o crescimento econômico e o emprego.

O Brasil tem ainda o maior parque industrial no Hemisfério Sul. Nos últimos 40 anos a participação relativa da indústria no PIB nacional vem caindo, passou de cerca de 26% no final dos anos 80 para pouco acima de 11% no ano passado.

Executivo e Legislativo estão devendo a aprovação das reformas em 2021. A questão, contudo, é de médio e longo prazos. Por isso, ao lado da política externa, do meio ambiente, da defesa nacional, a reindustrialização deveria necessariamente ser incluída no debate da eleição presidencial. A recuperação do setor industrial deveria ser uma das bandeiras do novo governo a partir de 2023.

O importante é olhar para a frente e defender políticas e medidas que possam, na década de 2020-2030, criar condições para a reindustrialização do País. E necessária uma visão estratégica de médio prazo. Para isso será necessário que a indústria se ajuste às transformações por que passa o mundo, se concentre em inovação e novas tecnologias e, sobretudo, não fique esperando as benesses do governo.

10 de fevereiro de 2021

ALÍVIO NA COLÔMBIA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 06) Em 2012, tão logo o então presidente colombiano Juan Manuel Santos anunciou negociações para um acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), uma polêmica feroz incendiou o país. Embora o acordo previsse um mecanismo de justiça transicional – a Jurisdição Especial para a Paz (JEP) – para julgar delitos tão atrozes que não pudessem ser objeto de anistia, setores conservadores – notadamente o ex-presidente Álvaro Uribe e membros de seu partido, o Centro Democrático, como o atual presidente Iván Duque – viram na proposta uma maquinação para a distribuição de indultos aos guerrilheiros e retaliações aos militares. As tensões se refletiram na rejeição de uma primeira versão do acordo por 50,2% da população em um plebiscito de 2016.

Ao final, o acordo foi reformulado, instituído, e a JEP, em sua primeira decisão dois anos após ser fundada, deu mostras de que seus críticos estavam equivocados. Em 28 de janeiro, a Corte denunciou oito líderes das Farc por crimes de guerra e contra a humanidade.

O relatório de 322 páginas do processo que apura os sequestros das Farc registra que, entre 1990 e 2016, as guerrilhas aprisionaram mais de 21 mil pessoas. Os reféns – ricos e pobres – eram submetidos a espancamentos, fome e outras torturas físicas e psicológicas. Muitos foram obrigados a urinar e defecar em público ou a cavar suas próprias covas. Alguns ficavam meses sem trocar de roupas ou tomar banho, outros eram espremidos em gaiolas ou forçados a marchar pelas florestas acorrentados pelo pescoço.

Após os guerrilheiros renderem as armas, as Farc foram oficializadas como um partido – a Força Alternativa Revolucionária do Comum, ou, desde o mês passado, “Comunes” – e receberam a garantia de 10 cadeiras no Congresso até 2026. Mas nas eleições legislativas de 2018 o partido teve apenas 0,5% dos votos, e em 2019 elegeu apenas um prefeito. Agora, as revelações da JEP devem sepultar qualquer resquício de apoio que as Farc pudessem ter dos colombianos.

Entre os indiciados estão o líder máximo das Farc, Rodrigo Londoño, conhecido como Timochenko, e outros dois atualmente no Congresso. Eles têm até o fim do mês para se pronunciar. Se reconhecerem as acusações, além das reparações às vítimas, podem ser condenados a serviços comunitários em liberdade. Caso contrário, será instaurado um processo que pode condená-los a 20 anos de prisão.

O caso dos sequestros – emblematicamente indexado como 001 – é apenas o começo. Entre o catálogo de atrocidades atribuídas às Farc estão deslocamentos forçados; minas terrestres antipessoa; atentados terroristas; uso de armas não convencionais; assassinatos; massacres; e violência sexual contra mulheres e crianças. Nos próximos meses a JEP deve se manifestar sobre lideranças intermediárias que tiveram contato com reféns e sobre o recrutamento de menores.

A resposta dos ex-guerrilheiros às acusações da JEP serão uma prova de fogo em relação a seu compromisso com a paz e as instituições republicanas. A rejeição pode congestionar os trabalhos da Corte e minar as negociações para as reparações às vítimas. A JEP também precisará decidir se permitirá aos acusados manter seus mandatos. De resto, precisará mostrar idoneidade e higidez ao apurar as suspeitas de crimes por parte dos militares, notadamente o suposto massacre de civis tomados por guerrilheiros. Decisões imprudentes dos acusados e da Corte podem reinflamar os críticos do acordo e detonar a polarização refletida no plebiscito de 2016.

Se o resultado apertado do plebiscito não permite desqualificar peremptoriamente os temores de Uribe e seus partidários como infundados, não deixa de corroborar a constatação de Juan Manuel Santos de que, após 52 anos de conflito sangrento, era “melhor uma paz imperfeita do que uma guerra perfeita”. O fato é que, ao menos pelo momento, a JEP está se mostrando à altura das esperanças depositadas nela pelas autoridades colombianas, e tudo indica que, antes que ressuscitar a guerra, o país caminha para aperfeiçoar a paz.

09 de fevereiro de 2021

“UM AMIGO DE 20 ANOS ENTREGOU NUMA BANDEJA NOSSA CABEÇA AO PALÁCIO”!

(Valor Econômico, 08) A vida do deputado Rodrigo Maia (RJ) passa por profundas mudanças. O fim de seu mandato na presidência da Câmara não o fez trocar apenas de lar, a ampla residência oficial por um apartamento funcional como o de outros parlamentares, mas também de partido. A disputa pelo comando da Casa provocou um racha no DEM, sigla da qual ele promete sair para fazer oposição ao presidente Jair Bolsonaro.

Em sua primeira entrevista exclusiva desde que deixou o cargo, Maia não poupou críticas ao presidente do DEM, Antonio Carlos Magalhães Neto. Disse ter demorado a perceber que fora traído por um amigo de 20 anos, que levou o partido à neutralidade, em vez de fechar apoio a Baleia Rossi (MDB-SP), o que favoreceu o candidato governista e vencedor da disputa, Arthur Lira (PP-AL). “Mesmo a gente tendo feito o movimento que interessava ao candidato dele no Senado, ele entregou a nossa cabeça numa bandeja para o Palácio do Planalto”, desabafou ao Valor.

Para Maia, o movimento conduzido pelo presidente do DEM, de aproximar o partido ao governo Bolsonaro, faz com que a legenda retome sua origem de direita ou extrema-direita e afastará o apresentador Luciano Huck.

O deputado esquivou-se quando perguntado para qual partido irá e disse que pedirá sua desfiliação ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sem pressa ou briga. “Estarei num partido que será de oposição ao presidente Bolsonaro”, assegurou. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Quais são seus próximos passos após a derrota? Irá mesmo deixar o DEM? Para qual sigla irá?

Rodrigo Maia: Não adianta falar primeiro o que eu vou fazer. As pessoas que me acompanham têm que entender por que eu vou fazer. Trabalhamos a mudança de posicionamento do então PFL até virar DEM e todo o posicionamento para se tornar um partido nacional. Isso começa em 1995, quando convidam meu pai, Cesar Maia, e o Jaime Lerner, para ingressar no partido, políticos que vinham de uma origem de centro-esquerda, e tiram o partido da Internacional Liberal, uma aliança internacional dos partidos de direita e extrema-direita, para aderir à Internacional Democrática. A intenção na época era exatamente tirar a pecha do DNA originário da Arena para se transformar num partido de fato de centro, centro-direita no máximo, que pudesse ter força em mais segmentos da sociedade e tivesse condições de vencer.

Valor: A eleição da Câmara mudou isso de que forma?

Maia: O grande problema é que o partido voltou ao que era na década de 1980, para antes da redemocratização, quando o presidente do partido aceita inclusive apoiar o Bolsonaro. Isso por decisão da direção partidária. Não é relevante, do ponto de vista do processo político, como cada deputado vota numa eleição para presidente da Câmara. Mas a movimentação da cúpula do partido, principalmente do seu presidente e do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, deixou claro que há a intenção de aproximação maior com o governo Bolsonaro, que não será apenas uma relação parlamentar com a agenda econômica, mas mais ampla.

Valor: E quais as consequências?

Maia: A frase do presidente do partido terá preço grande a pagar por muitos anos. É um partido sem posição. “Posso ir do Bolsonaro ao Ciro Gomes.” Eu não posso ir do Bolsonaro ao Ciro Gomes. Ninguém que queira fazer política de forma orgânica pode. Isso não é um projeto de país. Isso é projeto de partido voltando a ser exclusivamente parlamentar e anexado a um governo. Esse movimento que desfaz tudo que construímos desde a década de 90 e que faz ter clareza de que não teremos nenhuma condição de construir um partido forte de centro-direita, que possa ter inclusive uma candidatura presidencial. Deste partido eu não tenho mais como participar porque não acredito que esse governo tenha um projeto, primeiro, democrático e, segundo, de país. Continuo dizendo que o governo é um deserto de ideias. O DEM decidiu majoritariamente por um caminho, voltando a ser de direita ou extrema-direita, que é ser um aliado do Bolsonaro.

Valor: O senhor acha que o presidente do DEM fez isso para ter apoio na disputa pelo governo da Bahia?

Maia: Não sei por quê. Não conversei mais com o Neto. Diferentemente do que ele imagina, na verdade o que o Bolsonaro conseguiu foi quebrar a nossa coluna, que era toda acordada, de que nunca estaríamos no governo Bolsonaro e nunca apoiaríamos o Bolsonaro. Isso eu ouvi do presidente ACM Neto centenas de vezes.

Valor: O senhor vai para o Cidadania, o PSDB ou o PSL?

Maia: Isso é tudo especulação. Ainda não estou decidindo para qual partido eu vou. Apenas quero deixar claro para os que me acompanham e acompanharam meus quatro anos e sete meses à frente da Câmara que não sou um vendido, que tenho caráter, que [não] construí um bloco com partidos de direita e esquerda para enganar essas pessoas. Estarei num partido que será de oposição ao presidente Bolsonaro. O partido a que vou me filiar será de oposição, diferentemente do ACM Neto, que fala uma coisa em “off” e em “on” fala outra, que diz que não apoia de jeito nenhum e ao mesmo tempo dá entrevista dizendo que pode ir do Ciro ao Bolsonaro. Mostra que não tem ou perdeu a coluna vertebral.

Valor: Na sua opinião, por que ele fez esse movimento então?

Maia: Porque está no DNA dele, né? A direita está no DNA dele, mas sem o talento do avô e do tio, que nunca teriam feito o que ele fez, de participar de um acordo, ratificar esse acordo e depois comandar o caminho para uma neutralidade que era exatamente o que interessava ao governo. É óbvio que o avô e o tio nunca fariam isso de falar uma coisa e construir outra.

Valor: Quando o senhor percebeu que ele estava traindo?

Maia: Pela relação de muitos anos, só percebi depois da reunião que foi feita comigo e com os líderes partidários antes da reunião do DEM, no domingo à noite (dia 31 de janeiro). Do Caiado eu percebi antes. Ele dizia que não podia ficar contra mim de jeito nenhum… e nenhum voto dele vinha. A participação do Neto eu de fato só consegui acreditar no domingo. Ele veio na quarta-feira, para uma reunião comigo, o Caiado, o Rodrigo Garcia, e a gente fazendo parte daquele papelão. Não podia imaginar que um amigo de 20 anos ia fazer um negócio desses. Todo mundo dizia que ele tinha feito acordo. O Palácio dizia que ele tinha feito acordo, [o presidente do PP] Ciro Nogueira dizia que o DEM ia ficar neutro e eu falava que não, que o Neto tinha me dito que não.

Valor: Nessa reunião com ACM Neto e Caiado, depois dos cinco deputados do DEM da Bahia declararem apoio ao Lira, eles se mostraram alinhados ao Baleia ali?

Maia: O Caiado foi mais pessimista. Ali já era a consequência de tudo que foi construído. Depois que você deixa o deputado solto para ele tomar a decisão que ele quiser, não orienta que há um acordo, não passa a informação correta pra ele… Combinei tudo com o presidente e o líder do partido. Até meu discurso de formação do bloco, um discurso duro, enviei para o Neto e ele concordou, disse que estava espetacular. Trabalhei no DEM por 20 anos para transformá-lo num partido de centro, centro-direita, e o partido decidiu não apenas pelos seus deputados, mas pela sua direção, que é um partido que tende a ser de direita, extrema-direita, apoiando o Bolsonaro.

Valor: Se o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA) fosse o candidato do bloco, o desfecho seria outro?

Maia: O Elmar nunca foi o candidato do Neto. O Neto nunca trabalhou para um candidato do DEM na Câmara. Ele decidiu trabalhar para um candidato do DEM no Senado. A partir daí, tive que trabalhar para candidato de fora do DEM porque nunca poderia disputar as duas Casas. Quando consolidou a candidatura do Rodrigo Pacheco [DEM-MG] no Senado, foi impossível nome do DEM na Câmara, até porque a candidatura do Baleia foi vital para inviabilizar a Simone Tebet [do MDB, no Senado]. Fizemos todo o movimento alinhado com o Neto. Tudo foi ouvindo as posições e preocupações dele.

Valor: O senhor espera uma saída cordial ou que no DEM queiram tirar o seu mandato?

Maia: Não espero nada. Vou pedir minha saída no TSE, não tenho dez anos. Não vou brigar com ninguém. Estou fazendo crítica política. Hoje posso dizer que sou oposição ao presidente Bolsonaro. Quando era presidente da Câmara, não podia dizer. Mas agora quero um partido que eu possa dormir tranquilo de que não apoiará [o presidente]. Não estou criticando aqueles que defendem. Estou dizendo que nesse projeto não há espaço para mim. Não quero participar de um projeto que respalda todos os atos antidemocráticos.

Valor: Quantos correligionários o senhor pretende levar para o novo partido com a saída do DEM?

Maia: Não estou preocupado com quem vai comigo. Estou preocupado que eu não posso ficar. A questão para onde vou eu terei tempo para construir, conversando com os partidos sobre um projeto para 2022. Agora, a minha necessidade de informar que não estou mais no DEM para mim é muito importante. As pessoas ficam me dizendo para esfriar a cabeça. Minha cabeça está muito fria. Depois de quatro anos e sete meses pelo que eu passei, isso é muito tranquilo, não deixo de dormir por nada disso. Foi um processo muito feio do Neto e do Caiado. Ficar contra é legítimo, falar uma coisa e fazer outra não é legítimo. Não posso, depois de ter construído relação de confiança com muita gente, parecer que sou parte desse processo não da bancada, mas da direção, de não cumprir sua palavra. Falta caráter, né? Você falar uma coisa na frente e operar de outra forma, falta caráter.

Valor: O papel desempenhado pelo presidente do DEM foi fundamental para o resultado da eleição?

Maia: Ganhar ou perder é da democracia. Ninguém entrou numa eleição dessa, com o governo jogando do jeito que jogou, achando que era uma eleição fácil. Mas não tenho duvida nenhuma que a decisão do Neto foi decisiva para desidratar a candidatura do Baleia. Podia ganhar, podia perder. Era mais provável que perdesse, mas a minha conta era que, até o movimento do DEM acontecer, o Arthur ganharia ou perderia por pouco no primeiro turno. O movimento do DEM fez com que a própria bancada do DEM votasse mais lá, o PSDB também, a gente sabe disso, ficaram no bloco por causa da vaga na Mesa. Os do PSL que estava aqui votaram lá e os deles que iam votar aqui votaram lá. Se não tivesse esse movimento, ele teria de 240 a 260 votos. Era outra eleição, com ele favorito, claro. Mesmo a gente tendo feito o movimento que interessava ao candidato do Neto no Senado, ele entregou a nossa cabeça numa bandeja para o Palácio do Planalto.

Valor: Faltou articulação sua com os deputados do DEM? Reclamaram muito que não foi conversado com eles, foi decisão sua..

Maia: Não. O líder do partido e o presidente do partido participaram de todo o processo. O papel de articular com a bancada e levar as informações do que a gente estava fazendo era do partido e do líder. Se eu soubesse que o Neto tinha feito acordo com o Palácio do Planalto, eu poderia ter conversando… Não estou reclamando dos deputados que votaram com o Arthur Lira. O Neto está querendo misturar as duas coisas. Uma coisa é a eleição, o Arthur é presidente da Câmara, ganhou a eleição, parabéns. Espero que faça ótimo trabalho. Outra coisa é o posicionamento do partido, do ponto de vista de ser um partido de centro-direita que tenha expectativa de projeto nacional, que acabou. O projeto do DEM acabou.

Valor: Por exemplo?

Maia: O Luciano Huck estava filiado no DEM. Se decidisse ser candidato [à Presidência], estava 90% resolvido que se filiaria ao DEM. O Neto tem mais relação [com Huck] que eu. Eu tenho, mas o Neto também tem. Não descarto nem a hipótese de o Bolsonaro acabar filiado ao DEM.

Valor: Poucos dias depois da sucessão, já se fala no Congresso e no governo em novo estado de calamidade e alguns setores da sociedade mostram uma preocupação com a responsabilidade fiscal…

Maia: Não sei, não quero tratar… Não vou ficar sendo fiscal do novo presidente da Câmara. Estou tratando de política nacional. Sou oposição ao presidente da República, não ao novo presidente da Câmara. Ele ganhou a eleição e vai coordenar os trabalhos da Casa. Tem o direito de ter a opinião dele, como eu tinha a minha.

Valor: O senhor vê o Huck como centro-direita ou centro-esquerda?

Maia: Para mim, é mais centro-direita… quem está no entorno dele, pelo que ele pensa, pelo que a gente conversa. Claro, pelo setor que ele trabalha, é mais de esquerda, artistas. Mas, na economia ele com certeza é um liberal, pensa em menos intervenção do Estado. E na área social, como diz – dizia – o ideário do DEM, é a prioridade por justiça social, redução das desigualdades. Acho que ele vai organizar isso de forma competente para um país que é pobre e o liberalismo puro não se adequa a um país como o nosso. Na economia, ele tende a ser mais liberal pelos economistas que ele ouve, o Arminio [Fraga], o Marcos Lisboa. O espaço político que tem para ele entrar é do centro para centro-direita. Na centro-esquerda está um pouco interditado pelo Ciro e pelo PT, que dependendo do candidato fica mais ao centro ou a esquerda.

Valor: O senhor já fez uma autocrítica sobre a eleição? Como a demora para definir o candidato.

Maia: Nunca fiquei esperando o Supremo [decidir sobre a reeleição]. Sempre disse que não seria candidato. Talvez tivesse sido melhor definir o candidato logo, mas o atraso acabou dando as condições de criar o bloco. Se candidato saísse antes, o PT não vinha. Olhando agora como o governo operou, as chances que tínhamos era exatamente esse bloco. Se o bloco tivesse ficado firme, acho que o Arthur era favorito, mas era uma outra eleição. Então, eu acho que de fato errei, mas o erro acabou gerando um acerto, que foi o bloco.

Valor: Outro candidato teria mais chances que o Baleia?

Maia: Pode ser que sim. Se eu tivesse apoiado o [presidente do Republicanos] Marcos Pereira, a probabilidade de desmontar o bloco era menor, porque seria de 330 deputados e não de 290. Mas no final alguns partidos da esquerda questionaram, para eles a candidatura dele transformaria o Arthur no candidato de centro. O candidato conservador e de direita seria o nosso. Para a gente não seria problema, mas para alguns partidos de esquerda seria.

Valor: O senhor contava com votos de aliados que acabaram apoiando o adversário. Se sentiu abandonado?

Maia: Vocês acham que está errado eles apoiarem o candidato do partido? Eu acho que está certo. Se todo mundo tivesse apoiado o candidato do seu partido, a eleição tinha sido outra. Não era ali que a gente tinha que ganhar a eleição. Se a gente tivesse 85% dos votos do nosso bloco, venceria a eleição. Perdemos no nosso bloco, no DEM, no PSDB, no PSL.

Valor: O PSDB rachou. O sr. os vê mais próximos de Bolsonaro?

Maia: Não. No final, todos os líderes entraram, inclusive o Aécio [Neves], para segurar o partido dentro do bloco. Essa é a diferença entre o DEM e o PSDB.

Valor: O senhor se arrependeu de não ter acolhido um dos pedidos de impeachment lá atrás?

Maia: O julgamento do impeachment é político e as condições políticas não estão colocadas. Querendo ou não, Bolsonaro tem 30% de ótimo/bom e 40% de ruim/péssimo. A abertura de um impeachment em um momento em que as condições políticas não estão colocadas só o fortaleceria. Tiraríamos da agenda a pandemia e colocaríamos o impeachment. Talvez seja tudo que o ele quer: tirar da frente as milhares de mortes pela pandemia. A gente ia jogar para segundo plano a responsabilidade do presidente e do seu ministro da Saúde por todo o desastre na administração dessa crise, por todas as mortes, e íamos ficar todos discutindo um processo que ele provavelmente sairia vencedor e fortalecido do ponto de vista político.

Valor: Além de oposição no Legislativo, qual é seu projeto?

Maia: Quero fazer parte de um projeto em que a gente possa construir uma agenda, um projeto de país que reduza concentração de renda na mão de poucos, que garanta a modernização dos serviços públicos, que garanta ao setor privado as condições para investir no Brasil com segurança. Não acredito que esse governo tenha esse projeto. O projeto do presidente Bolsonaro é completamente diferente. Essas agendas não são prioridade dele. Todas as vezes em que conversei com ele, a agenda prioritária dele era acabar com proteção ambiental de Angra, a questão de armas e do turismo de mergulho afundando navios na costa. Essa era a agenda prioritária dele comigo. As reformas tributária e administrativa não eram, a modernização do SUS não era, a melhoria do Fundeb não era. Então, eu não posso, tendo conhecido o que o presidente pensa, ser parte disso.

Valor: A vitória deu fôlego ao governo. Que cenário vê para 2022?

Maia: Olhando a pandemia e as soluções na parte fiscal, minha impressão é que o governo chegará mais fraco do que está hoje. Mostrou força ao ganhar as duas Casas no Legislativo, mas dependerá da capacidade de articulação em relação a temas de difícil aprovação, até porque o presidente já abriu mão deles. No final do ano, ele disse que não trataria da PEC Emergencial. Eu sempre disse que se não aprovasse, teria que ser algo fora do Orçamento.

08 de fevereiro de 2021

SONÂMBULOS E FURIBUNDOS!

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 06) O espetáculo circense encenado no Congresso Nacional na última segunda-feira causou grande impacto, mas não diferiu em natureza de tudo a que temos assistido há vários anos no próprio Congresso, na Presidência da República, no Supremo Tribunal Federal e na Procuradoria-geral da República.

A impressão é de que nada faz sentido; de que somos um país de sonâmbulos, incapazes de perceber o que acontece à nossa volta e, principalmente, o que nos aguarda ao longo desta década. Sonâmbulos, mas sonâmbulos furibundos. Subjacente a essa estranha coreografia, há uma briga de foice. Ou uma batalha entre dragões-de-comodo, se preferirem. Batalha por cargos, verbas e, sobretudo, vantagens eleitorais, cada um já pensando em reeleição.

E quem são os dragões? Por hábito, ou por preguiça mental, nos acostumamos a dizer que são partidos políticos, não nos dando conta de que o Brasil já não tem partidos. Ter 20 e tantos partidos na Câmara, o maior deles mal ocupando 15% das cadeiras, e não ter nada é a mesma coisa. Tal coreografia talvez até fosse engraçada se não fosse macabra, pois, entre agressões e afagos, os furibundos dançam sobre os mais de 220 mil cadáveres da pandemia, sujeitando a um cruel sarcasmo milhões de cidadãos que sobrevivem graças aos auxílios emergenciais, 20 e tantos milhões sem trabalho e o desencanto permeando a quase totalidade dos lares.

O leitor talvez pense que exagero quando afirmo que o Brasil já não tem partidos políticos. Dá-se que, na acepção que me parece aceitável, partido político é uma organização capaz de conter o apetite dos grupos corporativistas, dentro e fora da máquina pública, transcendendo-os, agregando-os e direcionando-os para o bem público. No Brasil de hoje, o que vemos é precisamente o oposto. Vemos interesses estreitos – alguns empenhados num “liberou geral” contra o ambientalismo, outros em erodir a hierarquia das Polícias Militares, outros, capitaneados pelo próprio capitão, em armar a população civil –, cada um mais forte que a maioria dos partidos. Por essas e outras é que, se o governo tivesse um norte inteligível, não teríamos abandonado o debate sobre a reforma política, sem dúvida a mãe de todas as reformas.

Até recentemente, o grande mal político brasileiro era o chamado patrimonialismo. Grupos incapazes de tocar uma verdadeira economia de mercado se incrustavam (incrustam-se) no casco do Estado e dele se apropriaram, mantendo aparências de legalidade, e às vezes nem tanto, como vimos poucos anos atrás na Petrobrás. Grupos incapazes, grupos falidos e oligarquias de diversos tipos invertem a ordem lógica das coisas, valendo-se do poder político para granjear poder econômico, quando o normal, ou relativamente normal, seria o oposto. Inspirados no grande clássico de Raymundo Faoro Os Donos do Poder, pensávamos que o patrimonialismo era um mal em decadência, nos estertores, abrindo espaço para um grande bem que denominávamos “modernidade”. Não reparamos que tal história pode ser contada ao contrário. Desde os famigerados tempos da ditadura getulista, a apropriação do público pelo privado só fez aumentar, dando corpo ao que, com dor na alma, somos obrigados a designar como um “patrimonialismo moderno”. Infelizmente, sabemos hoje que “patrimonialismo” é só uma parte da perversa história política brasileira. Agora temos o corporativismo, um patrimonialismo “democratizado” e dividido entre n grupos, que cedo ou tarde tornará o País virtualmente ingovernável.

Voltemos aos sonâmbulos. Nunca vi um deles caminhando numa casa, mas imagino que ele possa meter a cabeça num armário ou se cortar seriamente numa cristaleira. Se forem vários, e furibundos, poderão quebrar toda a casa e sucumbir entre seus escombros. Essa, justamente, é a hipótese que me ocorre quando vejo o governo mais preocupado em importar revólveres do que em empreender uma abrangente reforma do Estado, uma reforma administrativa séria e um amplo programa de privatização, assestando, assim, um golpe de morte no patrimonialismo e no corporativismo.

“Ora, direis, ouvir o Guedes! Decerto perdeste o senso.” O bravo quixote que se propunha a destruir os moinhos mais dispendiosos por ora mal consegue dar palpites na formatação dos auxílios emergenciais. De fato, o presidente que se elegeu prometendo extirpar a “velha política” acaba de trazê-la com mala e cuia para dentro da máquina do Estado. Na última segunda-feira, a prometida austeridade fiscal levou uma banana, pois o que vimos foi o presidente jogar alguns milhões aos nossos furibundos gladiadores, com o objetivo de impedir um eventual impeachment e debilitar aquele que parece ser seu principal contendor na eleição de 2022.

Excetuada a hipótese de alguma luz desconhecida iluminar as mentes brasilienses, infiro que os próximos dez anos não nos serão benfazejos. Num cenário ameno, teremos mais do mesmo. Mas não podemos descartar um retrocesso abrupto, muito cruel para as almas mais frágeis.

05 de fevereiro de 2021

EX-CHEFE DO BC EUROPEU FORMARÁ GOVERNO NA ITÁLIA!

(O Estado de S. Paulo, 04) O ex-presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi aceitou ontem a incumbência de formar um governo de emergência na Itália, para enfrentar a pandemia e levar adiante um plano de reconstrução do país. Draghi recebeu a missão do presidente Sergio Mattarella, que inicialmente tentou reerguer o governo do ex-premiê Giuseppe Conte, mas a iniciativa fracassou por diferenças entre os partidos de coalizão.

“É um momento difícil. O presidente lembrou a dramática crise sanitária e seus graves efeitos na vida das pessoas, na economia e na sociedade. A emergência requer soluções à altura. Respondo positivamente à convocação do presidente”, disse Draghi, após se reunir com Mattarella.

O ex-chefe do BC da Europa tem a missão de enfrentar a crise econômica e a pandemia de covid-19, como alternativa à realização de novas eleições. Draghi tentará obter apoio de outros partidos para formar a maioria no Parlamento – uma tarefa considerada difícil, já que a maior força, o Movimento 5 Estrelas (M5S), que perdeu o governo, disse que não o apoiará, assim como a extrema direita.

Sem o M5S, todas as atenções se voltarão para as duas outras maiores siglas, o Partido Democrata (PD), de centro-esquerda, e a Liga, de extrema direita – que são rivais políticos, mas podem ter de votar juntos para dar uma chance a Draghi.

Para sair da crise, o presidente italiano optou por um governo que qualificou como “de alto perfil e institucional”, sob comando de um técnico, como Draghi, que tem muito prestígio na Itália. Ele também exortou todos os partidos a apoiá-lo.

Mattarella é o único que, pela Constituição, indica o primeiro-ministro ou dissolve o Parlamento. O presidente considerou que convocar eleições nacionais durante a pandemia seria insensato. Além disso, ele advertiu que, sem um governo, o país poderia perder um fundo de mais de ¤ 200 bilhões (R$ 1,3 trilhão) patrocinado pela União Europeia.

Experiência. A nomeação de Draghi, que tem 73 anos e ampla experiência na gestão da política econômica italiana e europeia, foi recebida com entusiasmo pela Bolsa de Valores de Milão. As ações de bancos registravam alta de 3% por volta do meio-dia.

Draghi afirmou que espera que haja união das forças políticas italianas. O Parlamento está fragmentado e alguns partidos são contra formar uma coalizão liderada por um tecnocrata, e não por um político. O PD, o Itália Viva, de centro, o Força Itália, do conservador Silvio Berlusconi, além de outras legendas menores, já manifestaram apoio ao nome indicado por Mattarella. Um dos líderes da extrema direita, Matteo Salvini, anunciou publicamente a preferência por novas eleições, embora admita esperar os planos do eventual governo.

Draghi deverá começar a trabalhar em um programa de governo e na formação de uma equipe ministerial. Depois disso, iniciará rodadas de consultas com os partidos, em busca de apoio. Se obter o respaldo necessário, será o momento de voltar a se encontrar com Mattarella, para aceitar o cargo de maneira definitiva. Depois, o Parlamento deverá confirmar seu nome como primeiro-ministro.

Considerado o salvador da zona do euro em 2012, quando a crise da dívida atingiu a economia do continente, Draghi desencadeia reações mistas entre a classe política. No entanto, o economista espera repetir a chamada “fórmula de Ursula”, que levou à eleição da atual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, graças à união de várias forças políticas.

Conhecido por sua discrição, seriedade e determinação, Draghi espera reativar a economia italiana graças ao gigantesco plano financiado pela UE. A covid-19, que já custou a vida de quase 89 mil pessoas no país, causou uma redução do PIB de 8,9% em 2020, uma das piores quedas na zona do euro.

04 de fevereiro de 2021

‘ESPERO QUE PSDB NÃO ESTEJA NO CICLO DESCENDENTE’!

(Fernando H. Cardoso, ex-presidente – O Estado de S. Paulo, 03) Hesitação demonstrada na eleição para o comando da Câmara obriga o PSDB a “tomar um rumo”, na avaliação do ex-presidente. Para FHC, cabe ao partido demonstrar ao eleitor clareza sobre seu posicionamento como alternativa ao governo Bolsonaro.

Na sua opinião, o PSDB necessita de líderes capazes de sintetizar um projeto que busque garantir saúde, emprego e renda, e consiga apontar os erros da atual gestão. Caso não seja capaz disso, é possível que o partido entre em um ciclo de declínio, disse o ex-presidente. FHC, no entanto, afirmou ver pouco impacto dos resultados das eleições para a cúpula do Congresso nas disputas de 2022. Leia os principais trechos da entrevista ao Estadão.

• O PSDB negligenciou seu papel de oposição ao presidente Jair Bolsonaro na eleição para a presidência da Câmara?

No meu ponto de vista, o PSDB deveria ser mais claramente de oposição. O que aconteceu ontem (anteontem) não surpreende, é a força do presidente. Sei como é isso. A força do presidente é muito grande e é muito difícil ganhar uma eleição no Congresso contra o presidente. Mas se não vai ganhar, é para marcar posição. Acho que o PSDB ficou um pouco esvaecido lá.

• Como o sr. avalia o resultado das eleições? Que reflexos podem ter em 2022?

Eleitoral, nenhum. O povo funciona de outra maneira. Vai depender quem são os candidatos, as pessoas que se apresentam ao povo. Do ponto de vista político, tem consequências, porque dificulta qualquer processo contra o presidente e facilita a tramitação de qualquer matéria que o governo tenha empenho.

• A aliança entre Bolsonaro e o Centrão é um projeto que deve sobreviver até as eleições?

O que existe na eleição majoritária à Presidência é a relação do candidato com o eleitorado. Claro que a estrutura partidária ajuda, mas não é decisiva.

• O sr. transmitiu anteontem uma mensagem à bancada do PSDB, dizendo que o partido deveria ter uma posição clara…

Sim, dei minha opinião porque acho isso. Em política, ou você tem posição clara ou fica difícil, as coisas ficam escorregadias. Quem se beneficia do cenário “resvaloso” é o governo, sempre.

• Na mensagem, o sr. diz que ou deveria haver uma posição clara ou o partido poderia dar adeus a chances de construir uma aliança que pudesse disputar as eleições. Ainda pensa assim?

Foi isso mesmo. O povo não é bobo. A gente pensa que (a população) não percebe, mas percebe. Se você não toma posição no tempo oportuno, quando chega a hora H é tarde.

• Não tomar posição pode fazer o partido cair na vala comum das legendas que cederam ao ‘toma lá, dá cá’?

Não é o que eu gostaria, mas acaba, né? Se for por esse caminho, acaba.

• O governador João Doria, cuja pré-candidatura já está colocada, tem uma relação muito próxima com Rodrigo Maia e se envolveu na eleição na Câmara. De que forma esse resultado o afeta?

De alguma forma, mexe com as articulações políticas. No caso do PSDB, tem duas candidaturas mais fortes, a de Doria e a do Eduardo Leite, (governador) do Rio Grande do Sul. Não sei se o Eduardo Leite vai se candidatar. O Doria certamente tem possibilidade, como governador de São Paulo. Agora, o problema tanto de um quanto de outro é ganhar o resto do Brasil. Nasci no Rio, mas me lembro que era muito difícil entrar na Baixada Fluminense. O povo tem que sentir que o candidato que eles escolhem tem ligação com eles, expressam alguma coisa. Tem de tentar contato direto, algum fio que ligue com as regiões.

• Para crescer fora dos Estados, são necessárias alianças fortes. Elas se tornam mais importantes…

Ajuda a penetrar, mas o mais importante de tudo é a ligação direta, via mídia. A atitude que as pessoas tomam. Inclusive pode aparecer algum candidato que não se conheça e que caia no gosto da população. É difícil nesta altura dos acontecimentos, mas é preciso que haja algum relacionamento com o sentimento do eleitorado. Se não houver, não tem jeito.

• Nesse sentido, o PSDB precisa fazer uma análise interna, ‘ir para o divã’?

Sem dúvida nenhuma. O PSDB precisa tomar rumo, precisa ter uma palavra afirmativa forte. Os partidos têm seus ciclos. Espero que o PSDB não esteja em seu ciclo descendente. Mas, se estiver, pobre do PSDB. E não é em nome do PSDB, é em nome dos interesses do povo. Eleição é uma coisa conjuntural, mas não é só conjuntural. Tem de ir se formando, ter enraizamento.

• Precisa, então, de lideranças?

Sim, lideranças, não tenha dúvida. Querendo ou não, tudo depende muito de lideranças na vida política. Não adianta você ter um sentimento sem ter quem o expresse, quem o encarne. O Ulysses Guimarães dizia: ‘Quem fulaniza isso?’ Tem de fulanizar. Quem representa isso? Você é símbolo de um sentimento mais amplo. O povo não vota em você porque é feio ou bonito, mas porque você simboliza um sentimento. Dá tempo para fazer isso? Dá, mas tem que fazer.

• Fulanizando a conversa, Rodrigo Maia, agora ex-presidente da Câmara, saiu desgastado com o DEM durante esse processo…

O que eu lamento, porque ele é uma pessoa com capacidade afirmativa.

• Há rumores de que ele poderia deixar o DEM e migrar para o PSDB. Como o sr. avalia isso?

Eu adoraria. Mas, do ponto de vista político, estará trocando doze por meia dúzia, porque PSDB e PFL (antigo nome do DEM) sempre andaram juntos. Agora, do ponto de vista pessoal, a presença do Rodrigo é boa. Para mim, seria muito bem-vindo.

• Sobre Luciano Huck, um nome com quem o sr. dialoga, já seria hora de ele se posicionar sobre o ingresso ou não na política?

Está chegando a hora. O Luciano tem uma vantagem, ele é conhecido popularmente. Ele é conhecido como uma pessoa que sabe falar com o povo, mas não como líder político. Ele tem de se apresentar como líder político.

• Ele pode ‘fulanizar’ um projeto?

Ele é capaz, mas precisa fulanizar um projeto político (enfatizando a palavra), precisa ter um projeto. Se tiver um projeto que bata com as necessidades, tem chances. Acho que estão todos na mesma. Daqui por diante, começa o jogo real para ver quem vai encarnar o quê. Quem vai ser a pessoa que encarne alguma coisa que toque na alma do povo.

• Um candidato do PSDB tem que encarnar o quê? Qual é o projeto que tem chances de bater Bolsonaro nas urnas?

Você nunca tem um projeto abstrato. É com quem está situado. Bolsonaro está situado. É presidente, teve votos e foi capaz de falar com uma parte da população. Como o Doria também, o Eduardo Leite também. Quem ganha a eleição mostrou que tem essa capacidade. Quem ainda não ganhou vai ter que mostrar. Você tem de antagonizar quem tem outro lado. Se o PSDB optar por ser contra o que está acontecendo no governo atual, tem que mostrar claramente isso. Tem de tentar ganhar a população. Pode ganhar, pode não ganhar. Depende do jogo eleitoral e partidário. Mas tem de ter posição clara. Em política, não tem esse negócio de ficar enrustido. É cartas na mesa.

• Os novos presidentes da Câmara e do Senado fizeram discursos em favor da ciência e da vacinação, em declarações contrárias às que o presidente costuma dar. O presidente pode também atenuar um pouco esse discurso?

Depende da oposição também mostrar que, nesta matéria, ele é retrógrado. Política depende muito de você marcar posição. O que as pessoas veem como necessário para elas? Saúde, em primeiro lugar, por causa da pandemia, depois emprego e depois melhorar de vida, renda. Essas são as questões que vão ser postas e o PSDB tem de ter uma posição clara. O candidato do PSDB tem de falar sobre esses temas. E tem que dizer que vai mal.

• ‘Ciclo’

“(O PSDB) precisa ter uma palavra afirmativa forte. Os partidos têm seus ciclos. Espero que o PSDB não esteja em seu ciclo descendente. Mas, se estiver, pobre do PSDB”

Fernando Henrique Cardoso EX-PRESIDENTE

03 de fevereiro de 2021

TRABALHADORES PERDERAM US$ 3,7 TRILHÕES DURANTE A PANDEMIA!

(Business Insider) Os trabalhadores em todo o mundo perderam cumulativamente US$ 3,7 trilhões em proventos durante a pandemia do coronavírus – uma queda de 8,3% – de acordo com um novo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da ONU.

Os trabalhadores americanos viram as maiores perda, uma queda de 10,3%.

Globalmente, 8,8% das horas de trabalho foram perdidas e 114 milhões de pessoas perderam o emprego – o que o relatório chamou de um nível “sem precedentes”.

As mulheres foram mais afetadas pelos efeitos da pandemia sobre o emprego. Em dezembro, os EUA perderam 140.000 empregos – todos ocupados por mulheres.

Agora, a OIT constata que as mulheres tiveram perdas de desemprego de 5%, enquanto as perdas foram de 3,9% para os homens. Como observa a OIT, as mulheres estavam mais propensas a se tornarem “inativas”, o que significa que elas saíram do mercado de trabalho.

Isso acompanharia as tendências anteriores de desemprego feminino: um milhão de mulheres casadas perderam seus empregos em setembro de 2020. Essas perdas ocorreram durante a época escolar, quando muitas mães americanas podem ter deixado o mercado de trabalho para cuidar dos filhos que estejam estudando virtualmente ou que não têm com quem ficar.

Os trabalhadores mais jovens – aqueles com idades entre 15 e 24 anos – também foram desproporcionalmente impactados pelas perdas de empregos. Eles viram perdas de 8,7%, enquanto os adultos em geral viram uma perda de 3,7%.

Essa tendência tem sido consistente durante toda a pandemia. A Geração Z, com até 23 anos, viu experiências da faculdade, mercado de trabalho e outras experiências serem arrancados com o início da pandemia.

O relatório da OIT afirma que o grupo corre o risco de se tornar uma “geração perdida”.

O cenário de recuperação da OIT ainda projeta uma perda de 3% nas horas de trabalho em 2021; sua projeção mais pessimista aponta queda de 4,6%, enquanto o cenário mais otimista aponta queda de 1,3%.

02 de fevereiro de 2020

CONGRESSO: 2019 – 2021: 2022!

(Cesar Maia) O resultado das eleições para as presidências do Senado e da Câmara não produziu nenhuma surpresa. Apenas reproduziu as eleições de 2018. O presidente do Senado, em 2019, foi escolha pessoal do presidente Bolsonaro, com intervenção pessoal e até presencial do ministro Onyx. A reeleição do presidente da Câmara em 2019 veio como desdobramento de seu fortalecimento junto à sociedade e que os deputados acompanharam. Seu poder de articulação vis a vis uma Câmara renovada e desestruturada, com deputados de pouca experiência parlamentar, em meio aos desdobramentos populistas de direita, abriu os caminhos para a reeleição do presidente da Câmara.

Os efeitos da pandemia no Congresso desarrumaram os partidos e imobilizaram as Comissões, onde os debates são muito mais orgânicos e relacionados com a opinião pública e a sociedade na tramitação dos projetos de lei. Com isso, o executivo, por natureza centralizado, passou a ser o poder político articulado com as lideranças de clientela individuais e esparsas. O crescimento das pressões sobre o impeachment presidencial priorizou a articulação inorgânica entre executivo e parlamentares individuais.

Os resultados das eleições municipais de 2020 assustaram o executivo e os parlamentares eleitos em 2018 e senadores com final de mandato em 2022. Com isso, os deputados e senadores -em maioria significativa- passaram a se fixar nas suas reeleições em 2022, com a sensação de um enorme risco eleitoral. Com os estados e municípios em situação fiscal precária, a demanda dos deputados em busca de suas reeleições, se dirigiu ao governo federal que os acolheu generosamente.

Quem imagina que as eleições para presidentes do Senado e da Câmara se relaciona com 2022, está redondamente enganado. A eleição de 2018 foi um ponto fora da curva. A eleição municipal de 2020 reordenou o quadro político nacional, e sinalizou para 2022, com uma renovação de fato do quadro de parlamentares e de governadores em relação a 2018. E tornou sem favorito a eleição presidencial.

Dessa forma, o parlamento de hoje e em especial as presidências do Senado e da Câmara nada terão a ver com 2022. No máximo, canalizarão as demandas dos deputados com vistas a reduzir seus riscos eleitorais evidentes, para 2022. A opinião pública eleitoral -em 2022 para as eleições Presidencial e Parlamentares- estará muito mais articulada com as eleições municipais de 2020. Portanto, 2021 responde ao quadro eleito em 2018, a pandemia, e seu desdobramento fiscal. A política de clientela que voltou a crescer, tem agora uma enorme fragilidade pelas características pulverizadoras com que passaram a ocorrer vis a vis com um executivo federal em processo sustentado de desgaste e apavorado com o impeachment em debate crescente.

Por tudo isso, a leitura apressada das eleições recentes para as presidências do Senado e da Câmara, muito em breve mostrará seus equívocos. Quem sobreviver a Pandemia, verá.

01 de fevereiro de 2021

O LEGADO DE UMA ESTADISTA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 01) “Nada de experimentos.” Com este lema, Konrad Adenauer, o primeiro chanceler da Alemanha ocidental pós 2.ª Guerra e principal artífice de sua reconstrução, conseguiu sua vitória eleitoral mais robusta em 1957. Este anseio por estabilidade se fez sentir de novo agora, quando o seu partido, a União Democrata Cristã (CDU), que governou a Alemanha por 50 dos últimos 70 anos, elegeu como seu líder Armin Laschet, o candidato mais alinhado à chanceler Angela Merkel. A era Merkel está no fim, mas o espírito de sua administração segue forte como nunca.

Desde que assumiram o comando em 2005, Merkel e o CDU consolidaram a posição da Alemanha como a principal economia da Europa, com finanças públicas sólidas e baixas taxas de desemprego. Primeira chanceler mulher da Alemanha, ela é a líder mais longeva da União Europeia (UE), foi frequentemente descrita como a sua líder de facto e também como a mulher mais poderosa do mundo e, após a eleição de Donald Trump, a “líder do mundo livre”.

O prestígio não foi conquistado em águas calmas. Ela enfrentou o colapso financeiro de 2008, a crise dos refugiados, o Brexit e agora a pandemia, mas, em contraste com seus pares – pense-se, por exemplo, nos destinos de Gordon Brown, David Cameron e Theresa May, no Reino Unido, ou Nicolas Sarkozy, François Hollande e Emmanuel Macron, na França –, a cada provação ela emergiu mais forte.

Na política externa, ela enfatizou a necessidade de cooperação internacional, fortalecendo os laços com a UE e a Otan. Na crise da dívida europeia, arriscou o dinheiro alemão, mas manteve a estabilidade do euro. Merkel liderou a UE nas sanções à Rússia após a anexação da Ucrânia e na crise dos refugiados se posicionou firmemente, quase sozinha, em nome dos valores europeus, recebendo mais de 1 milhão de exilados.

Em um perfil de Merkel, a revista The Economist delineou três marcas de sua gestão: ética, não ideológica; reativa, não programática; e desapegada, não engajada. “Sua fé luterana (‘uma bússola interior’) se expressa em seu estilo discreto e seus instintos: a dívida é ruim; ajudar os necessitados é bom.” Como disse seu colega do CDU Jens Spahn, “ela trabalha como uma cientista: lê muito, pondera os fatos e não tem preconceitos”. Merkel sempre mantém as opções abertas e evita polarizar os debates. “Sou um pouco liberal, um pouco social-cristã, um pouco conservadora”, definiu-se ela. Para a revista Der Spiegel, ela é inescrutável como as “esfinges, divas e rainhas”.

Com essas qualidades pessoais, ela transformou a aliança da CDU com a União Social Cristã (CSU) numa máquina eleitoral, conduziu a coalizão com os social-democratas e, a um tempo, ganhou a confiança dos conservadores e promoveu políticas caras ao progressismo liberal, como a abolição do serviço militar compulsório, o fechamento das usinas nucleares, o casamento gay e a assistência aos desfavorecidos.

A vitória de Laschet sobre Friedrich Merz mostra que o CDU optou por manter a orientação ao centro ao invés de uma guinada incerta à direita. As pesquisas de opinião estão massivamente a seu favor. Mas ele terá de manter a unidade e a integridade de seu partido, após flertes temerários nas coalizões regionais tanto com a extrema direita quanto com a extrema esquerda, e possivelmente precisará costurar uma aliança com os verdes, em ascensão, enquanto seus aliados tradicionais na centro-esquerda, os social-democratas, sofrem contínuo desgaste. Laschet é mais simpático aos verdes do que Merz, mas, por causa das suas relações com a indústria do carvão, não está tão perto daquele partido para disputar as eleições de setembro.

Com a saída de Merkel, as democracias liberais perderão uma protagonista decisiva no teatro global. Em tempos de ascensão do populismo, sua trajetória à frente de seu partido e de seu país são um exemplo de estabilidade, pragmatismo e decência. Laschet herda esse rico legado. Mas ainda terá de se mostrar capaz de colher seus frutos.

29 de janeiro de 2021

RISCO DE ROMPER TETO DE GASTOS É ELEVADO!

(Felipe Salto, diretor executivo da IFI – O Estado de S. Paulo, 29) Em 2020, o déficit primário do governo central (sem contar os juros da dívida) totalizou R$ 743,1 bilhões, impulsionado pelo combate à covid-19. O número ficou próximo do projetado pela IFI (R$ 779,8 bilhões). O rombo é elevado e será necessário um plano de saída bem construído para os próximos anos.

Era previsível o resultado negativo e, em 2021, a evolução do quadro pandêmico poderá exigir novas ações do governo para amenizar os efeitos da crise e salvaguardar a vida dos que estão sem emprego e renda. A esse respeito, vale ver o recente artigo do economista Cláudio Adilson para o ‘Estadão’. O fundamental é ter um plano de voo transparente e sinalizar firmemente para uma dívida que pare de crescer em relação ao PIB dentro de alguns anos.

Conforme dados divulgados ontem pelo Tesouro, as receitas líquidas de transferências a Estados e municípios caíram 13,5%, descontada a inflação, entre 2019 e 2020. A dinâmica da arrecadação refletiu o quadro recessivo, apesar de a economia ter apresentado desempenho melhor que o esperado. Provavelmente, uma recessão de 4,5%.

Já a despesa cresceu a 31,1% acima da inflação. As obrigatórias ficaram relativamente comportadas, a exemplo de pessoal, quase estacionado em 4,3% do PIB. A despesa do INSS, por sua vez, passou de 8,5 a 9,0% do PIB. As ações contra a covid, já contando com o auxílio emergencial a vulneráveis, nas duas versões (de R$ 600 e R$ 300), totalizaram R$ 539,4 bilhões, a preços de dezembro de 2020. Sem isso, a despesa total não teria crescido em termos reais em relação a 2019.

Para 2021, o risco de romper o teto de gastos é elevado. As despesas que podem ser cortadas, as chamadas discricionárias, estão previstas em R$ 83,9 bilhões, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), sem contar emendas parlamentares (impositivas). Reduzi-las ainda mais poria em risco o funcionamento de certas políticas públicas, levando ao chamado “shutdown”, como é conhecida a paralisação da máquina pública lá fora.

A falta de planejamento é uma debilidade muito grave e antiga. Em períodos de crise, isso se torna ainda mais evidente. É urgente que o governo mostre, com clareza, a programação orçamentária de 2021 e as fontes de financiamento para os gastos não previstos, bem como se a válvula de escape prevista na regra do teto – o chamado crédito extraordinário – será utilizada. A crise ainda é profunda; a pandemia se alastra. É preciso reancorar as expectativas e dar um horizonte menos turvo à sociedade e ao mercado.

28 de janeiro de 2021

CONCESSÕES, EMPREGOS E INVESTIMENTOS!

(Eduardo Lafraia, presidente do Instituto de Engenharia – O Estado de S. Paulo, 26) O ano de 2021 pode ser muito positivo para o Brasil, se o País levar adiante o plano de investir fortemente na infraestrutura, incluindo o saneamento, para superar os atuais gargalos que encarecem a produção, diminuem a produtividade geral e a competitividade dos produtos aqui manufaturados e trazem problemas de saúde e de contaminação. Esses investimentos vão criar riqueza, gerar empregos e estimular a construção habitacional, o varejo e outras áreas.

O Livro Azul da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB), lançado em dezembro de 2020, mostra que faltam investimentos em todos os segmentos de infraestrutura. Sem recursos públicos para investir, o único caminho viável e que está sendo seguido é dinamizar concessões e parcerias público-privadas (PPPS), que vêm atraindo investimentos de empresas de capital nacional, de fundos e de grupos internacionais. O processo precisa ser acelerado, pois o Brasil vem colhendo bons resultados com esta alternativa há mais de 25 anos, desde a aprovação da Lei das Concessões, ainda no governo Itamar.

Assim, as melhores estradas do País são hoje administradas por concessionárias. Em outras áreas, como energia, transporte ferroviário, transporte hidroviário, instalações portuárias e aeroportos, as concessões e PPPS também vêm atraindo recursos relevantes e o ministro Tarcísio de Freitas anunciou um ambicioso programa para 2021. Governos estaduais também têm agido nessa direção, embora ainda de forma tímida. Milhares de empregos já foram criados neste processo, tanto durante as obras como, de forma permanente, no funcionamento e operação das novas instalações.

No saneamento, em particular no tratamento de água e de esgotos, os 7% da população hoje atendida por empresas privadas devem ser multiplicados com o novo Marco Legal do Saneamento, aprovado pelo Congresso e recentemente sancionado pelo presidente da República. As primeiras três PPPS após o Marco, capitaneadas pelo BNDES com apoio dos governadores do Espírito Santo, de Pernambuco e de Mato Grosso do Sul, tiveram grande sucesso na atração de interessados. Novas licitações estão previstas para 2021 pelo BNDES, e o ministro do Desenvolvimento Regional busca incentivá-las.

A adoção do processo de autorização, em discussão no Congresso, para setores como transporte ferroviário e dutoviário também pode trazer investimentos significativos, pois é o interessado que estuda alternativas, prepara um projeto adequado e propõe o investimento, cabendo ao governo apenas autorizá-lo, se entender que é positivo para o País. As concessões e PPPS são mais demoradas, pois exigem que os governos façam os estudos e as avaliações e preparem projetos da mesma qualidade para atrair interessados a entrar nas licitações, evitando erros por excesso de otimismo ou projeções irreais.

O presidente do BNDES tem destacado a carência de projetos como importante entrave para a expansão mais rápida dos investimentos em saneamento. É possível e necessário reconstruir a estrutura de engenharia de projetos que o Brasil já teve e encolheu com as crises e a estagnação a partir dos anos 80 do milênio anterior.

Nossas faculdades têm tradição em formar bons engenheiros, como constatamos nos debates e propostas que vimos desenvolvendo no Instituto de Engenharia, voltados para a infraestrutura e o saneamento. As PPPS e concessões podem trazer o estímulo necessário para novos profissionais de engenharia se dedicarem à área de projetos, tanto para a expansão das empresas existentes como para a formação de novas.

A engenharia brasileira é um dos ativos fortes do País e pode ser a base para um novo ciclo de investimentos baseado em concessões e PPPS, que gerará alto número de oportunidades, especialmente importantes diante do atual nível de desemprego.

27 de janeiro de 2021

ESPAÇO FISCAL PARA AUXÍLIO EMERGENCIAL!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S. Paulo, 25) O Banco Mundial desenvolveu uma estatística para medir o grau de isolamento social, legal ou voluntário, na pandemia de covid-19. Trata-se do stringency index (IE), ou índice de rigor. No caso hipotético de confinamento total (lockdown) esse índice seria 100. Sem qualquer distanciamento social, seria 0. Estima-se que o Brasil tenha encerrado 2020 com o IE em 60.

O economista Bráulio Borges, do IBRE-FGV e da LCA Consultores, utilizou esse índice e um elaborado modelo de consistência macroeconômica para estimar cenários de crescimento da economia brasileira, em 2021, de acordo com a eficácia do programa de vacinação. Os resultados foram eloquentes. Se o governo conseguisse imunizar 70% da população, até meados deste ano, o PIB em 2021 cresceria quase 8%, em relação a 2020, e já igualaria o nível que se esperava para o ano passado, antes da covid-19. Na hipótese mais pessimista (que hoje já soa como muito otimista), em que tal imunização só seria alcançada no final deste ano, o crescimento seria anêmico, cerca de 0,5%, em relação ao fim do ano passado, embora na média, por puro efeito estatístico, o PIB em 2021 seria 3% maior que em 2020.

Como se vê, o custo econômico da incompetência governamental no enfrentamento da pandemia é gigantesco. Não são meras estatísticas. Atrás destes números há um drama social, em que mais de 30 milhões de pessoas ficarão sem condições de sustentar suas famílias.

Quem não previne tem de remediar. Com a segunda onda da covid-19 já sendo um fato e com a lentidão do programa nacional de vacinação, a renovação do auxílio emergencial, em lugar de uma opção, é uma imposição.

Mas há espaço fiscal para isso? A resposta é afirmativa. Vejamos o porquê.

No final do terceiro trimestre de 2020, as projeções de consenso eram as seguintes (todos os números como porcentagem do PIB): déficit primário do governo central, 13%; e Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) – conceito BC – 97%, os famosos “quase 100% do PIB”, bordão predileto de muitos analistas. Em 2021, a relação DBGG/PIB já ultrapassaria essa marca psicológica de 100%. Esperava-se também que a queda do PIB em relação a 2019 fosse de 6% ou mais.

Com esse cenário, naquela oportunidade, o índice Bovespa, principal indicador do mercado acionário brasileiro, já havia batido nos 100 mil pontos, depois de ter caído a quase 60 mil pontos no início da pandemia. A taxa básica de juro (Selic) já era de 2% ao ano e o custo de financiamento do Tesouro Nacional, para prazo de dez anos, era praticamente o mesmo que o atual. Ou seja, o mercado financeiro já havia absorvido esses números, não tendo entrado em pânico.

Felizmente, a realidade foi menos cruel. A queda do PIB em 2020 deve ter sido inferior a 4,5%, o déficit primário não deve ter ultrapassado 10,2% do PIB. A relação DBGG/PIB é estimada, pela MCM Consultores, em 89,0% (final de 2020) e em 88,2% (final de 2021). Essa melhor performance da economia e das contas públicas se deveu, em grande medida, aos estímulos de demanda introduzidos pelo auxílio emergencial, numa economia com enorme ociosidade na utilização de seus recursos produtivos.

Se o auxílio emergencial de R$ 300,00 fosse prorrogado por mais 6 meses, mediante crédito extraordinário, sem desrespeito ao teto de gastos, o custo fiscal poderia alcançar R$ 120 bilhões. O impacto sobre a dívida pública seria de 1,5% do PIB, ou seja, 2021 fecharia com a relação DBGG/PIB em torno de 89,7%, praticamente o mesmo nível estimado para 2020.

É importante ressaltar que estamos falando de crédito extraordinário, aberto para enfrentar uma emergência, e não de aumento permanente de gastos. Dessa forma, a eventual prorrogação do auxílio emergencial não deveria ser motivo para histeria, quer do mercado financeiro, quer de membros da equipe econômica, como se viu na semana passada.

26 de janeiro de 2021

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 25) É frequente a reclamação de que, no Brasil, o Poder Judiciário interfere demasiadamente em questões políticas, o que levaria a uma redução do papel do Congresso na definição de muitas pautas importantes para o País e para a sociedade. Tal crítica é muitas vezes procedente. Não raro, a Justiça ultrapassa os limites estritos da esfera jurídica.

Mas essa crítica ao Judiciário, como se ele estivesse usurpando um poder que não lhe corresponde, é também muitas vezes injusta. Cada vez mais, a chamada judicialização da política tem sido promovida pelos próprios partidos políticos. Não é que a Justiça esteja ampliando os seus espaços. São as legendas que usam o Judiciário para sua agenda política.

Segundo levantamento do Estado, as maiores derrotas sofridas pelo governo Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) decorreram de ações propostas por partidos políticos. Alguns deles com baixíssima representatividade no Congresso.

Por exemplo, a Rede é a legenda que até agora obteve maior êxito no Supremo contra o Palácio do Planalto. No entanto, sua bancada é composta por uma deputada federal e dois senadores. Em Brasília, o partido fundado por Marina Silva tem mais advogados do que parlamentares, acionando frequentemente a Justiça para promover suas propostas políticas.

Por exemplo, o senador da Rede Randolfe Rodrigues foi o autor da ação na qual um juiz do Amapá decidiu que, em razão dos apagões de energia elétrica, parte da população do Estado teria direito a receber mais duas parcelas do auxílio emergencial. Em outra ação proposta pelo senador, o mesmo juiz determinou o afastamento da diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e dos diretores do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

Essa judicialização da política, promovida por partidos com baixa representatividade no Congresso, é mais um desequilíbrio do sistema partidário. Na prática, legendas nanicas desfrutam de um status jurídico incompatível com sua representação, gerando várias distorções. Por exemplo, partidos obtêm, pela via judicial, um peso na vida política nacional desproporcional ao seu tamanho. Como disse tempos atrás o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), “quem não tem voto judicializa”.

A Constituição confere a todos os partidos políticos com representação no Congresso Nacional competência para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCS). A atual situação, com legendas tentando sistematicamente reverter na Justiça derrotas sofridas no Congresso, evidencia a necessidade de aumentar esses requisitos constitucionais.

A Emenda Constitucional (EC) 97/2017 estabeleceu porcentuais mínimos de representatividade para que as legendas tenham acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão. É a chamada cláusula de barreira ou cláusula de desempenho. Para continuar com acesso a recursos do Fundo Partidário, os partidos terão de eleger, nas próximas eleições, ao menos 11 deputados federais (distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação) ou obter no mínimo 2% dos votos válidos (distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação).

Uma mesma cláusula de barreira deveria ser aplicada em relação à competência para propor Adin e ADC. Não faz sentido atribuir a partido nanico, que não tem um mínimo de representação popular, um poder que está relacionado diretamente à representatividade. Caso contrário, toda entidade ou cidadão deveria ter o direito de propor essas ações.

Os parlamentares são eleitos para defender os interesses de seus eleitores no Congresso. O voto não é, portanto, uma procuração judicial para o parlamentar atuar na Justiça em nome da população. A judicialização da política por partidos é uma grave deformação do regime democrático. O poder emana do povo, e não de táticas jurídicas. Que a Justiça não se deixe ser manipulada dessa forma, também porque depois as críticas recaem sobre ela.