24 de março de 2021

BORBOLETAS, DITADORES E ESCRITORES!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S.Paulo, 21) Foi uma sorte para a América Latina que, em sua infância, Michi Strausfeld visse os documentários de Hans Domnik mostrando as suntuosas ruínas dos astecas e maias no México e na Guatemala, e as enigmáticas pedras do santuário de Machu Picchu no Peru. Porque o resultado disso foi uma crítica e editora latino-americanista que fez muito mais do que todas as universidades reunidas do seu país para a difusão da literatura da América Latina na Alemanha.

Não é exagero. Michi estudou filologia inglesa e espanhola e sua tese de doutorado foi sobre a obra de Gabriel García Márquez. Viajou pelos quatro cantos do Novo Mundo, por grandes cidades e pequenos vilarejos perdidos, foi amiga de escritores e editores, aprendeu as línguas que ali eram faladas (além dos infinitos dialetos), espanhol, português, francês e inglês. E, como editora, primeiro da Suhrkamp e depois da S. Fisher, publicou traduções de muitos autores latino-americanos, além de organizar simpósios, mesas-redondas e trazer a convite para a Alemanha uma infinidade de escritores. E digo: fez mais do que todas as universidades da Alemanha juntas.

E, como se tudo isso fosse pouco, acaba de editar em espanhol um esplêndido livro de mais de 500 páginas intitulado Mariposas Amarillas y los Senõres Dictadores, que acabei de ler. Em primeiro lugar, há duas coisas pelas quais felicitamos Michi Strausfeld. A primeira é que se refere à literatura deste vasto continente como um todo integral, muito variado, mas orgânico (que diferenças essenciais existem entre as literaturas do Equador, Peru, Bolívia, ou entre a argentina e a uruguaia?). E a segunda é que ela julga e se refere à poesia, ao conto, ao ensaio e ao romance como algo essencialmente ligado à história.

Testemunhos

Isso lhe permite, em sua exuberante investigação, referir-se não apenas aos livros literários mais originais e criativos, mas também às narrativas de menor importância oferecidas como testemunhos e investigações particulares da violência que permeia esse continente derivada das ditaduras, das lutas contra elas, da discriminação da mulher e, nos últimos anos, como consequência do tráfico de drogas. O livro é muito bem escrito e, apesar da sua envergadura, o lemos com prazer e simpatia, porque as sisudas nomenclaturas e análises rigorosas são atenuadas com historietas, fofocas, confidências e alarmantes passeios por regiões inóspitas, dominadas pelas guerrilhas e locais de incontáveis assassinatos.

Como muitos intelectuais europeus, minha amiga Michi Strausfeld tem um fascínio pelas revoluções e gostaria que os escritores estivessem sempre do lado dos rebeldes que lutam pelas boas causas – nem sempre é assim. Alguns intelectuais latino-americanos estão muito longe das pistolas e das bombas, e nossa aspiração é que a América Latina seja um continente pacífico e democrático, sem pistoleiros nem explosivos, como é hoje na Alemanha. Mas precisamos dizer, a seu favor, que ela não discrimina ninguém segundo critérios políticos e nas páginas do seu fascinante livro dá espaço tanto a Mario Benedetti e Eduardo Galeano quanto a Octavio Paz e Sergio Ramírez.

A única omissão maior que encontrei nesses capítulos onde há mais de uma centena de livros e autores estudados – com análises geralmente penetrantes e acertadas – é a do chileno Jorge Edwards, romancista, contista e ensaísta de alto nível, que merecia figurar neste panorama original das letras latino-americanas.

O livro começa com o descobrimento, ou seja, em outubro de 1492, quando Colombo escreve ao papa Alexandre VI que tem a impressão de “que estas paragens são as do Paraíso terrestre”. Os principais cronistas, Bernal Díaz del Castillo, no caso do México, e o Inda Garcilaso de la Vega, do Peru, estão bem estudados, com páginas que conservam intacto o deslumbramento dos espanhóis com os palácios, praças e caminhos, ao mesmo tempo que descobrem tribos primitivas, civilizações refinadas, com arquiteturas requintadas e cidades lacustres.

O livro dá um salto dos anos coloniais – sem deixar de citar, claro, a irmã Juana Inés de la Cruz, distante discípula de Góngora, cujos romances foram proibidos na América por uma misteriosa razão que até agora ninguém soube explicar. A proibição não funcionou com relação à importação de livros porque o contrabando era muito intenso. Fala-se que os primeiros exemplares de Dom Quixote chegaram ao Porto de Callao ocultos em uma caixa de vinhos – mas impediu as publicações, pois o primeiro romance a ser impresso na América foi El Periquillo Sarniento, no México, em 1816.

Ditaduras

O livro se intensifica nos séculos 19, 20 e 21, à medida que as colônias se tornam independentes e começa o período das ditaduras militares, quando a América Latina, com poucas exceções, se dedica a um extermínio recíproco, a roubar e destruir as novas repúblicas que, traindo o legado de Bolívar, em vez de se unirem como ocorreu na América do Norte, se dividiram e subdividiram, guerreando entre si e com os vizinhos, até transformar o novo continente num bacanal sinistro.

Este é o momento em que surgem, com grande força, a poesia e os romances, como um florescimento literário da guerra e os múltiplos problemas sociais. Michi Strausfeld insiste muito, e de modo convincente, que esta nova literatura preenche os vazios deixados pela história e exalta e diversifica ao extremo o que os grandes feitos históricos não tiveram condições de detalhar, ou seja, o sofrimento iníquo das vítimas, a crueldade para com os pobres provocada pelas enormes divisões sociais, a maneira como os Estados Unidos amparam as companhias americanas, subornando ou pressionando os governos que começaram processos de reforma agrária e provocando os primeiros sintomas – na educação pública – da igualdade de oportunidades.

Estas são as páginas mais interessantes do livro: a maneira como a literatura é contagiada pela problemática social e a reflete, às vezes aumentada, às vezes diminuída, mas sempre apoiada numa realidade viva, embora imaginando um vilarejo de mortos, como Juan Rulfo, ou o espetáculo de um país devastado por um ditador louco, erudito e sanguinário, como o doutor Francia nos romances de Augusto Roa Bastos. Ela adverte, com muita razão, que na literatura é que começa a ser documentada a condição da mulher e as lutas, hoje disseminadas por todo o continente, por sua emancipação, um processo lento e terrível que está em marcha e com alguns sucessos obtidos.

O problema da droga ocupa um bom número de páginas e com razão, pois os cartéis acumularam fortunas e causaram uma violência infernal, sobretudo na Colômbia e no México. Na Colômbia, esses cartéis subvencionaram meio século de guerrilhas e seus massacres espantosos, e no México a violência alcançou um nível de horror ilustrado nas “crônicas” do jornalismo, gênero ao qual Michi dedica, com muita exatidão, um bom número de páginas.

Desinteresse

Ela lamenta que, depois do famoso e já defunto “boom” da literatura latino-americana, a Europa tenha se desinteressado dela, especialmente quando se pensa nos anos 60 e 70. Não deveria. Já estamos ali, também na Europa, e não somos nada exóticos, nosso valor não é em função do local de onde viemos, mas em função do que fazemos, nem mais e nem menos do que os franceses, os ingleses, os italianos, os alemães e outros europeus. Não era isso que queríamos?

23 de março de 2021

CRESCEM OS ATOS DE CRIMES DE ÓDIO E RACISTAS CONTRA ASIÁTICOS!

Há um aumento de atos de racismo e violência contra asiáticos em todo o mundo.

Mas foi preciso o assassinato de oito pessoas, sendo seis mulheres asiáticas, para que a grande mídia americana se posicionasse e passasse a cobrir a escalada de casos de violência física e verbal diários contra asiáticos, em geral direcionados a idosos e mulheres, alvos mais “fáceis” para aqueles que costumam cometer esse tipo de violência.

Mesmo assim, a imprensa tem se negado a designar os assassinatos em Atlanta como “crime de ódio” e pouco destaque se deu à ida de Biden e Harris a Atlanta para encontrar com líderes e ativistas asiáticos.

Segundo a Stop AAPI Hate (em tradução literal “Pare com ódio contra asiático-americanos e habitantes das ilhas do Pacífico”), organização criada em março do ano passado, já são mais de 3,8 mil casos de violência contra a comunidade AAPI. No Brasil, eram cerca de 200 em maio de 2020, segundo o Instituto Sociocultural Brasil-China e, hoje, já ultrapassam mil.

Como as comunidades asiáticas não são homogêneas, são consideradas “estatisticamente irrelevantes” e somando-se o mito da “minoria modelo”, em que se espera que os asiáticos se comportem de forma dócil e quieta, as comunidades asiáticas se tornam menos organizadas, menos vocais e recebem cobertura quase nula da imprensa.

Um exemplo local é o da jornalista Thaís Oyama, que escreveu o livro “Tormenta”, sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro. Ao comentar sobre o livro, o presidente Bolsonaro disse: “Esse é o livro dessa japonesa que não sei o que faz no Brasil” e “No Japão ia morrer de fome”. Thaís Oyama é brasileira. O caso não teve repercussão.

O aumento de casos de crimes de ódio e racismo contra asiáticos não elimina ou deve ser comparado ao racismo estrutural existente contra outras minorias. Porém, o racismo contra asiáticos não é novidade no Brasil ou em qualquer lugar. Geralmente travestido de brincadeira ou fetiche (a hipersexualização, fetichização e objetificação de mulheres asiáticas esteve presente nos assassinatos em Atlanta, em que o assassino culpa seu vício em sexo e fetiche por mulheres asiáticas por motivar a “eliminação da tentação”) e aliado ao mito da “minoria modelo”, faz com que seja constantemente minimizado e relativizado.

Desde fevereiro de 2020, há toda sorte de agressão e ataques registrados -sejam com faca, ácido, fogo, socos e chutes- contra pessoas asiáticas nos EUA, tendo os seis assassinatos por arma de fogo em Atlanta se juntado a outros dois de idosos de 84 e 75 anos que não resistiram aos ferimentos das agressões sofridas na Califórnia.

Somando-se à retórica racista, muitas vezes impulsionada pelos governantes, que faz de todos asiáticos bodes expiatórios, culpando-os pelo COVID-19, não é de se espantar que esses crimes de ódio estejam aumentando e que, na medida em que a pandemia vai piorando no Brasil, casos extremos também se tornem uma realidade aqui.

22 de março de 2021

LIBERAIS, NEOLIBERAIS, POLÍTICA E MERCADO!

(Christian Edward Cyril Lynch, autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 21) O tema do neoliberalismo está em voga desde a década de 1980, quando a crise da social-democracia europeia trouxe a crítica do planejamento econômico pelo Estado e a defesa do liberalismo econômico como fórmula capaz de superar a estagnação.

Nos últimos dez anos, seu prestígio cresceu e seus partidários aderiram à chamada “nova direita”, parte da qual viria a apoiar o governo Bolsonaro. O debate público sobre o conceito de liberalismo é intenso. Hoje, o tema guarda grande atualidade, tendo em vista o referido endosso de Paulo Guedes e de maioria dos neoliberais brasileiros às tendências conservadoras e autoritárias de Jair Bolsonaro.

Entre os pretendentes dessa ideologia política, a querela gira em torno de um liberalismo democrático inimigo do autoritarismo político (a vertente liberal democrata), que mantém relações pragmáticas com a economia, e um outro, para quem a liberdade política depende essencialmente da econômica, ponto de vista segundo o qual o verdadeiro autoritarismo seria a intervenção do Estado na economia (a vertente neoliberal).

Os neoliberais se apresentam como “liberais”, ou como sendo os “autênticos liberais”, alinhando-se, todavia, a pautas reconhecidamente conservadoras em sua dimensão política. Tentam, assim, conciliar em abstrato a distinção histórica entre conservadorismo e liberalismo, sem deixar de aderir a uma coalizão de vocação autoritária, que conta com conservadores reacionários (olavistas) e estatistas (militares).

Eles enfrentam sempre a oposição de outros “liberais”, que se pretendem progressistas e negam a compatibilidade entre liberalismo e conservadorismo ou autoritarismo político.

Vários estudiosos conferiram grande importância à questão das chamadas famílias, tradições ou linhagens do pensamento político brasileiro. Esse tipo de classificação tem entre suas vantagens a capacidade de servir de anteparo ao presentismo: a tentação de ver os problemas do momento atual como puramente inéditos. Assim, podemos revisitar a tradição do liberalismo brasileiro, buscando suas regularidades no tempo.

Desde o começo do século 19, os liberais associaram o suposto atraso brasileiro a um problema de origem. A baixa capacidade de os portugueses estabelecerem as bases de uma civilização moderna nos trópicos, a influência da Igreja Católica, a concentração da grande propriedade agrária e a escravidão teriam produzido uma sociedade civicamente egoísta, indiferente à ciência, dependente de um Estado autoritário e patrimonial, avessa ao indivíduo autônomo e incapaz de cooperação —como descrito, por exemplo, por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” (1958).

Para além do transplante de instituições anglo-saxãs, o programa liberal inspirado por Stuart Mill tem se pautado por políticas públicas voltadas para a abertura comercial e cultural, para a descentralização político-administrativa, desregulação econômica e redução da burocracia.

Do ponto de vista político, o liberalismo brasileiro de tendência democrática manifesta um certo centrismo. O mais destacado intelectual liberal brasileiro do período pós-independência, Evaristo da Veiga, já celebrava a moderação como a virtude política por excelência. Essa postura confere aos liberais um dinamismo de se deslocar para a direita ou para a esquerda, conforme percebam a ameaça autoritária vindo de um dos lados opostos, socialista ou conservador.

No governo, o liberalismo democrático brasileiro tende a ser mais cauteloso, hesitando a respeito da conveniência e do ritmo da expansão dos direitos sociais e políticos. Acreditando que a colonização teria conformado uma sociedade inclinada a soluções políticas messiânicas, populistas e estatistas, os liberais acabam por não confiar no “bom senso” das massas. Daí a tendência a um excesso de moderação que conduz ao elitismo, ou seja, a circunscrever o centro decisório a uma minoria homogênea de cidadãos em termos de renda e cultura.

Desde que a democratização começou a surgir no horizonte, a partir da Campanha Abolicionista com Joaquim Nabuco e, depois, com a Campanha Civilista de Rui Barbosa, a classe média entrou no radar dos liberais. Como segmento social, exprimiria as qualidades da sociedade civil, por sua sensibilidade a temas como participação política, liberdade, mérito e moralidade.

Entretanto, por vezes, os liberais democráticos se perceberam em um clima de polarização entre a esquerda e a direita radicais que reduzia o seu espaço de atuação em defesa das liberdades públicas e inclinava o país para o autoritarismo. A sociedade brasileira parecia não se adequar à pedagogia dos valores cosmopolitas liberais.

Inoculada nas massas, a hostilidade a esses valores inclinaram-nas à tutela de um líder carismático; daí a fortuna de um conceito controverso como o de “populismo” tanto entre liberais quanto entre socialistas cosmopolitas. Tal diagnóstico leva muitos liberais democráticos a periodicamente advogarem mecanismos institucionais como o parlamentarismo e o judiciarismo.

Este último é uma velha aspiração que data da queda da Monarquia e encontrou seus grandes defensores em Rui Barbosa e Pedro Lessa, para quem a República transferira para o Supremo Tribunal a função arbitral exercida antes pelo Poder Moderador.

Somente na Nova República, todavia, com a retirada de cena do Exército, o judiciarismo se tornou hegemônico, auxiliado pelo desenho institucional da Constituição de 1988. No começo do século 21, voltou a ser apresentado como um remédio para as tendências corruptoras e oligárquicas da representação política.

Em épocas de polarização e crise aguda do Estado de Direito, quando as instituições constitucionais parecem indiferentes ou hostis à cultura do liberalismo, nasceu frequentemente entre os liberais democratas brasileiros a tentação do golpismo.

Desde 1889, o liberalismo nacional tendeu a encarar esse recurso como legítimo em momentos críticos para salvar a liberdade contra seus inimigos percebidos como autoritários. Quem melhor representou essa ambiguidade foi o próprio Rui Barbosa. O temor de um eventual reinado reacionário da princesa Isabel o fez embarcar no golpe militar e a se tornar ministro da ditadura republicana, interpretada por ele como um autoritarismo transitório que preparava um Estado de Direito mais sólido, conforme o figurino estadunidense.

Depois de combater o militarismo dos presidentes Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, Rui voltou a cogitar a intervenção do Exército no começo dos anos 1920, quando lhe pareceu que a República marchava de novo para o autoritarismo.

O golpe de 1964 também foi apoiado por liberais democratas, a exemplo de Afonso Arinos e Carlos Lacerda, como um breve período de exceção destinado a afastar o risco de ameaça comunista. Na prática, em todas essas ocasiões, os liberais brasileiros só participaram de uma “jornada de otários”, que precipitou o advento de um autoritarismo de direita que terminou por voltar-se contra eles e persegui-los como subversivos.

Embora se imagine sempre uma correlação automática entre liberalismo econômico e político, essa relação, ao longo dos últimos três séculos, é mais complexa e nem sempre de fácil distinção. Se a liberdade de mercado é parte das liberdades modernas, o foco sobre a liberdade política, aquela plasmada na forma dos direitos e das garantias constitucionais, distingue o liberalismo democrático daquele que via no livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal.

A esta última vertente poderíamos chamar de libertarianismo econômico, ou neoliberalismo. Surgido pelas mãos de Herbert Spencer por volta de 1880 como reação ao processo de democratização política, impulsionado pelo socialismo e pelo alargamento do sufrágio, o neoliberalismo consiste em um híbrido de liberalismo e conservadorismo: ao mesmo tempo em que apresenta características liberais, como o individualismo, eleva o mercado à condição de gerador e ordenador da vida social, intangível porque produto de forças extra-humanas —uma suposta “ordem espontânea” do universo social fruto da interação não planificada entre os indivíduos.

Os neoliberais apresentam seus argumentos em uma roupagem supostamente “técnica” ou “científica”, defendendo suas posições como as únicas “realistas”, não capturadas pela tentação idealista e normativa da mentalidade planificadora e maximizadora do Estado que teria marcado as ideologias democráticas desde o século 18, como se notaria tanto nos liberais quanto nos socialistas.

Na ideologia neoliberal, a função do Estado é essencialmente a preservação das condições de competição dos indivíduos no mercado. A justiça social é produto das leis do mercado, cujo livre funcionamento por parte de empresários “empreendedores” e criativos, em um contexto de população tecnicamente educada, geraria de forma mais ou menos automática riqueza pública e emprego, através de sucessivos ganhos de produtividade.

Para os neoliberais, o Brasil estaria sempre patinando entre a barbárie e a estupidez, carecendo constantemente de abertura comercial e financeira para o mercado exterior. Aqui, empreender teria muito mais obstáculos a enfrentar devido à ausência de uma cultura moderna, ou seja, capitalista. Em contraste, os países do Atlântico Norte costumam ser referenciados como modelares.

O cosmopolitismo neoliberal demonstra, coerentemente, grande apreço a organismos internacionais —mas não os de caráter político, como a Liga das Nações ou a ONU, enaltecidas pelos liberais democratas, e sim os financeiros, como o FMI, bancos e empresas multinacionais.

E se é verdade que ambas as tradições liberais podem ter uma aproximação instrumental com o autoritarismo, no caso dos neoliberais essa dimensão é muito mais acentuada. De todo esse diagnóstico negativo dos libertários econômicos sobre a situação do Brasil resultava um descompromisso ainda maior com a democracia.

A necessidade de um choque civilizador de capitalismo vindo de fora justificava métodos autoritários. A marca acentuadamente demofóbica já estava presente nos fundadores libertários da República, como os irmãos Alberto e Campos Sales, que ajudaram a urdir o golpe de 1889 contra os liberais e defendiam a toda força o presidencialismo, na crença de que só um governo forte e enérgico poderia enfrentar o “socialismo”.

No século 20, Eugênio Gudin e Roberto Campos demonstraram idêntico descaso com o regime democrático. Diziam que as constituições de 1946 e 1988, por não corresponderem às suas doutrinas, eram produtos da ignorância e da utopia. Como nenhuma delas resolvia os problemas do país, duravam pouco e mereciam, por isso, o desprezo geral.

Muitas tensões marcaram a convivência dos dois liberalismos, o democrático e o neoliberal, em nosso país. Para Rui Barbosa, o presidente Campos Sales era o grande artífice do conservadorismo da Primeira República. Ele acusava Sales de autoritário, oligarca e corruptor, assim como via na política neoliberal de seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, uma cortina de fumaça doutrinária destinada a favorecer os interesses internacionais. Já Sales e Murtinho chamavam Rui de subversivo e tendente ao socialismo, criticando sua política econômica.

Quando o regime militar impôs a Constituição de 1967, o liberal democrata Afonso Arinos também se queixou de que a nova Carta continha “excessivo liberalismo econômico em contraste com o autoritarismo político”. Em defesa dela, os neoliberais Gudin e Roberto Campos justificaram o fortalecimento do Executivo pela necessidade de passar as reformas modernizadoras de corte libertário.

Roberto Campos também se estranhou publicamente com Carlos Lacerda, quando este atacou sua política neoliberal como própria de tecnocratas e defendeu uma abordagem pragmática da economia. No livro “Brasil entre a Verdade e a Mentira” (1965), Lacerda invocou em seu apoio a autoridade de Rui Barbosa, cuja obra defendeu contra Murtinho e Campos.

Apoiador de primeira hora do golpe militar, Lacerda acabou preso após o AI-5 e teve seus direitos políticos cassados. Também para ele, a adesão ao golpismo resultou numa “jornada de otários”. A história se repetiu recentemente, com a adesão dos liberais democratas ao lavajatismo como método de deposição da esquerda. Ao invés de chegarem ao reino da liberdade republicana, esquentaram a cama para Jair Bolsonaro se deitar.

Depois de 1990, os liberais democratas recuperariam o discurso do liberalismo econômico, voltando a apresentar um ponto de contato com os neoliberais. Nem por isso se tornariam a mesma coisa. Em suas memórias, “A Lanterna na Popa” (1994), Roberto Campos lamentou as brigas com Arinos e Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro…”. Ele estava errado. Embora aparentados do ponto de vista “macro ideológico”, o liberalismo democrático e o neoliberalismo, como já se percebia então, são ideologias distintas.

O liberalismo democrático, que representa o tronco principal da linhagem, na segunda metade do século 19 já havia, por meio de Stuart Mill, renunciado a aspectos secundários da doutrina, como o voto censitário e o liberalismo econômico, vinculados ao governo oligárquico e plutocrático.

O neoliberalismo, ao contrário, surgiu como uma reação conservadora à adaptação do liberalismo ao ambiente democrático, destinado a preservar a dimensão oligárquica e plutocrática do Estado de Direito. Onde os liberais viam democracia, os neoliberais passaram a ver socialismo. Longe de preservar o liberalismo oitocentista, os neoliberais deliberadamente o reformularam, modificando seus fundamentos, para se concentrar, quase que exclusivamente, na defesa do Estado mínimo.

O atual contencioso em torno do autoritarismo conservador de Bolsonaro demonstra com clareza a distinção de neoliberais e liberais democratas. A adesão de Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica.

Basta lembrar que no passado apoiaram as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a oligárquica República Velha e o regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol…

19 de março de 2021

HISTORIADOR NARRA ALIANÇA NAZI-SOVIÉTICA!

(Paulo Nogueira – O Estado de S. Paulo, 14) Numa era de tal polarização que cada lado só vê o que quer ver (geralmente, miragens), de cancelamentos e fake news, uma vacina com eficácia de 100 por cento é ler historiografia. Pois, por incrível que pareça, a história não começou ontem, e nem mesmo com o WhatsApp.

O Pacto do Diabo, de Roger Moorhouse, passa a pente fino o tratado de não agressão de 23 de agosto de 1939 entre a URSS e a Alemanha nazista. Foi assinado em Moscou, com a presença de Stalin e dos ministros das Relações Exteriores dos respectivos países, Molotov e Ribbentrop. O pacto embasbacou tanto a direita quanto a esquerda, já que fascismo e comunismo eram teoricamente antípodas ideológicas, e não farinha do mesmo saco totalitário. Como Stalin rosnou, ao brindar à saúde de Hitler: “Temos jogado baldes de m* na cabeça uns dos outros, e nossos publicitários precisam convencer o povo que tudo foi esquecido e perdoado”. Nove dias depois a Wehrmacht invadiu a metade oeste da Polônia, iniciando a 2ª Guerra Mundial, e o Exército Vermelho anexou irmãmente a outra metade.

Inúmeros comunistas ocidentais, enojados com o mico, deixaram os PCs, no maior êxodo partidário antes da invasão soviética Hungria, em 1956, e do esmagamento da Primavera de Praga, em 1968. Houve, claro, muitos que só deram um sorriso amarelo, como o historiador Eric Hobsbawn. George Bernard Shaw derreteu-se: “Hitler está agora sob a poderosa influência de Stalin, que ama a paz”. Já George Orwell chutou o balde: “Esse pacto minou não só o básico apelo ‘antifascista’ do comunismo, mas também sua queixa contra o status quo. E os comunistas, que no passado amaldiçoaram seus governos burgueses por apaziguarem Hitler”. Em 1984, um mudança oportunista de alianças obriga o herói Winston Smith a fazer horas extras para reescrever os jornais e fingir que aquela amizade sempre existiu. Enquanto isso, em Munique, o jardim da sede do Partido Nacional-Socialista ficou juncado de distintivos jogados por nazistas não menos nauseados.

Para Hitler, o acordo permitia atacar tranquilamente a Europa Ocidental, sem se preocupar com ameaças do leste – e recebendo “commodities” russas (cereais, metais, petróleo) a preços de Black Friday. Para Stalin, as vantagens eram a expansão de influência, a transmissão da tecnologia bélica alemã e a regeneração do Exército Vermelho, mutilado pelos expurgos promovidos pelo próprio ditador. Alguns presos durante expurgos stalinistas, foram direto do Gulag para os campos de concentração hitlerianos – caso da escritora Margarete Buber-Neumann.

E havia o “protocolo secreto”, que Moscou não admitiu até 1989 (e que Putin considerou “imoral, mas compreensível”). Essas cláusulas ditavam não apenas a partilha da Polônia, mas também que os estados bálticos, então independentes (Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia), mais partes da Romênia, cairiam no colinho do Kremlin.

Alguns articulistas cornetaram que Moorhouse dá mais espaço às atrocidades comunistas que às nazistas. Bem, há no livro carnificinas suficientes – e soa plausível a alegação de que a barbárie hitleriana é muito mais conhecida que a stalinista. Quem nunca ouviu falar de Auschwitz, mas quantos sabem de Kolimá? E os retratos individuais de Pacto do Diabo são magistrais, como os de Ribbentrop e Molotov, dois bajuladores do quilométrico cordão de puxa-sacos dos autocratas de bigodão e bigodinho.

Entre as numerosas ignomínias mútuas avulta o massacre na floresta de Katyn, em maio de 1941, quando 22 mil poloneses (entre prisioneiros de guerra, professores, padres e intelectuais) foram fuzilados e lançados a uma mefistofélica vala comum. Alemães e soviéticos empurraram a batata quente de um para o outro. Hoje, a responsabilidade está estabelecida: a ordem foi de Lavrenti Beria, chefe da polícia secreta de Stalin.

O pacto legou outra consequência duradoura, de ordem conceitual: a ideia da correspondência essencial entre comunismo e fascismo. Sem falar na afinidade totalitária (já assinalada por Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo), há os sistemáticos crimes contra a humanidade (como definiu memoravelmente André Frossard, “quando se mata alguém sob o pretexto de que ele nasceu”).

Estima-se que houve 96 milhões de mortes na URSS, China, Camboja, Coreia do Norte, Vietnã e Europa Oriental. Os nazistas mataram menos (25 milhões), mas é verdade que os comunistas começaram mais cedo e duraram mais. A diferença está no anátema das vítimas dos dois regimes: um, baseado na “raça”; o outro, na “classe social”. Sem querer passar um pano infame na infâmia, talvez subsista um – quem sabe bizantino – contraste, como notou o saudoso Tony Judt. Ou seja, aquele entre um regime que exterminou pessoas na busca desumana de um objetivo arbitrário, e outro cujo objetivo foi o próprio extermínio.

17 de março de 2021

EXCESSO DE REGRAS!

(Bernard Appy – O Estado de S. Paulo, 16) Há um razoável consenso de que a situação fiscal do Brasil é preocupante. De um lado, a dívida pública do País cresceu muito nos últimos anos, aproximando-se de 90% do PIB. De outro lado, as finanças da União e de muitos Estados e municípios encontram-se fragilizadas, resultando em um nível extremamente baixo de investimentos e em dificuldades de pagamento de despesas obrigatórias.

Há vários motivos para termos chegado a essa situação, mas certamente isso não ocorreu por falta de regras fiscais, ou seja, regras destinadas a conter a expansão excessiva de gastos públicos e a sinalizar para a sustentabilidade da dívida. Segundo levantamento da Instituição Fiscal Independente (de janeiro de 2018), o Brasil possuía 11 regras fiscais, sendo uma aplicável apenas à União (teto dos gastos) e as demais a todos os entes da Federação (como a Regra de Ouro, a exigência de metas de resultado primário, etc.).

A PEC Emergencial, aprovada na semana passada, introduziu pelo menos mais duas regras fiscais: a) a vedação à concessão de créditos ou garantias pela União a outro ente da Federação, caso as despesas correntes desse ente excedam a 95% das receitas correntes e não seja implementada uma série de medidas de contenção de despesas (sobretudo de pessoal); e b) a definição de que lei complementar introduzirá regras dispondo sobre a sustentabilidade da dívida pública e mecanismos de ajuste caso a trajetória da dívida desvie de parâmetro a ser estabelecido (sendo que a Lei de Responsabilidade Fiscal já prevê limites de endividamento).

Adicionalmente, a PEC Emergencial introduziu também uma regra visando à redução de incentivos e benefícios fiscais da União (que também pode ser entendida como uma regra fiscal), sinalizando a redução de seu montante a 2% do PIB em oito anos. Não se deve, no entanto, esperar muito da aplicação desse dispositivo.

Segundo estimativas da Receita Federal, os benefícios fiscais federais devem alcançar 4% do PIB em 2021. No entanto, os benefícios excepcionados da redução prevista na PEC correspondem a, pelo menos, 1,8% do PIB. Segundo minha leitura do texto da PEC Emergencial, apenas os benefícios não excepcionados (2,2% do PIB, no máximo) teriam de ser reduzidos de forma a caber no limite de 2% do PIB. Mesmo se a leitura for outra, ou seja, de que todos os benefícios têm de caber no limite de 2% do PIB, a PEC obriga apenas o envio de projeto de lei de redução dos incentivos pelo Poder Executivo, mas não sua aprovação.

Por fim, a PEC Emergencial introduz ainda outras medidas de cunho fiscal, como a definição de critério para o acionamento dos mecanismos de ajuste previstos na Emenda Constitucional 95 (teto dos gastos).

Ainda que bem-intencionadas, as novas regras introduzidas pela PEC Emergencial provavelmente contribuirão muito pouco para a melhoria da gestão das finanças públicas do País. O que o Brasil precisa não é de mais regras fiscais, mas sim de parâmetros claros para a aplicação das já existentes e, sobretudo, de regras de melhor qualidade.

Idealmente, boas regras fiscais deveriam garantir a solvência do setor público no longo prazo e, ao mesmo tempo, permitir uma gestão anticíclica da política fiscal, ou seja, estimular a poupança do setor público em tempos de bonança, de forma a permitir gastos mais elevados em períodos de contração econômica.

No Brasil, apenas a regra do teto dos gastos tem um caráter moderadamente anticíclico; todas as demais regras são pró-cíclicas. Em particular, nenhuma regra atual obriga Estados e municípios a pouparem mais em períodos de forte crescimento da receita. Ao contrário, mecanismos de vinculação de receita a despesas e a destinação de parte da receita com royalties de petróleo a Estados e municípios acentuam ainda mais o caráter pró-cíclico das finanças subnacionais.

Se queremos melhorar a qualidade da política fiscal brasileira, não precisamos de mais regras. O que precisamos é de regras mais consistentes e de mecanismos que garantam sua aplicação.

16 de março de 2021

GUERRA NA SÍRIA COMPLETA 10 ANOS E DESTRÓI PERSPECTIVAS DE UMA GERAÇÃO!

(Folha de S.Paulo, 14) O estopim para a guerra da Síria foi uma pichação. Nos muros de um colégio, estudantes escreveram “queremos a queda do regime” e “sua hora vai chegar, doutor”. O doutor era Bashar Al-Assad, ditador do país, e a resposta do governo foi prender e torturar cerca de 15 menores de idade.

Naquele março de 2011, época de Primavera Árabe, a prisão dos jovens gerou uma onda de protestos que clamava por mais direitos e menos autoritarismo. À medida que as manifestações foram se espalhando, a repressão ficava mais brutal. O governo sitiou cidades onde os atos eram mais fortes, e, nos meses seguintes, militares deixaram o Exército para formar milícias contra o governo.

Quinze de março, considerado o dia do início dos protestos, marca o aniversário do conflito. As estimativas de mortos variam. O Observatório Sírio de Direitos Humanos confirmou a morte de ao menos 380 mil pessoas, mas calcula que o número pode ser ainda maior e chegar a quase 600 mil.

Ainda que a situação tenha sido considerada uma guerra civil em 2012, o conflito mexeu com a comunidade internacional. Ao lado de Assad, ficaram Rússia e Irã. Com os opositores, que se dividem em diversos grupos e alimentam disputas internas, Arábia Saudita, Qatar e Turquia.

Para complicar, a partir de 2013 a facção terrorista Estado Islâmico (EI) conseguiu emergir e conquistar uma grande faixa do território sírio, o que atraiu potências do Ocidente para o conflito: uma coalizão liderada pelos EUA fez ataques massivos e apoiou rebeldes, derrotando o grupo jihadista no país.

Assad quase perdeu a guerra, mas a Rússia impediu que sua hora chegasse ao combater os opositores. Hoje, o ditador controla cerca de 60% do território. O conflito esfriou, mas não acabou.

“Nos últimos três anos, houve uma estabilização, mas o país está longe de parar em pé e não tem nem sinal de autoridade efetiva”, avalia Karabekir Akkoyunlu, professor de Relações Internacionais da FGV. “A Síria deixou de ser uma tragédia aguda para ser uma tragédia crônica.”

David Kaelin, coordenador do programa de água e habitação do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) na Síria, afirma que a situação está mais calma no centro e no sul do país, mas os combates seguem ocorrendo no norte. Os desafios humanitários, diz ele, continuam enormes.

Engenheiro, Kaelin trabalha na reconstrução de escolas e redes de água e energia. Ele conta que a infraestrutura do país sofreu com falta de manutenção mesmo onde não houve bombardeios e, “se for tratada assim por mais anos, chegará a um ponto em que não teremos como recuperá-la”.

A falta de profissionais especializados dificulta a reconstrução. Muitos deles deixaram o país, e a guerra atrapalhou a formação de uma geração. Os garotos que picharam o muro em 2011 tinham entre 10 e 15 anos. Os jovens que estão hoje na faixa dos 20 anos viveram seus anos de estudo em meio ao conflito.

“É comum que os refugiados já tenham sido forçados a mudar de lugar quatro ou cinco vezes”, comenta Joel Ghazi, coordenador de operações da ONG Médicos Sem Fronteiras para o noroeste da Síria. “E sem poder estudar direito, como estes jovens vão poder reconstruir o país no futuro?”

A situação também pouco os motiva a ficar. Kaelin, da Cruz Vermelha, diz que conseguir um trabalho em empresas locais é muito difícil, e os engenheiros recém-formados com quem trabalhou querem imigrar.

Levantamento feito pelo instituto Ipsos ouviu 1.400 jovens na Síria, no Líbano e na Alemanha. Deles, 62% tiveram de deixar suas casas devido à guerra, 55% tiveram a formação escolar interrompida e 42% perderam um familiar ou amigo próximo.

Anas Obaid, 32, deixou o país após ser capturado pelo EI e veio morar no Brasil em 2015. Jornalista, trabalhou em São Paulo lavando pratos e, depois, fabricando e vendendo perfumes. A pandemia de Covid-19 atrapalhou seus negócios, mas, para ele, tudo parece mais do mesmo. “É como se estivéssemos há dez anos em quarentena. Sempre há perigo, risco de perder o trabalho e falta de dinheiro”, afirma.

Obaid, que trabalhou em um campo de refugiados no Líbano, usa o tempo de confinamento no Brasil para estudar e escrever um livro sobre sua experiência com a guerra e o refúgio. “Tenho orgulho do nosso povo. Temos o pensamento de não deixar o passado atrapalhar nosso presente. Os jovens sírios chegam com muita vontade de trabalhar e de reconstruir a vida.”

Para os jovens ouvidos pela pesquisa da Ipsos, o maior desejo é o de estabilidade, opção escolhida por 65% dos entrevistados. Planos como formar uma família e voltar a estudar são bem menos citados.

Segundo a ONU, há 6,6 milhões de refugiados sírios espalhados em 130 países, embora a maioria tenha ido para nações vizinhas. Além disso, há mais 6,7 milhões de pessoas deslocadas dentro do próprio país.

De acordo com o Acnur, órgão da ONU para refugiados, cerca de 70% dos que deixam a Síria vivem na pobreza, e há alto risco de que descambem para o trabalho infantil. O casamento de meninas menores de 18 anos também tem crescido. A estimativa da agência é de que sejam necessários US$ 5,8 bilhões para cobrir as carências mínimas dos refugiados em 2021, somando os gastos das organizações que lá atuam.

Em 2020, no entanto, apenas pouco mais da metade do orçamento projetado foi atingido.

“Nessa situação, priorizam-se as coisas mais básicas, como saúde, alimentação e abrigo, e as ações para educação e geração de renda ficam para trás”, diz Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil.

Com as dificuldades de viver como refugiado, muitos tentam voltar para casa, apesar dos riscos. Os pais de Obaid fizeram esse caminho e reencontraram a casa da família, nos arredores de Damasco, destruída.

“Meu pai ficou 40 anos melhorando a casa —e perdeu tudo. Roubaram até o piso. Agora, aos 74 anos, precisa recomeçar. Eles abriram uma loja e estão se virando. Mas meu pai mudou totalmente. Está sempre incomodado, preocupado, com medo de perder tudo de novo”, conta. “Ainda tem um conflito aqui ou ali, alguns morrem, alguns são torturados.”

No último ano, a guerra na Síria teve poucos movimentos significativos além de embates no norte do país, que cessaram após um acordo entre Turquia e Rússia em março de 2020, dias antes de a pandemia paralisar o mundo. Não há números confiáveis, pois falta acesso a testes e a atendimento médico, mas agentes em campo relatam que houve piora na situação do coronavírus no país.

“Se uma família fica doente, muitas vezes só há dinheiro para comprar remédios para uma pessoa, e os outros ficam sem. A inflação alta dificulta as coisas”, aponta Ghazi, da ONG Médicos Sem Fronteiras.

A Síria enfrentou, nos últimos meses, um agravamento da crise econômica. Na sexta (12), US$ 1 comprava 4.000 libras sírias no mercado paralelo, segundo a agência de notícias Reuters. Em junho de 2020, essa cotação era de 1 para 2.500. A crise no vizinho Líbano complicou ainda mais esse panorama. Com a desvalorização, vieram inflação e falta de produtos, incluindo pão e combustível.

O fim da crise é considerado distante, e, para tal, especialistas apontam que os países envolvidos na guerra precisam mudar a forma de agir. “As potências regionais têm a chave para decidir o futuro da Síria, mas não vejo nenhuma urgência por parte delas”, diz o professor Akkoyunlu. Ele avalia que as negociações em torno do acordo nuclear entre Irã e EUA, agora sob a Presidência de Joe Biden, podem incluir alguma mudança modesta de posição de Teerã sobre Damasco.

Um cenário provável é que a Síria se torne um país instável por décadas, como Afeganistão e Iraque, cujos conflitos internos não cessaram mesmo após diversas intervenções estrangeiras. E as demandas dos protestos de 2011, que incluíam menos corrupção e melhores serviços públicos, nunca foram atendidas.

15 de março de 2021

TANGOS!

(Roberto Rodrigues, coordenador do centro de agronegócios da Fundação Getúlio Vargas – O Estado de S.Paulo, 14)

“Si arrastré por este mundo
La verguenza de haver sido
Y el dolor de ya no ser…”

Começa com essa triste estrofe o belíssimo tango Cuesta Abajo, dos célebres Carlos Gardel e Alfredo Le Pera, ambos responsáveis por algumas das mais famosas melodias do cancioneiro portenho. Le Pera foi letrista e Gardel, além de compositor, foi o maior intérprete de tangos de todos os tempos. Sobre a origem de ambos pesam muitas dúvidas.

Há, por exemplo, uma disputa acirrada quanto ao local e data de nascimento de Gardel. Uma versão é de que teria nascido em Toulouse-França, em dezembro de 1890. Outra afirma que a terra natal é Tacuarembó, no Uruguai, na mesma data. Quando provocado a respeito, ele mesmo dizia, esquivo, que tinha nascido em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade.

Já Alfredo Le Pera, que morreu junto com Gardel em acidente aéreo em Medellin-Colômbia em 1935, era paulistano do Bixiga, onde nasceu em 1900, filho de imigrantes italianos. Ainda muito menino, os pais se mudaram para o Uruguai e mais tarde para Buenos Aires.

Jornalista respeitado, escrevia sobre teatro e acabou se aproximando de círculos artísticos. Em 1934 mudou-se para Nova York para trabalhar com Gardel, que havia conhecido em filmagens em Buenos Aires, alguns anos antes. Juntos, criaram tangos clássicos espetaculares, como Cuesta Abajo, El dia que me queiras, Por una cabeza, Silêncio, Mi Buenos Aires querido, Golondrina, Soledad e outras maravilhas que iluminaram os sonhos de gerações de tangueiros apaixonados.

Há quem se engane quando pensa que esse ritmo, mistura de polca europeia, havaneira cubana, candombé uruguaio e de milonga espanhola só é apreciado por antigas gerações. Há movimentos contemporâneos que reavivam o tango, inclusive porque as letras são atuais. Por esse motivo, vale voltar à primeira estrofe de Cuesta Abajo – cuja livre tradução é “se arrastou por esse mundo a vergonha de ter sido e a dor de não ser mais”, e parece um profundo lamento de alguém que se envergonhava por não ter feito o que deveria quando tinha condições para isso e que agora sofria por não poder mais fazer.

Esse lamento deve ser ouvido pelas lideranças globais e nacionais. Todas as que hoje exercem cargos de destaque, não importa onde – na sociedade civil, nos Poderes constituídos, na academia –, precisam fazer o que deve ser feito enquanto podem, para não se arrependerem depois de sua omissão.

Há temas pendentes a este respeito em todas as frentes. O debate deve ser fomentado democraticamente para que decisões sejam tomadas.

A reforma política talvez seja a primeira barreira. Deve acabar a reeleição? Mandatos únicos coincidentes de 5 anos? Voto distrital misto? Redução do número de partidos e das cadeiras nos Legislativos?

A reforma do Estado, separando com clareza o que é governo e o que é Estado? Toda a agenda deve ser discutida porque é de interesse da nação. Não se trata de crítica ao funcionalismo público. Fui secretário de Agricultura em São Paulo e ministro no Brasil e conheci funcionários com grandes qualificações, competentes, dedicados, patriotas, ganhando muito menos do que mereciam e que seriam admirados e respeitados em qualquer empresa privada. O foco é outro: diminuir os gastos públicos.

Privatização é necessidade iminente na mesma direção? Então, tem de ser decidido o que privatizar em qualquer nível, e depressa.

A reforma tributária deve ser considerada em seguida e, felizmente, nosso Parlamento vai se ocupar dessa duríssima tarefa muito em breve.

Há uma questão crucial que efetivamente pode garantir o futuro do País: investimentos maciços em educação, ciência e tecnologia. Não haverá bem-estar social e muito menos riqueza em uma nação que despreze tais agendas. É hora de fazer o que deve ser feito por essas lideranças, para que os pósteros não lhes apontem o dedo acusador de assassinato do futuro.

Já devia ter sido feito no século 20, e não foi. Temos de fazer agora, e acabar com a corrupção ao custo que for, para não ouvirmos neste século 21 a trágica letra de Cambalache, de Discepolo:

“Siglo veinte, cambalache,
Problemático y febril…
El que no llora no mama
Y el que no afana es un gil.”

12 de março de 2021

ENQUANTO ISSO NO CHILE…!

(O Estado de S. Paulo, 10) A rápida vacinação contra covid-19 transformou o Chile aos olhos de investidores e analistas: de patinho feio, na virada do ano, para a estrela da América Latina com perspectiva cada vez mais animadora de crescimento econômico em 2021.

O governo chileno foi agressivo ao se antecipar e fechar contratos de compras de imunizantes contra o coronavírus em quantidades suficientes de vários laboratórios, além de eficiente na logística para garantir uma rápida vacinação.

Resultado: mais de 21% da população já recebeu a primeira dose da vacina, o que coloca o país andino entre os dez que mais vacinaram no mundo. E a meta do governo chileno é que, pelo menos, 80% da população esteja vacinada até junho, o que garantiria a chamada imunidade de rebanho. No Brasil, apenas pouco mais de 4% da população recebeu a primeira dose.

Esse avanço do programa de imunização permitiu ao governo chileno começar a afrouxar mais rapidamente as restrições à mobilidade social, acelerando a reabertura da economia. Diante disso, juntamente com a maior demanda por matérias-primas, como o cobre, do qual o Chile é o maior produtor mundial, vários economistas estão revisando para cima as suas projeções para o crescimento do PIB em 2021.

A consultoria Oxford Economics elevou de 6,1% para 6,4% a estimativa de crescimento do PIB chileno em 2021. O banco Jpmorgan revisou sua previsão de expansão de 5,4% para 5,9%. Tanto a consultoria Pantheon Macroeconomics quanto o banco Itaú BBA projetam um crescimento de 6,5% do PIB chileno neste ano. E, ontem, o FMI passou a prever um crescimento de 6% do PIB chileno em 2021.

É bom lembrar que, em razão do impacto da pandemia de covid, a economia chilena encolheu 6,1% em 2020, mas a recuperação tem sido rápida, com o PIB registrando expansão em sete dos últimos oito meses. Isso foi possível, em boa parte, porque o Congresso aprovou duas rodadas de liberação de saques dos fundos de pensão privados pelos chilenos, em quantia até 10% do patrimônio, o que minimizou o impacto da perda de renda com a pandemia, dando um impulso a setores como o comércio varejista.

Também vale mencionar que o preço do cobre já subiu mais de 15% em 2021, puxado pelo aumento das importações da China, cujo PIB foi o único a registrar crescimento positivo em 2020 entre as maiores economias mundiais. O desempenho do cobre vem limitando as perdas do peso chileno ante o dólar neste ano, em meio à turbulência da disparada das taxas de retorno dos títulos do Tesouro americano. A moeda americana acumula ganho de 3,2% em relação ao peso chileno, de 7,1% ante o peso mexicano e de 13% frente o real brasileiro.

Mas a mudança de humor aconteceu mesmo com o rápido avanço da imunização contra a covid. Uma pesquisa de opinião recente mostrou que 83% dos chilenos consideram o programa de vacinação bom ou muito bom. O índice de aprovação do presidente Sebastian Piñera subiu para 24%, ainda baixo, porém bem acima do seu menor nível, de 9%, registrados antes de a pandemia ter começado e ainda sob o calor dos violentos protestos de massa no país, deflagrados após aumento nos preços dos transportes públicos.

Aliás, era o cenário político que até o fim do ano passado deixava os analistas mais pessimistas em relação à confiança dos investidores sobre o desempenho econômico do Chile em 2021. Como reflexo dos protestos, um referendo autorizou a elaboração de uma nova constituição. No mês que vem, haverá eleição para a formação de uma assembleia constituinte.

O temor era de que a deterioração econômica, em razão da pandemia, poderia ser terreno fértil para a eleição de candidatos mais radicais que pudessem retroceder o caráter liberal e favorável ao ambiente de negócios da atual Carta, além de aumentar o tamanho do Estado.

Outro evento importantíssimo acontecerá em novembro: a eleição presidencial. Piñera, de centro-direita, não poderá concorrer à reeleição. E o medo também era de que candidatos mais à esquerda e considerados radicais pudessem vencer o pleito, levando a uma fuga de investidores.

Esse cenário ainda pode ocorrer. Até porque os protestos contra a desigualdade social estão frescos na memória dos chilenos. Mas a rápida recuperação econômica proporcionada pelo avanço acelerado da vacinação contra a covid reduziu o desconforto dos investidores e analistas com uma possível turbulência gerada pelo calendário eleitoral.

11 de março de 2021

PANDEMIA, ECONOMIA E DEMOCRACIA!

(Ernesto Lozardo – O Estado de S. Paulo, 10) Os efeitos econômicos, sociais e políticos globais da pandemia de covid-19 serão equivalentes aos da 2.ª Guerra Mundial. No mundo, a contaminação atingiu mais de 117 milhões de pessoas e morreram mais de 2,6 milhões. No Brasil, mais de 11 milhões de pessoas foram contaminadas e mais de 268 mil morreram. Esses números são crescentes.

A pandemia mostrou de forma inequívoca que o que era considerado ordem se tornou desordem global. A era do entendimento institucional entre as nações encerrou-se no mandato de Bill Clinton; no governo de Donald Trump, passou-se a ter a política da desconstrução das instituições.

O trato econômico dessa pandemia é desconhecido. Nunca se teve um choque de oferta e demanda junto. A solução está em acabar com a covid-19. Isso depende da ciência, não da economia. No entanto, a pandemia global revelou que o Ocidente está sem liderança aglutinadora que inspire unidade, confiança e respeito à autodeterminação das nações: democracia sem preconceitos. O governo de Joe Biden é uma centelha de esperança.

Essa realidade rúptil da política internacional, somada à crise econômica e às dificuldades de acesso às vacinas, certamente será um obstáculo na retomada do crescimento, dos investimentos e do emprego das nações. Existem mais de 50 vacinas sendo testadas em diferentes laboratórios no mundo. A disponibilidade delas será uma luz para amenizar a inquietude de muitos, mas não materializará a esperança do crescimento sustentável.

A sonhada rápida recuperação econômica do Brasil ficou mais distante por duas razões: a falta de vacinas para imunizar toda a população brasileira e a recente opção política do Executivo de encaminhar ao Congresso Nacional somente projetos que tenham apelo popular. A primeira decorreu do erro político de minimizar o impacto econômico da pandemia e discriminar ideologicamente a origem das vacinas. A segunda é mais grave, pois aumentará a desconfiança dos investidores em relação às reformas fiscal, econômica e administrativa, as quais representam os pilares do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), do emprego e da renda.

No ano passado, muitos países tiveram perda de riqueza. Ao compararmos essa perda em dólar nominal, a brasileira perdeu 25%, sendo a maior perda entre as dez maiores economias do mundo. Isso reflete não o potencial da economia, mas a qualidade da sua governança.

A sociedade entende que governos existem para governar, não para exercer o poder por mero prazer. Há um crescente inconformismo social em relação à gestão das instituições democráticas atual. Isso está ocorrendo em vários países ocidentais. Governantes e políticos têm exercido o poder em benefício próprio, desrespeitando a dignidade econômica dos cidadãos. Acirrou-se a desconfiança das sociedades em relação à representatividade das instituições democráticas. O populismo está se tornando uma força incontrolável, incitando regimes políticos autoritários, fascistas.

Mesmo neste dramático momento, encontramos países, independentemente do regime político, onde as lideranças governam com o respaldo da sociedade, não há populismo, respeitam as recomendações da ciência e apresentam elevado nível de governança econômica. Trata-se do Vietnã, da China, da Coreia do Sul e da Austrália, que saíram da crise pandêmica com rapidez e cujas atividades econômicas retornaram à normalidade.

A pandemia passará, mas deixará um rastro de incertezas políticas e econômicas sem precedentes no Brasil.

10 de março de 2021

AUTOR DA TRILOGIA ‘GETÚLIO’ RELEMBRA HISTÓRIA DOS JUDEUS QUE FUNDARAM RECIFE E NY!

(Reinaldo José Lopes – Folha de S.Paulo, 08) Em 1640, depois de enfrentar anos de controvérsias teológicas e falta de dinheiro em Amsterdã, o erudito judeu Menasseh ben Israel decidiu que era hora de mudar de ares. Mas, para isso, precisava de uma boa oferta de emprego, de preferência como rabino. Tentou obtê-la dedicando o segundo volume de sua obra magna, “O Conciliador”, a correligionários endinheirados numa terra tropical do outro lado do Atlântico.

“Aos nobilíssimos e magníficos srs. David Senior Coronel, Abraão de Mercado, Jacob Mocata, Isaac Castanho e demais senhores de nossa nação, habitantes no Recife de Pernambuco”, escreveu ele. “Tendo eu decidido partir para as distantes latitudes do Brasil, resolvi mandar-vos um sinal de minha erudição e engenho.”

Apesar dos elogios, Menasseh ben Israel não conseguiu o posto de rabino da recém-criada sinagoga do Recife —a honra coube a outro sábio de Amsterdã, Isaac Aboab da Fonseca. Mas a dedicatória ajuda a mostrar como, durante o breve período de dominação holandesa do Nordeste (1630-1654), as zonas açucareiras do Brasil ganharam ares de nova Terra Prometida para a comunidade judaica de língua portuguesa.

Essa diáspora, formada por refugiados e vítimas da Inquisição que, apesar de tudo, ainda relutavam em cortar de vez os laços com seu passado ibérico, é o tema de “Arrancados da Terra”, novo livro do escritor cearense Lira Neto, 57. Deixando de lado a história moderna do Brasil, que abordou em livros como as biografias de Getúlio Vargas e do padre Cícero, o autor mostra como a história de perseguição e resiliência dos judeus lusos se insere num mundo profundamente “globalizado” já no século 17.

“Ao mergulhar nos documentos, ficou muito evidente que, ao contrário do que pode parecer, esse era um mundo profundamente conectado, e os judeus e cristãos-novos [pessoas de origem judaica cujos ancestrais foram convertidos à força ao catolicismo] davam uma contribuição importante à formação desses vínculos globais”, disse o escritor à Folha.

Lira Neto aproveitou a estada em Portugal, onde atualmente faz seu doutorado na Universidade Nova de Lisboa, para dar forma à narrativa a partir dos personagens revelados pela documentação histórica original.

Trata-se, em parte, de um mergulho nas trevas. Registros da Inquisição portuguesa, armazenados na Torre do Tombo e hoje já digitalizados, são a fonte para os primeiros capítulos do livro: a prisão e as torturas sofridas por Gaspar Rodrigues Nunes, cristão-novo que ainda praticava parte dos rituais judaicos. Nunes escapou por um triz de ser queimado vivo e, ao fugir para a Holanda, adotou o nome de Joseph ben Israel, enquanto seu filho mais velho, Manuel, tornou-se Menasseh.

As agruras dos judeus portugueses tinham começado em 1496, quando o rei Dom Manuel I decretou a expulsão deles de seus domínios, numa lei que entraria em vigor no ano seguinte. Manuel promulgou a lei de expulsão para cumprir os termos de sua aliança matrimonial com a Espanha, que havia tomado a mesma medida anos antes —foi o preço que os “Reis Católicos” espanhóis, Fernando e Isabela, cobraram para dar ao lusitano a mão de sua filha.

Parte dos habitantes judaicos do reino conseguiu fugir, em geral para regiões do Mediterrâneo, como a Itália, a Turquia e o norte da África. Mas muitos, sem poder escapar, foram batizados em massa. A nova categoria dos cristãos-novos ou marranos, no entanto, permaneceu sob suspeita por séculos. Houve os que vieram para o Brasil, enquanto outros chegaram à Holanda, que travava uma guerra de independência contra a Espanha e passou a defender a liberdade de consciência em termos de religião, o que atraía a comunidade judaica.

A partir de 1580, o parentesco entre os monarcas lusitanos e espanhóis, e a morte de todos os herdeiros do trono do lado português, fez com que tanto Portugal quanto a Espanha virassem um único reino, a União Ibérica. Isso fez com que a Espanha abocanhasse as possessões lusas no Brasil, mas também as transformou em alvo dos inimigos dos espanhóis nos Países Baixos, muito interessados em arrancar um naco do comércio global do açúcar.

Ao dominar o Nordeste, os holandeses contaram com a colaboração dos judeus de língua portuguesa de Amsterdã, que podiam usar a semelhança de língua e cultura para negociar com os senhores de engenho brasileiros, alguns dos quais também eram cristãos-novos. Um número significativo de israelitas de família lusa —talvez 1.500, segundo as estimativas mais generosas— resolveu cruzar o oceano e se envolveu nas mais diversas atividades, da produção de açúcar e do comércio de escravos ao serviço militar.

Não era algo isento de riscos —quando a União Ibérica terminou, em 1640, os portugueses iniciaram esforços militares para retomar o Nordeste, e judeus capturados nos combates chegaram a ser remetidos, mais uma vez, para os calabouços da Inquisição em Lisboa. Curiosamente, porém, a identidade lusa dos judeus radicados em Amsterdã parecia continuar falando mais alto algumas vezes, fazendo com que ajudassem a mediar os conflitos entre Portugal e Holanda.

“É preciso lembrar que, na península Ibérica, eles viviam nas sombras, sem sinagoga, sem educação judaica, o que gerava traços muito específicos que os diferenciavam dos demais judeus”, explica Lira Neto. “Quando partiam para a Holanda, levavam consigo essa condição de homens divididos, clivados. Tiveram de se reconstituir como ‘judeus novos’, depois de serem cristãos-novos.”

Embora a documentação histórica seja um tanto vaga e contraditória no que diz respeito ao destino de parte desses judeus quando Portugal retomou o Nordeste, o mais provável é que 23 deles tenham desembarcado na América do Norte, em Nova Amsterdam (atual Nova York, então colônia holandesa), dando um início simbólico à comunidade judaica dos atuais EUA.

Uma lápide do século 17 ainda preservada num antigo cemitério de judeus de Nova York traz, com efeito, versos cuja métrica e rima lembram os romances de cordel nordestinos. Essa herança cultural não pode ser negligenciada, diz Lira Neto, ele próprio descendente de um cristão-novo chamado Gonçalo de Lira. “Nos sertões brasileiros temos crenças e tradições cujo sentido original se perdeu, mas que estão ligadas a essa herança.” Tais resquícios estariam, por exemplo, nos rituais fúnebres, como o sepultamento em mortalha (sem caixão), o hábito de colocar pedras sobre o túmulo ou de derramar água do pote de barro caso algum morador da casa tenha morrido.

Para o autor, a situação dos judeus lusos tem ecos claros no presente. “Muitas vezes ainda reproduzimos os mesmos códigos, a mesma linguagem do preconceito, do ódio e do desprezo. Não é uma história que se perdeu no tempo, não se trata de mero antiquarismo ou simples curiosidade.”

09 de março de 2021

CIÊNCIA E RELIGIÃO!

(Leandro Karnal – O Estado de S. Paulo, 07) “A ciência sem a religião é manca, a religião sem a ciência é cega.” A frase é bem construída. Coloca duas afirmações fortes unidas pela ausência (indicada pelo termo “sem”). Ela aponta o vazio irreparável da ideia científica e da religiosa na fala recíproca. O autor? O nome reforça ainda mais o peso da afirmação: Albert Einstein.

Grande parte da história do mundo poderia ser contada como a relação complexa entre ciência e religião. Muitas pessoas invocarão a imagem simbólica de Galileu Galilei (1564-1642) diante do Tribunal do Santo Ofício, obrigado a se retratar oficialmente para não ser queimado. O exemplo do suplício de Giordano Bruno (1548-1600), ocorrido quando o astrônomo de Pisa tinha acabado de completar 36 anos, certamente pairava na memória. Um filósofo, Giordano, queimado em praça pública, torturado, o fogo aceso com sua própria obra: eis uma imagem forte que seduz quando vemos sua estátua no Campo dei Fiori.

Giordano, o inflexível; Galileu, o negociador: ambos são exemplos sempre citados de uma oposição absoluta entre fazer ciência ou ter fé. O escritor Morris West (1916-1999) criou O Herege, reforçando o caráter heroico do dominicano supliciado em Roma. Li na juventude, emocionado, a frase de Giordano olhando para os juízes e dizendo que eles, acusadores, tinham mais medo dele, réu, do que ele temia a seus carrascos. Psicanaliso: West, escritor de best-sellers, tinha uma relação complexa com sua mãe australiana católica, algo que aparece em obras como As Sandálias do Pescador ou O Advogado do Diabo.

A inspiração também atingiu Bertolt Brecht (1898-1956), autor da Vida de Galileu. Anos depois, estudando mais, entendi que Brecht dialogava muito com o nazismo e sua repressão, pois a peça era de 1943 e o dramaturgo estava exilado na Dinamarca. Também no Brasil, Zé Celso, Cláudio Corrêa e Castro, Renato Borghi levaram adiante um Galileu que, com certeza, dialogava com o clima de enfrentamento com a ditadura por aqui.

Críticas possuem história, origem e viés, sempre. Quase toda imagem que vemos de Galileu no Tribunal pertence ao século 19, momento em que o Liberalismo europeu via na Igreja (e no papado de Pio IX) um obstáculo. A Igreja Católica era considerada inimiga mortal da liberdade e da ciência. Sabemos, hoje, que tal proposta é um postulado que pertence mais às formulações de um grupo dos oitocentos do que ao Renascimento. O quadro mais ilustrativo da cena da repressão ao saber livre é o de Cristiano Banti (1824-1904), que mostra Galileu à direita, em pé, segurando sua capa e, a sua frente, um temível dominicano apontando com dedo acusador o trecho de uma obra. A pintura fala pouco do processo do astrônomo e muito da oposição do papado à Unificação Italiana. O mesmo pode ser dito da maioria das gravuras ilustrativas sobre torturas da Inquisição: quase sempre são um documento do Liberalismo e da secularização do século 19.

O caldo de crítica aos poderes (nazismo no caso de Brecht e ditadura militar no caso da encenação da Galileu aqui) mistura a ideia de uma ciência iluminada contra a religião.

Era uma dicotomia insuperável? Giordano Bruno era mais um hermético, ocultista e estudioso das artes da memória do que um cientista iluminado. Um dia, o filósofo de Nola se convertera ao Calvinismo, quando a nova religião parecia útil. Depois, renunciou à nova fé para, curiosamente, tornar-se o mártir da coerência diante do tribunal romano. Ao virar personagem, Giordano Bruno pode encarnar toda a luta contra a censura e o autoritarismo. Ali no local em que ele foi assassinado, todo dia 17 de fevereiro ocorrem discursos pela liberdade de pensamento. Em uma rara praça sem igrejas de Roma, todos olham para a estátua do frade com capuz e olhar triste (estátua, aliás, também feita no século 19 com coleta entre tantos inimigos do papado). Na mesma praça tinha sido erguida uma outra obra durante as agitações da “primavera dos povos” (1848/1849) e, depois, destruída pelo bispo de Roma. Reerguê-la era um sinal contra a memória de Pio IX e contra o papa reinante de 1889: Leão XIII. Durante a ditadura totalitária italiana, para agradar aos cardeais, Mussolini planejou remover a estátua. Ocorreu o inesperado. O filósofo fascista Giovanni Gentile era admirador de Giordano Bruno e pressionou para que Mussolini mantivesse o monumento. Construída duas vezes contra papas e mantida por um fascista, a obra continua lá mostrando que os signos são históricos, sempre, e mutáveis por natureza.

Para que não fiquemos repetindo slogans e ideias românticas, sempre é bom ler muito. A Editora Ideias & Letras traduziu o Cambridge Companion sobre Ciência e Religião. O organizador é Peter Harrison (autor do excepcional The Fall of Man and the Foundations of Science, Cambridge University Press). A obra original é de 2010 e a tradução brasileira é de 2018 (feita por Eduardo Rodrigues da Cruz). Nela, diversos autores analisam o binômio ciência e religião. Big Bang, criacionismo, design inteligente, ateísmo, darwinismo, universidades medievais, filosofia patrística e escolástica, secularização: todos os conceitos tratados por grandes especialistas em um texto claro e muito bom. Recomendo a leitura vivamente. Boa semana para todos.

08 de março de 2021

É HORA DE REINDUSTRIALIZAR!

(Antonio Carlos Pereira – O Estado de S. Paulo, 07) A maior parte da indústria de transformação perdeu peso nas exportações, sustentadas há anos pela agropecuária e pela mineração.

Boas notícias para começar: a produção industrial cresceu 0,4% em janeiro, aumentou 42,3% em nove meses consecutivos de alta e superou com folga a perda de 27,1% acumulada no primeiro grande impacto econômico da pandemia. O volume produzido em janeiro foi 2% superior ao de um ano antes. Os números foram positivos em duas das quatro grandes categorias de produtos, com avanço mensal de 4,5% na fabricação de bens de capital (principalmente máquinas e equipamentos) e de bens de consumo semiduráveis e não duráveis, onde se enquadram alimentos, perfumaria, calçados e produtos de limpeza. A indústria automobilística, uma das mais afetadas pela crise, também continuou em recuperação. O número de veículos, carrocerias e reboques produzidos foi 4,8% maior que o de janeiro de 2020.

A reação, no entanto, continuou perdendo impulso. É preciso dar atenção a isso, mas é necessário buscar algo mais que retomada. É urgente pensar em algo mais ambicioso, um roteiro de reindustrialização.

A reação inicial, depois do tombo de 27,1%, foi vigorosa, com avanços de 8,7% em maio e 9,6% em junho. Depois, foi ficando mais lenta, mês a mês. A evolução do consumo, por enquanto conhecida até dezembro, também foi menos vigorosa nos meses finais de 2020. Isso é atribuível, em parte, à redução do auxílio emergencial a partir de setembro. Além disso, as condições de emprego permaneceram ruins.

A atividade industrial, embora em recuperação, refletiu a insegurança e a maior cautela dos consumidores nessa fase. As dificuldades de milhões de famílias são evidenciadas pelos saques da poupança em janeiro e em fevereiro. O dinheiro armazenado, com muita prudência, durante boa parte de 2020, é agora necessário para despesas inadiáveis. Não há como negar a urgência de uma retomada, embora parcial, do auxílio financeiro às famílias necessitadas.

Não se trata apenas de solidariedade. Sem reforço do consumo, toda a recuperação econômica poderá ser prejudicada. Isso inclui, naturalmente, a criação de empregos. O Brasil fechou 2020 com desocupação de 13,4 milhões de pessoas (13,5% da população ativa) e 31,2 milhões de pessoas subutilizadas (desempregadas, subocupadas por insuficiência de horas ou apenas integradas na força de trabalho potencial).

É preciso levar em conta esses dados para avaliar as condições da recuperação industrial. Além de ter perdido impulso no segundo semestre de 2020, a retomada tem sido desigual. Em janeiro, houve resultados negativos em 14 ramos de atividade industrial, pouco mais de metade dos 26 cobertos pela pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Um ramo ficou estável e os demais cresceram. Nada igual a isso foi observado nos oito meses anteriores de recuperação do setor industrial.

No confronto com janeiro de 2020 o quadro ficou um pouco melhor. Além do aumento geral de 2%, houve maior número de ramos com resultados positivos: 18 dos 26. Além disso, a produção de 57,9% dos 805 produtos pesquisados foi maior que a de um ano antes, embora janeiro deste ano tenha tido 20 dias úteis, dois a menos que os da base de comparação.

A reação da indústria depois do tombo de março-abril deve ser só o começo de um longo retorno a um período de maior dinamismo. Com o resultado de janeiro, a produção industrial ainda foi 12,9% menor que a de maio de 2011, pico da atual série histórica mantida pelo IBGE. Com algumas oscilações, a tendência geral da indústria foi de declínio, ao longo desse período. Além da produção em queda, houve perda de participação no conjunto da economia brasileira e declínio de competitividade, exceto em poucos segmentos. A maior parte da indústria de transformação perdeu peso na composição das exportações, sustentadas há anos pela agropecuária e pela mineração.

Se ainda se encontrar, em Brasília, algum espaço para a definição de estratégias de crescimento e para algo parecido com planejamento, uma das prioridades deverá ser um programa de reindustrialização. Mas nada, no currículo do atual governo, autoriza essa expectativa.

05 de março de 2021

LIVRO DO JORNALISTA ROBERTO SIMON REVELA ATUAÇÃO BRASILEIRA NO REGIME PINOCHET!

(João Luiz Sampaio – Estado de SP, 04) Em setembro de 2013, o jornalista Roberto Simon embarcou em direção ao Chile para acompanhar os eventos ligados aos 40 anos do golpe contra Salvador Allende. Na bagagem, no entanto, levava um objetivo adicional: mergulhar nos documentos da chancelaria chilena que permitissem levantar informações sobre o papel do Brasil no processo e a respeito da relação da ditadura militar brasileira com o regime militar instalado pelo general Augusto Pinochet.

De volta a São Paulo, Simon publicou no Estadão uma série de reportagens que esclareciam episódios pouco claros, envolvidos em mitos que seus textos derrubaram. O governo brasileiro não apenas havia conspirado para a derrubada de Allende, como ofereceu auxílio a Pinochet, trabalhando inclusive na repressão a esquerdistas. E o fez não a mando dos EUA, como se costumava repetir: a presença no Chile atendia uma clara política de Estado preocupada com os caminhos da política no país vizinho.

A partir das pesquisas originais, Simon voltou ao Chile e fez ainda buscas em acervos no Brasil e nos Estados Unidos, como pesquisador do Wilson Center, em Washington. Completou o material documental com depoimentos e entrevistas realizadas com diversos personagens da época. E o resultado sai agora em forma de livro com o lançamento de O Brasil Contra a Democracia: a Ditadura, o Golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul (Companhia das Letras).

“A ideia era lançar o livro dois anos depois, em 2015, mas, a cada porta que se abria, outras cinco apareciam, e era preciso seguir novas trilhas”, conta Simon em entrevista ao Estadão. “No caso brasileiro, boa parte dos documentos desapareceu. O adido militar na embaixada em Santiago, por exemplo, mandava comunicações ao governo brasileiro três vezes por semana e quase não há registros disso no Arquivo Nacional. Em outros casos, foi preciso recorrer à Lei de Acesso à Informação para conseguir documentos. No Chile, muitos papéis referentes aos militares também sumiram, mas na redemocratização eles tiveram a sábia decisão de retirar o sigilo de todos os documentos”, lembra o autor. Já nos Estados Unidos, muitas informações foram conseguidas a partir de pedidos de liberação de documentos até então sigilosos.

Simon entrevistou diversos exilados brasileiros e também figuras então ligadas ao governo e ao Exército nacionais, como um ex-capitão da Força Aérea Brasileira, que pediu para não ter o nome revelado e é identificado no livro como Capitão Pinto. Seu depoimento é um dos elementos a contribuir com a narrativa a respeito de episódios marcantes, como a presença brasileira no Estádio Nacional de Santiago, que se transformou em enorme prisão e centro de repressão e tortura aos inimigos da ditadura chilena.

“A presença de agentes brasileiros no Estádio Nacional era comentada desde os anos 1970 na imprensa americana e europeia, ainda que não tenha aparecido nos jornais brasileiros por conta da censura”, explica Simon. “Mas o que tínhamos sobre isso eram depoimentos e não documentos que comprovassem o que aconteceu naquela época.” Ele, no entanto, descobriu, nos planos de voo do Correio Aéreo Nacional, que os militares usavam para mandar comunicações diplomáticas, um pedido expresso de desembarque em Santiago de um avião sem a lista de passageiros. E a chegada do voo coincide com um telegrama do cônsul brasileiro dizendo ter encontrado cinco oficiais brasileiros no Estádio Nacional, versão corroborada pelo Capitão Pinto.

Política de estado. A narrativa de O Brasil Contra a Democracia começa em 1969, um ano antes da eleição de Allende como presidente do Chile. Com isso, mostra que o Brasil já estava atento à situação política chilena e defendia a ideia de que apenas um golpe seria capaz de derrubar o presidente.

“A ditadura brasileira ajudou a golpear a mais longeva democracia de seu entorno geográfico e, no lugar, instalar um regime cuja sanguinolência e crueldade praticamente não tinham precedentes na América do Sul moderna. Essa intervenção não foi fruto de ações episódicas e autônomas de alguns zelotes dentro da ditadura, mas uma política de Estado, a qual percorria uma cadeia de comando desse a alta burocracia de Brasília até as raízes do sistema”, escreve Simon.

Ele reproduz no livro, por exemplo, um documento do governo americano em que é narrada uma conversa entre os presidentes Richard Nixon e Garrastazu Médici, na qual o brasileiro fala que havia um intercâmbio com oficiais chilenos para a derrubada de Allende. Simon mostra também como Câmara Canto, embaixador brasileiro em Santiago, mantinha contato próximo com as Forças Armadas e diversos setores da sociedade chilena simpáticos ao golpe consumado no dia 11 de setembro de 1973.

Para Simon, havia dois interesses em especial do Brasil na queda do governo. O primeiro era geopolítico: o País temia que a chegada dos socialistas ao poder significasse ameaça direta à segurança nacional. O segundo tinha a ver com o cenário interno: o País temia que a ideia de união da esquerda que levou Allende ao poder pudesse se espalhar pelo continente e que exilados tidos como radicais fizessem do Chile palco do planejamento de uma investida contra o governo militar brasileiro.

Segundo o autor, os documentos jogam por terra a noção de que o Brasil operava não por interesse próprio, mas por determinação americana, reforçada em parte pela própria esquerda. Ele lembra, por exemplo, a declaração do escritor Gabriel García Márquez, segundo quem o Brasil se tornara o “braço direito e armado do neocolonialismo dos Estados Unidos”. “O regime militar brasileiro tinhas suas motivações para intervir no Chile e dispensava ordens de Washington para fazê-lo”, escreve Simon, para quem não houve ação articulada e conjunta entre os países.

“A política anti-Chile dos dois países teve pontos de contato, mas não se entrelaçou, nem mesmo quando Pinochet deu o bote na democracia. Diferentemente do golpe contra Jango em 1964, no Chile de 1973 Washington pôde postergar o reconhecimento oficial da junta militar e deixar os brasileiros tomarem a iniciativa regional”, conclui.

04 de março de 2021

A NECESSÁRIA RESILIÊNCIA E OS APRENDIZADOS EM TRAVESSIAS TORMENTOSAS!

(Paulo Hartung, economista – O Estado de S. Paulo, 02) Todo tempo crítico tem ao menos duas “forças” essenciais: aprendizado e finitude. Não há tormenta que dure para sempre e ela será tanto menos danosa, e o mais breve possível, quanto maior for a nossa resiliência, definida como capacidade de suportar, lidar e reagir positivamente a contextos adversos. No caso de uma dramática crise sanitária, com milhares de mortos por dia e sem horizonte claro de fim, essa é uma tarefa ainda mais desafiante.

Em meio à dor e às perdas impostas pela pandemia, no entanto, o Brasil vem registrando movimentos, especialmente no âmbito da sociedade civil, no sentido de produzir saberes e elaborar aprendizados relativamente à tragédia virótica, até para que possamos sair o mais rapidamente dela e um tanto mais habilitados a, efetivamente, nos recompormos social e economicamente no pós-crise.

Nesse aspecto ontem foi lançado um livro muito especial, reunindo reflexões acerca da experiência de tempos tão críticos no tocante a diversas áreas das políticas públicas. Trata-se da materialização de um esforço que merece ser celebrado como uma contribuição ímpar do olhar racional para extrair aprendizados de um ano dessa crise aqui, no Brasil, e em favor de uma nova história a partir dela, até mesmo com o objetivo para nos preparar para outros enfrentamentos de natureza similar no futuro.

Legado de uma Pandemia: 26 Vozes Discutem o Aprendizado para a Política Pública, organizado por Laura Müller Machado, tem quatro partes, tratando de campos específicos: ordem social, ordem econômica, organização do Estado, política e comunicação. O projeto foi viabilizado pelo Insper e pela Fundação Brava.

Na série de quatro eventos online que marcam o lançamento e a oferta gratuita do ebook, amanhã, participamos como comentarista dos cinco capítulos da parte 3, Legado para a organização do Estado, cujos textos serão apresentados por seus autores na ocasião.

Em O legado para a governança colaborativa, Sandro Cabral discute a necessidade impositiva de governos colaborativos, tanto entre si quanto com as organizações da sociedade civil. Pontua que a colaboração exige persistência e decisão política, preconiza pouca vaidade e requer o exercício genuíno da liderança em meio a enfrentamentos agendados por múltiplos fatores e atores.

Em Covid-19, federalismo e a descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?, Diego Werneck Arguelhes e Natália Pires de Vasconcelos discutem a posição, que consideram pontual, do Supremo Tribunal Federal (STF) de incrementar a competência concorrente de Estados e municípios diante da majoritária jurisprudência de opção pela postura centralizadora e unificadora da Corte.

Marcelo Marchesini da Costa e Gabriela Lotta, em A gestão pública vigilante, expressam que a pandemia trouxe à tona o que chamam de burocracia que se posiciona acerca de decisões das lideranças, seja para enfrentar o que se considera equívoco administrativo-científico, seja para se insurgir contra determinações de possível cunho ideológico. Apesar de apontar os riscos desses comportamentos, que não seriam precípuos da burocracia, o texto sugere que gestões vigilantes podem ser um contrapeso a desmandos.

Em As lições aprendidas com a resposta do sistema de saúde, Francisco Inácio Bastos e Elize Massard da Fonseca pontuam limitações e também ações de alta relevância, em meio a problemas estruturais e fatores políticos perturbadores. Consideram que um dos aspectos mais relevantes da resposta do Brasil à covid-19 foi a capacidade de desenvolver ações de ciência, tecnologia e inovação, permitindo soluções céleres.

Ricardo Paes de Barros e Laura Müller Machado, em A pandemia e o início do fim da invisibilidade, registram que a incapacidade de saber quem são os brasileiros mais empobrecidos e de levar o Estado até eles acabou revelando a invisibilidade de segmentos inteiros da sociedade. Dizem que, para um país que destina 25% do produto interno bruto (PIB) a assegurar direitos sociais, nada justifica a existência de populações sob a escuridão da identidade e o apagão da comunicação com os governos – a não ser uma tendência de manter contingentes à margem das conquistas civilizatórias.

A partir da leitura do livro se incrementa a certeza de que é urgente um esforço amplo de modernização do Brasil, movimento que vai do aprimoramento do pacto federativo, passa pela reforma das estruturas governativas e alcança a desconstrução dos sustentáculos perversos da desigualdade estrutural, que torna inviável qualquer projeto de nação justa, cidadã, inclusiva e sustentável em nosso país.

Esse livro, para além de sedimentar aprendizados valiosos em tempos tão duros, merece ser visto como uma inspiração para novas produções. Afinal, como diz uma das epígrafes da edição, nas palavras de Albert Camus, “a única maneira de lidar com a peste é com decência”, aqui materializada com o melhor da visão de origem científica, o convite à prática da resiliência e da empatia e a valorização imperiosa dos princípios democrático-republicanos a organizar a vida nacional.

03 de março de 2021

SAÍDAS DA CRISE PARA A AMÉRICA LATINA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 01) “Hoje nos encontramos ante um enorme paradoxo: não há dúvida de que a pandemia teve grandes efeitos destrutivos”, constatou o ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento Luis Moreno, “mas também levou a uma enorme aceleração da inovação e da transformação digital.” Para Moreno, “temos duas grandes tendências no mundo de hoje: um movimento rumo a uma economia mais digital e o eixo do mundo, em termos econômicos, cada vez mais orientado para a Ásia”. Neste cenário, quais os desafios da América Latina para a saída da pandemia? A questão serviu de alavanca a um debate entre Moreno e Fernando Henrique Cardoso, promovido pela Fundação FHC.

A pandemia atingiu uma economia latino-americana debilitada. Se em 2020 a economia global encolheu cerca de 3,5% e, em 2021, deve crescer cerca de 5,5%, na América Latina a contração foi de quase 8% e o crescimento deve ser de 3,5%. A dívida pública da região, que no início de 2020 estava em torno de 60%, agora chega a 70%. “Ou seja”, constatou Moreno, “boa parte de todo o estímulo fiscal foi feita com dívida.” E ainda que estes estímulos tenham aliviado momentaneamente a pobreza, ela crescerá – em alguns casos nos níveis de duas décadas atrás.

Some-se a isso o fato de que a transformação do mercado de trabalho promovida pela revolução digital foi acelerada pela pandemia. Estima-se que em oito meses o comércio eletrônico, por exemplo, avançou o equivalente a três ou quatro anos. Mas nos países desenvolvidos o avanço foi maior e menor nas regiões em desenvolvimento, como a América Latina. Segundo Moreno, enquanto nos EUA o comércio eletrônico saltou algo entre 50% e 80%, no Brasil foram cerca de 40% a 50%.

Nestas condições, “não creio que a recuperação será em V, temo que será em U”, constatou FHC. “Será difícil, porque as mudanças na tecnologia produtiva são muito grandes e as pessoas não estão capacitadas para isso.” De resto, sobre o cenário político, FHC pontuou: “O sistema partidário não se deu conta do salto que está se produzindo na consciência das pessoas sobre a política”. Neste estado de desagregação, “pode haver um agravamento do populismo”.

Nem por isso, os latino-americanos imbuídos de espírito cívico podem renunciar à “grande questão”, segundo Moreno: “Como aproveitamos esta crise para gerar mudanças profundas na América Latina?”.

De pronto, há algum esteio econômico com as perspectivas para a exportação agrícola – sobretudo ante o desempenho econômico da China. Mas isso nem de longe será suficiente para um crescimento sustentável e muito menos para “desnaturalizar a desigualdade”, nas palavras de FHC. Ao contrário, sem reformas estruturais do “contrato social”, a desigualdade e, logo, as rupturas sociais podem aumentar.

Entre essas reformas, os debatedores deram especial destaque à educação, um setor no qual o desempenho latino-americano já era ruim antes da pandemia e foi agravado por ela. As taxas de paralisação das escolas na região foram em geral maiores do que nos países desenvolvidos, e o acesso a meios digitais, mais escassos.

A capacitação para novas tecnologias é essencial. Moreno citou alguns casos exemplares de capacitação por parte da iniciativa privada. Contudo, “não há políticas públicas que cheguem a milhões de pessoas”. O avanço “exigirá uma conversa público-privada muito mais profunda”. Analogamente, do ponto de vista político, Moreno citou experiências exitosas de governadores e prefeitos na resolução de problemas imediatos em nível local. Mas, para que esses exemplos se enraízem, ramifiquem e frutifiquem, também será necessária uma educação capaz de fomentar nos latinoamericanos o espírito cívico e forjar lideranças comprometidas com a coisa pública.

Ante a recessão econômica, o desgoverno político e o avanço precário da vacinação na América Latina, a curto prazo “não se pode olhar adiante com muitas expectativas”, disse com franqueza FHC. Mas, a longo prazo, as soluções para a crise econômica, cívica e política da América Latina passam todas pela educação.

02 de março de 2021

A VACINA E O RELÓGIO!

(Luiz Carlos Trabuco Cappi – O Estado de S.Paulo, 01) A expectativa pela vacina desperta um sentimento misto de angústia e esperança, que se mede pelo olhar insistente no passar das horas e dos minutos do relógio. Essa frustração simboliza a situação de milhões de brasileiros, entre eles minha mãe, 94 anos, acamada, que recebeu a primeira dose da vacina no cronograma das autoridades, o tempo possível. Mas, para nós, familiares, essa espera equivaleu ao tempo de um cronômetro eterno.

Incontáveis mães, pais e filhos, de todas as idades e lugares do País, ainda não sabem ao certo quando receberão a imunização. E, a cada dia de incerteza, mais aumenta a sensação de um tempo que não passa.

A percepção é a de estarmos encurralados por essa doença invisível e traiçoeira.

Ainda que o distanciamento social pareça congelar o tempo, com todas as mudanças de hábitos que ele implica, o relógio não para, a pandemia avança e isso nos faz viver na relatividade do tempo.

No ar, há um mistério: qual o motivo de estarmos sofrendo nesse vácuo, quando nossa tradição nos programas de vacinação em massa é funcionar com a precisão e eficiência de um relógio suíço?

Historicamente, a vacinação em massa é expertise do Brasil. O Programa Nacional de Imunizações, criado em 1973, dispõe de mais de 40 mil postos de atendimento e oferece anualmente 300 milhões de doses de cerca de 30 vacinas.

Seria possível retomar a nossa performance histórica a partir dessa base de experiência e conhecimento técnico e científico acumulados. O fundamental, obviamente, é lançar mão de uma boa dose de efetividade comercial na compra de vacinas – e, também, aprovar seu uso de forma rápida.

Talvez seja uma boa sugestão o lançamento de um fast track de bom senso em relação às vacinas produzidas e homologadas por vários laboratórios reconhecidos mundialmente. Em matéria de emergência de saúde pública, o conceito é salvar a vida do maior número de cidadãos brasileiros, no menor tempo possível.

A chance de aproveitar a janela de oportunidade para uma segunda etapa na vacinação é agora. Autoridades de diversas áreas do governo, como equipe econômica e Banco Central, além das lideranças do Congresso, estabeleceram a imunização em massa como prioridade.

As condições objetivas existem. O Brasil tem dois centros de excelência na produção de vacinas – Fiocruz, no Rio de Janeiro, e Butantan, em São Paulo. No segundo semestre, os dois institutos devem inaugurar novas fábricas, capazes de criar também o ingrediente farmacêutico ativo (IFA), necessário para a fabricação das vacinas da Oxford-AstraZeneca e da chinesa Sinovac.

A vacina resolve a crise. No início de fevereiro, Israel identificou uma queda de 41% no número de novos casos de covid-19 em pessoas com mais de 60 anos. Nos Estados Unidos, em meados de fevreiro, o número de casos novos caiu 39% e o de hospitalizações, 28%. O Reino Unido iniciou um processo gradual de flexibilização das regras de distanciamento.

Todos esperam mais eficiência do combate à pandemia. Em primeiro lugar, para barrar o sofrimento da população. Em seguida, para fazer a economia crescer, criar empregos e retomar os investimentos. Imunizar a população é criar condições para o início mais rápido da recuperação plena das atividades econômicas.

Em adendo, teremos a possibilidade de sair dessa crise com uma indústria farmacêutica fortalecida, capaz de produzir vacinas e insumos para fabricação a toda a população brasileira.

Com a soma das reformas constitucionais já em andamento, poderemos oferecer a esta e às futuras gerações a possibilidade de paz, prosperidade e boas oportunidades de emprego e investimento.

Não podemos transformar a justa expectativa pela farta oferta de imunizantes para todos numa exasperante espera de Godot, o salvador que nunca chega.

1º de março de 2021

O IMPACTO DE UM BOM DIRETOR!

(Antônio Gois – O Globo, 22) Dentre os fatores internos à escola, somente os professores superam a importância de um bom diretor para a aprendizagem dos alunos. Esta afirmação é de um influente relatório, publicado em 2004 nos EUA, pelos pesquisadores Kenneth Leithwood, Karen Seashore Louis, Stephen Anderson e Kyla Wahlstrom. A revisão de estudos acadêmicos na época foi financiada pela organização Wallace Foundation, que na semana passada voltou a divulgar um novo documento encomendado a especialistas, sintetizando, a partir de pesquisas publicadas nos últimos 20 anos, o que sabemos sobre como diretores impactam estudantes e suas escolas.

O novo relatório – de autoria dos pesquisadores Jason Grissom, Anna Egalite e Constance Lindsay – confirma o efeito positivo que um bom diretor tem sobre os alunos, mas revela que ele é muito maior do que o estimado há 20 anos, além de não se restringir a resultados de aprendizagem em testes. As ações lideradas por gestores eficazes diminuem a indisciplina, aumentam a frequência dos estudantes, melhoram a satisfação dos professores com seu trabalho e diminui a rotatividade do corpo docente.

Uma das conclusões do relatório divulgado na semana passada é que, ainda que o impacto de um bom diretor seja menor do que o de um professor, é preciso considerar que esse efeito, no caso do gestor escolar, é sentido por todos os alunos de uma escola, e não apenas pelos que estão numa sala de aula.

Esta comparação entre diretores e professores, porém, não deve ser interpretada como se um fosse mais relevante do que o outro, já que uma das ações de maior efetividade de gestores escolares é justamente o apoio ao desenvolvimento dos docentes, ajudando a construir um bom clima para a aprendizagem e facilitando a colaboração profissional entre pares dentro da escola.

Mesmo baseado principalmente na literatura acadêmica anglo-saxã, os resultados são coerentes com achados de estudos no Brasil e na América Latina. As conclusões soam intuitivas e óbvias. Mas, se é assim, por que damos tão pouca atenção a esses profissionais no Brasil?

Dados do Censo Escolar de 2019 revelam que apenas um em cada dez diretores de escolas públicas fizeram curso de formação continuada em gestão escolar com ao menos 80 horas de duração. Na maioria das redes municipais, o critério de seleção para o cargo é a indicação política. Com raras exceções, documentos legais que orientam o que se espera dos diretores no exercício da função parecem feitos para burocratas ou síndicos, e não para lideranças com capacidade de afetar positivamente a comunidade escolar. Por fim, as políticas de apoio são insuficientes e, tal como no caso dos professores, os salários, pouco atrativos.

Um primeiro passo para alterarmos essa realidade é termos clareza do que esperar desses profissionais, de modo que as políticas de formação, seleção e apoio sejam coerentes. Países que mais avançaram nesse tema têm documentos públicos que ajudam a orientar os sistemas. Estudá-los é necessário, mas não adianta copiar, pois qualquer política pública tem que ser aderente aos valores e realidades de cada nação. Por isso é tão importante acompanhar os debates que estão ocorrendo atualmente no Conselho Nacional de Educação, sobre a construção de uma Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar.

26 de fevereiro de 2021

BIOGRAFIA QUE INSPIROU O MUSICAL ‘HAMILTON’ CHEGA AO BRASIL!

(Ubiratan Brasil – O Estado de S.Paulo, 24) A história já se tornou folclórica na Broadway: o ator, rapper e compositor Lin-Manuel Miranda estava de férias em julho de 2008, depois do sucesso de seu musical In the Heights, quando começou a ler uma biografia de Alexander Hamilton (1755-1804), um dos fundadores da política americana, além de ter sido o primeiro secretário do Tesouro da história dos EUA. Antes mesmo de terminar o segundo capítulo do livro com mais de 800 páginas, Miranda começou a pensar na vida de Hamilton como uma série de canções de hip-hop.

Amigos comuns o apresentaram ao autor do livro, Ron Chernow, e, já no ano seguinte, Miranda criara o que viria a ser o número de abertura de Hamilton que, desde sua estreia em 2015, se tornou um dos mais lucrativos musicais da Broadway, faturando US$ 400 milhões apenas na bilheteria. E sua versão filmada concorre em duas categorias no Globo de Ouro, cuja cerimônia ocorre no domingo, 28: melhor filme e melhor ator (Miranda), ambos na categoria de musical ou comédia.

“Na primeira vez que me encontrei com Lin-Manuel Miranda, em 2008, ele me disse que a vida de Hamilton era ‘uma narrativa clássica do hip-hop’ e eu não tinha ideia do que ele estava falando”, contou Chernow ao Estadão. Sua biografia, lançada em 2004, chega agora às livrarias brasileiras e foi responsável pelo descobrimento (especialmente nos EUA) de uma importante figura política que, para muitos, não passava da imagem ostentada na nota americana de US$ 10.

Alexander Hamilton (Intrínseca) é fruto de um meticuloso trabalho de pesquisa, que amenizou a figura do político, apontado por muitos historiadores como um homem arrogante e a serviço dos aristocratas de sua época. Nascido e criado no Caribe, Hamilton presenciou o horror da miséria e da fome até chegar aos Estados Unidos, onde ascendeu de forma espetacular graças a seu talento para assuntos econômicos e políticos.

Logo se tornou o braço direito de George Washington (1732-1799), considerado um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos e seu primeiro presidente. Como primeiro secretário do Tesouro, Hamilton foi decisivo na criação de dois bancos centrais e de diversos sistemas de impostos que deram robustez à economia americana. Pregava o livre-comércio em um mercado dominado por grandes senhores de terra. Figura carismática, exercia ainda forte atração entre as mulheres, o que o tornou protagonista do primeiro escândalo sexual da política americana ao ter um caso extraconjugal. Finalmente, foi morto em um duelo com o vice-presidente Aaron Burr, seu adversário político de décadas. Tinha apenas 49 anos. Sobre o assunto, Chernow respondeu por e-mail às seguintes questões.

Antes de seu livro, a maioria das pessoas sabia duas coisas sobre Alexander Hamilton: ele está na nota de US$ 10 nos Estados Unidos e morreu em um duelo com o vice-presidente Aaron Burr. Que impressão as pessoas teriam de Hamilton agora?

Quando comecei a escrever o livro em 1998, Hamilton estava desaparecendo na obscuridade. Ele era considerado um Pai Fundador de segundo nível, em grande parte esquecido ou malcompreendido. Mas pensei que suas contribuições para a saga de fundação da América – vencer a Guerra da Independência, criar uma Constituição e forjar o governo federal – foram tão monumentais quanto as de qualquer outro fundador. E sua história pessoal era claramente a mais dramática e improvável do que qualquer uma delas.

Por que ele sempre foi retratado como um esnobe feroz, o fantoche dos plutocratas?

Ao implementar seu programa financeiro no início do governo federal, Hamilton trabalhou duro para que a classe mercantil comprasse dívidas do governo – não porque ele quisesse enriquecê-los, mas para que transferissem sua lealdade dos Estados para o novo governo federal. Seus motivos para fazer isso foram malcompreendidos e os estereótipos históricos, uma vez estabelecidos, podem ser muito difíceis de mudar.

Thomas Jefferson, que foi o terceiro presidente americano e principal autor da Declaração de Independência, e Hamilton despontam como os personagens mais fascinantes da biografia. Um era antagonista político do outro. É possível dizer que a América seria diferente se não fosse por esse antagonismo?

O antagonismo pessoal e profissional entre Hamilton e Jefferson, que se originou dentro do gabinete de George Washington, ajudou a definir muitos dos conflitos clássicos da política americana: Estado versus poder federal; uma interpretação estrita versus uma interpretação liberal da Constituição; legislativo versus poder executivo; uma economia agrícola versus uma economia industrial. Tanto Hamilton quanto Jefferson definiram brilhantemente suas posições e seus escritos continuaram a informar e enriquecer nossa compreensão desses conflitos.

Hamilton acreditava fortemente em um governo central, enquanto Jefferson apostava nos direitos dos Estados. Os Estados Unidos de hoje se parecem mais com Jefferson ou Hamilton?

Eu definitivamente acho que os Estados Unidos de hoje se parecem muito mais com a visão de Hamilton do que com a de Jefferson. Jefferson previu um país baseado na agricultura e pequenas cidades. Em contraste, Hamilton tinha uma visão muito mais ampla de uma economia que incluiria a agricultura tradicional, mas também apresentaria bancos, fábricas, bolsas de valores e grandes cidades. Se os dois homens ganhassem vida hoje, Jefferson ficaria chocado, não Hamilton. Ele olharia com conhecimento de causa para Jefferson e diria: “Eu te avisei”.

A sexualidade de Hamilton é, algumas vezes, questionada. Como você o define sexualmente falando?

No livro, especulo que, no início da idade adulta, na época de sua ardente amizade com John Laurens, Hamilton pode ter sido bissexual. É um pouco difícil definir isso porque os homens às vezes escreviam em um estilo muito mais floreado uns para os outros do que hoje em dia. Mais tarde, não há indicação de que Hamilton tivesse qualquer interesse romântico por homens, enquanto sua atração por mulheres era amplamente aparente para muitas pessoas.

O que você pensou quando Lin-Manuel Miranda disse que a história de Hamilton era uma narrativa clássica do hip-hop? Talvez porque Hamilton fosse um homem incansável?

Na primeira vez que me encontrei com Lin-Manuel Miranda, em 2008, ele me disse que a vida de Hamilton era “uma narrativa clássica do hip-hop” e eu não tinha ideia do que ele estava falando. Ele não estava exatamente testando meu conhecimento. Com o tempo, percebi que a música hip-hop funcionou espetacularmente bem para a vida de Hamilton porque ele é apresentado no show como uma personalidade intensa e motivada e isso se encaixa no ritmo pulsante da música. Uma grande inspiração de Lin-Manuel, que sabia quando estava mudando a história e sempre teve uma razão convincente para tal licença dramática.

Na sua opinião, por que o espetáculo se tornou um fenômeno?

Os americanos tendem a ignorar a própria história – talvez isso se aplique a todos os países – e os fundadores em particular pareciam estar distantes, um grupo mofado de velhos com cabelo empoado e sapatos com fivela. O musical sacode a poeira dessas figuras e as apresenta com seu fogo e paixão originais. Usando um som e uma sensibilidade contemporâneos, o espetáculo oferece uma ponte pela qual o público pode cruzar para um passado distante que antes poderia ter sido inacessível para eles. É uma sensação extremamente emocionante.

25 de fevereiro de 2021

PEC EMERGENCIAL CONTÉM GOLPE FATAL NO BNDES!

(Arthur Koblitz – Folha de S.Paulo, 25) A PEC emergencial contém o que pode ser um golpe fatal e final no BNDES.

No seu artigo 4º, inciso 7, a PEC revoga o parágrafo primeiro do artigo 239 da Constituição. O parágrafo revogado estabelece que no mínimo 28% da arrecadação do PIS/Pasep será destinada ao “financiamento de programas de desenvolvimento econômico, por meio do BNDES”.

Até bem recentemente, em 2019, o percentual de repasse era de 40%. Graças a ação decisiva do Congresso Nacional, o percentual foi apenas reduzido, ao invés de ser anulado como gostaria a equipe econômica de Paulo Guedes. Como mostra a PEC emergencial, Guedes continua no encalço do BNDES.

O BNDES aparece na Constituição Federal apenas nesse parágrafo e ele pode ser revogado sem que qualquer discussão de suas consequências seja esboçada: nas justificativas do relator, o BNDES não é sequer mencionado.

Os repasses do FAT são a fonte de financiamento (funding) mais importante para o BNDES. Para entender a gravidade da proposta é preciso compreender o que nunca esteve tão claro: o fim dos repasses constitucionais é o último movimento de uma série que foi planejada para acabar com o BNDES. A arquitetura da destruição foi posta em marcha a partir de 2016. Não há dúvida de que a conjunção dos ataques será fatal.

Em 2016 iniciaram-se as antecipações de pagamento dos empréstimos feitos pelo Tesouro Nacional a partir de 2009, a título de permitir que o BNDES enfrentasse os desdobramentos da crise financeira internacional de 2008.

A antecipação de pagamento determinada pelo governo federal, controlador do BNDES, fere de forma clara a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) nos seus artigos 36 e 37, criados originalmente para impedir o abuso do controle de entes da federação sobre os bancos a eles subordinados, como foi o caso dos bancos estaduais nos anos 1990. Apesar da evidente ilegalidade, a antecipação do pagamento dos empréstimos foi avalizada pelo TCU e continuou ocorrendo sistematicamente desde os primeiros R$ 100 bilhões, em 2016.

A violação da LRF é tão clara que o TCU preferiu recentemente ancorar sua autorização na tese, também muito frágil, de que os empréstimos foram ilegais. Interpretação que desautoriza uma decisão aprovada no Congresso Nacional.

Em seguida à antecipação do pagamento dos empréstimos, em 2017 a competitividade do BNDES e sua capacidade de influenciar a tomada de decisão do setor privado foram fortemente atingidas pela mudança radical na formação da sua taxa de juros base: trocou-se a TJLP (que vigorava desde o Plano Real e era fixada pelo Conselho Monetário Nacional) pela TLP, uma taxa complexa, indexada e determinada pelo comportamento de títulos do governo no mercado financeiro.

No governo federal, depois da resistência de Joaquim Levy ser superada com a nomeação de Gustavo Montezano, iniciou-se a venda acelerada da carteira de ações da BNDESPar, o braço de participação acionária do BNDES. Em jogo, como pode se ver, não uma questão ideológica, mas, talvez, de conhecimento da história brasileira e de experiência. Uma carteira de mais de R$ 100 bilhões está sendo desfeita no meio de uma pandemia sob expectativa geral de valorização de commodities no mundo. Todo “dinheiro deixado na mesa” pelo BNDES, como diz o jargão, engorda bilionariamente o mercado financeiro privado, nacional e internacional. Cinquenta anos de existência da BNDESPar, toda a experiência acumulada, estão indo para o ralo.

Descapitalização, perda de competitividade, destruição de uma carteira responsável por parte considerável da lucratividade do BNDES. Para acabar com o banco só faltava a suspensão dos repasses constitucionais. Silenciosamente, a gestão de Paulo Guedes cumpre sua missão de destruição.

O que está em jogo no Congresso Nacional é acabar com uma instituição como o BNDES sem nenhum plano alternativo, baseando-se apenas na superstição —como apontava Celso Furtado em relação ao discípulo brasileiro de Adam Smith, o Visconde de Cairu— do “deixai fazer, deixai passar, deixai vender”. Haja fé na mão invisível!

24 de fevereiro de 2021

PRECISAMOS ACABAR COM AS BARREIRAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS À PRESENÇA DE MULHERES NA LIDERANÇA DE NEGÓCIOS!

(Ana Carla Abrão, economista e sócia da consultoria Oliver Wyman – O Estado de S. Paulo, 23) Precisamos acabar com as barreiras visíveis e invisíveis à presença de mulheres na liderança de negócios.

Mulheres já se aproximam da metade da força de trabalho ocupada em vários países. No Brasil, somos 52,6% da População em Idade Ativa (PIA) e representamos 43,8% da força de trabalho ocupada, segundo os dados do 1.º trimestre de 2020 da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (Pnad) do IBGE. Mas quando a palavra representatividade é substituída por liderança, os números se embaralham. Numa pesquisa feita pela Oliver Wyman com 3.000 empresas americanas, 47% da força de trabalho dessas empresas são mulheres. Mas apenas 25% dos cargos de liderança são preenchidos por elas. Olhando com uma lupa maior vemos que apenas 12% ocupam posições de chefe de operações ou de vendas, áreas tradicionalmente vinculadas a centros de resultado. Ou seja, a boa notícia é que caminhamos na direção em que o problema deixa de ser de mulheres nos negócios. A má notícia é que ele continua sendo um problema de mulheres na liderança dos negócios.

Por que ficamos presas no meio? O estudo da Oliver vai além dos diagnósticos tradicionais e alerta para a existência de quatro barreiras invisíveis, que tornam o funil mais fino para as mulheres. Primeiramente, mulheres valorizam traços de liderança distintos daqueles abraçados pelos homens. Homens classificam objetividade, decisão e confiança como as principais características de liderança, e nessa ordem. Nós, mulheres, tendemos a identificar na capacidade de empoderamento do time o traço de liderança mais importante. Essa vem seguida de confiança e capacidade de colaboração. Como mulheres são avaliadas e promovidas majoritariamente por homens, a dissonância em relação aos traços mais importantes de liderança acaba por se traduzir em nosso desfavor e nos deixar de fora da linha de sucessão na medida em que o topo se aproxima. Ficamos invisíveis.

Outra barreira aparece no foco. Mulheres colocam mais energia na geração de resultados do que na construção de laços e afinidades no ambiente profissional. Como postos de liderança se confundem com confiança, além de competência ficamos, mais uma vez, fora do campo de escolha nos processos mais altos da hierarquia. Da mesma forma, nossas dificuldades em advogar em causa própria e a tendência cultural de assumirmos a maior parcela das responsabilidades familiares adicionam complexidade e opacidade, reduzindo as alternativas femininas no topo das listas de cargos de liderança. A invisibilidade aqui vem travestida de uma suposta impossibilidade, ou de uma pretensa falta de vontade que mantêm mulheres qualificadas nas franjas das companhias.

Finalmente, para aquelas mulheres que se posicionam e se colocam como alternativas, há os vieses e as micro agressões que acabam por desanimar e cansar. Persistir num mesmo caminho que é ao mesmo tempo tão diferente a depender do seu gênero, é injusto e cansativo. Não são poucas as que desistem.

Falar e ser ouvida. Poder falar. Concluir uma ideia sem ser interrompida. Ser vista, entendida e valorizada pelas suas competências complementares. São inúmeros os estudos que mostram que as mulheres, na tentativa de sair da invisibilidade, são tratadas de forma diferente a que homens em mesma posição seriam. Um desses estudos, focado em seminários de apresentação de trabalhos em Economia, mostra que as mulheres são mais questionadas e as perguntas que recebem tendem a ser mais hostis e marcadas por tons de superioridade. As autoras Pascaline Dupas, Alicia Sasser Modestino, Muriel Niederle, Justin Wolfers, afiliadas a renomadas universidades americanas, celebraram uma parceria com o coletivo Seminar Dynamics Collective no artigo “Gênero e a Dinâmica dos Seminários de Economia” (Gender and the Dynamics of Economics Seminars). Com base em 462 apresentações de trabalhos em departamentos e conferências de Economia de 32 instituições, elas analisaram o número e a frequência de interjeições e a senioridade e gênero de quem intervém e de quem apresenta. As autoras encontram diferenças significativas no tratamento recebidos por homens e mulheres economistas apresentando seus trabalhos. O que nos dá pistas para explicar a baixa representatividade de mulheres em níveis mais altos da profissão.

Não há receita pronta. Mas há atitudes importantes e elas começam por patrocinar – e não mais só mentorar – mulheres hoje invisíveis aos processos de liderança. Por isso mesmo há de se reforçar que precisamos acabar com os vieses conscientes e inconscientes. E com as barreiras visíveis e invisíveis. Num mundo e num Brasil cada vez mais intolerante, mais polarizado e onde a diversidade e as diferenças passaram a ser hostilizadas, os retrocessos são fáceis e os avanços cada vez mais difíceis. Tornar visíveis aquelas e aqueles que são diversos é parte desse avanço. Assim como é parte relevante de resistência aos tantos retrocessos que hoje nos ameaçam.