14 de julho de 2021

A CRISE DA ÁGUA!

(Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura – O Estado de S. Paulo, 10) Os assuntos água e energia cada vez mais frequentam a mídia nacional e a mundial. A pior crise hídrica em 90 anos no Brasil, trazendo a possibilidade de falta de energia, junto com as questões climáticas, nos obriga a discutir com muito cuidado e atenção esses dois temas. Não só com um olhar sobre o Brasil, mas também para o mundo. O acesso à água e à energia será cada vez mais necessário para dar qualidade e dignidade de vida às pessoas. Com isso, a tendência é de que a oferta de água e de energia cresça numa velocidade inferior à demanda. Portanto, para manter o equilíbrio entre oferta e demanda, será cada vez mais necessário racionalizar o uso tanto da água como da energia, entendendo que os preços devem ser crescentes.

No Brasil, água e energia se confundem. Isso porque a nossa geração de energia tem na água a sua principal fonte. A protagonista das três crises de energia elétrica nos últimos 20 anos (2001/2002, 2014/2015 e, agora, 2021/2022) tem sido a água – ou, melhor, a falta de água, que é responsável ainda hoje por 70% da nossa geração de energia. E, como a água no Brasil cada vez terá mais uso múltiplo, é preciso encontrar ou, melhor, propor uma política pública que leve isso em consideração. Hoje o agronegócio, que tem sido o principal setor da nossa economia, precisa cada vez mais de água e de energia para irrigação; não podemos abrir mão da navegação nas hidrovias, nem tão pouco para atender atividades de turismo; isso sem falar no saneamento, cujo um dos maiores desafios é a captação de água.

Neste contexto, a discussão central que deveríamos travar – e já passamos da hora – é a valoração da água. No Brasil sempre tivemos um olhar de que água seria uma dádiva de Deus e, por isso, seu custo seria zero. Portanto, gerar energia com água é a forma mais barata. Esse olhar sobre a água nos leva àquele conceito de que países que são presenteados com muitos recursos naturais acabam por sofrer uma maldição. Esse conceito é muito usado em relação aos recursos naturais. A “Maldição dos Recursos Naturais” é um termo utilizado para mostrar que países ricos em recursos naturais crescem menos, pois essa fonte de riqueza tende a gerar desperdícios em meio à corrupção e a entraves burocráticos. Gastos correntes crescem em detrimento de ações na infraestrutura e no fortalecimento institucional. Isso acaba beneficiando grupos influentes e desorganiza a economia. No fim do dia, são sociedades predadoras de recursos naturais. Só sabem colher, não sabem plantar. E é dessa forma que estamos nos comportando na utilização das nossas bacias hidrográficas há bastante tempo.

A água, por seu uso múltiplo, não é nem será mais a fonte mais barata para gerar energia elétrica no Brasil. Precisamos garantir um nível mínimo de armazenamento nos reservatórios e deslocar o uso do potencial de geração hidráulica para garantir as vazões mínimas, a sazonalização da oferta de energia para as demais renováveis e o atendimento da ponta do sistema elétrico. Térmicas a gás natural com 70% de inflexibilidade e nucleares passariam a ser parte da geração prioritária de base, complementada por geração hidráulica de vazão mínima, eólica, solar, hidráulica a fio de água e por novas fontes, como o biogás.

Precisamos parar de adotar soluções de países ricos, que têm uma realidade energética diferente da nossa. Precisamos construir um projeto brasileiro para o setor de energia. Olhando para as nossas vantagens comparativas e a realidade da nossa sociedade. A Califórnia não é aqui. Portanto, diante dessa situação de mais uma crise, em que a protagonista é mais uma vez a água, a prioridade deveria ser construir uma matriz elétrica mais equilibrada, mais confiável e menos refém do clima, aproveitando a diversidade das nossas fontes primárias de energia. Precisamos, também, da mesma forma que foi feito com o gás natural e com o saneamento, discutir no Congresso um marco regulatório para a água no Brasil. No processo de transição energética, o desafio é aumentar a oferta de energia. Aí, sim, enfrentaremos o real problema com soluções próprias, resolvendo a questão central do uso múltiplo da água e afastando de vez o pesadelo de novos apagões e racionamentos.

13 de julho de 2021

REFORMAS SEM RUMO!

(Claudio Adilson Gonçalez, economista, diretor-presidente da MCM Consultores – O Estado de S. Paulo 12) Depois da confusa e pouco eficaz PEC emergencial, o relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) sobre a reforma da tributação do consumo, apresentado em 4/5/2021, renovou, por algumas poucas horas, as esperanças de expressiva melhora do caótico sistema tributário brasileiro. Ribeiro fez um trabalho minucioso e de alto nível técnico. Conseguiu fundir as propostas que tramitavam no Senado (PEC 110) e na Câmara (PEC 45), além de incorporar algumas ideias do próprio Ministério da Economia.

Infelizmente, a alegria durou pouco. Antes mesmo de o relator terminar a leitura do seu parecer, a dupla Paulo Guedes-arthur Lira entrou em ação. O presidente da Câmara, acordado com o ministro da Economia, dissolveu a comissão especial que estudava o tema, jogando por terra uma das melhores propostas de reforma tributária que surgiu no Brasil nos últimos 30 anos. Anunciou-se, então, confuso fatiamento da reforma. A primeira fatia (PL 3.887/20), que funde o Pis/cofins no chamado Iva-federal, é tímida e equivocada, pois não se deve fatiar mudanças na tributação do mesmo fato gerador, qual seja, o consumo final de bens e serviços.

A segunda fatia (PL 2.337/21), que trata de mudanças no Imposto sobre a Renda (IR), passa ao largo das enormes distorções inibidoras do crescimento econômico contidas nos impostos indiretos, principalmente no ICMS. A julgar por esses nacos, a fruta toda parece de péssima qualidade.

O extenso PL 2.337/21 apresenta dois assuntos de maior destaque: a correção da tabela para cálculo do IR pessoa física (IRPF), com a elevação mais expressiva do limite de isenção, e a tributação dos lucros e dividendos. O discurso político é de que se eleva a tributação dos ricos que recebem dividendos, mas se reduz ou se elimina o tributo dos contribuintes de menor renda. Isso é conversa eleitoreira e não corresponde à verdade. Vejamos.

A correção da tabela do IRPF não é, necessariamente, redução permanente de tributação dos contribuintes de menor renda. Basta que não se corrija a tabela nos próximos anos, que a inflação corroerá o benefício ora concedido. Já o aumento da tributação do capital, num país que tanto necessita de estimular o investimento, tem caráter permanente.

Na verdade, é um imenso equívoco achar que a tributação dos dividendos reduz a regressividade do IR. Pouco importa se o lucro é tributado na pessoa jurídica onde é gerado, na pessoa física dos sócios ou acionistas, ou em ambas. O relevante é determinar qual a parcela dos rendimentos do capital que vai para o Tesouro.

O PL não altera as enormes distorções que existem na legislação atual para a tributação dos lucros. Ao contrário, amplia várias delas. Dependendo da magnitude das suas receitas, do setor que opera, da possibilidade de exclusões maiores ou menores do lucro contábil para cálculo do imposto, as alíquotas efetivas do IR das pessoas jurídicas variam de cerca de 10% até 50%, no caso dos bancos. Embora avancem em alguns pontos, as novas normas de tributação oferecem outras possibilidades de arbitragens para redução ou mesmo elisão do IR.

Outras pautas da agenda econômica também estão sendo mal conduzidas. A privatização da Eletrobrás foi desastrosa. Optou-se por um modelo de diluição do capital estatal sem qualquer estudo técnico prévio e incluíram-se inúmeros interesses setoriais e corporativos, que nada têm a ver com a privatização da estatal. O Tesouro acabará ficando com muito pouco e a conta dos jabutis será paga pelos consumidores.

As instabilidades políticas, quase todas criadas pelo próprio presidente da República, e a ineficácia do seu outrora Posto Ipiranga dão poucas esperanças de aprovação de uma boa reforma administrativa.

Em resumo, as reformas estruturais estão sem rumo. Com isso a retomada sustentável do crescimento fica novamente postergada.

12 de julho de 2021

A HORA DA RESPONSABILIDADE SOCIAL!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 10) Antes da pandemia, na maior parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento as desigualdades estavam crescendo. Um dos fatores decisivos é a divisão entre os empregos mais e menos qualificados, aprofundada pela digitalização do mercado de trabalho. Ao acelerar essa digitalização, a pandemia agravou as disparidades: não só os trabalhadores menos qualificados tiveram mais dificuldades de se adaptar e manter seus empregos e rendas, como encontrarão mais dificuldades de recuperá-los no pós-pandemia.

“Há um risco real de que o fosso da crise da covid aprofundará a desigualdade e a exclusão a menos que os governos ponham os empregos no coração da recuperação”, alerta a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em seu Panorama do Emprego 2021.

Desde 1985, a renda nos países da OCDE cresceu 63% para os 10% no topo de renda e apenas 20% para aqueles nos 10% da base. Na pandemia, 1 em 10 empregos de baixa renda foi destruído, enquanto nas ocupações mais bem remuneradas o choque foi absorvido por reduções nas horas de trabalho subsidiadas por programas de retenção ou pela mudança para o teletrabalho. No pico da crise, metade dos trabalhadores mais bem pagos conseguiu trabalhar de casa, enquanto para os menos bem pagos o índice foi de 29%.

Apesar das medidas emergenciais, outros grupos vulneráveis, como trabalhadores que não estavam sob contratos-padrão de trabalho assalariado em tempo integral e os jovens, foram mais impactados pelas perdas de emprego e renda. A crise também foi marcada por outras formas de desigualdade econômica, como a maior exposição dos trabalhadores da “linha de frente” e suas famílias ao vírus e as dificuldades de seus filhos de acompanhar as aulas a distância, dada a carência de meios digitais.

“À medida que os governos desenvolvem seus planos de recuperação, é essencial continuar a apoiar as famílias mais necessitadas, dando maior atenção, ao mesmo tempo, a medidas fiscais projetadas para impulsionar o crescimento de empresas e empregos que têm um futuro viável no ambiente póscovid”, disse o secretário-geral da OCDE, Mathias Cormann.

Promover a inclusão exige o enfrentamento de lacunas persistentes na proteção social, especialmente à medida que novas formas de emprego, diversas do padrão assalariado em tempo integral, se multiplicam. Muitos países editaram medidas emergenciais para trabalhadores autônomos e outras modalidades diversas do padrão durante a pandemia, reduzindo temporariamente algumas lacunas. “Essa experiência precisará ser agora reavaliada e traduzida em respostas estruturais mais sistemáticas”, como formas de proteção mais neutras por meio das diversas modalidades de trabalho, melhorias na portabilidade de títulos de seguridade e uma elegibilidade mais adaptada às novas necessidades das pessoas.

Uma recuperação equânime exigirá a combinação entre subsídios temporários para contratações cuidadosamente focadas e políticas de treinamento para orientar os trabalhadores menos qualificados a novas oportunidades de trabalho.

Atualmente, as oportunidades de treinamento são desiguais e as políticas de requalificação não chegam aos trabalhadores mais vulneráveis. Nos países da OCDE, em média, a participação em programas de treinamento daqueles que não têm educação secundária é um terço da dos trabalhadores com formação superior. Os trabalhadores cujos empregos sofrem maiores riscos de automação têm metade da probabilidade de se engajar em aprendizagem adulta em comparação a seus pares em empregos menos afetados por esse risco.

“Todos os esforços deveriam ser empregados para promover uma cultura de aprendizagem contínua e vitalícia, conectando o treinamento aos indivíduos mais do que aos empregos.” A oferta de programas de reciclagem, adaptados às condições de renda e de horário dos trabalhadores menos qualificados, precisa ser acompanhada de campanhas de conscientização. Engajar os empregadores nesse processo é fundamental para conferir mais resiliência aos seus próprios negócios e para o crescimento da produtividade em geral.

09 de julho de 2021

O DRAGÃO E A POMBA!

(Paulo Leme – O Estado de S. Paulo, 04) Desde 1993, o Fed conseguiu reduzir a taxa de inflação de volta ou abaixo de 2%. Muitos investidores americanos nunca operaram em um ambiente de inflação e, portanto, não têm o conhecimento técnico sobre as causas e os efeitos da dinâmica inflacionária. Por um lado, isso é bom, porque ancora as expectativas de inflação. Por outro lado, é ruim, porque os investidores não sabem antecipar um ciclo inflacionário.

Os EUA têm um histórico de inflação baixa. As únicas exceções são as quatro guerras (civil, as duas guerras mundiais e Vietnã), quando déficits fiscais aumentaram a inflação (abaixo de 20% ao ano).

O ciclo inflacionário da guerra do Vietnã começou em 1968 e durou 16 anos, gerando um pico de 13,5% em 1980 e uma média de 7,1% ao ano. As cinco causas deste ciclo são: (a) o aumento excessivo do déficit fiscal causado pelos gastos com a guerra; (b) a compra da dívida do Tesouro pelo Fed; (c) a monetização desta dívida através da expansão da base monetária; (d) os dois choques de aumentos do preço do petróleo; e (e) a espiral preços-salários viabilizada pelo poder sindical. Os dois agravantes foram a desancoragem das expectativas de inflação e a inércia.

As seis lições deste ciclo são: (a) um choque temporário de preços só é inflacionário quando o governo acomoda o choque com políticas fiscais e monetárias expansionistas; (b) quando o governo aperta a política macroeconômica, ele acaba afrouxando porque não aguenta o custo político do desemprego; (c) assim que afrouxava, a inflação subia mais ainda; (d) os economistas não sabem qual é o limiar da desancoragem das expectativas de inflação; (e) os controles de preços só aumentam os custos da inflação; e (f) o custo pago para reduzir a inflação é maior do que os ganhos efêmeros gerado por programas de estímulo econômico.

Paul Volcker foi o presidente do Fed que derrotou a inflação. Ele implementou um arrocho monetário tão brutal que levou a economia mundial à recessão e à crise da dívida externa dos países emergentes em 1981. Mas só a partir de 1993 que a inflação caiu abaixo de 3%.

Este preâmbulo nos ajuda a traçar cenários para a inflação. A pandemia e a falta de investimentos causaram um choque de oferta longo e intenso de matérias-primas, aumentando a inflação nos EUA.

Em 2021, a taxa de inflação anualizada medida pelo índice de preços ao consumidor (atacado) triplicou para 6,7% (10,7%). O Fed postula a tese que este aumento é temporário e que, em breve, a inflação voltará à meta de 2,5%. O Fed tem tanta credibilidade que o mercado comprou a tese: a inflação implícita nos títulos do Tesouro de 10 anos está abaixo de 2,5%.

Hoje, a economia americana é estruturalmente diferente daquela dos anos 70. O choque de oferta de matérias-primas é temporário, mas ele vai durar mais ano ainda. O Fed está cutucando o dragão da inflação com vara curta, subestimando o risco de que a inflação será muito mais alta e por um período mais longo do que ele está prevendo.

Hoje, quatro das cinco causas da inflação registrada nos anos 70 estão presentes. O setor privado voltou agastar e, portanto, o governo não deveria seguir aumentando os gastos sem ter as fontes de receita. O governo está gerando um excesso de demanda que, dado que a oferta agregada é inelástica no curto prazo, será inflacionário.

O Fed tem de parar de comprar ativos: o mercado de renda fixa funciona normalmente, e a intervenção do Fed gera taxas reais de juros negativos. No primeiro semestre de 2021, o Fed expandiu a base monetária em US$1 trilhão: ele compra dos bancos títulos do Tesouro e os paga com reservas bancárias.

Hoje, o Fed detém 25% do estoque da dívida do Tesouro americano e 21% dos ativos lastreados por hipotecas. Como não há demanda por crédito, os bancos acumulam um excesso de reservas bancárias.

Para evitar que a taxa Fed funds fique negativa, o Fed retira estas reservas através de operações compromissadas: ele compra a liquidez dos bancos e lhes dá como garantia títulos do Tesouro. O aumento do saldo das compromissadas é comparável ao aumento da base monetária, o que é patológico.

O Fed está monetizando a expansão da dívida pública, que é um dos mecanismos de transmissão dos déficits fiscais à inflação. O excesso de oferta monetária é absorvido por um excesso de demanda por ativos financeiros, imóveis e bens e serviços, aumentando os preços. Como o governo vai seguir gastando sem aumentar impostos, eles serão financiados por emissão de dívida e base monetária.

Hoje, o equivalente ao choque do petróleo é a explosão dos preços de matérias-primas: desde o início da pandemia, o índice de preços de commodities CRB dobrou. Outros preços sofreram aumentos de 20% a até 100%. O próximo item a explodir serão os aluguéis.

Até o momento, a inflação ainda não gerou uma alta descontrolada dos salários (eles estão subindo 3% ao ano). No entanto, a pandemia e os programas de auxílio-desemprego geraram escassez de mão de obra: dado os salários atuais, alguns trabalhadores preferem ficar em casa. Se o governo seguir pressionando a demanda agregada e a procura por trabalho, os salários subirão. No entanto, à diferença dos anos setenta, hoje os sindicatos não têm o mesmo poder de barganha para pleitear aumentos contínuos de salários.

O último ingrediente que falta para deflagrar um processo inflacionário é a desancoragem das expectativas, o que está prestes a ocorrer. Quando o mercado perceber a gravidade do problema, as expectativas de inflação vão decolar. O mercado aumentará o prêmio de risco por inflação e antecipará o ciclo de alta de juros pelo Fed, deslocando para cima a curva de juros e derrubando o preço das ações.

O Fed terá de antecipar o ciclo e aumentar a taxa juros a um nível acima do que teria sido necessário caso ele já tivesse tomado medidas contracionistas. Estes aumentos fortes e inesperados da taxa de juros geralmente levam a economia a uma recessão e a um “bear market”.

A conjuntura econômica é excelente, e as perspectivas para os mercados financeiros são boas. Ainda há tempo para que o Fed e o governo encerrem o ciclo de estímulos monetários e fiscais, já que são desnecessários e nocivos à economia.

Seria ideal que o Fed iniciasse em agosto o fim do programa de compras de ativos. O governo deveria respeitar os princípios de um orçamento equilibrado e da boa gestão da dívida pública. Como aprendemos a duras penas no Brasil, um banco central jamais deve monetizar parte da dívida pública para financiar gastos públicos porque acorda o dragão e termina em inflação.

18 de julho de 2021

É O AQUECIMENTO GLOBAL, ESTÚPIDO!

(Ishaan Tharoor – Washington Post/O Estado de S. Paulo, 01) Já no primeiro mês de verão no Hemisfério Norte, os recordes estão sendo batidos. EUA e Canadá estão nas garras de uma onda de calor. Grandes cidades como Portland e Seattle registraram os dias mais quentes da história. Milhares ficaram sem luz. O asfalto das estradas rachou. Autoridades canadenses relataram um “aumento significativo de mortes” que parecem estar ligadas ao clima. “Está mais quente no Canadá do que em Dubai”, disse David Phillips, climatologista da Environment Canada.

Mas, em um planeta em aquecimento, isso parece cada vez mais normal. “Muitos expressaram choque com a onda de calor. Mas ela é bola cantada”, escreveu Jason Samenow, do Washington Post. “Desde a década de 70, os cientistas alertam que o aquecimento global faria ondas de calor mais frequentes, duradouras e intensas.”

Ainda assim, a onda atual é surpreendente. Claro, em outras partes do mundo a realidade é ainda mais dura. O Iraque também sofre interrupções de energia. Na segundafeira, o ministro da Eletricidade iraquiano renunciou, porque o país não tem dinheiro para pagar ao Irã, que fornece energia. O caso ocorre no momento em que a temperatura no sul do país chega a 50°C.

No Kuwait, Omã e Emirados Árabes está ainda mais quente. Estudos sugerem que regiões inteiras no Oriente Médio e sul da Ásia podem se tornar inabitáveis em algumas partes do ano. Recentemente, o Daily Telegraph relatou que os termômetros marcaram 52,2°C em Jacobabad, no Paquistão.

No Ártico, os recordes em algumas cidades foram quebrados na semana passada. Na Sibéria e no Alasca, camadas de “gelo eterno” derreteram. A deterioração do solo vem criando desafios. Um estudo recente do governo russo indicou que os danos à infraestrutura podem custar US$ 67 bilhões em meados do século, enquanto o ministro do Meio Ambiente do país disse que 40% de todos os prédios no norte da Rússia estavam sofrendo deformações estruturais.

O consenso científico é claro: “As mudanças climáticas estão jogando os dados contra nós”, disse Katharine Hayhoe, da ONG Nature Conservancy. “As ondas de calor estão chegando antes, são mais longas e mais fortes.” Embora os efeitos da mudança climática sejam sentidos de forma mais intensa, a ação política está longe de ser alcançada.“

A atual onda de calor é mais um lembrete de que o mundo não está se movendo rápido o suficiente para restringir o uso de combustíveis fósseis e reduzir as emissões de carbono”, afirmou o Los Angeles Times, em editorial. “Há uma saída para este pesadelo”, escreveram os ativistas Michael Mann e Susan Joy Hassol, no New York Times. “Uma rápida transição para energia limpa pode estabilizar o clima, fornecer empregos bem remunerados, fazer a economia crescer e garantir o futuro de nossos filhos.”

Mas não há consenso sobre como fazer a transição. No momento, republicanos e democratas discutem um projeto que injeta bilhões de dólares para renovar estradas e infraestruturas críticas dos EUA, mas deixa de lado iniciativas cruciais sobre mudança climática. Na cúpula do G-7, os países mais ricos do mundo nem sequer concordaram com um cronograma para encerrar o uso do carvão. Projeções da ONU sugerem que um acordo pode chegar tarde demais para evitar o aumento de 1,5°C nas temperaturas globais, principal objetivo dos acordos de Paris.

07 de julho de 2021

COMPROMISSO PARA RECUPERAR O ESTADO DO RIO!

(Cláudio Frischtak – O Globo, 06) Muitos se perguntam por que, afinal, o Estado do Rio tem sido tão malgovernado, e por tantos anos. Por que a qualidade de nossos representantes — seja em Brasília, seja na Assembleia Legislativa (e na maioria das Câmaras) — é, de modo geral, tão ruim? Por que um estado que teve, e tem, a bonança do pré-sal está numa situação fiscal tão débil, em contínua fuga de uma reforma que dê capacidade e sustentação para cumprir as obrigações financeiras e prestar serviços decentes à população? Por que o estado empobreceu e é território de uma anomalia talvez única no país, com áreas tomadas de forma quase permanente por milícias e traficantes? Acredito que não seja obra do acaso. É fruto da história, das circunstâncias, das instituições — e de nossa omissão.

Parto de uma constatação: nenhum estado sofreu a violência político-administrativa que se abateu sobre a antiga Guanabara e o Estado do Rio, começando por um regime militar que extirpou os dois partidos modernizantes e suas lideranças nos anos 1960: aqui, na antiga Guanabara, a UDN; lá, no antigo Estado do Rio, o PTB. Aqui, Carlos Lacerda, cassado e posto no ostracismo; lá, os herdeiros de Roberto Silveira, talvez o maior talento do PTB, que uniu o partido à UDN (e outros) na eleição para governador em 1958.

Não há vácuo na política. O espaço foi logo ocupado pelo chaguismo, instrumentalizado pela política clientelista, na ausência de eleições diretas e associado ao regime de força, inicialmente na Guanabara, expandindo-se depois para o novo Estado do Rio. Pois, como não bastasse o primeiro golpe — em que se tolhem e cassam os direitos políticos de novas lideranças —, vem o segundo: a fusão dos dois estados, decretada em 1974 sem consulta, de forma autoritária, com claros objetivos: transformar a cidade-estado em mais um município, retirar seu protagonismo enquanto símbolo e síntese da nacionalidade, caixa de ressonância política e da cultura de resistência. O Rio foi violentado. A centralidade de Niterói foi alienada, sua capacidade de reciclar e educar as elites do antigo Estado do Rio foi reduzida à inexpressividade. Ao juntar as duas burocracias, imperou o mínimo denominador comum. Perdemos todos.

Com a redemocratização, as tentativas do primeiro governo Brizola e do início do governo Moreira Franco de resgatar a modernização dos anos 1960 foram relativamente tímidas e, mais adiante, frustradas. Já em meados dos anos 1980, as piores práticas tinham se entranhado; a corrupção se normalizou; e a criminalidade batia à porta. Sucessivos governos e seus sustentáculos no mundo político só fizeram confirmar que o passado sequestrou o presente.

Há futuro? Se a história nos ensina algo é que mudanças estruturais na forma de governar demandam liderança, coragem política para romper o statu quo e capacidade de convencimento. Sobretudo, porque o desafio implica desalojar interesses poderosos incrustados no próprio Estado. A agenda é clara: enfrentar a criminalidade associada à ocupação territorial, comumente com apoio de agentes do Estado; e a corrupção institucionalizada, não infrequentemente com apoio de instituições de Estado. Reformas necessárias no Rio demandam ainda competência para propor e executar políticas públicas voltadas para a redução da desigualdade e para a ampliação das oportunidades, especialmente pela educação dos jovens e apoio à primeira infância. É inescapável começar por um compromisso absoluto de integridade e eficiência do setor público, voltado para oferecer melhores serviços à população.

Tivemos aqui perto, no Espírito Santo, uma história parecida com final feliz, com a eleição de um novo governo, o recuo da criminalidade institucionalizada, a recuperação econômica e a capacidade de avançar na política social. Podemos nos inspirar e aprender que, sem o envolvimento e a mobilização da sociedade civil — de cada um de nós —, será difícil avançar. Não há mais como esperar; façamos a hora.

06 de julho de 2021

ENGASGOS E SOLUÇOS!

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 03) O que estamos vendo, desde antes da pandemia, é um abismo profundo, ou um colossal retrocesso.

Em 1958, quando publicou seu clássico Os Donos do Poder, Raymundo Faoro apresentou-nos uma tese deveras preocupante: a de que, desde os tempos coloniais, um “patronato político” se apropriara do Estado, apagando praticamente a distinção entre o público e o privado.

Curioso é que tal tese, por mais preocupante que fosse, permitia duas interpretações diametralmente opostas. Uma, pessimista, sugeria que tal sistema de domínio, o chamado patrimonialismo, fincara raízes profundas, a ponto de ninguém descortinar um caminho para a sua erradicação. Essa vertente sugeria que, do ponto de vista político, nossa melhor chance seria chegar a uma fachada democrática, atrás da qual o patronato prosseguiria com seus negócios; economicamente, estaríamos condenados ao mesmo grau de mediocridade, uma vez que tal sistema jamais permitiria uma transição efetiva para o capitalismo nem a opção para um totalitarismo dinâmico, como o da China atual. Na vertente otimista, asseverava-se que o patrimonialismo não resistiria ao crescimento econômico, à urbanização, à crescente intensidade da competição política – à modernização, enfim.

Retomando a questão original, a que conclusão chegaríamos hoje? Atrevo-me a afirmar que o cenário pessimista não só prevaleceu, como se tornou muito pior do que o concebido por Faoro. Não levo essa afirmação ao extremo de contestar que avançamos bastante na construção da democracia, tese que defendo em meu livro Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira, cuja segunda edição está no prelo. Parece-me, porém, certo que não logramos o mesmo índice de progresso em termos econômicos, sociais e educacionais. E mais certo ainda que a estagnação econômica e a degradação institucional das últimas duas décadas já ameaçam seriamente as próprias conquistas democráticas. Para substanciar essa avaliação, nossa renda anual per capita e nossos índices educacionais são mais que suficientes.

O gosto pelos eufemismos leva-nos a empregar termos como estagnação, cenário preocupante e análogos, mas o buraco é bem mais embaixo. O que estamos vendo, desde muito antes da pandemia, é um abismo profundo, ou um colossal retrocesso, como queiram. Nesse sentido, limito-me a sublinhar um fato. Com dez minutos de reflexão, qualquer cidadão é capaz de discorrer com propriedade sobre as consequências de uma radicalização entre Lula e Bolsonaro – ou da vitória de qualquer um dos dois – na eleição presidencial de 2022.

Para bem entender a hipótese do retrocesso, penso que dois importantes fatores precisam ser levados em conta. Primeiro, nossa cultura política, que sempre teve dezenas de defeitos, submergiu em mais alguns que nós, por indiferença, medo ou hipocrisia, não nos dispomos a discutir. Éramos atrasados, mas não éramos boçais. Como sociedade, nunca chegamos ao convívio pacífico e fraternal que os acólitos da ditadura Vargas tentavam nos vender como mercadoria valiosa, mas tampouco chegávamos sequer perto do radicalismo grosseiro que se configurou plenamente a partir da eleição de 2018. E aqui preciso suscitar o segundo fator novo a que acima me referi. Essa aceitação preguiçosa da realidade de um país em decomposição explica-se sobretudo pela inexistência, entre nós, de uma elite digna do nome, quero dizer, no sentido sério do termo.

A reversão do cenário pessimista que tentei delinear nos parágrafos precedentes exige a superação do patrimonialismo e, portanto, o robustecimento do setor privado da economia, e respeito pelas instituições democráticas e pela esfera pública, valores que não estão à vista. Essa revolução – sim, porque essa é a revolução de que necessitamos – requer o fortalecimento, dentro da elite, de uma parcela efetivamente voltada para o bem comum, expressão antiga, mas ainda útil. Um pedaço ao menos de uma elite orientada por objetivos públicos, e não “amigos do rei”, voltados para a obtenção de vantagens pessoais e para o favorecimento de grupos privados.

Justiça seja feita, um embrião de uma elite desse tipo existiu em vários momentos de nossa História, e existe ainda hoje, mas ela permanece exígua em relação ao conjunto. Permanece e permanecerá exígua enquanto a parte maior se deixar pautar pela indiferença, pelo medo e pela hipocrisia.

Esse é o quadro com que nos deparamos quando examinamos o funcionamento do nosso sistema político, expressão que compreende os três Poderes, as empresas estatais e toda a miríade de organizações que gravita em torno deles. Refazê-lo de alto a baixo tem de ser o alfa e o ômega de uma verdadeira reforma política do País.

Desde os tempos de Faoro, quando esperávamos a debilitação do tosco patrimonialismo de origem portuguesa, o que vimos foi a transformação dele numa grande máquina corporativista e corrupta, perpetuando a subjugação do País por interesses exclusivistas. A manter-se tal engrenagem, o que gostaríamos de chamar de desenvolvimento sustentável será apenas a mesma interminável série de engasgos e soluços que temos testemunhado desde pelo menos a 2.ª Guerra Mundial.

05 de julho de 2021

GASTO COM ENSINO AJUDA MAIS OS RICOS, DIZ OCDE!

(Júlia Marques – O Estado de S. Paulo, 01) Um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgado ontem aponta que quase metade do gastos público com educação superior no Brasil beneficia os alunos mais ricos. O dado embasa uma das principais conclusões do relatório: a de que é preciso reavaliar prioridades de gastos com educação no Brasil e redirecionar as verbas para intervenções educacionais que levem a um maior retorno.

Em um cenário de crise econômica agravada pela pandemia de covid, o risco na educação é de que as desigualdades sejam aprofundadas e de que os mais vulneráveis acabem excluídos do acesso à escola ou não recebam educação de qualidade. Por isso, o relatório vê a necessidade de reavaliação dos gastos e destaca as disparidades no financiamento brasileiro às etapas de ensino.

A publicação foi elaborada a pedido da Todos Pela Educação e do Instituto Sonho Grande.

Sob o título “A Educação no Brasil: uma Perspectiva Internacional”, o texto afirma que, em 2017, o gasto público por aluno brasileiro na educação obrigatória foi menor do que nos países da OCDE, apesar de o gasto por aluno do ensino superior (US$ 16.232) ser maior do que a média da OCDE (US$ 13.342) e bem acima da maioria dos países da América Latina.

Com base em dados do Banco Mundial, o relatório indica que quase metade do financiamento do ensino superior vai para alunos que estão entre os 20% da população com renda mais alta. Menos de 10% vão para os 20% os de renda mais baixa.

“Esses alunos (do grupo mais rico) são de famílias que poderiam facilmente contribuir para custear sua educação. Aproveitar essa opção, por meio de modelos de compartilhamento de custos, liberaria recursos que poderiam ser dedicados a objetivos educacionais que trariam um retorno de equidade muito maior, como a expansão do ensino infantil”, indica o relatório.

A distribuição de dinheiro público entre educação básica e ensino superior motiva debates entre especialistas. Parte deles defende a prioridade de gastos em creche, pré-escola, ensinos fundamental e médio. Outra parte aponta o papel das universidades públicas no desenvolvimento social e científico do País e na formação docente.

Pandemia. Para a OCDE, as pressões da crise da covid-19, de certa forma, “ajudam a acelerar reformas difíceis e mais profundas”, como aquelas relacionadas à alocação de recursos. Uma estratégia para poupar dinheiro, segundo o relatório, seria reduzir as reprovações de alunos.

02 de julho de 2021

COM NEGOCIAÇÃO EXTERNA, CHAVISMO CEDE À OPOSIÇÃO!

(Agência EFE/O Estado de S. Paulo, 30) A 4 meses de uma eleição regional, o chavismo derrubou veto de 2018 à formação de uma coalizão opositora. Oferta vem após EUA e UE prometerem aliviar sanções se houver transparência.

O presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, Pedro Calzadilla, disse ontem que permitirá que a Mesa da Unidade Democrática (MUD), coalizão de partidos opositores, apresente candidatos nas eleições de prefeitos e governadores, em 21 de novembro. A decisão foi tomada no momento em que líderes da oposição se preparam para retomar o diálogo com o governo de Nicolás Maduro, com mediação da Noruega.

Em 2018, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) havia decidido que a MUD não estava autorizada a participar das eleições, argumentando que os seus candidatos não poderiam ser membros de uma coalizão e de partidos políticos individuais ao mesmo tempo. Como resposta, a oposição optou por boicotar a eleição, que qualificou de fraudulenta. Desde então, ela não reconhece a reeleição de Maduro.

O grupo foi formado em 2008 como uma aliança de oposição que reunia cerca de 30 organizações políticas. Em 2012, a MUD foi inscrita como partido para se apresentar às eleições legislativas de 2015, nas quais o chavismo perdeu o Congresso pela primeira vez em 15 anos. A coalizão opositora obteve nas urnas uma vitória esmagadora, conquistando 112 dos 167 assentos na Assembleia Nacional, tornando-se a chapa com mais votos na história da Venezuela.

“Hoje, por unanimidade, aprovamos um total de 20 novas denominações de organizações com fins políticos, que entrarão em vigor para participar das próximas eleições em 21 de novembro” disse Calzadilla, que acrescentou que cerca de 106 organizações políticas poderão participar da votação.
Boicote.

Nos últimos anos, a MUD se fragmentou ainda mais, com a saída alguns líderes históricos, como o ex-governador de Miranda e ex-candidato presidencial Henrique Capriles. No ano passado, parte da oposição se recusou novamente a apresentar candidatos nas eleições parlamentares de 2020, denunciando a falta de transparência e de condições justas.

Ao não reconhecer a vitória de Maduro, o líder da oposição Juan Guaidó, que ocupava a presidência do Parlamento, se autodenominou “presidente” da Venezuela, recebendo o apoio dos EUA e de outros 50 países, incluindo o Brasil. Maduro, no entanto, nunca cedeu terreno e manteve o controle total das Forças Armadas e do poder.

Com o tempo, Guaidó foi se enfraquecendo e dando sinais de que estava disposto a negociar com o governo chavista. Recentemente, ele restabeleceu contato com autoridades norueguesas para facilitar a negociação com Maduro, depois que um esforço anterior, em meados de 2019, não obteve sucesso.

Desgastado pela crise econômica, Maduro aceitou o diálogo, desde que as sanções internacionais sejam suspensas. Nas últimas semanas, diplomatas de EUA, Canadá e União Europeia haviam acenado com a possibilidade de aliviarem as sanções em troca de um avanço nas negociações por eleições transparentes e justas na Venezuela. “Este passo é uma oportunidade para reagrupar a oposição e reconstruir uma alternativa para mudança política”, disse o opositor venezuelano Stalin González.

Incerteza. Apesar do anúncio, ainda não está claro se os maiores partidos da oposição, como a Ação Democrática, o Vontade Popular e o Primeira Justiça, voltarão a se unir sob o guarda-chuva da MUD. Os principais líderes opositores, como Guaidó, Capriles e Leopoldo López, não deram indícios de que pretendem aceitar a oferta. Nos últimos anos, o chavismo tem recorrido à tática de oferecer pequenos acenos à oposição sem se comprometer com concessões significativas.

01 de julho de 2021

LÍDERES POPULISTAS DO LESTE EUROPEU ENFRENTAM UM PROBLEMA: IMPOPULARIDADE!

(Folha de SP, 07) Fortalecida pela vitória inesperada de Donald Trump em 2016, a maré populista de direita no leste da Europa não recuou após a derrota do presidente americano em novembro passado. Mas chocou-se com um obstáculo sério: seus líderes não são muito populares.

Depois de vencer eleições graças às criticas a elites amplamente repudiadas, parece que os populistas de direita no flanco oriental da Europa, ex-comunista, não contam com grande simpatia da população.

Isso se deve em boa medida aos impopulares lockdowns para combater o vírus e, como ocorre com outros líderes independentemente de sua postura política, às suas respostas trôpegas à crise sanitária. Mas os populistas também estão sob pressão devido à fadiga crescente provocada por suas táticas divisivas.

Na Hungria, o premiê Viktor Orbán encara uma oposição unida, algo que não é nada característico. Na Polônia, o governo profundamente conservador fez uma virada abrupta para a esquerda em sua política econômica, num esforço para reconquistar apoio. E na Eslovênia, o partido governista de extrema direita do primeiro-ministro que tanto gosta de Trump vem caindo desastrosamente nas sondagens.

O líder esloveno, Janez Jansa, que fez manchetes internacionais ao parabenizar Trump pela “vitória” do republicano em novembro e que se descreve como flagelo das elites liberais, que caracteriza como comunistas, talvez seja o populista impopular em situação mais precária na região.

Fortalecido pelas promessas nacionalistas de barrar candidatos a asilo vindos do Oriente Médio e “garantir a sobrevivência da nação eslovena”, o Partido Democrático Esloveno de Jansa conquistou a maioria dos votos numa eleição em 2018. Um novo governo de coalizão liderado pela legenda recebeu um índice de aprovação de 65% no ano passado.

Desde então esse índice caiu para 26%, e Jansa está tão impopular que seus aliados vêm abandonando o barco. Protestos de rua contra ele vêm atraindo dezenas de milhares de pessoas —números enormes em um país alpino, normalmente plácido, cuja população totaliza apenas 2 milhões de pessoas.

Jansa segue adiante, mas trôpego, tendo sobrevivido por margem estreita a um voto de não confiança no Parlamento e a uma tentativa recente de impeachment lançada por legisladores oposicionistas e políticos que abandonaram sua coalizão. Mas saiu tão enfraquecido que “não tem mais o poder de fazer nada” senão insultar seus adversários no Twitter, disse o professor universitário Ziga Turk, ministro em um governo anterior encabeçado por Jansa que abandonou o partido governista em 2019.

Admirador de Orbán, Jansa vem procurando reprimir a mídia noticiosa, como os governos nacionalistas húngaro e polonês conseguiram fazer, ao menos no caso da TV. Mas a única emissora que o apoia constantemente, uma estação bombástica e parcialmente financiada pela Hungria chamada Nova24TV, tem audiência tão pequena —menos de 1% na maioria dos dias— que sequer é incluída nos rankings.

O filósofo-celebridade e autodeclarado “marxista moderadamente conservador” Slavoj Zizek —um dos poucos eslovenos conhecidos fora do país além de Melania Trump— disse que ainda é cedo para descartar líderes como Jansa, Orbán e Jaroslaw Kaczynski, da Polônia, cujos países descreveu como um “novo eixo do mal”.

Para Zizek, líderes populistas nacionalistas raramente vencem concursos de popularidade. Seu trunfo maior teria sido a desorganização de seus adversários, muitos dos quais o filósofo vê como sendo demasiado focados no “moralismo excessivo” e questões que não interessam à maioria dos eleitores em vez de procurarem resolver os problemas econômicos. “A impotência da esquerda é apavorante”, disse.

O fato de o populismo nacionalista continuar a representar uma força é demonstrado pela líder francesa Marine Le Pen, de extrema direita. Seu partido se saiu mal nas eleições regionais francesas no fim de semana, mas pesquisas de opinião indicam que ela pode ser uma candidata forte na eleição presidencial de 2022, pelo fato de ter suavizado sua imagem de populista incendiária, desistindo da incitação aberta ao racismo e de sua oposição anterior e impopular à União Europeia e sua moeda comum, o euro.

Nunca tendo ocupado um cargo político elevado, Le Pen também conseguiu evitar as armadilhas encontradas por populistas do centro e do leste da Europa, que vêm chefiando governos durante a pandemia. A Hungria, sob a égide de Orbán, o autodeclarado porta-bandeira europeu da chamada “democracia iliberal”, apresenta o maior índice mundial de mortes per capita por Covid, só atrás do Peru.

A Polônia e a Eslovênia vêm se saindo um pouco melhor, mas seus partidos governistas de direita, respectivamente o Partido Lei e Justiça e o Partido Democrático Esloveno, são repudiados pela população devido ao tratamento que vêm dando à pandemia. Mas o maior perigo que ameaça líderes como Jansa e Orban são os sinais de que seus adversários divididos estão finalmente unindo suas forças.

Na Hungria, uma gama de partidos de oposição diversos e antes em desacordo se uniu para enfrentar o partido governista Fidesz, de Orbán, nas eleições que ocorrerão em 2022. Caso se mantenham unidos, podem muito bem sair vencedores, se as pesquisas de opinião estiverem corretas.

Na Eslovênia, Jansa mobiliza uma base leal de cerca de 25% do eleitorado, mas tem tido “êxito ainda maior em mobilizar seus muitos adversários”, disse o historiador esloveno e ex-partidário hoje desiludido Luka Lisjak Gabrijelcic. “Sua base o apoia, mas muita gente o odeia de verdade.”

Essas pessoas incluem o presidente do Parlamento, Igor Zorcic, que abandonou a coalizão de Jansa recentemente. “Não quero que meu país siga o modelo húngaro”, comentou ele.

Gabrijelcic disse que saiu do partido de Jansa porque tornou-se “excessivamente hostil”, afastando-se do que ele enxergava como uma resposta sadia à ortodoxia desgastada de centro-esquerda e virando em vez disso um reduto de paranoicos e vozes de ódio nacionalista. Em toda a região, acrescenta ele, “a onda inteira perdeu seu impulso”. Turk, o ex-ministro esloveno, disse que os liberais exageraram o perigo representado pela virada nacionalista na Europa, mas que a polarização é muito real.

“O ódio é ainda mais extremo que nos Estados Unidos”, lamentou.

30 de junho de 2021

ESTUDANTES MAIS POBRES TÊM ACESSO MENOR A ABERTURA DE ESCOLAS NA PANDEMIA, MOSTRA DATAFOLHA!

(Paulo Saldaña – Folha de S.Paulo, 24) O movimento de retorno às escolas experimentado nas redes públicas do país, mesmo que parcialmente, revela forte quadro de desigualdades.

A proporção de alunos pobres que tiveram essa oportunidade (16%) é menor que a metade da registrada entre estudantes com maior renda (38%). Os dados são de pesquisa Datafolha encomendada pela Fundação Lemann, pelo Itaú Social e pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

É maior a proporção de negros e mulheres entre as famílias com alta vulnerabilidade, com menor acesso ao retorno, revelando assim o perfil dos maiores atingidos. O abismo é também regional.

Enquanto 40% dos estudantes do Sudeste e do Sul tiveram acesso a escolas reabertas, mesmo que parcialmente, a região Norte tem índice de 6%; no Nordeste, são 11%. Escolas urbanas tiveram melhor índice de reabertura do que as rurais.​

A pesquisa ainda reforça o baixo e desigual acesso ao ensino remoto ou híbrido, com, por exemplo, oferta de plataformas educacionais. O cenário geral tem forte relação com a ausência de uma política federal do governo Jair Bolsonaro para a educação básica na pandemia, sobretudo com foco no combate a desigualdades, na garantia de conectividade e na estruturação para uma oferta educacional remota.

Questionado, o Ministério da Educação não respondeu.

A pesquisa foi realizada entre abril e maio, com foco em estudantes de ensino fundamental e médio de escolas públicas (com idades entre 6 e 18 anos). Foram ouvidos 1.997 estudantes (amostra com margem de erro de 2 pontos percentuais) e 1.315 responsáveis (margem de erro de 3 pontos).

​Os dados mostram que há insegurança entre as famílias para o retorno. Quatro em cada dez estudantes que tiveram à disposição escolas reabertas, mesmo que parcialmente, não foram às unidades. O medo da pandemia aparece como a principal motivação.

29 de junho de 2021

PIB SOBE, MAS ÍNDICE DE BEM-ESTAR DA POPULAÇÃO É O PIOR DESDE 2002!

(Renée Pereira – O Estado de S. Paulo, 26) Apesar dos dados positivos sobre a retomada econômica, com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre deste ano, a realidade da população brasileira não traduz essa melhora. O sentimento de bem-estar continua em baixa e pode piorar ainda mais até o terceiro trimestre deste ano, conforme um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV).

Elaborado pelos economistas Aloisio Campelo Junior e Anna Carolina Gouveia, o trabalho mostra a evolução do índice de desconforto econômico brasileiro, medido pela agregação das taxas de desemprego e de inflação. O indicador no período da pandemia, entre fevereiro de 2020 e março de 2021, é o maior desde o ciclo entre outubro de 2002 e junho de 2003 – 103,8 ante 128,3.

“Recentemente temos visto notícias de um PIB maior, melhora na área fiscal e retomada de alguns setores econômicos. Mas isso não corresponde ao bem-estar da população”, diz Anna Carolina. Segundo ela, hoje o País tem um mercado de trabalho ruim e que deve se manter com taxas elevadas no curto prazo por causa do retorno das pessoas na procura por emprego.

O dado mais negativo, segundo a economista, é que o nível de desconforto do brasileiro tem persistido em patamar elevado há muito tempo. Em 2002, por exemplo, o índice atingiu um pico por causa da inflação elevada e da taxa de desemprego, que estava em torno de 10% e 11%. Mas o indicador cedeu logo. “Agora essa patamar esta alto há alguns anos. Mal saímos da crise de 2015/2016, com crescimento baixo nos últimos anos, e já caímos em nova recessão por causa da pandemia. É um acúmulo de mal-estar”, diz Anna Carolina.

De acordo com o trabalho, historicamente, “a manutenção de níveis elevados de desconforto por muito tempo termina levando a pressões por mudanças de política econômica, além de consequências de natureza social e política”. A análise feita por Campelo e Anna Carolina mostra que a persistência do desconforto econômico no período entre 2014 e 2021 é o pior dos últimos 25 anos.

Avaliação ampla. Para avaliar mais profundamente a sensação de desconforto da população, já que a dimensão subjetiva de bem-estar não está contemplada no índice, o IBRE/FGV calculou outros dois indicadores. “Procuramos resolver essa carência com a introdução de uma variável que reflete a porção do Índice de Confiança do Consumidor da FGV que não é determinada por fatores econômicos”, diz a economista, no estudo.

Assim, o Índice de Desconforto 2 incluiria aspectos de natureza não econômica como, por exemplo, o medo da pandemia e a tendência à depressão devido às medidas de isolamento social, entre outros fatores. O resultado foi pior do que o Índice 1, que só inclui desemprego e inflação. Se no primeiro, o indicador era de 103,8, no segundo, chegou a 118,4.

“A pandemia não está controlada, e o ritmo de vacinação é lento. Isso faz o sentimento de mal-estar continuar alto. Quanto mais a pandemia demora, mais tempo vai levar para o nível de desemprego diminuir”, diz Anna Carolina.

No Índice de Desconforto 3, a economista conta que incluiu dados do PIB per capita e do consumidor. Nesse caso, os níveis máximos da série ocorreram durante a recessão de 2014-16 e em junho de 2020, quando a confiança dos consumidores, em média móvel trimestral, alcançou o menor nível histórico.

De acordo com o estudo, entre o final de 2020 e março de 2021, todos os indicadores de desconforto subiram, influenciados pelo aumento da inflação, queda lenta do desemprego, fim dos auxílios emergenciais e o recrudescimento da pandemia no Brasil.

28 de junho de 2021

A DEFESA DA FEDERAÇÃO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 26) Por maioria de votos, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que é inconstitucional a preferência da União em relação a Estados e municípios nas execuções fiscais. A decisão é significativa defesa do princípio federativo, com o reconhecimento de que, diferentemente do que ocorria em regimes constitucionais anteriores, a Constituição de 1988 proibiu expressamente a discriminação entre entes federados.

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, diz o texto constitucional.

Proposta pelo governo do Distrito Federal em 2015, a Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental (ADPF) 357 questionou a regra do Código Tributário Nacional (CTN) que prevê a preferência da União em relação a Estados, municípios e Distrito Federal na cobrança judicial de créditos da dívida ativa. Segundo a procuradoria-geral do Distrito Federal, além de contrariar a Constituição de 1988, essa preferência dada ao governo central prejudica a recuperação das dívidas e as contas dos governos locais.

“A Carta Política de 1988 promoveu uma verdadeira reconstrução do federalismo brasileiro, que se manteve apagado ao decorrer do regime ditatorial, não mais suportando distorções como a ordem de preferência estabelecida nos dispositivos impugnados”, afirmou o governo do Distrito Federal na ação.

Vale destacar que, durante o regime militar, com a vigência de outra ordem constitucional, o Supremo editou uma súmula validando precisamente o dispositivo legal discutido na ADPF 357. “O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9.º, I, da Constituição Federal”, dizia a Súmula 563 do STF, que agora foi cancelada.

Em seu voto, a relatora da ação, ministra Cármen Lúcia, fez um histórico do princípio do federalismo na jurisprudência do Supremo, mostrando que a aceitação da preferência da União na execução fiscal estava baseada num regime jurídico que já não estava vigente. “O tema é sensível e merece ser reapreciado à luz das normas constitucionais inauguradas pela Constituição de 1988”, disse a relatora.

Ao lembrar que o texto constitucional de 1988 exige tratamento isonômico entre os entes federativos, a ministra Cármen Lúcia destacou que a repartição de competências é o “coração da Federação”. Ou seja, não existe uma hierarquia entre os entes federativos, como às vezes equivocadamente se pensa. A União “é autônoma e igualase aos demais entes federados, sem hierarquia, com competências próprias”, disse a ministra Cármen Lúcia.

Não há precedência da União. Dentro das respectivas competências, cada ente federativo é autônomo. Tal característica da Federação confere funcionalidade à atuação do Estado, permitindo que o poder público atue em cada realidade local respeitando suas especificidades e atendendo às suas concretas necessidades.

No ano passado, o Supremo reconheceu que União, Estados e municípios desfrutavam de uma competência compartilhada na área da saúde pública. Com isso, o governo federal não poderia impor regras gerais – como queria o presidente Jair Bolsonaro, em sua batalha contra as medidas de isolamento social – aos entes federativos. A defesa da competência de governadores e prefeitos foi medida de especial relevância no enfrentamento da pandemia.

A decisão de agora do Supremo a respeito da não discriminação dos entes federativos nas execuções fiscais está em harmonia com a posição adotada sobre a saúde pública. Para que Estados e municípios desfrutem de verdadeira autonomia dentro de suas competências, eles devem dispor de meios efetivos para cobrança de suas dívidas fiscais.

Tanto para o equilíbrio institucional como para a eficiência do poder público em suas várias esferas, é essencial que o Supremo assegure a plena efetividade do princípio federativo. Autônomos, Estados e municípios não são e não podem ser tratados como entes dependentes da União.

24 de junho de 2021

A LIÇÃO DA OBRA GENIAL DE JOÃO DO RIO, CEM ANOS APÓS SUA MORTE!

(Joaquim Ferreira dos Santos – O Globo, 23) Meu caro João do Rio, aqui quem fala é o Quinzinho da Vila da Penha e só estou tomando essas liberdades porque sou dos seus afilhados, repórter de rua, um sujeito que gasta sola de sapato e não escolhe buraco para se meter, tanto faz se o Buraco da Lacraia na Lapa, o Cabaré dos Bandidos em Caxias, a pérgula do Copa ou o caminho atapetado até a mesa forrada de trufas brancas no Fasano de Ipanema. Rio de Janeiro, eis a mesma pauta e devoção. Os afortunados, os malbaratados, tudo é do interesse e consideração.

Eu faço fé na lição máxima de sua obra genial, as ruas têm alma, algumas são guerreiras, outras mequetrefes, e gosto de submetê-las ao inquérito de minhas caminhadas. É vício e profissão. Depois, uma vírgula de asfalto aqui, um parágrafo de vitrine mais adiante, as aspas de uma tabuleta colada no poste, e as ruas vão servindo de passarela para o leitor também flanar ao redor da idiossincrasia delas. Euclides da Cunha já tinha inventado o repórter épico, você inventou o repórter das esquinas. Não dá manchete, mas dá sabor ao jornal.

O francês e o malandrês

Obrigado por ter saído todos os dias da redação de O País, A Pátria, e eternizado a fanfarronice da Ouvidor sabichã, e obrigado também por ter subido o Morro de Santo Antônio com os sambistas calibrados de parati. O francês e o malandrês, você falou todas as línguas de seu tempo e eis aqui um aluno dedicado de seu curso. Rio, há muitos, João.

Você ensinou que dentro de uma cidade tem outra cidade, algumas perfumadas, outras esgoto puro, e sem preconceito lobrigou todas elas. A civilização europeia do Pereira Passos na Avenida Central, os batuques africanos de Tia Ciata na Praça Onze — e espremido entre essas culturas, deslumbrado por todas as possibilidades de vivência, sem hierarquizar superioridades, você traduziu a alma encantadora das ruas do Rio de Janeiro.

Cem anos adiante de sua morte, infartado no meio da rua onde sempre viveu, eu quero dizer, meu caro João de Tantos Rios, que a espanhola voltou piorada, agora com o nome pouco poético de coronavírus. Somos mais de 500 mil mortos, 212 milhões de quase mortos. A Ouvidor das redações dos jornais, a Lavradio dos chopes musicais, nenhum desses territórios de cidadania da nossa felicidade podem hoje ficar na mesma frase que “encantadora”.

Os repórteres, os cronistas, por mais que dediquem a existência ao culto de suas lições (“Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?”), foram avisados para fazer o contrário delas. Ficar em casa. Gastar sola de sapato virou sanitariamente perigoso. As notícias que chegam de fora das nossas janelas são do desaparecimento da deliciosa multidão de cocheiros de tílburis, músicos ambulantes, modern girl, chineses bêbados de ópio, ladrões sem pousada, poetas nefelibatas e feiticeiras ululando canções sinistras. Na alma desoladora das ruas do Rio de 2021 restou solitário o estressado entregador de iFood com o caixote vermelho às costas. No lugar das ruas ambíguas, das ruas nobres, das ruas trágicas e honestas, ficaram só as ruas desertas.

Os cronistas, então, mudaram de assunto. No momento, esperam que o tempo passe, a vacina faça efeito e eles possam novamente sair em campo e responder às questões que você, ó divino mestre da vida carioca, estabeleceu para a profissão. “Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua?”

23 de junho de 2021

NO 2º VOLUME DE ‘ESCRAVIDÃO’, LAURENTINO GOMES ANALISA O BRASIL DO SÉC. 18!

(Ubiratan Brasil – Estado de SP, 19) No início do século 18, o Brasil era um país que praticamente só olhava para o mar – as principais cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, eram litorâneas e a principal atividade econômica, cultivo da cana-de-açúcar, não invadia tanto o território. Mas foi nesse período que tudo mudou: com a descoberta das primeiras jazidas de ouro e diamante em regiões onde hoje são os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, houve um avanço populacional para o interior do País, fomentado principalmente pelo aumento da quantidade de escravos negros.

“Estima-se que, no século 18, cerca de 600 mil escravos se envolveram na mineração de ouro e diamantes, o que representaria cerca de 20% do total de cativos africanos trazidos para o Brasil neste período”, observa o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que lança agora o segundo volume da trilogia Escravidão, uma detalhada pesquisa sobre a história da escravatura negra – o primeiro saiu em 2019 e o último está previsto para o próximo ano.

Os escravos foram essenciais na construção da máquina de extração, pois muitos chegavam com mais conhecimentos sobre mineração que seus proprietários. Mas a febre do ouro promoveu uma corrida desordenada, com centenas de pessoas abandonando suas cidades, inclusive religiosos e portugueses, a ponto de o rei de Portugal limitar o êxodo por decreto. No livro, Laurentino conta que a falta de um mínimo de estrutura dos locais de mineração para receber tantas pessoas resultou em ondas de miséria e fome, além de uma violência desenfreada – execuções eram comuns em qualquer lugar ou horário.

A corrida do ouro provocou ainda uma decisiva mudança de perfil do País. “O século 18 mostra como a escravidão foi importante na construção da identidade brasileira”, observa Laurentino. “Até então, era uma nação pouco populosa e concentrada no litoral, mas, com a mineração, centenas de milhares de pessoas se mudaram para o interior, consolidando as fronteiras que hoje conhecemos. E, com a vinda de escravos, a população brasileira se multiplicou em apenas 100 anos, período marcado pela construção dessa grande África brasileira.”

A transformação com a chegada dos escravos foi decisiva não apenas na força de trabalho, mas também em hábitos religiosos, culinários, culturais e sociais. “Houve ainda a formação de quilombos, uma reestruturação da família urbana com presença de cativos nas residências e, nas artes, um bom exemplo são os mestres do barroco, quase todos negros.”

Tal movimentação resultou ainda em efeitos surpreendentes, como a aceitação da presença de escravos negros na sociedade brasileira como um fato normal. “A escravidão se tornou banal, corriqueira no Brasil daquela época”, observa Laurentino. “Até mesmo negros alforriados eram donos de escravos.” Ele aponta, como um bom exemplo, João de Oliveira, africano que se transformou em um grande traficante de cativos depois de acumular o dinheiro suficiente para comprar a própria liberdade. Ou seja, tornou-se traficante para deixar de ser escravo.

O crescimento dos processos de alforria, aliás, foi também marca desse fenômeno – cerca de 1% dos escravos brasileiros obtinha a própria liberdade anualmente, o que resultou em uma significativa população negra livre no País, maior do que em qualquer outro território escravista da América.

Em meio às suas inúmeras pesquisas, Laurentino identificou o que pode ter sido a primeira descoberta de ouro, ainda no final do século 17. Segundo ele, um desconhecido descendente de escravos encontrou o que se identificou como “ouro finíssimo” em Minas Gerais, vendendo a descoberta por um preço abaixo da sua importância. “O único registro deste homem, que era negro ou mestiço, está no livro Cultura e Opulência do Brasil Pelas Suas Drogas e Minas, do padre jesuíta André João Antonil, do começo do século 18”, comenta o jornalista, reforçando a tese de como a memória negra e africana no País ocupa cada vez mais uma posição secundária.

Isso permite, aliás, que Laurentino mostre como ficaram ultrapassadas duas visões a respeito do comportamento do escravo no Brasil – a do cativo passivo e apático, divulgada pelo sociólogo Gilberto Freyre, e a do negro em permanente estado de rebelião, tese defendida por teóricos marxistas já no século 20.

“Novos estudos têm levado a um entendimento mais complexo e diversificado do sistema escravista, marcado por nuances até pouco tempo atrás ignoradas ou subestimadas, nas quais os cativos se envolviam em processos contínuos e sutis de negociação e barganha, sempre testando os limites do sistema escravista em busca de ampliar seus espaços e oportunidades”, escreve ele. “Os escravos lutavam por coisas concretas como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos, muitos deles de matriz africana.”

Novamente, surge, como exemplo de uma figura fascinante, Francisca da Silva de Oliveira, conhecida como Chica da Silva, escrava que, depois de alforriada, atingiu posição de destaque na sociedade mineira, especialmente por manter uma união consensual com um rico contratador de diamantes. Apesar da imagem de mulher voluptuosa e dominadora divulgada pelo cinema e TV, ela, na verdade, foi comprada por diversos senhores desde a tenra idade para servir de objeto sexual. “Ela teve 14 filhos, o primeiro ainda na adolescência, o que a fez perder rapidamente os encantos da juventude, pois não há sensualidade que resista”, comenta Laurentino. Segundo ele, mesmo nascida cativa, Chica, depois de conseguir sua alforria, foi proprietária de mais de cem escravos – e nunca se empenhou em libertá-los.

Outro personagem de destaque do segundo volume de Escravidão é Elias Antônio Lopes, conhecido como Elias, o Turco. Um dos maiores traficantes de africanos escravizados da época, ele cedeu sua majestosa casa para a moradia de D. João VI, quando a comitiva portuguesa se mudou para o Brasil em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte. “Ele doou a casa – que depois abrigou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, destruído por um incêndio em setembro de 2018 – em troca de benfeitorias, como títulos de honrarias”, comenta Laurentino. “Isso sinaliza o foco do terceiro volume da série, que é a oficialização do toma lá dá cá, e Elias será a ponte para o novo livro.”

Iniciada em 2019, a trilogia surge em um momento marcado por manifestações antirracistas, como a deflagrada pela morte de George Floyd, no ano passado. Mesmo assim, no País, há muito ainda o que se fazer. “A escravidão é uma chaga do Brasil do século 21”, comenta. “Criamos mitos de democracia racial, quando ainda persiste a ideologia do negro inferior que justificou a escravidão, as redes sociais são inundadas por linguagem preconceituosa. No Brasil de hoje, o racismo é explícito mas também silencioso.”

22 de junho de 2021

‘NENHUM NOME DO CENTRO TEM MUSCULATURA SOZINHO PARA ENFRENTAR LULA OU BOLSONARO’, DIZ RODRIGO MAIA!

(Mariana Schreiber – BBC News Brasil, 17) A oposição ao governo Jair Bolsonaro tem aproximado adversários históricos na política. Na última sexta-feira, foi a vez do deputado federal Rodrigo Maia (sem partido), um dos líderes da oposição aos governo petistas, se reunir com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que deve novamente concorrer à Presidência da República em 2022.

Em entrevista à BBC News Brasil, Maia defendeu que o processo de diálogo político contra Bolsonaro “inclui o presidente Lula” e contou que se colocou à disposição dele para conversar com a equipe que organizará o plano de governo de sua candidatura. Ressaltou, porém, que isso não significa um apoio ao ex-presidente já no primeiro turno.

Seu foco, afirma, é trabalhar para que seu campo, que chama de “centro liberal”, tenha um candidato próprio capaz de chegar ao segundo turno no lugar do atual presidente para enfrentar Lula.

O plano, difícil de ser executado, é que todos os candidatos hoje atrás de Lula e Bolsonaro nas pesquisas se unam em uma única candidatura. Isso inclui a inglória missão de unir adversários como Ciro Gomes (PDT) e o governador de São Paulo, João Dória (PSDB).

Outra dificuldade que o próprio deputado vê na construção dessa candidatura do “centro liberal” é que parte relevante dos partidos do seu campo político, como PSDB, MDB e DEM, tem se alinhado ao governo Bolsonaro no Congresso, atraídos pelo repasse de recursos da União para suas bases eleitorais.

“Eu acho que o centro liberal hoje está muito amarrado na pauta bolsonarista. (…) Eu vejo hoje no Parlamento nosso campo muito acanhado, muito refém dessa máquina federal”, ressalta.

Se um candidato do “centro liberal” não passar do primeiro turno, Maia diz que votará em Lula contra Bolsonaro – em 2018, fez exatamente o inverso, escolheu no segundo turno o atual presidente para derrotar o PT.

Sua passagem à oposição a Bolsonaro acabou alimentando seu desgaste no DEM, partido que integrava desde os anos 90 e do qual acaba de ser expulso. A saída se deu por divergências públicas com o presidente do partido, ACM Neto, relacionadas ao alinhamento da legenda ao governo federal.

Agora, Maia tende a ingressar no PSD, seguindo o mesmo trajeto do prefeito do Rio, Eduardo Paes. Apesar das especulações de que ambos possam apoiar a candidatura de Marcelo Freixo (PSB) ao governo do Rio de Janeiro, Maia diz que o mais provável é ele e Paes trabalharem para que o PSD lance seu próprio candidato ao Palácio da Guanabara.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – O sr. e o prefeito do Rio, Eduardo Paes, se reuniram com o ex-presidente Lula na semana passada. Qual foi o objetivo desse encontro?

Rodrigo Maia – O prefeito Eduardo Paes fez o convite. O prefeito teve uma relação muito próxima ao presidente Lula quando um era presidente e o outro era prefeito. Eles mantêm boa relação e combinaram esse almoço certamente pra discutir política.

Discutimos a conjuntura política atual, futura, eleição de 2022. Acho que é importante que aqueles que, do meu ponto de vista, estão no campo democrático, dialoguem, independente se estarão ou não no mesmo palanque na eleição de 2022 no primeiro turno.

BBC News Brasil – O encontro surpreendeu parte do mundo político porque o senhor esteve historicamente no campo adversário do ex-presidente Lula, com duras críticas à política econômica do PT, aos escândalos de corrupção. Houve uma mudança de visão sua em relação ao Lula e ao PT? O que explica que agora os srs. tenham esse diálogo?

Maia – Eu, mesmo quando fazia oposição ao PT, sempre tive um bom diálogo com os líderes do PT na Câmara de Deputados. Sempre fui um adversário transparente, aberto, crítico principalmente à política econômica do final do primeiro governo do presidente Lula, mas principalmente do governo Dilma. Se você comparar a política fiscal do primeiro governo do presidente Lula com a política fiscal do governo Dilma, você vai ver diferenças enormes. E eu posso dizer que a equipe que comandou o Ministério da Economia (no governo Lula), escolhido pelo (ministro Antônio) Palocci, são todos quadros da minha relação política hoje, com que eu converso: o Marcos Lisboa, o Bernard Appy, o Joaquim Levy, que depois foi ministro da Dilma. Então, você tem que separar um pouco os dois governos.

Claro que os fatos ocorridos, os desvios, a utilização da Petrobras, são temas que a gente critica e vai continuar criticando. Eu sempre disse que o que tinha sido feito contra o presidente Lula, do meu ponto de vista, em relação ao que tinha de prova material contra ele, era muito frágil. Agora, é claro que a Petrobras foi utilizada por muitos de uma forma indevida e o Judiciário e o Ministério Público avançaram muito (contra o esquema de corrupção). E a gente viu o que aconteceu com a Lava Jato depois de muito poder, muitos excessos, muitas arbitrariedades.

À frente da presidência da Câmara eu tive a oportunidade de conviver mais próximo a todos os partidos e aos deputados do PT. Então, pra mim, estar dialogando com o presidente Lula no momento que a gente tem um governo que desrespeita o Congresso Nacional, desrespeita o Supremo Tribunal Federal, questiona a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro, é claro que esse governo acaba aproximando e nos colocando numa posição de mais proximidade em relação ao diálogo pra eleição de 2022.

BBC News Brasil – O sr. em 2018 votou no atual presidente Bolsonaro e um dos motivos era por que o sr. queria tirar o PT?

Maia – Não. Eu tinha dois temas. Primeiro, a minha dificuldade, claro, de votar no PT pela oposição histórica que fiz ao PT, mas, mais do que isso, eu olhava o (ministro da Economia) Paulo Guedes como um quadro que poderia, de alguma forma, conduzir a política econômica pra um caminho diferente daquilo que o Bolsonaro defendeu a vida inteira. A gente sabe que o Bolsonaro não é liberal na economia em hipótese nenhuma, mas eu achava que o Paulo Guedes poderia assumir esse papel. Acho que até no início tentou, mas depois acabou contaminado e envolvido com essa agenda bolsonarista.

Mas foram esses dois motivos que me fizeram votar no segundo turno. Eu nunca fiz campanha. Não sou daqueles que digo que eu me arrependo, até porque todo mundo sabia quem era o Bolsonaro. Quem falar que não sabia, não tá falando a verdade. Então, posso dizer que eu tinha uma posição de muito contraponto ao PT e tinha o Paulo Guedes na outra ponta que era uma pessoa com quem eu e meu pai (Cesar Maia) tínhamos uma relação há muitos anos no Rio de Janeiro.

BBC News Brasil – Justamente, o sr. tem dito que seu voto em Bolsonaro foi por esses dois fatores: sua oposição ao PT e o apoio à agenda econômica de Guedes. Agora, o sr. está disposto a fazer o contrário: votar no PT para tirar o Bolsonaro?

Maia – Não, eu estou disposto a construir uma candidatura no meu campo, no campo que eu chamo de centro liberal. Eu divido (o centro político) em dois grupos: o centro, que alguns chamam de centrão, e o centro liberal, que é o campo em que eu me coloco, que na economia tem uma visão que não é pragmática como o centrão tem.

Acho que o nosso campo deveria construir uma candidatura, mas que o encaminhamento não está do tamanho correto. Acho que essa tentativa permanente de uma certa exclusão do (governador de São Paulo João) Dória, de um certo conflito interno no PSDB com o governador de São Paulo, acho isso muito ruim e sinaliza de forma muito negativa.

Sendo o Dória o candidato do nosso campo ou não, isso é uma questão que eu acho que tem que ser uma decisão coletiva, porque nenhum dos nossos nomes tem musculatura sozinho para enfrentar o Lula ou o Bolsonaro. Acho que a nossa ida ao segundo turno passa por São Paulo, sendo o Dória o candidato desse campo, (assim como) passa por São Paulo com a compreensão do Dória que ele, no final do ano, não será a melhor opção, vamos dizer assim, pra representar esse campo.

Até a hipótese, que eu acho é importante, de trazer o PDT para esse diálogo, com a candidatura de Ciro Gomes, também (deve ocorrer) com a certeza que pode ser ele o candidato ou pode não ser. Então, nosso campo é que precisa organizar melhor as suas ideias, organizar melhor o seu espaço político.

Acho que o centro liberal hoje está muito amarrado na pauta bolsonarista, pela força que tem o governo nas nossas bases eleitorais. A gente vê com alguma preocupação o que hoje representa (a atuação no Congresso de partidos como) o PSDB, na maioria das vezes o MDB, o Cidadania, o Podemos, o próprio DEM, que eu acho que vai acabar apoiando o Bolsonaro. Vejo hoje no Parlamento nosso campo muito acanhado, muito refém dessa máquina federal. Todo mundo olhando suas reeleições. Então, acho que temos um caminho difícil, porque não temos nitidez de oposição ao governo, e nem conseguimos levar as bancadas desses partidos para essa posição.

E também ainda temos um problema interno do PSDB que acho que ainda precisa ser resolvido porque o PSDB é um partido que tem três grandes candidatos (Dória, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e o senador do Ceará, Tasso Jereissati) e precisa sair desse processo unido. E acho que não apenas (com a união) dos três, o correto era que a gente pudesse juntar com os outros possíveis candidatos, o (ex-ministro da Saúde Henrique) Mandetta, o Ciro, e tentar construir um centro único em que a gente conseguisse gerar uma convergência de ideias, uma agenda mínima de ideias.

BBC News Brasil – Ainda sobre o encontro com Lula, o jornal O Globo diz que o sr. teria se oferecido para ajudar o petista na eleição de 2022. Existe essa possibilidade?

Maia – O que eu conversei com o presidente Lula é que o que me interessa nesse processo pré-eleitoral, com as dificuldades que coloquei aqui dos nossos partidos no Parlamento, é ter a possibilidade de aproveitar a experiência que acumulei como presidente da Câmara, os debates que fiz sobre as reformas (econômicas), e poder colaborar com o processo de diálogo.

O processo de diálogo inclui o presidente Lula, não exclui o presidente Lula. O que disse a ele é que estava à disposição pra sentar com o pessoal dele, falar um pouquinho do que penso, do que o meu campo pensa. Acho que talvez pra ele seja importante. É óbvio que isso não é uma sinalização de que vou apoiar o presidente Lula, mas quero dialogar com a equipe dele. Acho que a gente tem divergências, mas a gente pode construir consensos em todo campo democrático pra que, no processo eleitoral, a gente deixe claro que as nossas maiores divergências estão no campo nosso contra a candidatura do Bolsonaro.

Então, o que disse ao presidente Lula era que estava à disposição para dialogar com aqueles que vão organizar o plano de governo dele. É o que me estimula a olhar o futuro, não é ser deputado pra estar votando com o Governo pra liberar a emenda. Acho que isso (votos em troca de emendas) não faz com que o nosso mandato represente mudanças reais na vida dos brasileiros.

Eu quero participar de mudança, eu quero participar de um processo em que a gente possa, de fato, modernizar e refundar o Estado brasileiro, que hoje basicamente atende aos interesses das elites brasileiras, do setor público e do setor privado.

Então, vou dialogar com o presidente Lula. O presidente do PDT, o (Carlos) Lupi, tem conversado comigo. Tenho uma ótima relação com o Ciro Gomes, já quis apoiá-lo em 2018, (mas) fui derrotado dentro do Democratas. Então, vou dialogar com todos e quero discutir o Brasil com todos.

BBC News Brasil – Se essa candidatura que o sr. defende, do centro liberal, não chegar ao segundo turno e a disputa for entre Bolsonaro e Lula, o sr. escolherá um desses lados?

Maia – Eu já disse isso publicamente. Não considero que o presidente Bolsonaro tenha o apreço e esteja no caminho de fortalecer as instituições democráticas. Acho que é o contrário. Acho que eles têm uma visão de que o Poder Executivo tem uma posição de comando em relação ao Supremo e ao Congresso Nacional, da qual divirjo frontalmente.

Por essa questão básica, é óbvio que se tiver um segundo turno entre os dois, que acho que não terá, acho que o segundo turno será o Lula com um candidato do centro liberal, mas tendo essa opção, vou ficar sempre com aquele que entendo que olha a democracia com mais convergências comigo do que em relação ao outro candidato, tal Bolsonaro. De fato, em relação a essa questão básica, as nossas divergências (com Bolsonaro) são muito grandes.

BBC News Brasil – Na sua leitura, considerando o cenário hoje, o ex-presidente Lula vai estar no segundo turno?

Maia – A minha opinião é que, dos 46% mais ou menos que Bolsonaro teve no primeiro turno, ele tem metade disso (de apoio). A outra metade são eleitores do campo do centro liberal somado a um campo anti-petista que procurou uma alternativa (para derrotar o PT em 2018). E esse campo está aberto, você tem 25%, 30% para tentar construir uma candidatura para disputar com o Bolsonaro.

E acho que é no campo dele (que os votos estão em disputa), porque é no campo dele que tem esses eleitores que, pelo que eu tô ouvindo, não querem votar novamente com Bolsonaro e ainda não chegaram na hipótese de votar no presidente Lula. Uma pequena parte já (decidiu por Lula após votar em Bolsonaro), a gente está vendo pelas pesquisas, mas uma grande maioria ainda não.

Então, acho que se a gente tiver capacidade de diálogo, sentar na mesa e construir um caminho pra que todos possam estar juntos, acho que é um bom caminho para que a gente possa levar uma candidatura do centro liberal ou do centro, trazendo o Ciro para isso. E o espaço que vejo é pra que essa candidatura cresça exatamente nesse eleitor que votou no Bolsonaro em 2018.

BBC News Brasil – O Ciro Gomes, embora já tenha feito parte de partidos mais à direita no passado, agora está em um partido mais à esquerda e defende um modelo econômico desenvolvimentista, é crítico ao Teto de Gastos e sempre se colocou em oposição ao governador João Dória. Como seria possível gerar algum tipo de convergência entre Ciro Gomes, João Dória, o ex-ministro Mandetta, por exemplo?

Maia – Olha, se em 2001 eu dissesse pra você que o Marcos Lisboa e o Joaquim Levy fariam parte da equipe econômica do Lula (em seu primeiro governo), você diria que eu estava sonhando. Então, na política, principalmente numa eleição de dois turnos, ganha quem agrega.

O Ciro tem as suas ideias, suas convicções, isso é muito importante, isso gera apoio, mas por outro lado ele precisa compreender que para chegar ao segundo turno ou até pra ganhar a eleição, vai precisar agregar políticos de outros campos, principalmente do nosso campo.

Para isso, vai ter que fazer um movimento político da centro-esquerda pro centro, como o presidente Lula fez na eleição (de 2002), com a carta aos brasileiros, saindo da esquerda e caminhando para outro eleitor.

Acho que ele vai ter que ver em que parte consegue criar sinergia e avançar para se criar uma proposta em conjunto com os partidos do centro liberal, da centro-direita, para que se possa gerar a musculatura para um avanço.

Todos, de alguma forma, vão ter que construir agendas mínimas, consensos mínimos, para tentar agregar eleitor e chegar ao segundo turno.

BBC News Brasil – Há uma expectativa de retomada econômica. Se a economia engatar, o governo ampliar o Bolsa Família, a vacinação avançar e o país voltar a uma certa normalidade em 2022, não podemos ter um cenário que fortaleça o plano de reeleição?

Maia – Olha, a minha impressão é que a vacina não vai ter tanto impacto (na economia). Pelo o que estou vendo nas ruas, um cansaço em relação ao isolamento, as pessoas (já) estão trabalhando.

No fim de semana, andei no Rio, passei pelo Leblon para ir almoçar na casa dos meus pais, e restaurantes e bares estão cheios. Então, não acho que a aceleração da vacina agora vai gerar esse impacto todo.

E o crescimento econômico, se você olhar os números por dentro, ainda está muito longe de uma questão sustentável. O resultado do PIB (de crescimento no primeiro trimestre) tem muito ingrediente da inflação. A inflação ajuda as contas públicas (ao aumentar o limite do Teto de Gastos), mas ao mesmo tempo ela tira dinheiro da sociedade.

Os resultados que saíram, acho que foram do IBGE, nos últimos dias, mostram que a desigualdade nunca esteve tão alta no Brasil e a renda per capita (caiu) abaixo de mil reais. Então, na maioria da sociedade brasileira, esse resultado do PIB não chegou e não vai chegar.

Não há mais um planejamento no governo de uma agenda de reformas para que o Brasil possa crescer. E acho que a questão do Bolsa Família, na hora que o presidente fala números (de ampliação do benefício) que estão muito além daquilo que o Orçamento permite, por um lado ele ganha (com a medida popular), e por outro lado ele perde. A presidente Dilma expandiu os gastos públicos muito fortemente. Até ganhou a eleição (em 2014), mas nós tivemos dois anos seguidos com uma recessão de 7%.

Então, toda vez que você cria uma despesa que não cabe dentro da realidade do Orçamento primário brasileiro, vai ter uma conta a ser paga. Vai ser paga na taxa de juros? A taxa de juros, claro, pela inflação, vai ter que chegar a 6%, 7%. Quem pegou financiamento indexado, vai pagar uma taxa de juros mais alta. Então, é tudo um ciclo vicioso onde o processo eleitoral vai acabar mais prejudicando do que gerando resultados positivos.

BBC News Brasil – Gostaria de falar do apoio da elite econômica ao Bolsonaro. Como o sr. falou no início da entrevista, em 2018 já se sabia que Bolsonaro tinha uma postura antidemocrática, pois sempre defendeu a Ditadura Militar. Esse apoio de empresários e do mercado a ele indica que esse grupo valoriza mais o crescimento econômico e os ganhos financeiros do que a democracia? E qual o apoio da elite econômica hoje ao presidente, na sua avaliação?

Maia – Majoritariamente, todos com os quais converso estão preocupados com a questão democrática e a questão do meio ambiente. Não é uma questão só de princípio; é uma questão também pragmática. O Brasil é um país que precisa de capital externo, e essas duas questões, democracia e meio ambiente, são temas que estão na agenda dos grandes investidores pelo mundo, e são variáveis decisivas.

Então, é óbvio que um grande empresário, principalmente no mundo da economia real, não no mercado financeiro, é óbvio que ele olha isso com muita preocupação, porque está vendo que isso no médio e longo prazo inviabiliza uma maior integração do Brasil com o resto das economias e mais recursos para investimentos no país.

Dentro do mercado financeiro, também vejo uma grande maioria preocupada e que sabe que essas agendas do Bolsonaro também inviabilizam recursos de grandes fundos que hoje tem pré-condições de investimento em qualquer país, como a democracia e (a proteção do) meio ambiente.

É claro que eles sempre olham a questão pragmática. O formato da privatização da Eletrobras atendeu o mercado financeiro. Não estou dizendo que isso é injusto ou justo, é um dado.

Junto com isso está se levando um absurdo que é o contribuinte ter que pagar a construção de gasodutos e consumo mínimo de termelétricas a gás em regiões muito distantes da produção de gás no nosso país. Eles estão fingindo que não estão vendo essa parte porque estão favoráveis à privatização da Eletrobras. Há esse tipo de flexibilização. Cobro isso deles.

Por exemplo, a aprovação da PEC Emergencial. Em troca da PEC Emergencial, que não tem nada de emergencial, os gatilhos (de corte de gastos) que foram criados são pro futuro, o governo teve que entregar R$ 16 bilhões do Orçamento para o Congresso (através das chamadas emendas de relator), teve que adiar o abono salarial, teve que adiar o Censo.

Então, o mercado está vendo que esse Orçamento cortou despesas obrigatórias, que é fake, mas o mercado queria também a sinalização da PEC Emergencial por que isso, na cabeça deles, gerava o mínimo de previsibilidade da questão fiscal, para que o mercado pudesse continuar recebendo recursos de investidores estrangeiros.

Então, tem sim, às vezes, esses interesses em jogo, mas acho que na sua grande maioria, todos têm essa grande preocupação, entendem que o melhor seria o ciclo do presidente Bolsonaro acabar com a eleição de 2022.

Agora, você sabe qual é a força do Estado do brasileiro. A maioria tem muito medo de uma exposição (contra Bolsonaro) agora e que seus setores ou as suas empresas possam ser prejudicadas pelo governo.

BBC News Brasil – Parte da sociedade teme que Bolsonaro possa tentar um golpe caso perca as eleições, alegando fraude nas urnas, com apoio das Forças Armadas e das polícias militares. O sr. considera esse risco real? O que pode ser feito para evitar esse cenário?

Maia – Considero real, acho que os partidos de esquerda e mais os partidos do centro liberal deveriam interditar o debate da PEC do voto impresso. Fui o relator da inclusão do voto impresso na lei da reforma política em 2015. Tenho uma posição da importância da possibilidade da recontagem de voto, mas nunca fiz isso questionando o sistema de urna eletrônica. Fui eleito desde a minha primeira eleição pelas urnas eletrônicas. É um modelo que nunca deu problema, modelo seguro.

A gente está vendo o Peru, onde o voto é impresso, e até agora você não tem o resultado final (da eleição presidencial), depois de vários dias do processo eleitoral. Então, acho que a gente deveria interditar o debate, porque o Bolsonaro não quer o debate pra ter uma amostragem do resultado. Ele quer exatamente pra contestar o processo. Contestando o processo, ele pode caminhar para não aceitar o resultado em 2022 como fez o (ex-presidente dos EUA Donald) Trump na eleição passada nos Estados Unidos.

BBC News Brasil – Se houver essa tentativa de golpe, o sr. acredita que Bolsonaro teria apoio por parte das Forças Armadas ou das polícias militares?

Maia – Das Forças Armadas, a minha impressão é que é muito difícil. Acho que (com as) polícias militares hoje o Bolsonaro tem uma relação mais próxima.

BBC News Brasil – Sobre seu futuro político: o sr. vai realmente para o PSD acompanhando o prefeito Eduardo Paes, que também saiu do DEM?

Maia – Caminha pra isso. Tenho que conversar com algumas pessoas ainda. Já tinha pedido a minha desfiliação do Democratas, achava que isso já sinalizava claramente a minha saída do partido, mas infelizmente no partido hoje você não pode criticar o nosso Torquemadinha (como Maia tem chamado o presidente do DEM, ACM Neto, em referência ao inquisidor espanhol Tomás de Torquemada).

Acho que uma expulsão dessa forma dá um certo nojo. Um certo nojo de você ver um partido como Democratas estar numa linha tão próxima ao bolsonarismo. Como se expulsar uma pessoa de um partido fosse um ato qualquer.

A tendência é caminhar com o prefeito Eduardo Paes, meu principal aliado na política do Estado do Rio, mas eu preciso conversar com outros quadros antes, principalmente com o vice-governador de São Paulo (Rodrigo Garcia, que trocou o DEM pelo PSDB), que é um quadro que sempre me acompanhou, esteve junto comigo no Democratas.

O próprio Baleia, (presidente) do MDB, o próprio Bruno Araújo (presidente do PSDB), eu tenho que dialogar para que essa solução da minha filiação continue me colocando num espaço de debate e de construção de uma agenda, que é o que mais me interessa: discutir o Brasil, discutir projetos que possam modernizar o Estado brasileiro.

BBC News Brasil – O sr. vê hoje o DEM caminhando para apoiar Bolsonaro nessa eleição de 2022? E no caso de outras siglas grandes do centrão, como PP e PL, que costumam ser flexíveis em suas alianças, também acredita que apoiarão a reeleição ou pode haver um desembarque pré-eleitoral da base de Bolsonaro?

Maia – Acho que a maioria tende a ficar. O DEM eu espero que não fique, mas fazendo uma análise fria, quem viabilizou a Copa América no Brasil? Foi o DEM. Dos quatro Estados (que aceitaram sediar o campeonato), dois do DEM. O governador de Goiás (Ronaldo Caiado) e o governador de Mato Grosso (Mauro Mendes), Estados onde o bolsonarismo é muito forte. Então, a tendência deles é tentar trabalhar para que Bolsonaro não tenha outro candidato no Estado deles.

O (DEM do) Rio de Janeiro agora entregue ao deputado Sóstenes (Cavalcante), ligado ao pastor Silas Malafaia, muito ligado ao bolsonarismo.

Na Bahia, o Neto tá com pouco espaço (para sua candidatura ao governo): lá é (um candidato de) Lula contra alguém e esse alguém a princípio é (um candidato do) Bolsonaro. No primeiro momento, acho que o Ciro Gomes não consegue, na Bahia, ocupar esse espaço. Como é que ele (ACM Neto) faz? Pra ele entrar no jogo, vai ter que caminhar para alguma aliança com o Bolsonaro, ou não ser candidato e lançar o João Roma (ministro da Cidadania, do partido Republicanos), que também quer ser candidato a governador.

Olhando os quadros do partido (no governo Bolsonaro), você tem a Tereza Cristina (ministra da Agricultura), você tem o Onyx (Lorenzoni, ministro da Secretaria Geral da Presidência da República), dois ministros. Se continuar do jeito que as coisas estão caminhando, acho muito difícil que o DEM não caminhe com apoio ao presidente Bolsonaro.

BBC News Brasil – Sobre o cenário eleitoral do Rio de Janeiro: há especulações de que o prefeito Eduardo Paes poderia apoiar uma candidatura ao governo do Estado de Marcelo Freixo, o que seria algo novo no cenário político. Freixo fez um movimento de sair do PSOL e ir para o PSB, um partido capaz de construir alianças mais amplas. Há uma possibilidade real de o sr. e Paes apoiarem Freixo, ou isso é improvável?

Maia – Acho menos provável. O mais provável, o prefeito vem falando e eu concordo com ele, é que o PSD tenha um candidato a governador para enfrentar o Freixo e, principalmente, o atual governador do estado do Rio de Janeiro (Cláudio Castro).

BBC News Brasil – O sr. continua sendo muito cobrado nas redes sociais por não ter iniciado o processo de impeachment de Bolsonaro. O Brasil se aproxima de 500 mil mortes por covid-19, e uma das suas justificativas para não iniciar o processo era que o foco devia estar na pandemia. Diante desse quadro, o sr. acredita que foi a decisão correta?

Maia – Não mudo minha posição. O presidente Bolsonaro sempre teve uma base de apoio no parlamento, mesmo desorganizada. Agora, ele tem uma base ainda maior. As pessoas não podem esquecer que um processo de impeachment precisa de 342 votos do plenário da Câmara de Deputados (para que haja um julgamento depois no Senado). Nós não tínhamos (esses votos) antes, não temos hoje.

Então, um processo político de impeachment hoje apenas ia tirar o foco da discussão da pandemia, ia trazer o palco pra política, ele ia gostar desse debate, ele ia vencer esse debate, e no final ele ia sair mais forte.

O Trump, quando os democratas inventaram o impeachment nos Estados Unidos, eles tinham maioria na Câmara e minoria no Senado. Fizeram barulho na Câmara, venceram o impeachment. Dias depois, o Senado arquivou o impeachment.

O Trump virou favoritíssimo pro processo eleitoral porque as pessoas chegaram à conclusão que aquele movimento político era um movimento que não priorizava as pessoas, mas sim o interesse do Partido Democrata. Depois veio a pandemia e aí ele cai pela péssima gestão da pandemia.

Tenho a mesma opinião aqui: se tivesse deferido o impeachment, o impeachment seria barrado no plenário da Câmara, ele partiria pra cima do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, estaria mais forte hoje, porque ele teria o discurso, “ó, tentaram me derrubar, não conseguiram, e agora, eu vou pra cima deles”.

Nós não teríamos 342 votos porque, diferente do impeachment da Dilma, que o presidente da câmara (Eduardo Cunha) à época operou diretamente pelo impeachment, e o vice-presidente (Michel Temer) era ligado à política, hoje eu não operaria o impeachment, mesmo se eu fosse presidente da Câmara, e o vice-presidente (general Hamilton Mourão) não é uma pessoa ligada ao Congresso Nacional.

Tanto eu tava certo na minha decisão que eles (os aliados de Bolsonaro) venceram a eleição para presidente da Câmara. Você viu que eles venceram com os votos do DEM e do PSDB, foi com o voto majoritário dos partidos que eu representava, que o centro liberal representa.

E mesmo nos partidos de esquerda, concretamente, eu nunca recebi uma grande pressão pelo impeachment. Era muito mais uma narrativa, uma vocalização pra falar pra fora, do que uma pressão real, porque todos eles sabiam e sabem que nós não tínhamos e mantemos a mesma condição hoje: não temos voto para um processo de impeachment avançar na Câmara dos Deputados.

21 de junho de 2021

IRÃ: CANDIDATO LINHA-DURA E ALIADO DE AITOLÁ SERÁ PRESIDENTE!

(AP, AFP e Reuters/O Estado de S. Paulo, 20) Ebrahim Raisi, um juiz linha dura chefe do principal tribunal do Irã, obteve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais do país. O resultado foi anunciado ontem e gerou protestos internacionais – ele é acusado de envolvimento na execução de milhares de prisioneiros em 1988.

O ultraconservador Raisi teve 61,95% dos votos no primeiro turno, de acordo com os resultados oficiais.

A participação foi de 48,8%, a menor registrada para uma eleição presidencial desde a instauração da República Islâmica em 1979.

Parte da ausência nas urnas ocorreu depois que os adversários mais fortes de Raisi foram impedidos de concorrer. Lideranças políticas de oposição pregaram boicote à disputa.

Dos mais de 59 milhões de eleitores que poderiam votar, 28,9 milhões votaram. Desses, cerca de 3,7 milhões anularam acidentalmente ou intencionalmente suas cédulas, muito além da quantidade vista em eleições anteriores e sugerindo que alguns não quiseram optar por nenhum dos quatro candidatos.

“O boicote dos eleitores provou ao mundo que o único voto das pessoas do Irã tinha a intenção de derrubar este governo medieval”, disse em um comunicado a líder do Conselho Nacional de Resistência do Irã (NCRI), Maryam Rajavi.

Raisi tinha o apoio do líder supremo iraniano, o aiatolá Ali Khamenei, que celebrou a vitória do aliado. “A nação iraniana é a grande vencedora das eleições, porque se levantou outra vez contra a propaganda da imprensa mercenária do inimigo”, disse.

A televisão estatal do país culpou a pandemia pela grande abstenção e as sanções impostas pelos EUA – o governo americano já havia sancionado Raisi pelo episódio de 1988. Ontem, logo após o anúncio do resultado oficial foi a vez da Anistia Internacional criticar o eleito.

“O fato de Ebrahim Raisi ter chegado à presidência em vez de ser investigado pelos crimes contra a humanidade de assassinato, desaparecimento forçado e tortura é um lembrete sombrio de que a impunidade reina suprema no Irã”, disse a secretária-geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard.

Pelos resultados oficiais, Raisi obteve 17,9 milhões de votos. O ex-comandante da Guarda Revolucionária, Mohsen Rezaei, ficou em segundo lugar, com 3,4 milhões de votos. O ex-chefe do Banco Central, Abdolnasser Hemmati, um moderado visto como substituto do presidente Hassan Rohani na eleição, ficou em terceiro, com 2,4 milhões. Amirhossein Ghazizadeh Hashemi foi o último com pouco menos de 1 milhão.

A quantidade de votos nulos, foi maior que a do segundo colocado, mas o ministro do Interior, Abdolreza Rahmani Fazli, que anunciou os resultados, não explicou o alto número. As eleições em 2017 e 2012 tiveram cerca de 1,2 milhão de votos anulados cada. O Irã não permite que observadores eleitorais internacionais monitorem suas eleições. No país, o voto não é obrigatório, mas quem vota recebe selos em suas certidões de nascimento mostrando que compareceram à votação.

Hemmati, como os outros três candidatos, parabenizou Raisi antes mesmo da divulgação oficial dos resultados. “Espero que seu governo forneça motivos de orgulho para a República Islâmica do Irã, melhore a economia e a vida com conforto e bem-estar para a grande nação”, escreveu no Instagram.

“Espero poder responder bem à confiança, ao voto e à gentileza do povo durante meu mandato”, disse Raisi em um breve comunicado.

Eleição. Desde que a Revolução Islâmica de 1979 derrubou o xá, a teocracia do Irã argumenta que suas sucessivas eleições são sinal da legitimidade dos governantes. Iranianos já tiveram até de participar de um referendo que terminou com um resultado de 98,2% de apoio à República Islâmica.

A eleição de Raisi coloca os políticos linha-dura no controle do governo ao mesmo tempo que parte do Ocidente tenta salvar um acordo nuclear já esfarrapado que visa limitar o programa do Irã, em um momento em que Teerã enriquece urânio em seus níveis mais altos.

Raisi se tornou o primeiro presidente iraniano sancionado pelo governo dos EUA antes mesmo de assumir o cargo. O Departamento de Estado dos EUA não respondeu a um pedido de comentário.

“A ambivalência de Raisi sobre a interação estrangeira só vai piorar as chances de Washington persuadir Teerã a aceitar limites adicionais em seu programa nuclear, influência regional ou programa de mísseis, pelo menos no primeiro mandato de Joe Biden”, escreveu Henry Rome, analista da o Grupo Eurasia que estuda o Irã.

Quase todos os presidentes iranianos cumpriram dois mandatos de quatro anos. Isso significa que Raisi pode estar no comando daquele que pode ser um dos momentos mais cruciais para o país em décadas.

18 de junho de 2021

É APENAS RECUPERAÇÃO CÍCLICA!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S. Paulo, 14) Qualquer economia está sujeita a flutuações cíclicas, ou seja, a alternância de períodos de expansão (boom) e de contração (recessão). No primeiro caso, pode-se formar um excesso de demanda, que resulta em pressões inflacionárias, exigindo políticas contracionistas. No segundo caso, ocorre o contrário. A taxa de desemprego supera seu nível de equilíbrio não inflacionário, e isso demanda estímulos expansionistas, tanto monetários como, se houver espaço, fiscais.

Não há consenso entre os economistas quanto ao processo de geração dos movimentos cíclicos na economia. A escola monetarista considera como principal causa as intervenções da política monetária, que expandem ou contraem a atividade econômica, às vezes excessivamente. Já os keynesianos atribuem essas flutuações, principalmente, a oscilações na demanda por investimento.

Excessos de euforia, intensificados por sistemas financeiros mal regulados, e choques exógenos, como foram as crises do petróleo, nos anos 70, ou a atual pandemia, podem também gerar períodos recessivos.

Mas não se deve confundir as fases de recuperações cíclicas com expansão econômica sustentável. O PIB evolui em movimentos ondulatórios em torno de uma tendência de longo prazo. É a inclinação positiva dessa linha de tendência que mensura o crescimento econômico.

Nessa métrica, o desempenho da economia brasileira, nos primeiros 20 anos desse milênio, tem sido decepcionante. No período 2001 a 2020, o PIB per capita evoluiu à taxa anual média de 0,95%. Não fosse a acentuada contração do ano passado, provocada pela pandemia, essa taxa poderia ter sido pouco superior a 1%.

Nesse ritmo, serão necessários 60 anos para o Brasil dobrar sua renda per capita. A China, provavelmente, fará isso em pouco mais de uma década. E mesmo esse pífio crescimento se processa com enorme injustiça social. É claro que isso decorre de causas estruturais, que inibem o crescimento do investimento e da produtividade.

No início deste mês, governo e mercado financeiro comemoraram efusivamente os dados divulgados pelo IBGE relativos ao PIB do primeiro trimestre. Isso me fez lembrar o famoso pibão prometido por Dilma Rousseff, no final de 2012, quando o Brasil estava se aproximando de uma longa e severa recessão, da qual ainda não se recuperou totalmente.

A recuperação em “V” observada no Brasil, em relação ao desastre econômico de 2020, se deu em quase todos os países do mundo. Ela decorreu das características da contração do ano passado, que não se deveu a causas comuns geradoras dos movimentos cíclicos, mas sim a um vírus devastador.

Nos países desenvolvidos, a volta à normalidade, propiciada pelo sucesso da vacinação, sugere uma fase de expansão vigorosa e relativamente longa. No Brasil, a queda no isolamento social, à custa da elevação assustadora das mortes, aliada a estímulos fiscais e monetários temporários, além de expressiva recomposição de estoques na indústria estão por trás da variação do PIB acima da esperada, que vem se observando desde o terceiro trimestre de 2020, exacerbada no início de 2021. Tais fatores podem gerar alguma sobrevida para a recuperação, mas o Banco Central terá que tirar o chope da festa, elevando o juro básico para além do que se esperava, para não perder o controle da inflação.

O mais grave é que o governo Bolsonaro não avançou, e dificilmente avançará, em reformas estruturais que elevem a tendência de crescimento de longo prazo da economia. Assim que for eliminada a atual capacidade ociosa, hoje mais clara no mercado de trabalho, o crescimento ficará limitado à pífia expansão verificada nos últimos 20 anos.

Portanto, guardem os fogos. Não há o que comemorar. Está havendo apenas recuperação cíclica. Estamos longe da retomada do crescimento sustentável.

17 de junho de 2021

IRÃ DRIBLOU TRUMP E NETANYAHU!

(Guga Chacra – O Globo, 17) Ao longo de seus 12 anos no poder em Israel, Benjamin Netanyahu aproveitou quase todas as oportunidades em que teve um interlocutor ou uma audiência estrangeira para mencionar a suposta ameaça nuclear iraniana. Todos os anos, no palanque da Assembleia Geral das Nações Unidas, dizia que o Irã estava a poucos meses de uma bomba atômica se nada fosse feito. Chegou a levar um desenho em um de seus discursos para dar o seu show.

Até o último minuto de seu governo em Israel, insistiu na ameaça iraniana em discurso na Knesset (Parlamento de Israel). Disse que seria um erro o retorno dos EUA ao JCPOA, como é conhecido o acordo nuclear entre o Irã e as grandes potências. Agora na oposição, certamente continuará com essa sua “cruzada” contra os iranianos e o novo governo americano. Obviamente, também contra o novo governo israelense, embora este já tenha se posicionado contra o acordo nuclear.

O problema é que Netanyahu perdeu. Não apenas em Israel. Também na questão nuclear iraniana. Toda a sua estratégia foi focada em derrotar os democratas nas eleições de 2016 e provar que seria possível um acordo melhor do que o negociado por Obama, caso sanções ainda mais duras fossem aplicadas. Bibi, como é conhecido o premier israelense, atingiu seu objetivo com a chegada de Donald Trump ao poder e sua decisão de retirar os EUA do JCPOA, apesar de o Irã estar respeitando as regras segundo os serviços de inteligência dos EUA e dos outros signatários, além da própria Agência Internacional de Energia Atômico.

Parecia uma vitória do líder israelense, mas esse experimento dele e de Trump fracassou, como sabemos. O Irã não se rendeu, apesar de as sanções terem sufocado ainda mais a economia iraniana, afetando acima de tudo a população mais pobre. Ao contrário, o regime de Teerã passou a enriquecer e armazenar urânio bem acima dos patamares permitidos pelo JCPOA. Nos próximos meses, deve voltar a respeitar as regras com o provável retorno dos EUA, agora governados por Biden, ao acordo nuclear. Afinal, Netanyahu também perdeu em Washington, com a derrota de seu aliado republicano na tentativa de se reeleger.

Tampouco o Irã reduziu sua influência no Oriente Médio, ao contrário do que previam Netanyahu e Trump. Mesmo com a ação dos EUA para matar Qassem Suleimani, principal líder das Guardas Revolucionárias, os iranianos têm saído vitoriosos nos principais conflitos na região. Na Síria, Bashar al-Assad venceu a guerra com a ajuda do Irã e da Rússia. A oposição jihadista ligada à al-Qaeda controla apenas uma província. Os americanos também estão praticamente fora do Iraque, onde as milícias xiitas pró-Irã se fortaleceram. O Hezbollah mantém sua aliança com os cristãos libaneses da Frente Patriótica Nacional do presidente Michel Aoun no Líbano, além de possuírem um arsenal de dezenas de milhares de mísseis apontados contra Israel. O Hamas, no último conflito em Gaza, mostrou ser capaz de atingir Tel Aviv. Os houthis, por sua vez, seguem no poder no Iêmen.

Para completar, Netanyahu e Trump ajudaram indiretamente a linha dura iraniana. Desta vez, não há candidatos fortes reformistas, como o ex-presidente Mohammad Khatami, ou moderados, como o atual, Hassan Rouhani. A tendência é que seja eleito o conservador Ebrahim Raisi, chefe da Justiça iraniana e cotado para ser líder supremo no futuro no lugar do aiatolá Khamenei.

16 de junho de 2021

À BEIRA DA PANDEMIA DIGITAL!

(Fareed Zakaria – The Washington Post/O Estado de S. Paulo, 14) Aceleração da digitalização causa mais exposição a novo tipo de criminalidade, que abalou a segurança dos EUA.

Você está preparado para a próxima crise global? Christopher Krebs, ex-diretor da Agência de Cibersegurança e Infraestrutura, afirmou no mês passado que já estamos “à beira de uma pandemia digital”.
Ele estava falando a respeito da explosão nos crimes cibernéticos. O diretor do FBI, Christopher Wray, concorda, explicando que a dramática elevação nessa nova forma de criminalidade abalou o aparato de segurança americano de maneira bem semelhante com o que ocorreu após os ataques de 11 de setembro de 2001.

Na verdade, a escalada nos cibercrimes é um problema muito mais abrangente do que o terrorismo. Enquanto conectamos cada vez mais aparelhos e informações à internet, nos tornamos cada vez mais vulneráveis aos hackers, que podem comprometer qualquer pessoa ou empresa pela web e roubar ou impedir acesso a seus dados até o pagamento de um resgate. A pandemia acelerou a transição para a economia digital – e por isso acelerou os crimes cibernéticos. Segundo uma estimativa, os ataques com ransomwares (vírus que sequestram o acessos aos dados, exigindo resgates) triplicaram no ano passado.

Não sabemos a real extensão do problema, porque muitos desses crimes não são relatados às autoridades. Muitas empresas, grandes e pequenas, temem assustar clientes com publicidade ruim, atrair novos ataques ou encarar desdobramentos judiciais. A Cybersecurity Ventures estima que o prejuízo global causado por ransomwares chegará a US$ 20 bilhões este ano, um valor 57 vezes maior do que há apenas seis anos.

Um diretor executivo que trabalha ativamente com cibersegurança me disse que ataques com ransomwares operam atualmente como um modelo de negócios confiável. Os hackers normalmente paralisam a rede que atacam e depois cobram um valor elevado de resgate, mas não alto demais, da organização vítima (principalmente se a entidade tem seguro). Uma vez que o resgate é pago, os hackers cumprem sua parte no acordo.

Mas há um aspecto dessas transações em que as autoridades policiais levam vantagem. Praticamente todos os resgates de crimes cibernéticos são exigidos em criptomoedas, como bitcoin, o que faz sentido, já que uma característica essencial dessas moedas é que elas são em grande parte impossíveis de rastrear – pelo menos até bem recentemente.

Toda tecnologia bem-sucedida atende alguma necessidade ou soluciona algum problema. Qual necessidade as criptomoedas atendem? Não é comprar e vender online, nem movimentar dinheiro eletronicamente. Isso pode ser feito facilmente por meio de instituições financeiras tradicionais ou por interfaces mais novas, como Paypal e Apple Pay.

Mas nada disso é capaz de substituir as obscuras transações que ocorrem no mundo analógico – do tipo em que uma pessoa entrega à outra um envelope cheio de dinheiro. Uma transação como essa perde em termos de eficiência, mas é secreta e praticamente impossível de rastrear. As criptomoedas nos permitem fazer algo parecido, mas digitalmente.

Note que não se trata de uma questão de privacidade ou discrição em relação a pagamentos, por exemplo para um homem que queira reservar um quarto para passar um fim de semana em Paris sem que sua mulher fique sabendo. Há várias maneiras de fazer isso, com cartões de crédito pré-pagos, por exemplo. Mas nessas novas transações digitais, a identidade das pessoas envolvidas é mantida oculta até de instituições financeiras e governos.

Mas não tão oculta. Uma notícia esta semana a respeito da recuperação de um resgate indica um avanço. O Departamento de Justiça e o FBI conseguiram rastrear e recuperar a maior parte do valor pago em bitcoin pela Colonial Pipeline durante o recente ataque com ransomware que paralisou o fornecimento de combustível em grande parte da Costa Leste. Parece que conseguiram isso por meio de um extraordinário trabalho forense, sagacidade digital e um pouco de sorte. São raros os sucessos nesse sentido.

Não há razão para tanta dificuldade. O diretor do Internal Revenue Service (IRS, a receita federal americana) pediu ao Congresso autorização para que a agência possa coletar informações a respeito de transações com criptomoedas que ultrapassem US$ 10 mil. Isso seria um bom começo e colocaria as criptomoedas no mesmo nível das contas bancárias, em vez de lhes conceder uma licença especial em relação ao escrutínio legal.

Muitos dos mais árduos defensores das criptomoedas consideram isso o caminho futuro, um sistema monetário descentralizado e fluido, que oferece uma alternativa para as moedas nacionais. Mas isso não requer anonimato. Se esses objetivos mais abrangentes forem as verdadeiras razões de ser do bitcoin, a criptomoeda deverá permanecer forte mesmo enquanto seu uso ilegal é gradualmente controlado. Mas se, por outro lado, a propriedade crucial, distintiva e única das criptomoedas for seu uso aberto e eficiente para o crime, por que exatamente os governos do mundo deveriam permiti-las?