17 de maio de 2021

O DESMONTE DO CONHECIMENTO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 15) Se em seus primeiros meses o governo federal começou relegando para segundo plano as áreas de ensino, ciência e pesquisa, contingenciando verbas e bloqueando recursos, com o advento da pandemia e da crise econômica por ela deflagrada a situação se agravou ainda mais, tornando-se dramática.

No Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), a redução do orçamento obrigou o órgão a financiar em 2021 somente 13% das 3.080 bolsas de pós-graduação e pós-doutorado que já haviam sido aprovadas. A informação foi divulgada recentemente pelo próprio órgão, deixando a comunidade científica perplexa. Já a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) perderá neste ano quase um terço do que recebeu em 2019. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) também sofreu cortes drásticos, segundo levantamento da Academia Brasileira de Ciências, da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif). Essas entidades também lembraram que o orçamento previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), em 2021, equivale a menos de um terço do que foi repassado uma década atrás.

No ensino superior, as universidades federais enfrentam graves dificuldades para pagar despesas de custeio, como água, energia e segurança, não dispondo também de recursos para manter pesquisas em andamento. Por causa dos cortes, o orçamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) voltou ao patamar de 2008, quando tinha 20 mil alunos. Hoje ela conta com mais de 36 mil alunos, dos quais 8,5 mil são apoiados por programas de ações afirmativas. Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o reitor Marcus David informou que as atividades de ciência e tecnologia estão “acabando” na instituição.

Já na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Reitoria anunciou que o orçamento aprovado para 2021 equivale ao do exercício de 2010 e alegou que a redução de recursos orçamentários, conjugada com contingenciamentos, está levando à “destruição” da instituição. A reitora Denise de Carvalho e o vice-reitor Carlos Rocha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicaram artigo no jornal O Globo alertando para o risco de a instituição “fechar as portas” a partir de julho. “A universidade está sendo inviabilizada”, concluíram.

Outra instituição importante, a Universidade de Brasília (UNB) distribuiu nota lembrando que “a redução crescente dos recursos, associada a bloqueios e contingenciamentos, prejudica a execução do planejamento da instituição. A política de contínua redução orçamentária trouxe dificuldades e desafios nunca antes vivenciados”. Por seu lado, o MEC lamenta a redução dos recursos da rede federal de ensino superior e informa que não tem medido esforços no Ministério da Economia para tentar “uma recomposição e/ou mitigação das reduções orçamentárias das instituições federais de ensino superior” e obtido um repasse que, apesar de pequeno, garante a elas algum fôlego financeiro para os próximos meses.

Independentemente desses esforços, a situação em que as áreas de ensino, ciência e pesquisa se encontram não se deve apenas à crise econômica. Ela trouxe inúmeros problemas, não se pode negar. Mas a verdade é que as dificuldades enfrentadas por essas três áreas decorrem do fato de elas jamais terem sido consideradas prioritárias desde o início de um governo que não sabe o que é planejamento e não tem noção de futuro.

Determinado por razões políticas e ideológicas no início do governo, o desinvestimento no CNPQ, na Capes e nas universidades federais vem, paradoxalmente, ocorrendo no momento em que o Brasil mais necessita de pesquisadores e universidades trabalhando a pleno vapor. Por isso, atribuir a asfixia financeira do ensino, da ciência e da pesquisa às dificuldades econômicas causadas pela pandemia, como as autoridades educacionais vêm fazendo, é mais do que escamotear a verdade. É um crime praticado contra os cidadãos e as futuras gerações.

14 de maio de 2021

O MEDO DE INFLAÇÃO NOS ESTADOS UNIDOS!

(Celso Ming – O Estado de S. Paulo, 13) Há dias grande número de analistas não vinha escondendo sua preocupação com a possibilidade de uma disparada da inflação nos Estados Unidos. Pois nesta quarta-feira saíram as informações sobre o Índice de Preços ao Consumidor (CPI, na sigla em inglês) e a surpresa foi geral: em abril, a inflação dos Estados Unidos subiu 0,8%, de 4,2% em 12 meses, mais do que o dobro dos 2,0% ao ano perseguidos pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano).

Foi o salto de vara mais alto em um único mês para um período de 12 meses nos últimos 12 anos. As projeções eram de inflação em abril em torno de 0,3%. É fato novo que terá impacto não só nos Estados Unidos, mas no mundo.

A reação do mercado financeiro foi imediata: os juros praticados na revenda dos títulos saltaram; as bolsas de Nova York, que já vinham operando em baixa há alguns dias pelo medo da inflação, caíram ainda mais; e o dólar se valorizou diante das outras moedas.

As autoridades do Fed já tentavam desarmar os espíritos com a explicação de que a possível esticada seria devida aos gargalos nas cadeias globais de produção em consequência da pandemia – que paralisou a atividade econômica em muitos países. Com base nesse diagnóstico, a inflação seria temporária. Por não ser produzida por demanda excessiva, o Fed não teria de combatê-la com redução do volume de moeda (alta dos juros).

O mundo dos negócios pareceu insatisfeito com essa explicação e passou a temer pelo fim do ciclo de baixa dos juros. Mesmo que esse aperto monetário aconteça só dentro de alguns meses, todo o mercado, que se baseia em contratos de longo prazo, sentiu a necessidade de fazer ajustes imediatos.

Levaram em conta outras análises: as de que a inflação tem origem menos no aumento dos custos dos suprimentos de materiais, peças e insumos e mais na demanda produzida pela abundância de recursos. Por isso, embora os dirigentes do Fed venham tentando afastar a hipótese do aperto monetário, se persistir essa inflação, acabariam por optar por juros crescentes até o nível que controlasse a alta.

Assim, o primeiro impacto seria na atividade econômica. O crescimento do PIB, que se previa promissor, acabaria por ser mais baixo, embora não seja possível agora uma quantificação dessa quebra. O segundo seria nas aplicações do mercado financeiro. Juros mais altos voltariam a puxar a procura por títulos de renda fixa, especialmente os do Tesouro dos Estados Unidos (treasures). E, na medida em que houvesse redução do volume de recursos no mercado, seria inevitável alguma valorização do dólar. Como tudo o que diz respeito a dinheiro mexe com os bolsos e atiça medos de perda, os mercados levarão alguns dias para avaliar o novo ponto de equilíbrio. Se a perspectiva de alta dos juros persistir, espera-se alguma migração das aplicações financeiras da renda variável para a renda fixa.

13 de maio de 2021

FUTURO ESTÁ NA UNIÃO DA AGENDA SOCIAL COM A AMBIENTAL, AVALIA ADRIANO PIRES!

(Poder 360, 11) Com a realização da reunião Leaders’ Climate Summit, a Cúpula de Líderes sobre o Clima, o presidente Biden cumpriu mais uma promessa da sua campanha e se projeta como uma grande liderança mundial dos próximos anos. A pandemia trouxe para o centro de debate duas questões. A 1ª é a preservação do meio ambiente, chamando a atenção para as consequências graves que podem atingir a humanidade com as mudanças climáticas. A 2ª questão é a concentração de renda: os pobres ficaram miseráveis e os ricos mais ricos.

A preocupação com o meio ambiente tinha perdido um pouco o foco com o negacionismo liderado pelo ex-presidente Trump. Durante o governo Trump, os Estados Unidos abandonaram o Acordo de Paris. Agora, com a eleição de Biden, o país volta com força e com metas mais ambiciosas do que as colocadas no governo Obama.

Um dos focos principais que vão permitir atingir essas metas é o setor de energia. A chamada transição energética até aqui tem tido como grande estrela o gás natural, que é reconhecido como a ponte para uma matriz com emissão zero. O mundo foi e ainda é dominado pelo consumo das fontes fosseis: petróleo e carvão. Uma característica nos últimos 2 séculos foi o monopólio do carvão mineral, que viabilizou a Revolução Industrial inglesa, e o petróleo, grande responsável pela hegemonia política e econômica dos Estados Unidos.

As transições energéticas são lentas. Foi assim com o carvão para o óleo e o próprio crescimento do gás natural na matriz energética mundial. O protagonismo do gás natural na matriz energética mundial tem duas explicações: o fato de ser a energia fóssil mais limpa e o aumento da sua oferta em função da tecnologia da liquefação e do surgimento da produção shale gas (gás de xisto) no mercado norte-americano. Isso possibilitou uma queda no preço do gás, descolando a sua trajetória dos preços do petróleo.

Nos Estados Unidos, o gás substituiu o carvão nas térmicas e agora começa a competir com o diesel como combustível para caminhões, navios e trens. Porém, diferentemente do carvão e do petróleo, o gás não tem e nem terá posição monopolista na oferta de energia. A tendência é termos matrizes cada vez mais diversificadas que aproveitem as vantagens comparativas como produtoras de energia das diferentes regiões do mundo.

Mas porque o gás é a energia da transição? Porque as energias renováveis, como a eólica e a solar, que são as grandes apostas do Plano Biden, têm como característica serem intermitentes e, no curto e médio prazo, vão atingir no máximo 20% da matriz energética mundial. Além disso, com o processo de eletrificação do mundo, um dos desafios será aumentar o consumo per capita de energia dos países mais pobres. Nesse caso a solução são as térmicas, o gás natural e as nucleares. O gás funcionaria como uma espécie de bateria virtual para as renováveis, garantindo a segurança de abastecimento. As baterias capazes de armazenamento hoje ainda são muito caras. A energia nuclear também deve ser a solução na configuração atual em que há a busca pela redução de emissões em prol do clima global, ao tempo em que garante a resiliência do sistema elétrico, que dará suporte ao processo de eletrificação.

Outro fato a ser destacado é que as transições energéticas se darão em tempos distintos nas várias regiões e países do mundo. E isso está diretamente ligado ao nível de renda e ao consumo per capita de energia por região do mundo. O mundo é muito desigual e, nesse contexto, o maior esforço para reduzir as emissões obrigatoriamente tem de vir dos países ricos, que também são os principais emissores. Enquanto o Brasil é responsável por 3% das emissões, os Estados Unidos, 15%, e a China, 28%.

Diante disso, a agenda ambiental precisa andar de mãos dadas com uma agenda que combata e crie soluções para desconcentrar a renda e eleve o consumo per capita de energia para os países mais pobres. Da mesma forma que temos de preservar o meio ambiente, temos de dar uma condição digna e qualidade de vida para todos no planeta. Existe uma correlação direta entre o consumo de energia e a qualidade de vida das populações. A solução ambiental, assim como a de uma melhor distribuição de renda, tem de ser global, precisa atingir a todos. Caso contrário, por melhor que sejam as intenções de diferentes governos, das grandes empresas e dos fundos de investimento, vai crescer o abismo climático –e o social– entre países ricos e pobres.

12 de maio de 2021

OS DESAFIOS DO MULTILATERALISMO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 09) O fato desconcertante sobre o multilateralismo hoje é que o momento em que ele é mais necessário para enfrentar desafios globais, como as mudanças climáticas, a não proliferação nuclear ou a regulação do universo digital, é o momento em que ele está mais debilitado. A pandemia acentuou esta contradição. “O vírus não vê diferenças entre um brasileiro, um americano e um chinês”, disse o pesquisador do Asia Research Institute Kishore Mahbubani. “No passado, 193 países viviam como que em 193 barcos. Se um barco pegasse um vírus, ninguém dava a mínima. Hoje não vivemos em 193 barcos, mas em 193 cabines do mesmo barco.”

Junto com Mahbubani, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais recebeu diplomatas e pesquisadores para debater os desafios do multilateralismo. “Há um chamado renovado para o multilateralismo”, disse a mediadora, Anna Jaguaribe, “mas que não envolve simplesmente um retorno às negociações do passado.” Hoje “falta um consenso sobre se a política multilateral deve ser orientada por valores ou negociada com base em interesses nacionais”.

Considerem-se, por exemplo, os conflitos entre EUA e China que condicionam o universo geopolítico. Pesquisadores como N. Anderson e B. Posen creem que prevalece em Washington uma orientação bipartidária de que a ascensão da China torna imperativa uma hegemonia liberal guiada pela política apta a implementá-la. Henry Kissinger, por sua vez, alega que a política internacional deveria ser guiada por um novo equilíbrio de poder que conjugue competição e cooperação entre as partes.

As negociações deveriam evitar a busca por soluções definitivas.

O seminário ilustrou notavelmente estas visões contrastantes. Mahbubani, por exemplo, se mostrou otimista: nunca a humanidade viveu tal progresso socioeconômico, e isso se deve em boa medida às organizações globais. Para ele, elas devem ser “rejuvenescidas”.

Em oposição, para Richard Haass, do Council of Foreign Relations, as chances de uma “reforma significativa” de organismos desenhados no pósguerra são “essencialmente zero”. Para ele, há um dilema entre organismos amplamente representativos, mas ineficazes (como a Assembleia-Geral da ONU), e blocos regionais menos representativos, mas eficazes (como a Otan ou a UE).

A seu ver, a imobilidade dos organismos globais em conflitos como o genocídio em Ruanda, a guerra nos Balcãs ou a invasão da Ucrânia sugere que, se o multilateralismo tem um futuro, será por meio de algo como um “minilateralismo”.

Seu modelo de “coalizões de vontades” é baseado na experiência federativa norte-americana, na qual os Estados são como que “laboratórios da democracia”, nos quais novas ideias são introduzidas, desenvolvidas e, se bem-sucedidas, adotadas ou adaptadas em nível nacional. “Mais do que ver o multilateralismo como um conceito universal de cima para baixo, devemos pensá-lo em uma perspectiva funcional muito mais flexível, de baixo para cima.”

Esta flexibilidade parece especialmente pertinente quando se pensa, por exemplo, que cerca de 90% das mudanças climáticas são causadas por 15 países, ou quando se consideram os desafios da regulação do ciberespaço ou da saúde global sem o envolvimento direto das Big Techs ou da indústria farmacêutica.

Não obstante, a metáfora do barco único de Mahbubani é incontornável. E a afirmação do ex-chanceler Celso Lafer de que no comércio interconectado contemporâneo é inviável substituir uma instituição como a OMC por entendimentos regionais é irrefutável. O próprio Haass, apesar de seu ceticismo sobre os organismos multilaterais, sugeriu: “deveríamos pensar não em rejuvenescê-los, mas em suplementálos”. Suplementar é bem diferente de descartar.

Tal solução de compromisso sugere que o dilema contemporâneo talvez não seja insolúvel. Talvez a política multilateral, para ser eficaz, tenha de ser construída em blocos, de baixo para cima, com base em interesses nacionais. Mas, para que sejam legítimas, essas negociações devem ser inelutavelmente condicionadas, de cima para baixo, por valores universais.

11 de maio de 2021

EMBATES ENTRE EXECUTIVO E JUDICIÁRIO SE MULTIPLICAM NA AMÉRICA LATINA E PREOCUPAM JURISTAS E ONGS!

(O Globo, 10) Depois da decisão da Assembleia Nacional de El Salvador, de maioria governista, de destituir todos os juízes da Câmara Constitucional da Corte Suprema de Justiça e o procurador-geral, o governo da Argentina redobrou na semana passada os ataques à Corte Suprema de Justiça, que deu aval ao funcionamento presencial das escolas da cidade de Buenos Aires, derrubando um ponto central de recente decreto do presidente Alberto Fernández e se alinhando com a política sanitária do prefeito opositor Horacio Rodríguez Larreta. Para a vice-presidente argentina, Cristina Kirchner, a ação da Corte foi um “golpe institucional”.

Os embates entre os Poderes Executivo e Judiciário em países da região, entre eles o Brasil, preocupam juristas e organizações como a Human Rights Watch (HRW), que observam uma tendência autoritária de governos eleitos. Na visão de José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas da HRW, “não se trata de casos isolados. Pouco a pouco, está se impondo um discurso autoritário, de caudilhos que tentam convencer as sociedades de que devem ter a última palavra”.

— Estão sendo desafiados princípios básicos da democracia nos últimos três séculos, entre eles o da separação de Poderes — enfatiza Vivanco, em entrevista ao GLOBO.

Depois de anunciada a decisão do Supremo argentino sobre as escolas, Fernández afirmou que a resolução refletia a “decrepitude” da Justiça.

— A Justiça causou muito dano, o Estado de Direito precisa de uma institucionalidade adequada. Escolham o candidato a presidente que quiserem, mas não usem as sentenças para favorecer seus candidatos — declarou Fernández, em referência à suposta tendência da corte em favor do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019).

Já Cristina, que enfrenta oito processos por suposta corrupção e nos últimos meses intensificou sua ofensiva contra os tribunais, escreveu em sua conta no Twitter que “está muito claro que os golpes contra as instituições democráticas eleitas pelo voto popular já não são como antes”.

A Associação de Magistrados e Funcionários da Justiça Nacional, o Colégio de Advogados e a ONG Seremos Justiça divulgaram comunicados repudiando a atitude da Casa Rosada. O presidente da Associação de Magistrados, Marcelo Gallo Tagle, disse sentir “profunda preocupação pela sucessão e o estilo de declarações das mais altas autoridades políticas da nação”.

Na opinião de Daniel Sabsay, professor de Direito Constitucional da Universidade Nacional de Buenos Aires, “pela primeira a Corte Suprema tratou de atos de um governo em exercício, de forma constitucional, porque a sociedade está farta desse tipo de decretos e a palavra do presidente perdeu autoridade”.

— A cidade de Buenos Aires é autônoma, está em nossa Constituição. Várias câmaras inferiores deram razão ao chefe de governo portenho, e a corte simplesmente deu a última palavra — explica Sabsay.

O jurista lamenta que a vice-presidente “ataque para tentar garantir sua impunidade”.

— O maior problema de Cristina é que o governo não tem maioria parlamentar para lhe dar proteção e promover, por exemplo, uma ampliação do número de membros da Corte ou alguma outra reforma — diz Sabsay. — A Argentina é mais um exemplo de tentativa de cooptação do Judiciário na região.

A tensão entre Executivo e Judiciário tem se acentuado em vários países latino-americanos. Dirigentes de esquerda e direita questionam as decisões e posicionamentos dos mais altos tribunais de seus países. No México, o presidente de esquerda Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, conseguiu aprovar uma reforma do Judiciário que ampliou o período de mandato do presidente da Corte Suprema, hoje seu aliado, de quatro para seis anos. A oposição considera a reforma inconstitucional.

— Cada vez que a corte faz alguma coisa que AMLO não aprova, o presidente acusa o tribunal de ser neoliberal e corrupto. Os presidentes da região têm um cardápio de ataques a serem usados contra os tribunais — ressalta Vivanco.

Segundo o diretor da HRW, governos como os de Bolsonaro, Fernández e Nayib Bukele, em El Salvador, “usam argumentos fraudulentos para questionar os que colocam pedras em seu caminho” . Para este tipo de líderes, disse Vivanco, “quem ganha uma eleição leva tudo. (Hugo) Chávez foi o grande precursor da tese”.

— As democracias têm uma legitimidade de origem, que é o voto popular, mas também uma legitimidade que deve ser preservada no exercício do poder. Caso contrário, os presidentes viram tiranos.

Ele lembrou que, na Bolívia, 90% dos juízes são provisórios, o que torna o Judiciário dependente dos governos de turno. No Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro voltou a ameaçar o Supremo de baixar um decreto para garantir a circulação de pessoas na pandemia, desautorizando prefeitos e governadores, Vivanco acredita que “a democracia está sólida, em grande medida, pela atuação do STF frente a um governo despótico”.

Na eleição presidencial peruana, também está em debate a independência dos tribunais. Antes do primeiro turno, o candidato de extrema esquerda, Pedro Castillo, que disputará o segundo turno com Keiko Fujimori em 6 de junho, prometeu “desativar o Tribunal Constitucional” e promover a eleição popular de novos juízes e promotores.

10 de maio de 2021

CIDADES INCLUSIVAS!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 08) Na era industrial, o desenvolvimento urbano nas Américas obedeceu a um padrão: crescimento rápido, desordenado e focado no transporte individual. O resultado são as chamadas cidades 3D: distantes, dispersas e desconectadas. Mas, se nos EUA a expansão se deu com subúrbios de baixa densidade ocupados pela classe média, nas cidades brasileiras prevaleceu a segregação de pessoas de baixa renda nas periferias, de onde realizam longos deslocamentos diários em transportes públicos precários para acessar ofertas de emprego, educação, saúde, lazer e serviços nas regiões centrais.

Muitos municípios brasileiros estão em vias de implementar ou revisar seus Planos Diretores. Oportunamente, o Banco Interamericano de Desenvolvimento lançou um guia para a implementação do Desenvolvimento Orientado para o Transporte (DOT).

O DOT envolve a articulação dos componentes urbanos com os sistemas de mobilidade para estimular a concentração de habitações e atividades socioeconômicas próximas aos corredores e estações de transporte público de massa. O objetivo é reverter o modelo 3D para uma cidade 3C: compacta, conectada e coordenada.

Isso implica a redução no tempo dos deslocamentos; a otimização do uso de recursos e serviços; a contenção do crescimento dispersivo; e a redução das emissões de gás carbônico. O modelo DOT envolve tipicamente uma multiplicidade de núcleos adensados e de uso misto, envoltos por áreas de menor densidade. Isso viabiliza um zoneamento equilibrado que promove a habitação socialmente diversa; a interconexão de serviços e atividades produtivas; e um espaço público e verde condizente com os padrões internacionais de bem-estar.

A viabilidade dos projetos de DOT depende da concatenação de 6 linhas estratégicas: i) mecanismos de governança que superem barreiras institucionais e facilitem a cooperação entre setores públicos e privados; ii) marcos legais capazes de viabilizar os projetos; iii) ferramentas que integrem a gestão do solo ao planejamento espacial e às redes de transporte público; iv) instrumentos econômicos e fiscais para mobilizar recursos; v) mecanismos de integração de políticas setoriais e de desenvolvimento urbano; e vi) a verificação e modelagem dos impactos ambientais, sociais e econômicos resultantes de uma intervenção.

A publicação oferece diversos estudos de caso em que estas estratégias foram aplicadas com sucesso. Em Washington, o bairro Noma se destacou pela utilização de formas inovadoras de atração de atores privados para prover sustentabilidade econômica a um projeto DOT. Bilbao, na Espanha, foi um caso particularmente bem sucedido de conjugação de interesses locais com estratégias e instituições regionais e nacionais. Tóquio é um exemplo de revalorização do solo urbano por meio de mecanismos de reajuste de terras e de modelos de financiamento por intermédio de parcerias público-privadas. Em Londres, foi possível reverter uma situação urbana de baixa densidade e degradação em torno da estação de metrô de King’s Cross por meio de um consórcio privado aliado à gestão pública nacional.

No caso de uma federação ampla e heterogênea, como o Brasil, a governança depende crucialmente de uma coordenação de arranjos institucionais e de políticas públicas entre os setores e jurisdições envolvidos. O estudo oferece diversas estratégias de incorporação dos princípios do DOT aos quadros legais. Também oferece novos instrumentos para a operacionalização dos projetos.

Para financiá-los, é necessário aperfeiçoar os mecanismos de arrecadação; implementar instrumentos de recuperação do valor fundiário; e diversificar formas de participação entre investidores públicos e privados. No plano concreto, essas estratégias devem promover a melhoria da rede de transporte coletivo e sua integração com a cidade, concomitantemente com a inibição da circulação de veículos individuais.

Ao confinar os cidadãos em suas casas, a pandemia os separou de sua cidade. Essa introversão forçada é uma oportunidade para repensar um modelo de desenvolvimento urbano 3I: intenso, inteligente e inclusivo.

07 de maio de 2021

REPRESSÃO ESTATAL ENFURECE COLOMBIANOS!

(O Estado de S. Paulo, 05) A repressão aos protestos contra a reforma tributária na Colômbia agravou a revolta contra o presidente Iván Duque, que ontem convocou os diferentes movimentos setores da sociedade para conversar, resolver problemas nacionais e pôr fim à violência. Desde que a onda de manifestações começou, na semana passada, 20 pessoas já morreram e mais de 800 ficaram feridas.

Como um rastilho de pólvora, o movimento ganhou caráter nacional, as reivindicações se ampliaram e agora incluem gritos contra a pobreza, o desemprego e a desigualdade. Ontem, manifestantes tomaram novamente as ruas e montaram bloqueios em rodovias de Bogotá e Cali, a terceira cidade do país e a mais afetada pelos distúrbios. A reforma tributária, apresentada por Duque no dia 15 de abril, previa o aumento de impostos sobre serviços e mercadorias, incluindo a gasolina, e ampliava a base de contribuintes do imposto de renda. A oposição e os críticos do projeto acusaram o governo de sacrificar a classe média em plena pandemia.

Duque defende que uma reforma tributária é necessária para dar estabilidade fiscal, proteger os programas sociais e melhorar as condições de crescimento em razão dos efeitos da pandemia. O objetivo do governo é arrecadar cerca de US$ 6,3 bilhões (R$ 34,43 bilhões) entre 2022 e 2031.

Na segunda-feira, diante da pressão, o ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, renunciou, alegando que “sua continuidade no governo dificultaria a construção de consensos necessários para levar a reforma adiante”. Logo em seguida, o presidente colombiano retirou a proposta do Congresso, mas garantiu que apresentará um outro projeto em breve.

Duque vem definindo as manifestações como “terrorismo urbano de baixa intensidade”. Segundo o jornal El Tiempo, a sistemática e a agressividade dos ataques levaram as autoridades a suspeitarem que existe infiltração de organizações criminosas nos protestos. O ministro da Defesa, Diego Molano, afirma que dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) estão por trás dos excessos em Cali.

Mas à frente das manifestações estão sindicatos, líderes indígenas, organizações civis e estudantes, que exigem uma mudança de rumo do governo conservador de Duque. As mobilizações refletem também o desespero causado pela pandemia, que já matou mais de 75 mil colombianos e infectou quase 3 milhões de pessoas em uma população de 50 milhões.

No ano passado, o PIB da Colômbia teve seu pior desempenho em meio século, caindo 6,8%. Em março, o desemprego subiu para 16,8% e quase metade da população vive hoje na informalidade e na pobreza, de acordo com dados oficiais.

O índice de rejeição a Duque chegou a 60%, segundo o instituto Gallup, o mais alto desde que assumiu o governo, em 2018. A ONU condenou o “uso excessivo da força” na Colômbia. “Estamos profundamente alarmados pelos acontecimentos em Cali”, afirmou Marta Hurtado, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos.

Os EUA recomendaram prudência ao governo colombiano. “Pedimos a máxima moderação às forças públicas para evitar mais perdas de vidas”, afirmou Jalina Porter, porta-voz do Departamento de Estado. “Os cidadãos dos países democráticos têm um direito inquestionável de protestar pacificamente.”

Até Shakira, uma das maiores estrelas da Colômbia, criticou a repressão violenta aos protestos. “É inaceitável que uma mãe perca seu único filho em razão da brutalidade, que outras 18 pessoas tiveram suas vidas tiradas em um protesto pacífico”, escreveu no Twitter.

Os protestos também afetaram o futebol. A Conmebol decidiu ontem suspender dois jogos da Copa Libertadores que seriam realizados na Colômbia esta semana. Independiente Santa Fe e River Plate, em Bogotá, e Atlético Nacional e Argentinos Juniors, em Medellín, serão jogados no Paraguai.

06 de maio de 2021

EXPANSÃO APÓS PANDEMIA – O QUE A HISTÓRIA MOSTRA!

(The Economist/Estado de SP, 04) A pandemia de cólera no início dos anos 1830 atingiu a França com força. Dizimou cerca de 3% dos parisienses em um mês, e os hospitais ficaram lotados de pacientes cujas aflições os médicos não conseguiam compreender. O fim da praga ocasionou uma retomada da economia, e a França seguiu o Reino Unido na revolução industrial. Mas qualquer pessoa que tenha lido Os miseráveis sabe que essa pandemia também contribuiu para um outro tipo de revolução. Mais prejudicados pela doença, os pobres avançaram contra os ricos, que haviam fugido para suas casas de campo para evitar o contágio. A França testemunhou instabilidade política nos anos que se seguiram.

Hoje, mesmo com a covid-19 devastando países mais pobres, a parte rica do mundo está à margem de um boom pós-pandemia. Governos estão suspendendo impedimentos à circulação das pessoas à medida que as vacinações reduzem a quantidade de hospitalizações e mortes decorrentes do vírus. Muitos analistas preveem que a economia dos Estados Unidos crescerá mais de 6% este ano, ao menos quatro pontos porcentuais mais rapidamente do que no período pré-pandemia.

Outros países também tendem a um crescimento rápido e incomum. A situação é tão inusitada que economistas estão se voltando à história para saber o que esperar. Os registros sugerem que, após períodos de grandes perturbações não financeiras, como guerras e pandemias, o PIBretorna aos níveis anteriores. Primeiro, ainda que as pessoas queiram sair de casa e gastar dinheiro, a incerteza persiste. Depois, as crises encorajam as pessoas a encontrar novas maneiras de fazer as coisas, o que apruma a estrutura da economia. E, finalmente, conforme demonstram Os miseráveis, a agitação política frequentemente se segue, com consequências imprevisíveis para a economia.

Comecemos pensando no gasto dos consumidores. Registros de pandemias anteriores sugerem que, durante as fases agudas, as pessoas se comportam da mesma maneira que se comportaram no ano passado em relação à covid-19, economizando dinheiro à medida que as oportunidades de gastar se esvaem. Na primeira metade da década de 1870, durante um surto de varíola, a taxa de poupança nos lares britânicos dobrou. A taxa de poupança no Japão mais que dobrou durante a 1.ª Guerra. Em 1919 e 1920, quando a gripe espanhola se disseminou, os americanos guardaram mais dinheiro no colchão do que em qualquer outro ano até a 2.ª Guerra.

A história também oferece um guia a respeito do que as pessoas fazem uma vez que as coisas voltam ao normal. Elas gastam mais, o que ocasiona uma recuperação no emprego, mas não há muita evidência de excessos. A noção de que as pessoas celebraram o fim da peste negra com “fornicação selvagem” e “regozijo histérico”, como supõem alguns historiadores, é (provavelmente) apócrifa. Um estudo recente do banco Goldman Sachs estima que, entre 1946 e 1949, os consumidores americanos gastaram somente cerca de 20% do que pouparam. Esses gastos extras certamente contribuíram para o boom do pós-guerra, apesar de os boletins mensais de “situação econômica” do governo a partir da segunda metade da década de 1940 estarem repletos de preocupações a respeito de uma iminente desaceleração (e a economia de fato entrou em recessão entre 1948 e 1949).

A segunda grande lição dos booms pós-pandemias é relacionada ao “lado da oferta” na economia – maneiras e locais de produção de mercadorias e serviços. Apesar de as pessoas parecem menos propensas a frivolidades após uma pandemia, algumas podem ficar mais dispostas a tentar novas maneiras de ganhar dinheiro. Historiadores acreditam que a peste negra conferiu mais ousadia aos europeus. Embarcar em um navio a vela para desbravar novas terras parecia menos arriscado quando tantas pessoas morriam em suas casas. De fato, um estudo do Escritório Nacional de Pesquisa Econômica dos EUA publicado em 1948 constatou que o número de novas empresas explodiu a partir de 1919.

Outros economistas estabelecem ligação entre pandemias e uma outra alteração no lado da oferta na economia: o uso de tecnologia que prescinde de mão de obra. Chefes podem querer limitar a disseminação da doença, e robôs não adoecem. Um estudo do FMI analisa vários surtos recentes de doenças, incluindo ebola e Sars, e constata que “pandemias aceleram a adoção de robôs, especialmente quando o impacto na saúde é severo e é associado a uma queda significativa na economia”.

Se a automação rouba ou não o emprego das pessoas, porém, é outra questão. Algumas pesquisas sugerem que os trabalhadores, na verdade, se beneficiam após as pandemias. Um estudo do Federal Reserve Bank de São Francisco constata que as remunerações reais tendem a aumentar. Em alguns casos, isso ocorre por meio de um macabro mecanismo: a doença mata trabalhadores, deixando os sobreviventes em uma posição melhor para negociar o valor dos salários.

Em outros casos, porém, aumentos nos ganhos são produto de mudanças políticas: a terceira grande lição dos booms históricos. Quando grande parte da população sofre, a iniciativa política se volta para os trabalhadores. É o que parece estar acontecendo: formuladores de políticas de todo o mundo estão mais interessados em diminuir o desemprego do que em reduzir dívida pública ou evitar inflação. Um novo estudo de três acadêmicos da London School of Economics também constata que a covid tornou os habitantes da Europa mais avessos à desigualdade.

Em alguns casos, tais pressões detonaram a desordem política. Pandemias evidenciam e acentuam desigualdades preexistentes, fazendo com que os menos favorecidos busquem reparação. Uma pesquisa recente do FMI leva em conta o efeito de cinco pandemias, incluindo ebola, sars e zika, em 133 países desde 2001. E constata que elas ocasionaram um aumento na agitação social.

“É razoável esperar que, quando a pandemia desaparecer, a agitação volte a emergir em localidades onde existia anteriormente”, escrevem pesquisadores em um outro estudo do FMI. As agitações sociais parecem atingir picos dois anos após o fim das pandemias. Aproveite o próximo boom enquanto ele durar. Em breve poderá haver uma reviravolta na história.

05 de maio de 2021

A REFORMA TRIBUTÁRIA DE ADAM SMITH!

(Rodrigo K. Spada e Jefferson Valentin, presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais e agente fiscal de Rendas do Estado de São Paulo – O Estado de S. Paulo, 04) “É necessário que todo imposto seja planejado de tal modo que as pessoas paguem ou desembolsem o mínimo possível além do que se recolhe ao tesouro público do Estado.” Adam Smith publicou essa máxima em 1776, que repetida por Ricardo e Stuart Mill, entre outros, ganhou uma obviedade tal que não há, hoje, voz que contra ela se levante.

Mas no Brasil atual, quase 250 anos depois, ainda é tempo de discutir o óbvio.

A necessidade de redução do tamanho do Estado, convicção que sempre esteve presente por aqui, intensificada nos últimos anos, encontra, na prática, duas formas de se viabilizar: deixar de prestar determinado serviço público ou prestar o serviço público com maior eficiência, otimizando os recursos disponíveis.

Por se tratar de atividade incontestavelmente essencial ao Estado, o Fisco só pode dispor da segunda opção.

Quando se discute reforma tributária, muito se ouve sobre a necessidade de redução dos custos de compliance para que se possa aumentar a competitividade das empresas, custos esses majorados pela complexidade das normas tributárias no Brasil.

Mas pouco se discute sobre o custo que tem o Estado (o contribuinte) para manter o enforcement compatível com esse nível de complexidade e o quanto isso dificulta a tarefa do Fisco na prestação dos serviços que lhe são pertinentes: garantir arrecadação, combater a sonegação, evitar a concorrência desleal, etc.

Pouco se discute, ainda, sobre a possibilidade da adoção de medidas de enforcement que levariam a um maior nível de conformidade de todos. Algumas medidas poderiam ser discutidas, tais como: endurecimento da pena para sonegação fiscal; execução fiscal administrativa; redução de níveis de contencioso (administrativo e judicial), criação de instrumentos mais eficientes de combate à fraude estruturada, como, por exemplo, whistleblower (cidadão que faz denúncia de ilícitos tributários e recebe um porcentual dos valores recuperados), entre outras, certamente resultariam numa resposta social no sentido da conformidade e, consequentemente, na necessidade de um aparato estatal menor, com custo menor para a sociedade.

Há poucos dias foi divulgada uma carta aberta assinada pelos representantes das Administrações Tributárias dos Estados – Comsefaz, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), a Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), além de organizações da academia e da sociedade civil, para tentar convencer o Congresso Nacional, mas, sobretudo, o setor privado, a lutar por uma reforma tributária que traga simplificação para a matriz tributária brasileira, o que resultaria, sem sobra de dúvidas, em redução dos custos de compliance tanto para o setor produtivo quanto para os governos em geral.

Mas, se os próprios Estados e municípios, outrora tão refratários, e os próprios servidores públicos, operadores da máquina arrecadatória, clamam por uma reforma tributária simplificadora, por que ela simplesmente não acontece?

Simplesmente porque o tão propagado “manicômio tributário” não é prejudicial a todos. Há muitos setores econômicos que são extremamente beneficiados por esta complexidade e pela consequente ineficiência do aparato estatal. Essa complexidade permite esconder todo tipo de privilégio fiscal que, por sua vez, contraria outro princípio escrito por Adam Smith, o da capacidade contributiva, que diz que cada um deve ser tributado “proporcionalmente às suas respectivas capacidades”.

A atual organização tributária é, antes de tudo, resultado da cooptação do Estado por setores do poder econômico que, nas palavras do filósofo britânico, são “classes de homens cujo interesse nunca coincide exatamente com o público”.

04 de maio de 2021

A CLASSE MÉDIA E O CENTRO POLÍTICO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 03) Estudos têm constatado haver significativa redução da classe média, com mais famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, em razão da crise social e econômica que já existia no País e se agravou durante a pandemia de covid19. Segundo o Instituto Locomotiva, a partir dos dados do IBGE, 4,9 milhões de pessoas saíram da classe média no último ano. Com isso, pela primeira vez em dez anos, o estrato social intermediário passou a representar menos da metade da população brasileira.

Com uma resposta lenta, desorganizada e insuficiente – quando não claramente negacionista –, o governo federal foi incapaz de proteger a população dos efeitos sociais e econômicos da pandemia. Sintoma especialmente dramático dessa disfuncionalidade do Palácio do Planalto é o aumento da fome.

A diminuição da classe média tem notórias consequências sociais e econômicas. Por exemplo, com a diminuição de renda familiar e o aumento do desemprego, mais jovens estão em situação de vulnerabilidade social. Houve aumento da evasão escolar.

É comum falar que a pandemia de covid-19 trouxe um cenário de acentuadas incertezas. No entanto, para muitas pessoas, o futuro não está apenas mais incerto. Ele está inexoravelmente mais penoso e mais limitado.

A redução da classe média tem também importantes efeitos econômicos. Com mais pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, a recuperação econômica do País torna-se necessariamente mais lenta, em razão, por exemplo, do endividamento das famílias e da redução do consumo.

Como tem sido lembrado pela OCDE, uma classe média próspera é decisiva para a economia e para a coesão social de um país. A classe média sustenta o consumo e a arrecadação de impostos – viabilizando, por exemplo, as políticas públicas de proteção social – e impulsiona o investimento em áreas fundamentais, como educação, saúde e moradia.

A diminuição de pessoas no estrato social intermediário produz também importantes efeitos políticos. O aumento da vulnerabilidade social e econômica contribui para uma maior adesão a propostas populistas, que, sem enfrentarem a causa dos problemas, prometem soluções fáceis, rápidas e inviáveis.

O quadro é de enorme perversidade. De alguma forma, a ineficiência do governo populista – que, se esquivando de fazer as reformas, não promove o desenvolvimento social – faz com que parte da população se torne (em razão da vulnerabilidade social e econômica) ainda mais refém desse mesmo governo, ou de sua antítese ideológica, igualmente populista.

Além das dificuldades sociais e econômicas, a redução da classe média representa, assim, um especial desafio político para o País. De forma muito concreta, o encolhimento do estrato social intermediário traz dificuldades adicionais para a viabilidade política de um candidato de centro à Presidência da República em 2022.

Vale ressaltar que o encolhimento da classe média não é um fenômeno que se iniciou agora, tampouco está restrito ao Brasil. Por exemplo, a redução do estrato médio tem sido observada na maioria dos países da OCDE. As novas gerações têm encontrado mais dificuldades para alcançar a renda da classe média, definida pela OCDE como os rendimentos entre 75% e 200% da renda nacional média. Na geração dos baby boomers, quase 70% das pessoas na faixa dos 20 anos pertenciam à classe média. Na geração dos millennials, esse porcentual é de 60%.

No entanto – e aqui está o quadro especialmente desafiador para o Brasil –, a pandemia de covid-19, junto ao despreparo e ineficiência do governo de federal, tem acelerado esse processo de encolhimento da classe média. Há mais famílias pobres. Há mais pessoas vulneráveis.

Mais do que induzir a paralisias, essa situação desafiadora clama por uma urgente e especial responsabilidade para com o País. Não cabe assistir passivamente ao empobrecimento da população e, consequentemente, à sua subjugação a manobras populistas. Uma proposta política viável de centro deve contemplar, de forma muito realista, a defesa e o fortalecimento da classe média.

03 de maio de 2021

NOVOS TEMPOS, VELHAS PRÁTICAS!

(Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura – Estado de S. Paulo, 01) No mercado existem, basicamente, três tipos de empresa: as privadas, as estatais e as de capital misto. No Brasil com a nossa tradição de grande participação do Estado na economia sempre tivemos empresas de capital misto em importantes setores da economia. As mais conhecidas talvez sejam a Petrobrás e a Eletrobrás. Empresas de economia mista são criadas na tentativa de o Estado participar como acionista em segmentos denominados como estratégicos e ao mesmo tempo garantir na administração da empresa a eficiência do setor privado. Conciliar esses dois quesitos é muito difícil, em particular, em países que, como o Brasil, não resistem à tentação de intervir na economia.

A trajetória das empresas de economia mista não tem sido das melhores no Brasil. Ao longo do tempo se verifica em quase todos os governos, com intensidades diferentes, o uso dessas empresas para as chamadas práticas populistas. Ora para combater a inflação, ora para ajudar os amigos do governo de plantão, políticos e empresários. No final essas empresas, que possuem como sócios toda a sociedade, representada pela União, e são criadas para gerar dividendos que deveriam ser utilizados em benefícios de todos, acabam por atender a objetivos específicos do governo de plantão. A maneira mais usual de intervir nas empresas de economia mista tem sido por meio dos preços.

No setor de energia, não faltam exemplos. Entre 2011 e 2014, a intervenção do governo Dilma na política de preços da Petrobrás causou um rombo no caixa de algo como US$ 40 bilhões e uma multa de US$ 3 bilhões dada pela Suprema Corte Americana. Mais uma dívida de US$ 100 bilhões e o escândalo do Petrolão.

A Eletrobrás até hoje sofre efeitos da Lei 12.783/2013, oriunda da conhecida MP 579/2012, que causou enormes prejuízos a seus acionistas. Na ocasião, a lei obrigou as empresas de geração e transmissão, em particular a Eletrobrás, a anteciparem a renovação de suas concessões condicionadas à redução de 20% nas tarifas de eletricidade. Também penalizou os consumidores. Ao reduzir as tarifas de forma artificial, deu um sinal econômico de abundância de recursos hídricos e isso levou a baixos níveis dos reservatórios das hidrelétricas, que não se recuperaram até hoje, o que vem exigindo um despacho de térmicas fora da ordem econômica. Isso quase quebrou a Eletrobrás, causando um rombo de R$ 100 bilhões pagos até hoje pelos consumidores e o tarifaço de 2015.

O temor do mercado é pela volta da velha prática de tratar as empresas de economia mista como se fossem totalmente estatais e as políticas criativas dos preços da energia. Isso pode ser turbinado pela antecipação do calendário eleitoral, com a elegibilidade do ex-presidente Lula. O primeiro sinal da volta das velhas práticas foi o processo de indicação dos novos presidentes da Petrobrás e da Eletrobrás, passando por cima da governança e dos Conselhos de Administração das empresas. No quesito preço dos combustíveis, o presidente da Petrobrás foi demitido porque o presidente Bolsonaro achou inadmissível os aumentos da gasolina, do diesel e do botijão de gás feitos nos primeiros meses de 2021. Parece que o governo não gosta que a Petrobrás dê lucro. Para evitar aumento de dois dígitos nas tarifas, a Aneel já anunciou uma série de medidas para a redução das tarifas que somam R$ 18,8 bilhões, permitindo que os reajustes de 2021 caiam de 18,2% para 8,5%. O gás natural vai ter um aumento dado pela Petrobrás de 39% a partir do início de maio. Vamos aguardar o que será feito de criatividade para evitar novos aumentos do gás natural. O novo presidente da Petrobrás no discurso de posse falou que vai tomar medidas para reduzir a volatilidade dos preços dos combustíveis, dar previsibilidade e conciliar os interesses dos acionistas com o dos consumidores. Será que ele possui o cálice do Santo Graal?

Tudo isso nos leva a dois comentários. O primeiro é que a tentação da intervenção, o pouco apreço ao lucro e a dificuldade de separar os interesses do governo acionista do governo preocupado com a sociedade mostram a impossibilidade da existência de empresas de economia mista no Brasil. O segundo é que entra governo, sai governo e ficamos armando e desarmando bombas-relógio.

30 de abril de 2021

HORTA GIGANTE COMPLEMENTA REFEIÇÃO DE 800 FAMÍLIAS EM FAVELA DO RIO NA PANDEMIA!

(Folha de S.Paulo, 29) Ezequiel Dias, 44, coloca meia dúzia de trouxinhas de coentro, maços de cebolinha e outros temperos no carrinho de mão e sai pelas vielas anunciando a promoção. É grátis, um oferecimento da enorme horta comunitária que corta parte do bairro.

A longa faixa verde encravada no mar de casas cinzas ocupa um território equivalente a quatro campos oficiais de futebol, rendendo duas toneladas de comida por mês.

No último ano, quase tudo que sai dali tem ido para as cozinhas da comunidade, complementando as refeições de cerca de 800 famílias que atravessam a onda de desemprego gerada pela pandemia.

É a celebrada horta de Manguinhos, favela na zona norte do Rio de Janeiro que fica ao lado da fábrica de Bio-Manguinhos, onde a Fiocruz produz uma das vacinas contra o coronavírus que estão sendo distribuídas pelo país.

Foi no quintal da fundação que Ezequiel aprendeu a ser jardineiro. Trabalhou ali por 15 anos antes de ficar desempregado por outros 5. Agora, ele coordena a plantação comunitária.

“Tem pessoas que não estão tendo de onde tirar [dinheiro]. Tem senhora que nem pede; vem e já começa a colher um coentro para botar numa sopa. A gente está aqui para abraçar a nossa comunidade, que é nossa família”, diz ele.

Antes, o terreno abrigava uma grande cracolândia onde circulavam cerca de 200 a 300 usuários de drogas, contam os moradores. Ratos, baratas e tapurus —larvas que entram na pele— eram outros habitantes do lixão. Hoje, as crianças brincam no local.

A horta foi criada em 2013, após a chegada da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), mas faz parte de um programa municipal que já existe desde 2006, na gestão do ex-prefeito Cesar Maia (DEM): o Hortas Cariocas, que tem como foco a segurança alimentar.

No ano passado, a ONU incluiu o projeto na lista de ações consideradas essenciais para alcançar os seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. São 49 plantações espalhadas pela cidade, 25 em escolas e 24 em comunidades, somando 3.720 canteiros, 24 hectares e mais de 80 toneladas colhidas por ano.

Funciona como uma incubadora de empresas, na analogia do idealizador do projeto, o engenheiro agrônomo Julio Cesar Barros. A Secretaria de Meio Ambiente encontra comunidades onde já há uma articulação local sobre hortas e investe com apoio técnico, insumos e bolsas aos hortelãos.

Empregabilidade e autoestima são dois dos pilares. A ideia é que uma hora essas plantações se tornem autossustentáveis e se emancipem da prefeitura, diz Julio. “O que move o projeto é o resultado, a produção, não é um programa assistencialista”, defende.

Antes da pandemia, metade das hortaliças colhidas era dada para famílias em situação de insegurança alimentar, asilos ou creches e a outra metade era vendida. Agora, tudo vem sendo doado.

Em Manguinhos, Ezequiel repete que o sobrenome do projeto é “resgatar vidas” e que a sua foi a primeira a ser resgatada. Depois, veio a hortelã Sani Cristina dos Santos, 38, que viu o filho adolescente morrer de infarto em seu colo e encontrou na horta uma forma de seguir em frente.

Juntou-se ainda sua mãe, dona Luiza, que tinha pressão alta, diabetes e uma rotina desmotivada, e também achou na plantação uma razão para acordar. Por fim, chegou Leonardo Ferreira, 24, que largou quatro anos de tráfico de drogas para se dedicar às mudas.

Começou no crime cedo, aos 12 ou 13 anos, e decidiu sair dessa vida “desesperadora” depois que nasceram suas duas filhas, com a sobrinha de Ezequiel. “Hoje, só quero plantar o bem para colher o bem”, diz.

Eles integram a equipe de 21 pessoas que zela pela horta do bairro. Cada hortelão ganha uma bolsa de R$ 500 mensais, e a maioria faz outros trabalhos para sustentar a família.

Mas nem tudo é tão fértil. A rotina de operações e tiroteios às vezes paralisa o trabalho na terra, apesar de a situação estar mais calma após a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu ações das polícias na pandemia, segundo moradores.

A plantação fica ao lado de uma avenida apelidada de Faixa de Gaza, por causa dos frequentes confrontos entre traficantes e policiais, e à tarde as bocas de fumo se espalham pela favela.

Outro desafio do Hortas Cariocas são as plantações que “não vingam”. “Normalmente elas são fechadas por falta de resultado e de motivação da equipe. Às vezes as pessoas acham que é um cabidão de empregos”, afirma o agrônomo Julio Barros.

O programa também passa por um momento turbulento com a troca de gestão na prefeitura, agora com Eduardo Paes (DEM). Um contrato de R$ 95 mil mensais que previa três engenheiros agrônomos, alguns técnicos e caminhões terceirizados para transportar insumos se encerrou em fevereiro, o que fez faltar adubo e causou o descarte de milhares de mudas para as galinhas.

O Movimento Baía Viva pediu nesta semana que o Ministério Público apure um suposto “desmonte do projeto”, o que o secretário de Meio Ambiente, Eduardo Cavaliere, nega. Ele afirma que o contrato era de 2018, sendo que o programa existe há 15 anos, e que seu fim não gerou qualquer impacto nas hortas e foi apenas uma mudança operacional.

Cavaliere argumenta ainda que profissionais e veículos da própria prefeitura suprirão a demanda e que a intenção da nova administração é reduzir os serviços terceirizados. Também acrescenta que o orçamento previsto para o programa foi ampliado de R$ 1 milhão para R$ 1,6 milhão neste ano.

A ideia é fortalecer as hortas, segundo a prefeitura. Há planos para abrir mais cinco plantações e fazer composteiras locais para alimentar as mudas, além de ampliar a criação de peixes pela tecnologia da aquaponia —quando os animais vivem no ambiente aquático e plantas são cultivadas na superfície—, inaugurada em uma unidade de Jacarepaguá (zona oeste) no ano passado.

Um dos locais que pode receber os animais é Manguinhos, onde Ezequiel segue com o objetivo de levar uma alimentação saudável para a favela onde nasceu e cresceu: “Futuramente, teremos famílias mais saudáveis, porque o orgânico está nas comunidades. Minha filha vê e já segue esse caminho.”

29 de abril de 2021

QUANDO AS CRENÇAS NÃO SÃO NOSSAS!

(Zeina Latif – Globo, 28) Importantes transformações históricas do Brasil decorreram mais de pressão internacional do que de anseios da sociedade. Esse padrão não é uma peculiaridade nossa, mas aqui a incidência parece maior, o que revela fraqueza institucional. O problema é quando relutamos às mudanças. O custo econômico e social é maior e de difícil superação.

A Independência do Brasil foi fruto de uma negociação com Portugal, com papel central da Inglaterra, sem participação popular, diferentemente da experiência norte-americana ou mesmo da América Espanhola. O Brasil Colônia não era um ambiente propício à construção da cidadania e a Independência pouco mudou aquela realidade.

Reflexo disso foi a Constituição de 1824 – a mais longeva de todas -, muito influenciada por crenças liberais no mundo, mas pouco efetiva na prática. Por exemplo, o voto tornou-se menos restritivo em termos de exigência de renda, mas não era o exercício de um direito. As eleições eram fraudulentas, manipuladas por elites locais e até violentas.Foram instituídos direitos individuais, mas a Justiça era pouco acessível, levando o cidadão comum a recorrer à proteção dos grandes proprietários. Assim nasceu a nação brasileira: patrimonialista e patriarcal, para espanto de viajantes estrangeiros.

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, a ponto de causar estranhamento de países vizinhos. Demorou tanto que já eram poucos os escravos; 5% da população em 1887 ou 723 mil, aponta José Murilo de Carvalho.

A pressão da Inglaterra para o fim do comércio intercontinental de escravos vinha desde o início do século 19, sob influência de grupos religiosos, e se intensificou no acordo para a Independência, mas os tratados e as leis eram desrespeitados – o que remete à expressão daquela época “para inglês ver”.

A história se repetiu na Lei do Ventre Livre, com o registro fraudulento de nascimento de bebês de escravas, retroagindo para data anterior à lei.

Na sociedade escravocrata, demorou para o movimento abolicionista se configurar, no fim dos anos 1860, analisa Angela Alonso. Não havia consciência de direitos civis por parte da elite, sendo que poucos insistiram na necessidade de prover aos ex-escravos educação e assistência. Ficou a terrível herança.

A transição democrática do Brasil em 1985 se inseriu na terceira onda de democratização no mundo, nos anos 1980-90, decorrente da pressão externa de forças hegemônicas liberais no fim da Guerra Fria. Ocorria o gradual fortalecimento do multilateralismo, enquanto ideais de democracia e respeito aos direitos humanos passavam a prevalecer nas relações internacionais.

A inserção dos países na globalização dependia da democratização dos países, sob pena de sofrer os custos e constrangimentos de não estarem alinhados a esses valores.

Nessas condições, a inserção do liberalismo na política é mais limitada em comparação a países avançados, como ensina Lourdes Sola. De qualquer forma, a maior participação popular e adesão da elite comparativamente a momentos passados – alimentada pela crise econômica – contribuiu para melhores resultados em termos de democracia e cidadania, ainda que tenhamos um longo caminho a percorrer.

Agora assiste-se à pressão internacional por conta da questão ambiental, fruto de mudanças de crenças das sociedades avançadas, que impactam o mundo corporativo e financeiro, e assim, a agenda política mundial. Não aderir a essa agenda implicará isolamento de países, com custos econômicos e financeiros, como os decorrentes de retaliações comerciais, menor investimento estrangeiro e maior custo de captação de recursos externos.

A responsabilidade de governantes é maior quando a sociedade não valoriza a sustentabilidade, até porque recursos públicos precisam ser direcionados para esse fim. Isso é particularmente importante no Brasil, o sexto maior emissor de gases de efeito estufa, devido à falha do governo em proteger o meio ambiente: o desmatamento é responsável por algo como 40% da emissão de CO2, sendo que 60% do desmatamento na Amazônia ocorre em áreas públicas, segundo a Agroicone.

28 de abril de 2021

CIDADES PRECISAM DE AÇÃO EMERGENCIAL PARA EVITAR COLAPSO URBANÍSTICO!

(Alexandre Benoit, doutor em arquitetura e urbanismo pela USP – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 25) Médicos britânicos acreditam que o real impacto da Covid-19 na saúde mental das pessoas ainda não foi dimensionado e poderá se estender por anos, similar em escala e proporção ao que representou a Segunda Guerra Mundial.

Do ponto de vista econômico, já se sabe que os mais pobres serão os mais severamente atingidos. Fala-se também sobre as mudanças na conduta social e na organização do trabalho. Invariavelmente, tais mudanças convergem para o espaço urbano. As cidades ao redor do globo nunca mais serão as mesmas.

A Europa foi onde os governos locais primeiro perceberam que, para enfrentar os efeitos da Covid-19, além de medidas sanitárias, de distanciamento social e de auxílio econômico, seria preciso intervir nas cidades e pensar em seu futuro.

Em Paris, a prefeitura, dirigida por Anne Hidalgo, acelerou a realização da “cidade de 15 minutos”, preconizando deslocamentos de um quarto de hora, em média, ditados por curtos trajetos, a pé ou em bicicleta, e aliados ao transporte público e a toda uma cadeia verde.

Barcelona, com outra mulher à frente do governo, Ada Colau, vem desenvolvendo um ambicioso plano para banir o automóvel individual do centro e mudar a circulação geral em dez anos —reivindica-se a mesma postura que levou o engenheiro Ildefons Cerdà a conter os danos da cidade industrial no século 19.

Conforme observa a arquiteta Olga Subirós em entrevista ao jornal The Guardian, “a Covid mudou o debate sobre o espaço público”, pois agora “não se trata apenas do solo sob nossos pés, mas do espaço ao nosso redor e do ar que respiramos”.

Pensar segundo o raciocínio de Subirós, em metros cúbicos e não mais metros quadrados, relaciona o direito à cidade a uma inevitável reestruturação produtiva com foco em fontes renováveis de energia e redução de poluentes. Na Ásia, esse debate ganha força, a exemplo do Japão, que pretende suspender a venda de novos veículos a gasolina até meados da década de 2030. Nos EUA, são insistentes os apelos por um Green New Deal pós-pandêmico.

Por mais que o futuro das cidades aponte para um caminho sustentável, com áreas livres e favorável ao pedestre, o solo urbano continua sendo um campo em disputa. A moradia, vista pelo capital como mercadoria, é assegurada pelas Nações Unidas como um direito inalienável de todos. Por isso, ela se torna crucial neste momento.

Em Barcelona, há um forte movimento contra o aumento dos aluguéis. De início, a pandemia acelerou despejos e reajustes abusivos, ao passo que o público para aluguéis de temporada desapareceu.

Essa situação vem gerando iniciativas diversas, como a campanha Despejo Zero, cuja adesão abarcou ativistas de cidades como Barcelona, Joanesburgo, Nova York e São Paulo. Até o sedutor modelo da cidade de 15 minutos foi questionado sobre seu caráter elitista —um quarto de hora para quem?

De modo análogo ao debate no campo econômico sobre a taxação de grandes fortunas, surgem propostas que combatem a especulação do solo urbano. Em Berlim, o governo local congelou o preço dos aluguéis em 2019 —a medida, no entanto, foi suspensa neste mês pela Justiça.

Em Lisboa, a prefeitura lançou um programa para converter em moradia social as unidades antes destinadas ao turismo. O município pagaria metade do valor de mercado do aluguel, firmando contratos de cinco anos, renováveis, oferecendo ao proprietário, em troca de um ganho menor, a estabilidade que hoje ele não tem.

No filme “Roma de Fellini”, confronta-se a cidade antiga com a moderna por meio de uma cena de engarrafamento, com o Coliseu ao fundo, como se o edifício de 70 d.C. fosse asfixiado pelos automóveis fumacentos e ruidosos.

Em outra cena, as escavações para o metrô são interrompidas diante da descoberta de um afresco antigo que se desfaz tão logo entra em contato com o ar poluído. Embora seja de 1972, o filme apresenta um atualíssimo discurso acerca do que os europeus buscam erradicar na vida urbana.

Enquanto as cidades do Velho Mundo trazem marcas de séculos e séculos de intervenções, formando um tecido consolidado e consideravelmente equilibrado, as cidades brasileiras, como São Paulo, foram erguidas em questão de décadas, produtos do capitalismo tardio. Não restam reminiscências da “primitiva” povoação jesuítica, tampouco das monumentais ocas.

Ao contrário de Roma, quase tudo foi apagado, inclusive parte da geografia e da natureza. Por aqui, a cidade como bem comum soa uma ideia fora do lugar.

Por outro lado, se pensarmos que hoje o país lidera os índices sombrios da pandemia e que as consequências poderão se estender por anos, o espaço de nossas metrópoles verá a desigualdade, a violência e os demais problemas se aprofundarem ainda mais, levando a um eventual colapso urbanístico —caos que, aliás, já se anuncia nas periferias e zonas mais carentes.

É desalentador que a dimensão urbana da crise tenha sido ignorada entre nós. São Paulo, uma das poucas exceções, apostou na retirada de vagas de automóveis para ampliar áreas de consumo ao ar livre em bares e restaurantes da região central, aos moldes do que fez Nova York.

A iniciativa é como uma gota no oceano. Perde-se a chance de relacioná-la a outras, de grande impacto, como o fechamento definitivo do elevado João Goulart, o Minhocão, e a criação do parque do Bexiga, no terreno contíguo ao Teatro Oficina. Com essas medidas, a prefeitura sinalizaria a multiplicação de “metros cúbicos” livres e públicos em uma região simbólica, altamente adensada e com vocação democrática.

Deveríamos olhar também para as nossas ruínas. Uma delas é a natureza. Se já não é possível sonhar com o bucólico Tietê da vila de Piratininga, podemos compreender o rio como uma vasta infraestrutura latente, que pode oferecer, como demonstra o grupo Metrópole Fluvial, da FAU-USP, coordenado pelo arquiteto e professor Alexandre Delijaicov, uma interligação metropolitana por meio de uma complexa rede de transporte de pessoas e de carga, além de, no futuro, permitir a fruição de suas margens.

Outra ruína paulistana são os imóveis vazios, uma infraestrutura urbana que, como os rios, deteriora-se ano após ano. Antes da pandemia, estimava-se em cerca de 300 mil o número deles, concentrados em regiões centrais, cifra que bastaria para erradicar o déficit habitacional da cidade. Com a crescente implementação do trabalho remoto e o consequente abandono de andares inteiros de escritórios, esse número deve aumentar.

Se 25% dos imóveis fechados fossem de algum modo ativados, fazendo valer a função social da propriedade, como prevê a nossa Constituição, teríamos o maior programa habitacional já feito na cidade. Seria uma medida em caráter excepcional, que funcionaria como poderosa alavanca de desenvolvimento urbano.

Diversas variantes estariam colocadas para gerenciar e reformar essas unidades, desde o aluguel social, como em Lisboa, a desapropriação, como em Barcelona, ou ainda formas híbridas que contassem com a iniciativa privada e subsídios aos inquilinos, abrangendo faixas de renda diversas.

Seu impacto direto no tecido urbano e nos deslocamentos diários, como em metas de uma cidade sustentável e menos desigual, seria dificilmente mensurável, já que não se trataria apenas de mais imóveis disponíveis, mas sim de uma mudança no adensamento de regiões inteiras do tecido consolidado.

Do ponto de vista econômico, o retorno certamente não seria desprezível, potencializando a construção civil, um dos setores da indústria que não pararam durante a pandemia. Todavia, em vez de reafirmar um modelo de cidade esgotado, o dos novos condomínios verticais e shopping centers, outros caminhos seriam descobertos. Como diz a dupla francesa de arquitetos Lacaton e Vassal, laureada com o Pritzker neste ano, não existem lugares vazios na cidade —é preciso reutilizar e transformar.

A crise deflagrada pelo vírus se torna econômica, social, psicológica e, por fim, urbana, acelerando a revisão de tudo o que moldou as cidades no século passado. Uma ação emergencial significa, em todo o mundo, dirigir a produção do espaço urbano para o real interesse coletivo.

Olhar para as nossas ruínas, que são muitas —citamos apenas algumas neste texto—, poderia representar uma ação à altura dos desafios, impactando positivamente o modo de vida de milhões e, assim, a economia do país e a recuperação dos recursos naturais, tão fundamentais.

Do contrário, de acampamentos improvisados, nossas cidades correm o sério risco de vir a ser quimeras de uma exaurida civilização tropical.

27 de abril de 2021

DE VOLTA A PORTUGAL, D. JOÃO 6º LIDOU COM CRISE POLÍTICA E ATÉ GOLPE DE ESTADO TRAMADO PELO FILHO!

(Giuliana Miranda – Folha de S.Paulo, 25) Há 200 anos, a família real portuguesa deixou o Brasil. O regresso de d. João 6º a Portugal, após mais de 13 anos fora, foi conturbado. Além do clima político hostil e da economia arrasada, o monarca enfrentou diferentes complôs para tirá-lo do trono, envolvendo sua mulher, d. Carlota Joaquina, e seu filho d. Miguel.

As adversidades começaram já no desembarque em Lisboa, em 4 de julho de 1821, quando as Cortes –que haviam assumido o poder na revolução liberal do ano anterior– fizeram questão de reforçar o rebaixamento da autoridade real.

Embora seu navio tenha chegado à capital no dia anterior, e o próprio rei tivesse manifestado o desejo de desembarcar horas depois, as Cortes deliberadamente ignoraram o pedido.

Mantido incomunicável na embarcação, d. João 6º só foi autorizado a sair no momento escolhido pelas Cortes. Além disso, viu parte de seus acompanhantes e indicações ministeriais vetadas de antemão.

As próprias cerimônias que marcaram o retorno da família real foram planejadas pelos liberais como uma forma de mostrar a nova condição da monarquia.

A população foi em peso para as ruas, mas, por determinação das Cortes, a cidade e as casas não foram adornadas com arcos triunfais, como normalmente aconteceria nessas ocasiões.

“O sentimento generalizado seria o de que se acolhia não um soberano vitorioso, mas um rei derrotado, indigno de arcos triunfais”, nas palavras do historiador Valentim Alexandre ao jornal Público.

Sem poder de barganha ou margem negocial, restou a d. João 6º aceitar as determinações e jurar a constituição liberal.

Com poderes limitados e sem conseguir indicar seus próprios ministros, d. João 6º veria a sua situação começar a mudar em 27 de maio de 1823, quando d. Miguel, com o apoio de parte do Exército, organizou uma rebelião contra o governo liberal.

Após demonstrar alguma hesitação. D. João 6º acabou aderindo ao movimento, assumindo o comando da situação e controlando a ascensão ao poder de d. Miguel, que acabou nomeado para o comando do Exército.

O episódio, conhecido como vila-francada, marcou o fim do período liberal iniciado na revolução e reestabeleceu o poder a d. João 6º.

Mesmo com a decisão do monarca de anular a Constituição, libertar presos políticos e cancelar as sentenças contra a rainha Carlota Joaquina (que havia sido punida por se recusar a jurar as leis liberais), o partido absolutista não se mostrava satisfeito com as medidas, consideradas excessivamente moderadas.

“Tudo isso desagradava a d. Carlota Joaquina e a d. Miguel, que aspiravam ao restabelecimento da monarquia absoluta”, escreve a historiadora portuguesa Maria Cândida Proença.

D. João 6º sofre então uma nova tentativa de golpe, realizado pelo próprio d. Miguel. Em 30 de abril de 1824, com apoio do Exército, o príncipe investiu contra o pai, que acabou cercado por tropas miguelistas no Palácio da Bemposta, em Lisboa.

O rei só não caiu por interferência de diplomatas estrangeiros, sobretudo os embaixadores da França e da Inglaterra, que asseguraram a d. João 6º o apoio das potências europeias.

Com o auxílio inglês, o monarca se refugiou em uma nau britânica ancorada no Tejo e conseguiu retomar o controle da situação. D. Miguel acabou demitido do comando do Exército e enviado para o exílio em Viena, na Áustria.

Fragilizado pela instabilidade doméstica e sem apoio internacional para tentar reintegrar o Brasil ao reino, Portugal, sob o comando de d. João 6º, acaba reconhecendo a independência do Brasil em agosto de 1825, em um acordo mediado pelos ingleses.

O rei morreria poucos meses depois –há fortes indícios de que ele teria sido envenenado–, em 10 de março de 1826, aos 58 anos, deixando um baita problema de sucessão.

Com o filho mais velho no comando de uma ex-colônia que se declarara independente, e o mais novo exilado por tramar um golpe de estado, quem era o herdeiro legítimo?

A disputa entre os irmãos, que se prolongou pelos anos subsequentes, mergulhou Portugal em uma guerra civil.

26 de abril de 2021

DOM JOÃO 6º DEIXAVA O BRASIL HÁ 200 ANOS, COM LEGADOS!

(Anna Virginia Balloussier – Folha de SP, 25) João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, o dom João 6º, tinha as tropas napoleônicas em seus calcanhares quando decidiu se mudar para o Brasil. Chegou em 1808 e ficou 13 anos na ex-colônia que, durante essa temporada, promoveria a Reino Unido de Portugal.

Esta segunda-feira (26) marca o bicentenário de sua partida do território que um ano depois, sob rédea de seu filho dom Pedro 1º e com sua complacência, declararia independência da coroa portuguesa. 

Se o imaginário popular guardou a imagem de um glutão que escondia pedaços de frango no bolso e tinha pavor a banho, a passagem de dom João pelo Rio de Janeiro alavancou um projeto ainda imberbe de nação e, de quebra, deu um banho de loja na nova sede da corte real.

Vêm do que historiadores chamam de período joanino instituições até hoje centrais no país, como a Polícia Militar e o Banco do Brasil.

O primeiro jornal impresso no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro, também é obra de dom João, que instituiu a Imprensa Régia no ano em que se mudou para as Américas. Dom João leva crédito até por popularizar o carioquíssimo hábito de ir à praia.

“Embora tenha sido retratado por historiadores antimonarquistas do início do século 20 como uma figura grotesca, dom João é hoje considerado o mentor do Estado brasileiro”, diz a historiadora Mary Del Priore, com farta obra sobre o passado nacional. “Além de ter enganado Napoleão com sua partida abrupta, ele elevou o Brasil a Reino Unido e era considerado hábil político.”

Não que o monarca não tivesse seu lado pitoresco. Conta-se que tamanho era seu pavor de trovões que João se enrolava nas cortinas do palácio para não ouvir o estrondo, lembra Del Priore. Também tinha “apetite pantagruélico”: devorava até 12 pratos diferentes a cada refeição. Os acompanhamentos obrigatórios eram frutas, queijos, doce e pães.

Filho zeloso, João levava dona Maria 1º para passear na sua fazenda Santa Cruz, onde saboreavam mangas juntos. “Quando a rainha morreu, ele se desolou e passou três dias sem se alimentar, em total desespero e saudade”, afirma a historiadora. Passou de príncipe regente a rei depois disso.

Na mesma granja, um carrapato picou a perna de João. A ferida infeccionou, e o paciente seguiu uma recomendação médica então comum: sanar feridas com o iodo marinho do mar. Passou a tomar banhos de mar, o que ainda não era costume dos cariocas.

Para o tratamento, enfiava-se numa caixa de madeira perfurada, molhando só partes do corpo. Ele esperava assim evitar o ataque de crustáceos nas águas da praia do Caju, próxima à Quinta da Boa Vista, a residência real.

A praia sumiu com a construção da ponte Rio-Niterói. Já a Quinta, erguida em 1803 por um traficante de negros escravizados e doada para a família imperial em 1808, existe até hoje. Quem quase desapareceu foi o Museu Nacional, abrigado no terreno e parcialmente destruído num incêndio 200 anos após ser fundado pelo rei João.

Com a corte vieram as idiossincrasias de dom João, mas também o aparelho de um Estado soberano: a alta hierarquia civil, religiosa e militar, aristocratas e profissionais liberais, artesãos qualificados, servidores públicos.

A capital ganhou a Biblioteca Real, a Academia Real de Belas Artes, a Imprensa Real e a Academia Militar. A abertura dos portos para nações amigas de Portugal, em 1808, encerrou a relação comercial exclusiva com a metrópole e dinamizou a economia local.

A cidade teve também um upgrade de estradas, iluminação pública e uma administração pública mais estruturada que, segundo Del Priore, “incorporou muitos brasileiros, inclusive afrobrasileiros e afromestiços”.

“A transferência da corte mudou a maneira como as pessoas dos dois lados do Atlântico entendiam a situação do Brasil, que deixou de ser uma colônia”, afirma a historiadora Kirsten Schultz, que no livro “Versalhes Tropical” se debruça sobre a vinda do clã real para os trópicos. “Afinal, um rei não poderia viver em uma colônia porque era um território de status inferior.”

Antes de 1808, a capital tinha ruas apertadas e casas simples, a maioria sem calçamento. Nada digno de uma monarquia. Ao aportar no Rio, o regente foi recebido com ruas cobertas de areia, ervas e flores, conforme narrou o cônego imperial Luiz Gonçalves dos Santos, o Perereca, padre-cronista daqueles tempos.

A cidade estava em festa. Sinos badalaram nas igrejas, fogos de artifício coloriram o céu e um coreto entoou “melodiosas vozes instrumentais como vocais”, segundo Perereca.

Com dom João no pedaço, o Rio provou do “lifestyle” cosmopolita. Para abrigar os milhares de recém-chegados numa cidade de 60 mil habitantes, um tanto de gente acabou desalojada —incluindo parte da elite que vivia em suntuosas chácaras. O despejo por ordem real foi batizado de “aposentadoria”.

O desembarque daquele homem baixo, com papadas e um ventre esférico, com coxas roliças que desgastavam o calção de seda, empurrou o Brasil para uma modernidade inédita. O Rio pré-dom João foi para o brejo: a nova administração aterrou pântanos e abriu ruas mais largas e planejadas.

Apreciador de óperas, o regente ordenou a construção do Teatro Real de São João (atual João Caetano). Inaugurada em 1813, a casa abrigou “Don Giovanni”, ópera de Mozart encenada pouco após sua estreia, em Viena.

Embrião da PM, a Polícia da Corte foi fundada em 1809. Os 218 oficiais da primeira leva substituíram quadrilheiros, homens que faziam a patrulha local munidos de lanças e bastões.

Schultz aponta que o policiamento foi concebido para, em parte, punir escravizados. “As preocupações do primeiro intendente de polícia com o que ele chamou de ‘civilização’ e ‘segurança pública’ também levaram a ações repressivas contra os negros livres, incluindo trabalho forçado. A presença da corte desafiou a ideia de que o Brasil era uma colônia de Portugal, mas reafirmou o colonialismo gerado pelo domínio português.”

Dom João dava todos os sinais de que veio para ficar de vez. “Isso contribuiu para criar na Europa a impressão de que pessoas da maior estatura, como uma das dinastias reinantes, podiam viver com certo conforto nos trópicos”, diz a historiadora Isabel Lustosa, do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e autora de livros sobre o período joanino.

“Tudo isto elevou a moral dos brasileiros e lhes deu força para resistir às tentativas de retrocesso que se seguiram à partida do rei.” O regente pródigo a Portugal voltou, ainda que a contragosto, pressionado pelos conterrâneos, que atravessavam a liberal Revolução do Porto.

Em 1822, vingou o clamor nacional: independência ou morte.

23 de abril de 2021

O QUE QUER A ESCOLA AUSTRÍACA!

(Helio Beltrão, do instituto Mises Brasil – Folha de SP, 21) Toda ciência é, por definição, isenta de juízos de valor, ou seja, livre de vieses e opiniões do cientista que possam impactar a análise. Tal princípio é uma das grandes contribuições da revolução científica.

David Hume articulou no século 18 o problema do “ser”-“dever ser”. Argumentava que não se pode derivar o que “deveria ser” a partir do que “é”.

A dicotomia de Hume sinalizou uma forma analítica de fatiar escopos para aprofundar o conhecimento. A ciência deve se limitar a cuidar dos fatos, daquilo que “é”, ao passo que a filosofia política e a ética, por exemplo, formam disciplinas voltadas ao que “deve ser”.

O princípio da neutralidade se aplica também às ciências sociais, em particular à econômica. Como dizia Ludwig von Mises, a “economia é apolítica ou não política e se refere sempre aos meios, nunca à escolha dos fins últimos”. É, portanto, a discussão sobre o que funciona e o que não funciona, de forma a alcançar certos fins dados.

Nas ciências naturais como a física, a química e a biologia, é razoavelmente trivial afastar juízos de valor. Experimentos controlados em laboratório —replicáveis e que isolam o objeto de estudo de todas as demais influências— deixam pouco espaço para contaminação por valores pessoais.

As ciências sociais são diferentes, pois é virtualmente impossível desenhar um experimento controlado com seres humanos que elimine interferências indevidas e permita apontar o fator causador isolado, que explique o futuro em todas as ocasiões. Os dados no mundo real são produto de diversas influências que o pesquisador não consegue isolar, especialmente por tratar do inconstante comportamento humano.

O caso da separação das Alemanhas Oriental e Ocidental e das Coreias no pós-guerra são possíveis exceções que comprovam a dificuldade. Povos com mesma cultura, trajetória histórica, língua e valores foram separados abruptamente em metades, nas quais políticas públicas distintas foram implementadas. O “experimento” demonstrou inequivocamente o dano de políticas públicas coletivistas.

Em razão dessas dificuldades metodológicas inexpugnáveis, “escolas” de pensamento perduram, cada qual com distintos pressupostos. Em economia, além da Escola Austríaca, que chegou aos 150 anos, há as escolas neoclássica, keynesiana de várias vertentes, monetária/Chicago, de escolhas públicas, institucionalista, marxista.

Não há um método consensual que comprove definitivamente que a escola rival não funcione. Por exemplo, a despeito das evidências das Alemanhas e das Coreias, os marxistas respondem com mantras como “deturparam Marx” e “o socialismo não foi aplicado até o fim”, cuja refutação, infelizmente, não conta com o auxílio de resultados objetivos de um experimento de laboratório.

Os austríacos e outros economistas utilizam termos como “melhorar sua satisfação” em um sentido formal estrito. O pressuposto normativo equivalente seria algo na linha de que a imensa maioria das pessoas prefere saúde a doença, vida a morte, e abundância a escassez. O sentido estrito da ciência econômica, no entanto, não denota juízo de valor.

Dados os fins da imensa maioria, o economista da Escola Austríaca, por exemplo, utiliza seu arcabouço científico para demonstrar que trocas voluntárias em um regime de igualdade perante a lei e respeito à propriedade privada são eficazes.

Caso Stálin lhe perguntasse como alcançar a utopia marxista da igualdade material perene, Mises provavelmente diria que políticas socialistas são plenamente eficazes, porém ressaltaria o resultado: todos iguais na pobreza material.

22 de abril de 2021

RODRIGO MAIA: ‘ORÇAMENTO ESTÁ FALIDO E NÃO DEVERIA SER SANCIONADO’!

(O Estado de S. Paulo, 18) Presidente da Câmara até fevereiro deste ano, o deputado Rodrigo Maia diz que o Orçamento está “falido” e “capturado pelos projetos paroquiais”. A prova é que o volume de emendas parlamentares – gastos incluídos por deputados e senadores no Orçamento para obras em seus redutos eleitorais – é maior do que os recursos destinados aos projetos do governo. Maia diz que não é normal pressionar para sancionar um Orçamento que é ilegal. “Tenho convicção que o presidente não deve e não pode sancionar”, afirma o ex-presidente da Câmara. Como já mostrou o Estadão, o risco de o presidente sancionar o texto consiste em cometer crime de responsabilidade, que poderia desembocar em um processo de impeachment. Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Maia:

Estado de SP: Como Congresso e governo chegaram a esse impasse orçamentário?

Rodrigo Maia: A situação do Orçamento está gerando esse conflito e daqui para frente vai gerar outros. Tanto governo e Congresso tem responsabilidade por esse Orçamento em que as emendas parlamentares são maiores do que os gastos discricionários (despesas que não são obrigatórias e incluem investimentos) de projetos do governo. É a prova que esse Orçamento está falido, capturado pelos projetos paroquiais de um lado, e pelos subsídios tributários de setores beneficiados no Brasil de outro.

ESP: Quais os erros?

RM: Está provado que a PEC (emergencial) foi irrelevante. Não tem um novo marco fiscal, como o ministro Paulo Guedes disse. Do outro lado, temos um Congresso propondo que o presidente sancione algo que ele próprio está dizendo ‘sanciona e depois corrige’. A casa das leis não pode aprovar algo que está indo contra a Constituição e as leis de controle do Brasil. Não podemos achar que é normal pressionar para sancionar algo que todo mundo sabe que vai precisar ser corrigido. Há erros por parte do governo de ter feito um acordo sobre um recurso que não existe.

ESP: Qual a consequência?

RM: Acaba tento um debate em que daqui a pouco vão construir várias casinhas fora do teto de gastos (regra constitucional que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação). Com casinhas ao lado onde tem o teto principal, as paredes vão quebrar, os alicerces vão quebrar, vai arrebentar tudo porque a gente não vê por parte desse governo uma organização para aprovar o que precisa ser aprovado. O Congresso propõe sancionar algo que é ilegal.

ESP: É um erro para o presidente sancionar sem veto?

RM: É um erro para o Brasil. Não há outra decisão para o governo que não seja vetar o Orçamento e corrigi-lo rapidamente. A sanção de um projeto que está com problemas, a partir daí, sem dúvida nenhuma, o presidente da República passa a ser refém do Congresso. A relação dos Poderes não pode ser assim. Tem de ser de independência, mas harmônica.

ESP: O governo ficará refém porque o presidente poderá sofrer um impeachment?

RM: Não sei se impeachment ou inelegibilidade. A casa das leis tem responsabilidade com o que aprova. Até porque como é uma sanção conjunta do Orçamento, o tempo para digerir o que foi aprovado numa casa para a outra não existe. Foi o que eu tentei fazer, inclusive, com os partidos independentes de oposição. Era atrasar o Orçamento uma semana para mostrar onde estavam os problemas. Infelizmente, como é uma sessão conjunta, não dá tempo para compreender que o relator (senador Márcio Bittar), que foi sempre muito intencionado com a necessidade de cortes de despesas, viu o relatório minguar e virar nada. Para conseguir aprová-lo, acabou tendo de reduzir despesas que não são possíveis, não há como contingenciá-las. E abriu espaço para ter um Orçamento onde a política paroquial tem mais do que os projetos do governo federal.

ESP: Está tudo errado?

RM: Isso está errado. O sistema está distorcido, esgotado, falido. Precisa ter a compreensão que o custo que vamos pagar por sancionar um Orçamento irregular é o custo de ter o câmbio mais desvalorizado (o dólar mais caro do que o real), inflação num patamar de 10% por mais tempo e ter uma taxa de juros maior para o Brasil financiar sua dívida. Toda essa conta quem paga é o cidadão.

ESP: Mas o avanço das emendas do relator começou no Orçamento de 2020 quando o sr. era presidente da Câmara. Começou ali e explodiu este ano, não foi?

RM: Emenda de relator sempre existiu. Só que era dentro do Orçamento. Quando virou impositiva (que precisa ser paga ), se tirou a emenda de dentro do Orçamento para dar transparência. Os valores são muito parecidos, mas eram dentro do teto e depois não foram executados. O governo de fato não executou, mas o que nós aprovamos era dentro do teto.

ESP: Essa é a diferença? Teve um imbróglio político grande no ano passado.

RM: O que teve é que o relator incluiu um valor além do que foi acordado e que foi devolvido num PLN (projeto de lei do Congresso). Ele mudou rubricas RP2 (governo) para RP9 (emendas do relator) e devolveu para RP2. O que se colocou para o Parlamento, num Orçamento que tinha espaço, foi o valor negociado com o governo. Só que depois o governo não cumpriu e o próprio Centrão, quando aderiu ao governo, abriu mão da execução daqueles emendas.

ESP: O ministro Paulo Guedes pode cair por causa do impasse do Orçamento?

RM: A impressão que me dá, olhando de longe, é que Paulo Guedes errou na negociação do Orçamento e o Parlamento errou em aprovar nas condições que aprovou. A melhor coisa para todos é que esse jogo seja zerado. O governo deveria vetar, chamar o Orçamento, rediscutir e ver ao longo dos meses como vai ser a execução desses gastos. Tem uma corrente da assessoria técnica que acha que as despesas previdenciárias estão superestimadas e outra acha que não. Isso só vai ter condição de saber mais à frente.

ESP: A coalização que comanda hoje o Congresso é preocupada com questões orçamentárias?

RM: Minha avaliação é que é. Tanto Rodrigo (Pacheco, presidente do Senado) quanto o Arthur (Lira, presidente da Câmara) têm compromisso com essa pauta. Só que eles estão olhando pela ótica do acordo que foi construído. Esse acordo não é apenas do presidente das duas Casas. Foi articulado com os principais líderes.

21 de abril de 2021

MEIO AMBIENTE, PRIORIDADE NACIONAL!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 20) A principal razão: os interesses do povo brasileiro. Sob a organização dos Estados Unidos, ocorrerá nos próximos dias 22 e 23 a Cúpula dos Líderes sobre o Clima, para a qual foram convidados 40 chefes de Estado, entre eles o presidente Jair Bolsonaro. Com razão, tem-se dito que o evento é uma oportunidade para que o governo brasileiro mude a percepção internacional a respeito de sua relação com o meio ambiente, assumindo compromissos efetivos com a proteção ambiental.

Ainda que verdadeiro, o argumento relativo à oportunidade da adoção de uma nova política ambiental por ocasião da Cúpula dos Líderes sobre o Clima pode conduzir à equivocada ideia de que a proteção do meio ambiente seria prioritariamente um assunto de ordem internacional – como se fosse, na essência, um passo para o bom relacionamento do Brasil com as outras nações.

Não há dúvida de que o compromisso com o meio ambiente pode facilitar a inserção do Brasil no cenário internacional, gerando muitos benefícios, também comerciais, para o País. No entanto, ver o tema apenas por esse ângulo é ignorar a principal razão para a proteção do meio ambiente. O Brasil não deve proteger seu território das queimadas e do desmatamento ilegal porque os Estados Unidos elegeram recentemente um presidente disposto a promover a agenda global de proteção ao clima. Ou porque os franceses assim exigem como condição para comprar produtos brasileiros.

Ou porque a ONU ou algum organismo multilateral assim aconselha. Nenhum motivo de ordem internacional, por mais relevante que possa ser, aproxima-se da principal razão para a proteção do meio ambiente: os interesses do povo brasileiro, no presente e no futuro.

O primeiro prejudicado pelo desmatamento ilegal da Amazônia não são os europeus ou americanos. São os brasileiros, seus filhos e netos. Quando uma floresta brasileira é queimada, o principal problema não é o escândalo internacional que isso causa, mas os danos presentes e futuros que o incêndio gera no território nacional e para o povo brasileiro.

É descabido, portanto, o argumento de que, em defesa da soberania nacional, o governo brasileiro deve resistir às pressões dos outros países, “cedendo” o mínimo possível em questões ambientais. Sob essa lógica, a negociação ótima seria o País não assumir compromissos ambientais pois a preservação da natureza seria um custo para os brasileiros.

Muitas vezes, essa mentalidade obtusa – que ignora que os compromissos ambientais protegem, em primeiro lugar, o patrimônio nacional – é exposta sem nenhum pudor. Por exemplo, quando se desqualifica a proteção do meio ambiente com a bravata da resistência ao “globalismo”.

Outras vezes, a ignorância a respeito da proteção ambiental vem disfarçada de perspicácia negocial. Nos últimos meses, por exemplo, o governo Jair Bolsonaro tem dito que poderia assumir metas ambientais mais ambiciosas caso os países desenvolvidos disponibilizem mais recursos para essa finalidade.

A rigor, esse argumento é uma afronta aos brasileiros. Com ele, o governo de Jair Bolsonaro admite que defenderá a natureza brasileira e os interesses do seu povo apenas se os outros países doarem mais dinheiro para a causa ambiental. É um escândalo que um governo condicione o cumprimento de suas responsabilidades internas a doações estrangeiras. Como bem observou a propósito o vice-presidente Hamilton Mourão, o Brasil não pode ser reduzido à condição de mendigo.

Não é compatível com a altivez própria de um país soberano que seu governante proclame ao mundo que somente cumprirá as leis internas de seu país e defenderá os interesses de seu próprio povo se receber doações internacionais.

Como lembrou a 58.ª Assembleia-geral da CNBB, a casa comum não pode estar “submetida à lógica voraz da exploração e degradação. É urgente compreender que um bioma preservado cumpre sua função produtiva de manutenção e geração da vida no planeta, respeitando-se o justo equilíbrio entre produção e preservação”. Compreender tal realidade não significa fazer concessões a pressões internacionais. Significa não virar as costas ao interesse nacional.

20 de abril de 2021

A AGENDA DA OPINIÃO PÚBLICA E A POLÍTICA EXTERNA!

(Celso Lafer – O Estado de S. Paulo, 18) A dinâmica das transformações técnicas, econômicas, sociais e culturais tornou o mundo contemporâneo especialmente finito e interdependente. Unificou-se, para o bem e para o mal, o campo estratégico-diplomático. Daí os desafios da inserção internacional dos países, ainda mais complexos por conta da vertiginosidade da era digital.

É o que explica, com a porosidade das fronteiras, a internalização do mundo no âmbito dos países, alcançando suas populações. Um paradigmático exemplo é a pandemia de covid-19. Com a sua letalidade, alterou em escala planetária o cotidiano. Magnificou as ameaças à vida, fazendo da diplomacia das vacinas item de primeiro plano da pauta internacional e expressão do papel da gestão de riscos da política externa.

A multiplicidade e variedade do impacto do mundo na especificidade da vida dos países é uma das razões por que a política externa deixou de ser o domínio reservado e exclusivo dos governantes e seus agentes diplomáticos. Não resulta mais da restrita visão e do cálculo de poucos. Requer incorporar sensibilidades, interesses e paixões de muitos, que se manifestam pelos canais de articulação da voz da sociedade. É o que obriga o palácio a levar em conta a visão dos governados, traduzida numa agenda de opinião pública.

Estar atento a ela é um dado, numa democracia, de sustentabilidade da política externa. Essa pauta se exterioriza pela mídia, pela dicção dos interesses e valores da sociedade e pela ressonância que adquirem no Congresso, ao exercer suas funções de fiscalização da ação do Executivo. Pode alcançar o Judiciário quando temas da política externa são passíveis de judicialização.

Lidar com essa pauta é responsabilidade do chanceler como principal colaborador ex officio do presidente na condução da diplomacia. A ele cabe explicar de maneira ampla e convincente como a agenda da opinião pública se ajusta à política externa, apta a traduzir apropriada ponderação de necessidades internas numa qualificada avaliação dos possibilidades externas. A ele cabe indicar como a política externa está em consonância com a moldura dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Incumbe-lhe dar as razões substantivas de novas ênfases e prioridades que diferenciam a diplomacia de um governo da dos seus antecessores. Precisa esclarecer e justificar por que as mudanças patrocinadas são válidas.

Dessa responsabilidade se desincumbiram todos os chanceleres da Nova República – e falo com um saber de experiência –, lidando com a pluralidade de perspectivas da agenda de opinião pública e enfrentando os embates instigados pelas oposições aos governos a que serviram.

No exercício dessa responsabilidade fracassou de maneira retumbante Ernesto Araújo. A sua queda como chanceler é um inédito “impeachment informal” conduzido pela agenda da opinião pública, a qual ele antagonizou com plúmbea carência de sensibilidade, surpreendente para quem teve uma formação diplomática. Como diz o provérbio latino, quos Deus vult perdere, prius dementat (a quem Deus quer perder, primeiro tira o juízo – incluído o juízo diplomático).

É certo que a sustentabilidade da visão das coisas internacionais do presidente Bolsonaro é cada vez mais difícil de explicar à sociedade brasileira. Só encontra ressonância no âmbito mais restrito dos seus raivosos apoiadores ideológicos. Não indica uma capacidade do presidente de se orientar no mundo, pois almeja uma diplomacia de extremos, voltada para a vocação de rupturas; desejosa de construir muros e dinamitar pontes e assim fomentar o isolamento internacional do País, que nos afasta de nossos parceiros bilaterais e compromete a nossa atuação multilateral; que dilapida o soft power acumulado do capital diplomático brasileiro; que ignora a sensibilidade internacional em relação ao meio ambiente, com consequências restritivas para as exportações brasileiras e para o investimento em nosso país. É o que nos vem levando, pela primeira vez na História, à condição de pária internacional, que o seu ex-chanceler se sentia à vontade de sustentar e defender.

São crescentes as manifestações da voz da agenda da opinião pública em relação aos rumos que vem imprimindo ao País. A mais aguda diz respeito ao opaco negacionismo no trato da pandemia e suas consequências para a vida e a morte dos brasileiros.

Ela alcança, no entanto, amplo espectro de políticas públicas, com destaque a política externa, que, para a agenda da opinião pública, requer mudanças.

É de esperar que o novo chanceler, Carlos Alberto Franco França, tenha condições de operar essas mudanças. O seu discurso de posse, ao indicar que a missão a ele confiada é a de enfrentar as urgências no campo da saúde, da economia e a do desenvolvimento sustentável e do clima, é pertinente. Tem o mérito conceitual de estabelecer o quadro geral dos problemas e definir uma agenda relevante.