12 de agosto de 2021

FRESNILLO, A CAPITAL DO MEDO NO MÉXICO!

(The New York Times/O Estado de S. Paulo, 04) A violência já era terrível quando granadas explodiram do lado de fora de sua igreja em plena luz do dia, há cerca de cinco anos. Depois, as crianças da cidade foram sequestradas, desaparecendo sem deixar pistas. Em seguida, os corpos dos executados foram despejados nas ruas da cidade.

E, então, chegou o dia, no mês passado, em que homens armados invadiram sua casa, arrastaram o filho de 15 anos e dois dos amigos dele para fora e os mataram a tiros, deixando Guadalupe – que não quis ser identificada pelo nome completo por medo dos assassinos – apavorada demais para sair de casa.

“Não quero que a noite chegue”, disse ela em meio às lágrimas. “Viver com medo não é vida de jeito nenhum.”

Para a maioria da população de Fresnillo, uma cidade mineira no centro do México, uma vida com medo é a única que conhecem. Ao menos 96% dos residentes dizem que não se sentem seguros, a maior porcentagem de qualquer cidade do México, de acordo com uma pesquisa recente da agência nacional de estatísticas do país.

A economia pode ir de vento em popa ou quebrar, presidentes, partidos e suas promessas podem ir e vir, mas para seus habitantes, assim como para muitos no México, há uma sensação crescente de que não importam as mudanças, a violência continua.

Desde que o governo do México começou sua guerra contra os cartéis de drogas, há aproximadamente 15 anos, as estatísticas de assassinatos aumentaram inexoravelmente.

Decepção. Em 2018, durante sua disputa pela presidência, Andrés Manuel López Obrador ofereceu uma visão grandiosa para refazer o México – e uma forma radicalmente nova de combater a violência. Ele romperia com as táticas fracassadas de seus antecessores, afirmou. Em vez de prender e matar traficantes como os líderes anteriores haviam feito, ele focaria nas causas da violência: “abraços, não balas”, defendia. E conseguiu ganhar as eleições.

Mas três anos depois de sua vitória esmagadora, e com seu partido, Movimento Regeneração Nacional(morena), no controle do Congresso, o padrão de mortes continua. “Estamos vivendo no inferno”, disse Victor Piña, que concorreu à prefeitura de Fresnillo nas eleições de junho e viu um assessor ser morto a tiros ao lado dele durante um evento antes da campanha.

Zacatecas, Estado em que fica a cidade de Fresnillo, tem a maior taxa de homicídios do país. Ultimamente, o lugar se tornou um show de terror nacional, com cadáveres encontrados pendurados em pontes, enfiados em sacos plásticos ou até mesmo amarrados a uma cruz.

Fazendo fronteira com outros oito Estados, Zacatecas há muito tem sido um ponto central para o narcotráfico; um ponto de intersecção entre o Pacífico, para onde os narcóticos e produtos para fabricação de drogas são enviados, e os Estados do norte ao longo da fronteira com os Estados Unidos. Fresnillo, que fica no centro de importantes estradas e rodovias, é estrategicamente vital.

Mas durante grande parte de sua história recente, os residentes dizem que foram, em grande parte, deixados em paz. Isso começou a mudar por volta de 2007 e 2008, quando a investida do governo contra os cartéis os levou a se fragmentar, evoluir e se espalhar.

Recentemente, a região tem sido envolvida em uma batalha entre dois dos grupos de crime organizado mais poderosos do país: o Cartel de Sinaloa e o Cartel da Nova Geração de Jalisco.

Presos no meio do conflito estão pessoas como Guadalupe. Ela se lembra de ficar sentada na frente de casa com os vizinhos até a meia-noite, quando era uma menina. Agora, a cidade fica deserta depois que o sol se põe.

Guadalupe não deixa os filhos brincarem do lado de fora sem supervisão, mas mesmo assim não conseguiu impedir que a violência destruísse sua família. Na noite em que seu filho foi assassinado, quatro homens armados invadiram sua casa, arrastaram para fora seu filho, Henry, e dois amigos que estavam dormindo. Os tiros foram disparados e, em seguida, os assassinos foram embora. Foi Guadalupe quem encontrou os corpos dos adolescentes.

11 de agosto de 2021

A PEQUENA ALEXANDRA NAJJAR E O ANIVERSÁRIO DA CATÁSTROFE EM BEIRUTE!

(Guga Chacra – Globo, 05) Há uma foto de uma menina de 4 anos nos ombros do pai em uma manifestação em 2019 contra a crise econômica e a incompetência da classe política em Beirute. O nome dela era Alexandra Najjar. Vestia um macacão rosa e carregava uma bandeira do Líbano, com o cedro, árvore símbolo do país, em meio às duas faixas vermelhas que significam o sangue dos mártires da independência. 

Um ano mais tarde, no dia 4 de agosto de 2020, Alexandra se tornaria uma das centenas de vítimas da explosão do porto de Beirute. Uma explosão que assombrou o mundo, da Argentina ao Japão. As imagens mostram uma fumaça preta, estranha, antes de um cogumelo se formar, como se uma bomba atômica houvesse sido despejada na capital libanesa. Em centésimos, esta cidade à beira do Mediterrâneo ficaria cinza, com vidros quebrados e escombros por todas as partes, além dos mortos e feridos.

Depois de anos para se reconstruir da Guerra Civil, que devastou o país entre 1975 e 1990, Beirute mais uma vez se tornava sinônimo internacional de destruição. Mar Mikhail (São Michel), um antigo bairro armênio que havia se tornado a área da boêmia libanesa nos últimos anos, com jovens em mesinhas de bares nas calçadas, praticamente acabou. Muitos prédios do sofisticado bairro cristão greco-ortodoxo de Ashrafyeh foram arrasados. Pouco sobrou de áreas do centro reconstruído, conhecido como Solidere. 

Não estava em Beirute naquele dia. Vi, como muitos, à distância, aqui de Nova York. Todos os anos costumo ir ao Líbano e pretendia ir em 2020, para mostrar aos meus filhos a terra dos ancestrais deles. A pandemia nos impediu. Não havia tanto problema em esperar. Mas, ao ver a destruição causada pelo porto, senti como se tivesse perdido um parente, uma parte de mim, das minhas memórias de andar por aquela cidade.

Se nós libaneses e descendentes de libaneses da diáspora choramos com a explosão, imaginem a dor de quem estava em Beirute e, mesmo sobrevivendo, perdeu os avós, os pais, os amigos e os filhos, como Paul Najjar, o pai da pequena Alexandra? Perderam suas casas, suas escolas, seus restaurantes preferidos e até mesmo suas árvores.

Passado um ano da explosão, o cenário no Líbano é catastrófico. O país enfrenta uma das maiores crises econômicas do mundo desde o século XIX, segundo o Banco Mundial. A inflação anual atingiu 100%. A moeda perdeu 90% de seu valor. A classe média empobreceu. Os mais pobres passam fome nesta que é a nação com o maior número de refugiados do planeta. Milhares morreram de Covid-19. E ninguém foi punido pela explosão no porto. Os políticos, divididos em grupos sectários cristãos, sunitas e xiitas, seguem incapazes de formar um governo um ano depois da tragédia. Não há transporte público, falta eletricidade várias horas por dia, há escassez de combustível nos postos de gasolina e a coleta de lixo é intermitente.

Claro, assim como no Rio, Beirute tem o seu “Leblon”, como uma elite dolarizada indo a caros restaurantes, lotando as baladas a céu aberto, com hospitais excelentes e passando os fins de semana em praias paradisíacas em Byblos, Batroun, Tyro e outras vilas mediterrâneas. Mas, assim como no Rio, basta sair desta bolha para descobrir não apenas uma nação decadente, mas uma nação que literalmente explodiu. Afinal, Beirute e o Líbano como um todo podem ser mágicos, mas são trágicos ao mesmo tempo. A pequena Alexandra é uma das vítimas da tragédia e mais uma mártir da história libanesa.

10 de agosto de 2021

RIO NA VANGUARDA CONTRA A OBESIDADE INFANTIL!

(Armínio Fraga, Guilherme Frering e Rita Lobo – O Globo, 08) O enfrentamento da obesidade na infância e na adolescência, tema debatido no mundo todo, pode ter no Rio de Janeiro um exemplo para o país. A Câmara dos Vereadores do município aprovou em primeira discussão o Projeto de Lei (PL) 1.662/2019, que, se aprovado em definitivo, fará da cidade modelo para o Brasil e para a América Latina. O texto proíbe a venda de produtos ultraprocessados e bebidas açucaradas nas escolas.

A obesidade infantil é um problema crescente. Na Região Sudeste, segundo dados do Ministério da Saúde, o excesso de peso na infância atingiu em 2018 quase 40% dessa população. No Rio, dados do Panorama da Obesidade em Crianças e Adolescentes do Instituto Desiderata mostram que 30,2% das crianças de 5 a 9 anos apresentavam excesso de peso em 2019.

A obesidade é fator de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, hoje responsáveis por 71% do total de mortes no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Conter essa epidemia silenciosa exige iniciativas desde cedo. No caso da alimentação, especial atenção ao consumo de produtos ultraprocessados. Estudos comprovam que esses alimentos, produzidos com aditivos químicos, como conservantes e aromatizantes, trazem riscos à saúde ao substituir a comida de verdade. O Guia Alimentar para a População Brasileira, que orienta os profissionais da saúde, recomenda que se evite o consumo desses produtos — como salgadinhos de pacote e bebidas açucaradas.

Mesmo com o entendimento de que a alimentação saudável é fundamental, não é fácil garantir comida de verdade em todas as refeições. Por isso é tão importante essa iniciativa dos vereadores do Rio. O PL aborda o outro espaço que demanda atenção especial: as escolas. Crianças e adolescentes permanecem nelas por um longo período do dia, e cerca de 200 dias do ano. Aí consomem de uma a duas refeições no horário letivo — 30% a 50% de sua ingestão diária. Nas particulares, 30% das calorias consumidas por crianças e adolescentes vêm de ultraprocessados. E, nas públicas municipais do Rio, em 2020, 61% das refeições continham esses produtos.

O PL viabiliza a transformação das escolas em espaços saudáveis, liberando-as dos alimentos ultraprocessados e das bebidas açucaradas. Numa tacada, a implementação da lei melhoraria a alimentação de mais de 1 milhão de pessoas, reduzindo sobrepeso e obesidade entre crianças em idade escolar, sem aumentar em um centavo o gasto público. Segundo estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), preparos mais saudáveis podem apresentar um custo menor que as opções ultraprocessadas e até permitir economia na compra de alimentos, a depender do cardápio selecionado. A proibição da venda desses alimentos não prejudicaria emprego nem renda dos cantineiros escolares. Informações sobre o PL e sobre como apoiar sua aprovação estão no site da campanha “Quem quer prevenir a obesidade infantil, levanta a mão!”.

O PL atraiu atenção multipartidária. Capitaneado por Cesar Maia (DEM-RJ), o texto é da autoria de 15 vereadores e foi assinado por outros 14, de 11 partidos diferentes. Nessa primeira votação, obteve 75% dos votos dos presentes, indicando que pelo menos 30 representantes cariocas estão conectados com o tema. O PL aguarda agora a segunda votação, prevista para as próximas semanas. Basta que os mesmos vereadores repitam seu voto e que o prefeito sancione o projeto para que o Rio de Janeiro se transforme em exemplo de liderança num dos temas mais prementes da sociedade contemporânea

09 de agosto de 2021

CUSTO BRASIL E DESINFORMAÇÃO!

(José Roberto Afonso, economista, professor do Instituto Brasileiro de Direito Público e pesquisador da Universidade de Lisboa – O Globo, 07) Distorções locais que tornam o país mais caro, conhecidas como custo Brasil, ganharam novo componente: o custo da desinformação. A pior conta passa pelas incomensuráveis perdas na saúde. Mas há também perdas de oportunidades em matérias como tributação. Muitos opinam, até nos jornais, sem compreender os efeitos das radicais transformações econômicas e sociais puxadas pela digitalização e aceleradas pela pandemia.

A proposta de reformar o Imposto de Renda é um exemplo. O modelo foi redesenhado junto com a moeda do real e logrou aumentar a arrecadação, facilitar as declarações, criar o Simples e ser um caso raro de imposto sem maior disputa na Justiça. Porém a tentativa de aceno eleitoral gerou um projeto sem objetivo e um debate sem evidência empírica.

É emblemática a insistência em confundir a “pejotização” com empreendedorismo e, sobretudo, em ignorar que renúncia tributária é um cálculo teórico (que nunca resultaria em entrada de igual valor nos cofres públicos). O Brasil conta com 13 milhões de inscritos no MEI e mais de 4,8 milhões no Simples — um grau de formalização reconhecido internacionalmente. Estes geram apenas 2,6% da arrecadação agregada do IR e contribuição do lucro — ou seja, estão longe de ser o problema. Para ter uma ideia, os donos dessas empresas declararam ao IRPF uma retirada anual de R$ 120 bilhões, com uma média de contribuintes por faixa de renda sempre abaixo de R$ 20 mil, enquanto acionistas de grandes empresas retiraram mais de R$ 400 bilhões.

É um caso de política pública compreender as profundas mudanças nos mercados de trabalho e de serviços impulsionadas pela revolução digital e pela pandemia. Os regimes tributários simplificados contemplam boa parte dos empreendimentos dinâmicos — tanto que países ricos procuram expandir o equivalente ao Simples e vinculá-lo à inovação.

Quem olha só o retrovisor ainda acha que serviços são basicamente para famílias, prestados por pequenas firmas, ou profissionais que, como se fossem masoquistas, desdenhariam ter carteira assinada e benefícios. Quem olha o entorno de sua vida saberá que a atual economia — cada vez mais automatizada, especializada, produtiva — é dominada por serviços dinâmicos, exercidos por profissionais multifacetados, que não precisam estar num local fixo e vendem basicamente para outras empresas, muitas das quais produzem e empregam pouco, mas ainda assim se tornam as mais valiosas das Bolsas. Quem tratar a tributação dessa economia emergente como se fosse a de uma fábrica, com mercadorias palpáveis e contáveis, imporá mais um custo pesado a um país sem crescimento e desenvolvimento.

Não é por acaso que, no declarado pelas pessoas físicas em 2019, as retiradas dos empreendedores cresceram duas vezes mais rápido que os dividendos dos maiores capitalistas, e ambos 17 vezes mais que os salários. No declarado pelas pessoas jurídicas, a razão entre tributos federais e receita bruta apurada no regime do Simples (8,2%) supera a do regime do lucro real (7%) — e ainda se fala em renúncia. O lado mais dinâmico da economia e da arrecadação passa cada vez mais pelos regimes tributários diferenciados, referidos equivocadamente como subsidiados. Presume-se que eles deveriam lucrar ao menos 8% do que faturam, quando mal chega a 3% a mesma proporção verificada pela Receita Federal nas maiores corporações brasileiras. Há quem critique, ainda, que a linha de corte do faturamento para microempresas no Brasil fique muito acima dos países ricos, mas não conta que lá serve para os que estão abaixo ficarem isentos de IVA e até de IRPJ, enquanto aqui a menor das empresas sempre contribui para o Simples (ao menos 4,5% sobre o que fatura). A maior das renúncias de nosso sistema é a da racionalidade.

O atual debate do IR e da renúncia tributária ilustra como, sem saber ao certo onde se está, se acha possível dizer aonde ir. Equívocos na formulação da política fiscal podem impor aos brasileiros um preço alto, que vai muito além de recolher mais ou menos impostos. Quando a desinformação se restringia às redes sociais, não contaminava tão diretamente o custo Brasil.

06 de agosto de 2021

LUIZ GAMA: ESCRITOS INÉDITOS E FILME AJUDAM A RECUPERAR A IMPORTÂNCIA DO ADVOGADO NA LUTA ANTIRRACISTA!

(Bolívar Torres – O Globo, 05) Especialista em Luiz Gama (1830-1882), o pesquisador Bruno Rodrigues de Lima já trocou ideias com admiradores do abolicionista baiano em diversas áreas. Do cantor Jorge Benjor ao jurista alemão Thomas Duve (diretor do prestigioso Instituto Max Planck), passando por líderes religiosos como a ialorixá Mãe Stella, não foram poucos os que revelaram, em conversas informais com o doutorando em História do Direito pela Universidade de Frankfurt, um profundo interesse e respeito por Gama.

Nascido livre e vendido pelo pai como escravo aos 10 anos de idade, o advogado, poeta, orador e jornalista estudou Direito por conta própria e foi responsável por libertar centenas de escravizados. Mas, após sua morte, o seu legado acabou apagado pela História oficial do abolicionismo, em detrimento de personalidades hoje mais conhecidas, como Joaquim Nabuco. Por isso, Lima defende a ideia de que o reconhecimento de Gama ainda é “underground” — ou seja, acontece fora de universidades, museus, monumentos e outros espaços institucionais.

Graças ao trabalho de diversos artistas e pesquisadores (incluindo Lima), Gama vem gradualmente reconquistando o lugar que merece, incluindo títulos importantes. O mais recente deles é o de Doutor Honoris Causa da Escola de Comunicações e Artes da USP, recebido mês passado. Nos cinemas, sua vida é retratada na cinebiografia “Doutor Gama”, dirigida por Jeferson, de que estreia hoje. E seus escritos ganham uma primeira edição de “Obras completas”, com nada menos do que 600 textos até então desconhecidos (80% do total). Descobertos pelo próprio Lima em veículos como o jornal Democracia, os inéditos revelam perspectivas novas sobre Gama.

—A História oficial cuspiu em Gama, mas os movimentos populares guardaram sua memória, principalmente as lideranças mais velhas nas comunidades negras de Salvador —diz Lima, responsável pela organização e pelas mais de 7 mil notas da publicação das obras completas. —É uma gratidão que passou de pai para filho. Já vi muita gente que não leu uma página sequer de Gama e ainda assim sabe que ele deixou um modelo de resistência a ser seguido.

A amplitude do pensamento de Gama ficou mais evidente nos últimos anos, graças ao garimpo de pesquisadores dedicados. Umas das grandes responsáveis por sua ressurgência, Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp, revelou a verve literária do abolicionista, idealizando livros como “Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas” (2011). Já as cinco mil páginas das “Obras completas” (Hedra) organizadas por Lima serão publicadas em dez volumes até julho de 2022, mas não em ordem cronológica. Os primeiros a chegar foram o 4 (“Democracia”) e o 8 (“Liberdade”), ambas no mês passado.

Pesquisando em arquivos públicos durante nove anos, Lima descobriu textos que, garante, podem mudar as interpretações sobre Gama. Um documento original, redigido de próprio punho, dá a entender que o abolicionista seria responsável pela criação de uma biblioteca comunitária com 5 mil títulos — feito até então atribuído exclusivamente à loja maçônica da qual ele fazia parte. Além disso, manifestos no jornal Democracia, assinados sob o pseudônimo Afro, revelam o teórico comprometido com um projeto de escola laica e pública.

—Isso significa que ele tinha uma obra sobre o tema pelo menos 30 anos antes dos primeiros debates sobre educação popular — diz Lima. — Outros textos inéditos mostram que Gama finalizou sua luta política sem fazer qual- quer concessão a liberais e conservadores, até mesmo republicanos. Segundo ele, nenhuma dessas três forças políticas representaria o abolicionismo de verdade. Acredito que isso explica porque Gama foi apagado após sua morte.

Alfabetizado ainda como escravo, Gama conquistou sua própria liberdade. Atuou voluntariamente em processos de alforria, mas também teve clientes ricos, tornando-se um dos três advogados mais bem pagos de São Paulo. Este itinerário excepcional é contado por Jeferson De em “Doutor Gama”. Três atores vivem o abolicionista em diferentes fases: Pedro Guilherme (infância), Angelo Fernandes (adolescência) e Cesar Mello (maturidade). Sem deixar de lado o aspecto romanesco de sua vida, o cineasta queria que o longa servisse como uma janela para a obra do autor e mostrasse suas ideias. Uma das liberdades tomadas pelo roteiro foi juntar diferentes processos protagonizados por Gama em um só. Para Jeferson de lançar o longa no momento em que a sociedade ainda repercute o assassinato de George Floyd e a chacina do Jacarezinho tem um significado especial.

— Quando trabalhamos o roteiro, em muitos momentos parecia que íamos rodar um filme sobre 2021, e não sobre o século XIX — diz o cineasta, que em 2019 dirigiu a minissérie de ficção “A revolta dos Malês”, baseada no levante de escravizados em Salvador. —As pautas de Gama são contemporâneas e mostram que nossas lutas vêm de longe.

Para manter o máximo de fidelidade aos fatos históricos, a produção recorreu aos conhecimentos de Ligia Fonseca Ferreira, que atuou como consultora. A professora lançou em 2020 o livro “Lições de resistência”, que reúne artigos jornalísticos de Gama.

—As homenagens são justas e importantes, mas o legado de Luiz Gama é sua escrita diz Ferreira. —Através da sua faceta de jornalista, ele era ouvido como um influenciador. É importante resgatá-lo não só como um precursor do abolicionismo, mas também como uma encarnação da prática completa da luta antirracista.

05 de agosto de 2021

POPULISTAS ESTIMULAM PROTESTOS CONTRA PASSAPORTE DE VACINA NA FRANÇA E ITÁLIA!

(O Estado de S. Paulo, 03) Líderes populistas europeus de direita têm adotado como estratégia política o estímulo a protestos contra o passaporte vacinal, que será adotado esta semana na Itália e na França. Analistas veem na tática de denunciar privação à liberdade uma tentativa de manter a base eleitoral coesa.

A resistência à adoção de medidas mais duras para obrigar céticos com a vacinação contra a covid-19 a se imunizar tem atraído o apoio de populistas de direita em países europeus. A pressão é mais evidente na Itália e na França, onde o chamado passaporte da vacina está em adoção e partidos de extrema direita defenderam protestos contra a adoção do passe.

Na Itália, o líder populista Matteo Salvini, da Liga, defendeu os protestos e mantém uma posição crítica ao passaporte, apesar de apoiar o governo do premiê Mario Draghi. Num ato contra o passe, ele acusou Draghi de excluir 30 milhões de italianos da vida social. Giorgia Meloni, do partido extremista Irmãos da Itália, afirmou que o projeto matará o turismo.

Na França, há três fins de semana, o país vem enfrentando protestos convocados por grupos contrário as vacinas. No último sábado, cerca de 205 mil pessoas participaram de manifestações em Paris e outras cidades francesas. Na capital, uma das marchas foi liderada por Florian Philippot, ex-aliado da líder de extrema direita Marine Le Pen, hoje líder de seu próprio partido anti-ue. Houve confrontos entre policiais e manifestantes.

Especialistas que observam o fenômeno do populismo na Europa avaliam que esses partidos usam a pandemia de covid-19 para valorizar sua ideologia e dar coesão à sua base eleitoral, com o auxílio de temas obscuros, como o ceticismo em relação às vacinas, a adoção de remédios ineficazes e, agora, a resistência ao monitoramento do status vacinal da população por meio dos passaportes.

“Esses partidos conseguem dar coesão e sentido pras franjas da sociedade ao se unirem em torno de um tema, obviamente polêmico e obscuro”, explica Ana Simão, Coordenadora do curso de Relações Internacionais da ESPM Porto Alegre. “O movimento antivacina é, para além da questão da vacina, um movimento contra o status quo e o mainstream.”

Ceticismo. Apesar do avanço da vacinação na Europa e na América do Norte, a maioria dos países ricos enfrenta dificuldades em superar os 75% da população imunizada com duas doses – número projetado por especialistas como o ideal para controlar a pandemia.

A Itália tem 52% da população com o esquema vacinal completo e 64% com apenas uma dose. Na França, 47% das pessoas tomaram as duas doses e 62%, apenas uma.

Com o aumento das infecções e hospitalizações por covid-19, principalmente entre quem ainda não está imunizado, ambos os países optaram pelo passaporte para restringir a circulação de quem ainda está suscetível ao vírus, principalmente em lugares fechados, onde o risco de contágio é maior.

Na França, desde 21 de julho, só entra em espaços culturais e de lazer quem estiver vacinado. Na semana que vem, a medida valerá também para bares, restaurantes, aviões e trens.

O passaporte na Itália tem medidas um pouco mais brandas. Ali, é necessário comprovar apenas uma dose da vacina ou um teste negativo de covid19 nas últimas 48 horas para entrar em cinemas, museus, academias, restaurantes sem mesas ao ar livre ou eventos com aglomeração.

A regra enfureceu os céticos com a vacinação, que julgam o projeto dos passaportes uma afronta a seu direito de ir e vir. Alguns dos manifestantes na Itália e na França chegaram a protestar com estrelas de Davi, em uma referência ao tratamento dado pelos nazistas aos judeus em guetos durante a 2ª Guerra, o que provocou protestos da comunidade judaica.

“Vivemos num tempo de tanta ignorância e violência que distorções dessa magnitude nem são reprimidas mais”, lamentou a senadora italiana Liliana Sagre, uma sobrevivente do Holocausto. “Esses gestos de maus gosto são uma loucura combinada com ignorância.”

Apesar dos protestos, no entanto, o interesse pela vacinação tem crescido na Itália e na França.

Na Dinamarca, país pioneiro na adoção de medidas desse tipo, comerciantes dizem que a resistência dura apenas até o momento em que a grande maioria da população está apta a retomar a vida normal.

Atualmente, 80% dos dinamarqueses estão vacinados.

04 de agosto de 2021

O MUNDO ESTÁ NOS LEMBRANDO QUE A DEMOCRACIA É DIFÍCIL!

(Fareed Zakaria – O Estado de S. Paulo, 02) A notícia desta semana de que a democracia está em perigo na Tunísia – o único caso de sucesso da Primavera Árabe – chega apenas três semanas depois de sabermos que o presidente do Haiti foi assassinado. Enquanto isso, no Afeganistão, o governo parece incapaz de estabelecer autoridade em todo o país. Isso me fez refletir a respeito de uma das questões fundamentais da política: por que é tão difícil construir e manter a democracia liberal?

O melhor trabalho recente sobre o tema vem de uma notável dupla de estudiosos, Daron Acemoglu e James A. Robinson. Em seu último livro, The Narrow Corridor (O estreito corredor, em tradução livre), eles responderam a essa pergunta com grande perspicácia. Em todas as sociedades, eles observam, o primeiro passo é simplesmente alcançar algum grau de ordem e estabilidade. A história está cheia de lugares onde gangues, senhores da guerra e tribos governam, e o Estado nunca é capaz de consolidar o poder e governar de verdade. Esse foi o passado do Afeganistão e pode ser o seu futuro.

Se a ordem política é rara, a ordem política liberal é ainda mais rara. A democracia liberal é a forma perfeita de governo. Precisa de um Estado que seja forte o suficiente para governar de verdade, mas não tão forte a ponto de destruir as liberdades e os direitos de seu povo. Os autores chamam isso de “o Leviatã acorrentado”. (Thomas Hobbes usou o monstro bíblico Leviatã para descrever um Estado poderoso. Chegar à democracia liberal exige que as sociedades atravessem um estreito corredor, que permita ao Estado estabelecer poder enquanto permite o desenvolvimento de uma sociedade civil que se afirma e luta por direitos. Juntos, eles criam o delicado equilíbrio entre estabilidade e liberdade. Os países do Ocidente tiveram sucesso porque conseguiram construir tanto Estados como sociedades fortes.

No Afeganistão, apesar de duas décadas de esforços, o Estado tem falhado em conquistar o controle de grande parte do país, criando o que os autores chamam de “Leviatã ausente”. No Egito, o Estado é muito forte. Mas após um breve flerte com a democracia depois da Primavera Árabe, o país retrocedeu para a ditadura. Outras partes do mundo têm “Leviatãs de papel” – governos que exercem o poder principalmente para enriquecer uma pequena elite no topo. Pense na Nigéria ou na Venezuela.

Como o Ocidente alcançou a política perfeita? Os autores citam duas forças opostas. Primeiro, houve o legado do Império Romano, que ofereceu instituições, leis e tradições que tornaram possível criar a ordem. Em segundo lugar, as tribos do norte da Europa, enraizadas em assembleias igualitárias, tinham uma tradição de desafiar líderes poderosos. A competição entre nobres e reis – e mais tarde, eu acrescentaria, entre Igreja e Estado, e entre as centenas de estados, ducados e principados da Europa medieval – tudo isso, ajudou a liberdade individual a crescer e florescer.

Não é uma questão de superioridade cultural do Ocidente, mas, sim, de sua história incomum. Países em outras partes do mundo têm conseguido atingir um equilíbrio semelhante – Índia, Coréia do Sul, Costa Rica. Mas o corredor é estreito e entender isso nos ajuda a reconhecer a fragilidade da democracia liberal.

Fraquezas. É por isso que, no final da década de 1990, enquanto estávamos aplaudindo os países em todo o mundo que realizavam eleições, identifiquei o fenômeno da “democracia iliberal”, lugares onde líderes eleitos estavam sistematicamente abusando do poder, privando as pessoas de seus direitos e esvaziando a essência do governo liberal e constitucional. Desde então, infelizmente, essa lista tem ficado muito mais longa, incluindo países ocidentais como a Hungria, democracias estabelecidas como a Índia e alguns, como a Rússia, que simplesmente se transformaram em ditaduras.

Os países, incluindo os Estados Unidos, que atravessaram o estreito corredor e atingiram o equilíbrio certo entre Estado e sociedade são felizardos. Mas estamos em uma era de funcionamento fora do padrão das democracias, já que os movimentos populistas ameaçam as instituições e as normas políticas que há muito tempo são vistas como neutras. Vemos isso de forma mais perigosa na tentativa do Partido Republicano de politizar a contagem de votos nos estados que controla.

Os EUA continuam sendo uma democracia liberal, mas a audiência desta semana a respeito da insurreição do dia 6 de janeiro no Capitólio destacou a fragilidade das normas democráticas até mesmo aqui. Nossas instituições políticas são mais fortes que a maioria, mas estão sendo exauridas por uma sociedade que está profundamente dividida – tanto que mesmo os fatos básicos do que aconteceu em 6 de janeiro são vigorosamente contestados.

Os desordeiros, encorajados por políticos inescrupulosos, mostraram o dano que um grupo de cidadãos comuns poderia causar. Podemos reparar esse dano pressionando por proteções democráticas mais fortes e resistindo a esforços para subverter a vontade do povo.

Você provavelmente já deve ter ouvido a história de que, em 1787, alguém supostamente perguntou a Benjamin Franklin que tipo de governo a Convenção da Filadélfia havia decidido. “Uma república”, respondeu ele, “se você puder mantêla.” Os delegados poderiam ter projetado o melhor sistema do mundo, mas seu sucesso, em última análise, coube ao povo.

Isso parece um alerta ameaçador, mas também pode nos consolar – o poder de preservar a democracia está em nossas mãos.

03 de agosto de 2021

A RECAÍDA NA FOME!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 01) A fome voltou no Brasil e até poderia constar da pauta do governo central, se os arranjos políticos do presidente Jair Bolsonaro deixassem algum espaço.

Fome virou assunto no Brasil, o segundo maior exportador de comida, capaz de abastecer toda a sua população, alimentar centenas de milhões em todo o mundo e ainda armazenar muita sobra. A insegurança alimentar voltou a ser tema de pesquisadores nacionais e estrangeiros, embora o País tenha saído há vários anos do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). A pobreza nunca foi extinta, mas a desnutrição como problema econômico parecia convertida, de forma definitiva, em passado histórico. Mas a fome voltou, e até poderia constar da pauta do governo central, se os arranjos políticos do presidente Jair Bolsonaro deixassem algum espaço.

O custo da alimentação subiu 0,59% em julho, 3,23% no ano e 10,81% em 12 meses, segundo o Índice Geral de Preços – Mercado (IGPM), da Fundação Getulio Vargas (FGV). Não houve crescimento salarial desde o ano passado, mas nem isso faz muita diferença para os quase 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e cerca de 34 milhões de informais. Dinheiro curto seria problema sério mesmo com preços estáveis, mas no Brasil o pesadelo se completa com inflação acelerada e uma pandemia ainda muito perigosa.

Com desemprego recorde, renda escassa e inflação aquecida, milhões de famílias só têm conseguido comer graças a campanhas de solidariedade. Os cenários da fome podem variar de uma pesquisa para outra, mas são sempre muito feios. Quase um quarto dos brasileiros – 23,5% – enfrentou insegurança alimentar moderada ou severa entre 2018 e 2020, segundo estudo recente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Essa parcela foi 5,2% maior que a estimada entre 2014 e 2016. Em 2021 o quadro só pode ter piorado, com a suspensão do auxílio emergencial, o aumento do desemprego e a aceleração da alta de preços.

A atenção à fome, fato raro em Brasília, motivou a divulgação, pelo serviço de notícias do Senado, de três projetos de lei para o enfrentamento da insegurança alimentar. Os projetos, apresentados em 2019, 2020 e 2021 pelos senadores Jorge Kajuru (Podemos-GO), Plínio Valério (PSDB-AM) e Jader Barbalho (MDB-PA), coincidem ao propor esquemas de doação de comida às famílias carentes. Os detalhes variam e uma das propostas inclui a limitação da alta de preços dos alimentos durante a pandemia. A inflação geral do consumo seria o teto para o aumento dos preços da comida.

Além de tecnicamente complicado, esse tabelamento fracassaria, como já ocorreu tantas vezes, e ainda provocaria distorções. Mais sensato seria auxiliar as famílias necessitadas com a distribuição de cestas básicas e com medidas para reforçar o abastecimento, como o uso de estoques públicos e operações bem conduzidas de importação. Os desafios atuais evidenciam a urgência de maior atenção a políticas de abastecimento.

Um dos projetos determina a distribuição de cestas básicas pelo Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Esse misterioso mecanismo está subordinado à Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, do Ministério da Cidadania, atualmente ocupado pelo deputado João Roma (Republicanos-BA), precedido no posto ministerial pelos deputados Osmar Terra e Onyx Lorenzoni. O ministro Roma tem defendido o aumento do Bolsa Família, mas, depois de nomeado, já defendeu também o voto impresso e apareceu ao lado do presidente em live contra o distanciamento social na pandemia.

A redução do enorme desemprego, um dos maiores do mundo, seria o remédio mais seguro e mais eficaz contra a desnutrição, mas até agora o governo falhou nesse quesito, como têm mostrado as pesquisas – as mais completas nessa área – do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma das poucas novidades positivas, em relação ao tema da fome, é a decisão de preservar o incentivo fiscal ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), anunciada pelo relator do projeto de reforma do Imposto de Renda, deputado Celso Sabino (PSDB-PA). Pelo menos o vale-refeição deve ser salvo – uma bênção adicional para quem tiver um emprego.

02 de agosto de 2021

A ARMADILHA LATINO-AMERICANA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 30) Entre a desigualdade social e o baixo crescimento é difícil saber qual é o ovo e qual a galinha, mas ambos se reforçam mutuamente: países mais pobres são mais desiguais e vice-versa. A América Latina é a segunda região mais desigual do mundo e a mais desigual em sua faixa de renda. Não surpreende que o último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para a região se intitule Presos numa Armadilha.

Na década de 2000, o crescimento econômico, a redução da lacuna entre os salários dos empregos mais e menos qualificados e os programas de transferência de renda reduziram a desigualdade. Mas a tendência se estancou na década de 2010, que naturalmente se encerrou com uma onda de protestos em 2019, sufocados pela pandemia em 2020.

A pandemia pesou mais sobre quem já estava para trás. As perspectivas são mais tenebrosas ante o impacto desigual sobre os estudantes. A América Latina tem a menor taxa de mobilidade educativa intergeracional e a pandemia deve reforçar esse padrão ligado ao seu crescimento volátil e medíocre.

A percepção de injustiça é generalizada, não só na distribuição de renda, mas no acesso a serviços públicos e garantias legais. Para 3 em 4 latino-americanos, seus governos servem aos interesses de uns poucos poderosos. A maioria acha que a carga tributária deveria aumentar com a renda, mas o apoio é muito maior entre os 20% mais pobres e muito menor entre os 20% mais ricos – que concentram 56% da renda.

A concentração de poder político e econômico resulta em instituições débeis e políticas distorcidas, míopes e ineficazes. Os mercados latino-americanos tendem a ser dominados por um pequeno número de empresas gigantes, o que conduz a preços mais altos, incentivos para tecnologias ineficientes e baixo investimento em inovação.

O poder dos monopólios é em boa parte responsável pela baixa tributação corporativa e pela resistência a impostos progressivos. Já os sindicatos, quando não se aliam às grandes empresas para obter privilégios, com frequência trabalham para reduzir as desigualdades entre empregadores e empregados exclusivamente do seu segmento, exacerbando as disparidades nos demais.

Um fator que é perpetuado pela armadilha latino-americana é a violência. A região abriga 9% da população mundial, mas responde por 34% dos homicídios. A violência deteriora direitos e liberdades; prejudica resultados educativos e a saúde física e mental; reduz a participação no trabalho e na política; ameaça instituições democráticas; e obstrui a provisão de bens públicos aos vulneráveis.

Outro fator são os incentivos políticos a soluções demagógicas, de curto prazo, fragmentadas e ineficazes. A cisão da seguridade latino-americana entre trabalhadores formais (cobertos por programas contributivos, estabilidade de emprego e regulações de salário mínimo) e trabalhadores informais (servidos por programas não contributivos) é responsável pela baixa eficácia do sistema de proteção e impactos contraditórios sobre a desigualdade. O Pnud enfatiza a importância de uma agenda de proteções sociais universais, mais inclusivas e redistributivas, fiscalmente sustentáveis e favoráveis ao crescimento.

“Os lares pobres precisam de transferência de renda e seguridade social, não de um ou de outro.” Mas “ao invés de atuar ex ante para prevenir a pobreza, as políticas reagem apenas ex post para mitigá-las”. Em geral, as taxas de pobreza na região diminuem por programas de transferência de renda e não porque a renda dos pobres aumentou. Uma boa arquitetura social deveria não só assegurar o bem-estar das famílias vulneráveis, mas incentivar trabalhadores e empresas a melhorar sua produtividade.

À armadilha da desigualdade e do baixo crescimento subjazem engrenagens complexas, como a concentração de poder, a violência, e programas de proteção social e marcos regulatórios do mercado de trabalho ineficientes e distorcidos. Enquanto o enfrentamento a esse quadro não for igualmente complexo, os latino-americanos seguirão aprisionados em seu subdesenvolvimento.

30 de julho de 2021

BORBA GATO: MESTIÇO, PROTEGIDO POR ÍNDIOS, ASSASSINO DE UM FIDALGO ESPANHOL!

(Leandro Narloch – O Antagonista, 29) Um fato curioso na polêmica sobre Borba Gato é o seguinte: os malucos que botaram fogo na estátua acreditam na história que ela conta. Acreditam que Manuel de Borba Gato era um homem imponente com traços europeus, que vestia camisa listrada, botas e colete vermelho de couro, e que era poderoso o suficiente para impor sua vontade contra índios indefesos.

Nada tão distante da realidade do século XVII. Os incendiários do último sábado atacaram um personagem muito mais indígena do que se imagina.

Antes da descoberta do ouro, os paulistas eram um povo esquecido, pobre, pouco relevante ao imenso império português. Quase todos eram mestiços de índios, portugueses degredados e cristãos novos (judeus convertidos) que chegaram ao Brasil expulsos ou órfãos, depois de seus pais terem sido presos e mortos na Europa. Falando uma boa dose de tupi-guarani, deram nomes indígenas a cidades que fundaram, como Jundiaí, Piracicaba ou Cuiabá. Borba Gato provavelmente cresceu em aldeias, foi criado por índias e, como seus parentes, guerreou contra outras tribos e europeus.

Qual o feito que levou Borba Gato aos documentos históricos? Ter matado um branco – o espanhol Rodrigo de Castelo Branco, fidalgo que fiscalizava a mineração e o pagamento de impostos no Brasil. Em 1682, dom Rodrigo foi a Minas Gerais e questionou Borba Gato sobre a localização de minas de ouro. Durante uma discussão, o paulista teria se irritado e empurrado o oficial num sumidouro – um buraco aberto pelos mineiros.

O que Borba Gato fez depois do crime? Refugiou-se entre seus amigos – os índios – e “ficou entre eles, respeitado como um cacique”, escreveu seu contemporâneo Bento Fernandes Furtado. “E ali viveu barbaramente, sem concurso de sacramento algum naquele modo de vida e nem comunicação com mais criaturas deste mundo por dezesseis anos.”

Ou seja: segundo esse relato, o bandeirante não era um grande católico ou um bom representante da Igreja ou da Coroa. “Borba Gato também é descrito quase como um tupi em pontos seguintes da história”, diz Jorge Caldeira no livro O Banqueiro do Sertão. O paulista só faria as pazes com o reino português em 1698, quando foi nomeado tenente-geral de uma missão de descobrimento de ouro.

Os ativistas antiestátuas argumentam que não devemos manter em pé monumentos dos bandeirantes, que teriam matado e escravizado centenas de milhares de índios. A história é muito mais complexa.

Como conto no Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, a ideia de que os bandeirantes eram homicidas sádicos veio de relatos dos jesuítas à corte espanhola. Para aterrorizar as autoridades europeias, na esperança de lançá-las contra os paulistas, os padres os retrataram como assassinos – que ainda colaboravam com judeus e holandeses. A imagem da selvageria dos paulistas também ajudava a esconder o real motivo do esvaziamento das missões (os índios não confiarem nos padres e se cansarem das regras cristãs).

O padre espanhol Antônio Montoya, por exemplo, numa carta ao reino espanhol falou sobre um ataque a uma missão jesuítica durante o qual os paulistas teriam matado “índios como se fossem animais”. Já num comunicado interno sobre o mesmo episódio, mudou o tom: “os paulistas não se atreveram a chegar ao povoado (…) e fugiram quebrando as canoas, correndo pelos montes”.

Muitos historiadores tomaram o relato dos jesuítas como verdadeiros, sem desconfiar dos exageros evidentes. Numa época de armas artesanais, era um tanto difícil poucos bandeirantes matarem centenas de milhares de pessoas em poucos dias ou acorrentarem dezenas de milhares de índios. Mesmo os jesuítas do século XVII discordaram dos números. Num relato, o ataque de Raposo Tavares a aldeias jesuíticas no Guairá, em 1628, teria resultado em 150 mil índios mortos e outros 40 mil presos. Já na Relação de Agravos, escrita pelos padres Justo Mansilla e Simão Masseta, o total de mortes durante o episódio foi de catorze.

Os incendiários do último sábado teriam sido mais eficientes se fizessem um protesto pacífico para convencer os paulistanos a derrubar a estátua de Borba Gato. Como não é um monumento fiel à história e nem exatamente bonito, muitos paulistanos concordariam com a sua retirada.

28 de julho de 2021

PRESIDENTE DE ESQUERDA TESTA FRÁGIL DEMOCRACIA!

(O Estado de S. Paulo – 28) A frágil democracia do Peru foi submetida a um teste extremo no mês passado, quando um segundo turno presidencial entre dois candidatos ideologicamente polarizados resultou em uma vitória tênue para um esquerdista que se opõe à maioria da elite do país.

A aparente vitória de Pedro Castillo, um professor de escola rural de 51 anos sem experiência anterior no governo, levou sua oponente de extrema direita Keiko Fujimori a emitir alegações de fraude eleitoral no estilo Donald Trump, enquanto dezenas de militares reformados convocaram as Forças Armadas a não reconhecer o resultado. Foi, portanto, uma boa notícia quando as autoridades eleitorais rejeitaram as acusações sem evidências e a pressão externa e certificaram Castillo como o próximo presidente do Peru, a ser empossado hoje.

Por enquanto, as instituições democráticas do Peru se mantiveram. Agora, a questão é se Castillo buscará miná-las, assim como a economia de mercado do país, ou seguir um curso mais moderado. O que está em jogo é se o país sulamericano de 32 milhões de habitantes seguirá o exemplo desastroso da Venezuela, cujo regime socialista autocrático destruiu sua prosperidade, ou continuará o que, até a pandemia de covid19, era um recorde de padrões de vida em constante ascensão.

Até agora, a resposta não é nada clara. Castillo, que foi indicado por um partido marxista-leninista (Peru Livre) fundado por um linha-dura educado em Cuba, diz que não é comunista. Em sua campanha, ele falou em nacionalizar as empresas de mineração que são a base da economia nacional e convocar uma assembleia constituinte para reescrever a Constituição, uma tática política adotada pelo homem forte venezuelano Hugo Chávez, morto em 2013.

Mas o chefe de sua equipe de transição econômica disse que não haverá nacionalizações, desapropriações ou controles de câmbio e de preços, e Castillo indicou que não trocará o presidente conservador do Banco Central. Considerando que o partido do presidente não tem a maioria parlamentar necessária para autorizar uma nova Constituição ou alterar as leis de investimento estrangeiro, alguns analistas têm esperança de que o novo governo se concentrará em aumentar os impostos sobre as empresas de mineração, em vez de confiscá-las.

O Peru pode parecer um lugar improvável para uma revolução esquerdista. Sob a maioria dos presidentes centristas eleitos desde a virada do século, a economia tem sido uma das que mais cresce no Hemisfério Ocidental; a taxa de pobreza caiu de 60% para 21% e a desigualdade diminuiu. Mas o sistema político sofreu com a fragmentação: 18 candidatos participaram do primeiro turno das eleições presidenciais, permitindo que Castillo e sua oponente Keiko Fujimori se classificassem para um segundo turno com 32% dos votos combinados.

O país permanece dividido entre uma elite costeira e a população predominantemente indígena do interior. E a sensação de progresso econômico foi devastada pela pandemia de coronavírus, que deu ao Peru a maior taxa de mortalidade per capita relatada do mundo. A implosão da Venezuela, que fez com que 5 milhões de pessoas fugissem do país para as nações vizinhas – incluindo 1 milhão para o Peru –, demonstrou as consequências do desgoverno esquerdista para a região. Os vizinhos do Peru devem pressionar o novo presidente para que proceda com cautela.

Os Estados Unidos também podem usar sua influência para garantir que os militares peruanos permaneçam em seus quartéis. O Peru elegeu e sobreviveu a presidentes mal preparados no passado. Com sorte, Castillo não será exceção.

27 de julho de 2021

A REDUÇÃO DA POPULAÇÃO JOVEM

(Editorial – O Estado de S. Paulo – 26) Chegou-se à fase chamada de país maduro. A população mais idosa tende a crescer mais rapidamente. Cresce também, obviamente, a idade média da população. É universal o fenômeno do envelhecimento da população como decorrência das mudanças no modo e na qualidade de vida. Na grande maioria dos países, vive-se mais e melhor. Ainda que esperadas, as transformações demográficas podem, porém, ser impressionantes. No Estado de São Paulo, por exemplo, a população em idade escolar diminuiu 15,7% em 21 anos. Em 2000, havia 9,33 milhões de crianças e adolescentes com idade entre 4 e 17 anos; hoje, são 7,86 milhões.

Isso significa que, no período, a população do Estado de São Paulo nessa faixa de idade encolheu em 1,47 milhão de pessoas. Em termos proporcionais, a redução é igualmente expressiva. Em 2000, as pessoas com idade entre 4 e 17 anos correspondiam a 25,3% da população paulista; em 2021, a 17,5% do total. São dados do mais recente boletim sobre a demografia de São Paulo publicado pela Fundação Seade.

Em nenhum sentido se pode dizer que esta é uma mudança trivial, embora fosse previsível. Ela implica, por exemplo, transformações substanciais no mercado de trabalho, nos ganhos de eficiência da economia (e na sua capacidade de crescer e gerar riqueza), nas demandas por programas sociais e, de imediato, na busca pelo sistema de ensino, começando da pré-escola, passando pelo fundamental I e pelo fundamental II, e alcançando o ensino médio. Progressivamente vem diminuindo a necessidade de construção de escolas e de formação e contratação de profissionais de ensino para essa faixa etária. Mas crescerão, como já estão crescendo, as demandas por políticas de atendimento a idosos, que envolvem lazer, transportes públicos, assistência social e de saúde, além, naturalmente, das pressões sobre o sistema previdenciário.

A mudança do padrão demográfico como esta observada no Estado de São Paulo ocorre em todo o País. A pirâmide demográfica, como é conhecida a representação gráfica da população por faixa etária (os mais jovens na base) e sexo (um à esquerda e outro à direita no gráfico), tinha, de fato, a configuração de pirâmide (base ampla e se estreitando linearmente até o topo) até os últimos anos do século passado. Era o desenho de uma população predominantemente jovem.

As últimas décadas vêm registrando mudanças notáveis nesse padrão. As faixas correspondentes aos mais jovens estão diminuindo e as de mais idade crescem. O caso de São Paulo pode ser tomado como exemplo dessa mudança. A Fundação Seade estima que, no fim deste ano, a população paulista chegará a 44,9 milhões de pessoas, 20% maior do que a de 20 anos antes. “Esse comportamento foi acompanhado de relevantes modificações na composição etária da população, representada na forma de pirâmide, com forte estreitamento da base correspondente aos mais jovens e alargamento nas faixas etárias mais avançadas”, diz a instituição em outro estudo.

Estudos do IBGE indicam que a população brasileira deverá parar de crescer a partir de 2047. O Brasil terá chegado, então, ao amadurecimento demográfico já observado em alguns países de renda alta, mas sem ter usufruído inteiramente de fase mais auspiciosa de sua evolução populacional.

Há alguns anos, o Brasil chegou ao apogeu do que os estudiosos chamam de bônus demográfico, momento da evolução populacional em que o número de pessoas em idade ativa cresce mais depressa do que a população total. Obviamente a população em idade ativa (PIA) continua a crescer, mas não mais do que a população total.

Chegou-se, então, à fase chamada de país maduro. A população mais idosa tende a crescer mais rapidamente. Cresce também, obviamente, a idade média da população. Em São Paulo, a idade média da população era de 30 anos em 2000; hoje é de 36,5 anos. Paulatinamente, a representação gráfica da população, antes nitidamente uma pirâmide, vai assumindo a forma de um vaso de diâmetro menor na base do que no terço superior. As demandas sociais vão se transformando na medida em que muda o gráfico populacional.

26 de julho de 2021

COM INDÚSTRIA FORMAL FALIDA, PAÍS PASSOU A EXPORTAR DROGA E TEM COMO GRANDE COMPRADOR REGIME OPOSITOR SAUDITA

(O Estado de S. Paulo – 24) A Síria se tornou um narco-estado. Com economia formal falida, tráfico de drogas vira fonte de divisas do país. Nas dunas ao norte de Riad, capital saudita, quando o sol se põe, a festa começa. As jovens tiram suas abayas, as tunicas negras que as cobrem em público, começam a dançar ao som de música tecno com os homens.

Algumas bebem, mas a maioria prefere Captagon, hoje a droga favorita no Golfo – US$ 25 cada comprimido –, chamada de Abu Hilaian (Pai de duas meia-luas) conforme as duas letras, “c” e “s” (do Captagon) gravadas nos comprimidos. Parte da família das anfetaminas, a droga tem efeito similar ao Viagra e domina o sono. “Com um comprimido, podemos dançar o fim de semana inteiro,” diz um raver. Embora os governantes sauditas há uma década façam oposição ao regime sírio, o consumo da droga pelos jovens vem financiando a Síria. Para o presidente sírio, Bashar Assad, a droga se tornou uma bênção – pelo menos no curto prazo. O país hoje é o principal traficante do Captagon.

À medida que a economia formal desmorona sob o peso da guerra, das sanções e do governo predatório da família Assad, a droga se tornou o maior produto de exportação e fonte de moeda forte da Síria. Segundo o Centre for Operational Analysis and Research (Coar), consultoria com sede em Chipre, autoridades de vários lugares confiscaram no ano passado drogas vindas da Síria com um valor de mercado não inferior a US$ 3,4 bilhões (R$ 17,6 bi), em comparação com o produto mais exportado do país, o azeite de oliva, que chega a cerca de US$ 122 milhões (R$ 634 milhões) por ano. A droga está financiando o governo, diz Ian Larson, que produziu um recente relatório sobre o assunto para o Coar.

A Síria já está há muito tempo envolvida nas drogas. Nos anos 90, quando controlava o Líbano, o Vale de Bekaa era a principal fonte de haxixe da região. Mas a produção em massa de drogas dentro da Síria começou só depois de iniciar a guerra civil em 2011. Os oficiais fornecem aos seus homens o Capitão Coragem, como chamam o Captagon.

Os combatentes xiitas do Afeganistão e Líbano, que vieram apoiar o regime sírio, trouxeram suas habilidades de produção e contrabando. O Hezbollah, maior milícia xiita do Líbano que tem dado um apoio crucial ao regime de Assad, adquiriu grandes áreas de terra na fronteira, nas montanhas Qalamoun. Em seguida, expandiu o cultivo de haxixe e desenvolveu uma nova indústria caseira fabricante de comprimidos da droga. A Síria começou a exportar o Captagon em 2013, à medida que sua indústria formal definhava por causa da guerra, das sanções econômicas e da corrupção dentro do governo.

As indústrias químicas nas cidades de Alepo e Homs foram transformadas em locais de fabricação. No Golfo, o preço da droga é 50 vezes maior do que o seu custo na Síria. Os contrabandistas as escondem em carregamentos de rolos de papel, assoalhos de madeira e até de romãs. Os príncipes sauditas usam jatos privados para trazer a droga. Apreensões do Captagon pela polícia em águas estrangeiras dão uma demonstração do porte do negócio. No ano passado, a polícia italiana descobriu um carregamento de 84 milhões de comprimidos num valor superior a ¤ 1 bilhão ( R$ 6,2 bi) em um único navio. Na época, foi considerada a maior interceptação de drogas de anfetaminas no mundo. Mas, em maio, autoridades da Malásia apreenderam um carregamento de 95 milhões de pílulas. O porto líbio de Benghazi, ligado à Síria por uma rota de navegação regular, seria um entreposto-chave.

Os Assads insistem que não estão envolvidos. “Propaganda”, afirma Shadi al-ahmad, economista em Damasco, leal ao regime. Mas como Assad tem dificuldade para pagar seus soldados, ele terceiriza grande parte da supervisão do contrabando para os senhores da guerra. A quarta divisão do Exército, comandada por Maher Assad, irmão mais novo do presidente, ficaria com uma grande parte. Outros operam em portos de Latakia e Tartous, no Mediterrâneo. Um traficante libanês próximo do Hezbollah e procurado pela Interpol orgulha-se no Facebook de seus vínculos com a família Assad e clérigos do Hezbollah. “Está fora de controle”, diz uma fonte em Damasco.  O regime considera o Captagon uma espécie de alavanca nas lutas de poder regionais. “Ele usa a droga como arma contra o Golfo”, diz Malik al-abdeh, observador na Síria ligado à oposição. “A mensagem é: normalize as relações ou destruirem seus jovens.”

De qualquer maneira, os leais ao governo não são os únicos envolvidos. Os curdos que controlam a fronteira noroeste do Iraque com a Turquia basearam-se na experiência do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) que opera as rotas pelas montanhas para a Europa. Os rebeldes sírios sunitas, sob proteção dos turcos ao norte da Síria, também fazem parte. E a rota ao sul, através da Jordânia, para a Arábia Saudita está mais movimentada. “Todas as milícias conseguem suas receitas contrabandeando drogas”, diz um líder tribal no sul da Síria. Segundo ele, milícias do sul ajudaram milhares de refugiados a cruzar a fronteira para a Jordânia, com mochilas cheias de pílulas.

Para os sírios que ficaram, as drogas podem destruir o que resta da sociedade depois de uma década de guerra civil. “Os jovens que não foram mortos, se exilaram ou foram presos ou são viciados”, diz um assistente social em Sweida, cidade tomada por Assad no sul. De acordo com recente pesquisa junto a sírios no norte do país, em janeiro deste ano, 33% disseram conhecer um usuário de drogas. Um forte aumento em comparação com os 7% em 2019. O hábito é tão dominante que, durante o Ramadã deste ano, em abril e maio, a série no horário nobre na TV estatal era On a Hot Plate, sobre uma família de traficantes de drogas.

23 de julho de 2021

DESAFIOS DA DEMOCRACIA LATINO-AMERICANA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 17) Após a redemocratização dos anos 80 e 90, a democracia latino-americana se encontra em um ponto de inflexão. Na última década, os avanços sociais nutridos pelo superciclo das commodities estancaram. O desgaste dos populismos de esquerda legou um cenário fiscal periclitante. Às renitentes mazelas latinoamericanas – a corrupção, a ineficiência dos serviços públicos ou a violência – veio se somar uma crise de representatividade global, que catalisou, entre outras coisas, os populismos reacionários. Os protestos de 2019 foram abafados pela pandemia, ao mesmo tempo que suas causas foram agravadas por ela.

Neste cenário, foi oportuna a proposta da Fundação FHC de dedicar um dos debates do ciclo que celebra os 90 anos do presidente Fernando Henrique à Arte da política democrática e os desafios da globalização. Junto a FHC, outros estadistas intelectuais – o expresidente do Chile Ricardo Lagos; o ex-presidente do Uruguai Julio Maria Sanguinetti; e o ex-chanceler uruguaio Enrique Iglesias – abordaram os desafios da transição democrática e seus reflexos na contemporaneidade.

FHC descartou o risco de que a “árvore da democracia” seja arrancada pela raiz, mas alertou que ela pode definhar por falta de cultivo. Sanguinetti apontou que, aos desafios políticos da redemocratização e aos desafios econômicos da industrialização tardia, a pandemia gerou um “estranho parêntese” que impôs três “pontos de interrogação” críticos à democracia latino-americana: a aceleração da digitalização; a recuperação da centralidade do Estado (com os riscos das tentações autoritárias); e as vulnerabilidades sociais.

“Esta pandemia revelou o nível de nudez de nossos países sobre esses temas”, disse Lagos. A exportação de bens primários vem dando alguma aceleração à recuperação econômica, “mas não recuperaremos rapidamente o emprego”. O choque de digitalização mostrou que o que era produzido com 10 milhões de empregados pode ser produzido com 9 milhões, “mas como criaremos empregos para este milhão remanescente?”. Outro efeito da digitalização, segundo Lagos, é que as redes sociais tornam a política mais “horizontal” do que “vertical”. “Falta ainda descobrir que instituições políticas surgirão como resultado da revolução digital.”

As dificuldades da representação político-partidária foram ilustradas a partir do cenário brasileiro: “Não são os partidos que conduzem o povo, o voto depende muito mais do desempenho pessoal”, disse FHC, “mas quando se chega ao poder, a vontade do governante não prevalece sem passar pelo Congresso.” É preciso “vivenciar uma permanente busca de composição entre a vontade das pessoas e a aceitação dessa vontade pelos partidos no Congresso”. Quando a autoridade máxima é refratária a buscar essa composição, como no Brasil, desencadeiam-se atritos institucionais perigosos.

Somem-se a essas dificuldades a crise do multilateralismo e o desafio da inserção da América Latina no confronto entre China e EUA. Como lembrou Sergio Fausto, um dos moderadores, a batalha entre a democracia e o autoritarismo no século 21 tem características distintas da do século 20. Na guerra fria, a URSS era uma potência “evitável”, sem conexões econômicas com o mundo liberal. Já a China, apontou Sanguinetti, se parece muito mais com o “velho império britânico”, é “muito mais comerciante” e não busca uma hegemonia político-ideológica. Não obstante, o controle da economia chinesa pelas lideranças político-ideológicas impõe à comunidade global o desafio de repactuar as condições de cooperação econômica e, ao mesmo tempo, contrapor-se aos abusos do autoritarismo.

Maus intelectuais costumam apresentar soluções simplistas para desafios complexos, e maus estadistas costumam impô-las pela força. Como bons intelectuais, os debatedores mostraram-se muito mais preocupados em expor com precisão os desafios. E, como bons estadistas, mostraram que as soluções dependerão da capacidade do povo de materializar sua vontade em instituições inovadoras e de líderes capazes de encarná-la.

22 de julho de 2021

‘O NEGATIVO É QUE A POLARIZAÇÃO DEIXOU DE SER DEMOCRÁTICA’!

(Rodrigo Turrer – O Estado de S. Paulo, 18) Um dos principais observadores do cenário geopolítico mundial nos últimos anos, o venezuelano Moisés Naím alerta para os riscos da polarização tóxica e uma alteração nas dinâmicas de poder. Ele defende a recuperação da narrativa da sociedade liberal para defender a democracia.

• No seu livro ‘O Fim do Poder’, o sr. diz que estar no comando não é o que costumava ser, porque o poder está mudando. Como isso afetou a democracia?

Demais. No século 21, o poder ficou mais fácil de se adquirir, mas mais difícil de usar, e mais fácil de perder. Há uma série de forças centrífugas que espalham o poder: grandes corporações, mídias sociais, novas tecnologias. O embate entre as forças centrífugas que espalham poder e as forças centrípetas que concentram poder é uma dinâmica central. Você pode ver que onde o poder importa, esse duelo entre as forças que diluem e as forças que concentram é constante.

• O que trouxe o mundo a esse estado? Foi a polarização, as redes sociais, os desafios econômicos, a insatisfação das pessoas com a desigualdade econômica?

É preciso ter cuidado, porque a maioria dessas questões sempre existiu sem criar os problemas que temos na magnitude que temos hoje. Populismo sempre existiu. Populistas existem há tempos imemoriais: demagogos que mentem para seu povo e prometem coisas que não podem ser cumpridas. Polarização é um componente natural da sociedade. Você tem pessoas com visões distintas que duelam com diferentes pontos de vista. Mas a polarização é como colesterol: tem o bom e o ruim. É bom que sociedades tenham visões discordantes de grupos e segmentos de interesse e compitam em favor dos eleitores e ganhem poder. Isso é saudável, que grupos polarizados tenham poder. O negativo é que a polarização deixou de ser democrática e âncora da globalização para uma polarização tóxica, que impede o debate, que é paralisante, impede a sociedade de funcionar e o governo de funcionar. Me mostre uma democracia no mundo hoje, e eu te mostro uma sociedade altamente polarizada. Essa é a novidade.

• Por quê?

Bom, são vários fatores. As novas tecnologias, notadamente as mídias sociais. A pandemia agravou muito a situação, mas há outros fatores. Em países em desenvolvimento, especialmente na América Latina, houve um boom de commodities que criou uma benevolência econômica. Então isso acabou, veio uma crise econômica e uma crise financeira seguida por uma pandemia, e a América Latina acabou sofrendo os efeitos dessa parada. Então ficou-se numa situação muito ruim e ficou impossível não culpar quem está no governo pela péssima situação. E aí temos um outro fenômeno que sempre existiu, que antigamente chamava-se propaganda e agora chamam de “pós-verdade”. É essa noção de que tudo é relativo, que não há verdadeiro ou falso, nada pode ser definitivo, as fake news e tudo mais.

• O sr. acredita que todas as democracias do mundo estão em perigo hoje com a ascensão dos populistas?

Nem todas. Me recuso a imaginar que a democracia escandinava esteja em risco. Eles têm uma espécie de imunidade cultural a esse tipo de crescimento populista. Você tem de um lado os suecos, dinamarqueses. No outro extremo temos México, Argentina, Brasil, e ainda mais extremos como Mianmar. As democracias têm sido desafiadas seriamente em todo o planeta, mas alguns países têm mais imunidade do que outros.

• Mario Vargas Llosa escreveu que, apesar de as democracias estarem em perigo em muitos países, há um “desespero retórico” entre intelectuais e jornalistas. As democracias estão em perigo real ou as pessoas estão exagerando?

Você precisa escolher entre ser alarmista e ser complacente. São dois perigos iguais: você corre o risco de o céu estar caindo sobre sua cabeça e as democracias estarem em perigo e você estar sendo alarmista ou ser complacente e dizer:

“Isso já aconteceu no passado e demos conta, está tudo ok”. Eu prefiro cometer o erro de ser alarmista do que de ser um analista complacente que minimize o que está acontecendo.

• Como os líderes eleitos podem erodir a democracia?

O mundo está vendo um assalto global aos sistemas de pesos e contrapesos. Quando você fala em ameaças à democracia, essencialmente são os sistemas de pesos e contrapesos que estão sob ataque ou não funcionam, que o Parlamento não é independente e é refém do Executivo. Há o Judiciário, o Parlamento, o Poder Executivo, a mídia, a mídia independente. O que causa a erosão da democracia são esses ataques contínuos aos componentes desse sistema. Alguns desses ataques são abertos, gritantes, cruéis e dramáticos. Outros são praticamente invisíveis, disfarçados, chatos, burocráticos e difíceis de perceber que estão acontecendo, mas estão causando danos iguais.

• Como proteger as democracias de ataques daqueles que querem controlar o poder?

Há várias coisas. A primeira é recuperar a narrativa do que é uma sociedade liberal. As forças que estão levando a cabo sua guerra contra os sistemas de freios e contrapesos têm uma história para contar: a narrativa que mina a confiança e a credibilidade da narrativa liberal e os valores das democracias no mundo, liberdade, justiça para todos. Os liberais estão perdendo a narrativa e deixando haver confusão sobre a importância da democracia. Isso tem a ver com a pós-verdade, mídias sociais, fake news. É preciso retomar essa narrativa. A segunda é a guerra pela legitimidade, que é o ativo político mais escasso do mundo. Por isso ditadores organizam eleições e fazem campanhas, mesmo que fajutas. Quando Maduro faz uma eleição na Venezuela, ninguém acredita que aquele processo seja honesto, pois sabem que aquilo é manipulado. Mas eles precisam da narrativa para sustentar sua legitimidade. A legitimidade pode vir da narrativa ou da performance. Um líder que entrega o que promete, que alcança os objetivos e mostra para a sociedade, tem mais legitimidade do que aquele que apenas promete.

• A democracia brasileira está ameaçada por esses pequenos passos que podem levar a um caminho final para a autocracia em um futuro próximo?

Muito depende da próxima eleição presidencial brasileira no ano que vem, com um duelo de titãs entre Bolsonaro e Lula. Essa parece ser a tendência. Mas acho que o principal a se observar é como estão os sistemas de freios e contrapesos na sociedade brasileiro. Isso é determinante para saber o que vai acontecer no país.

21 de julho de 2021

SAIBA QUEM É PEDRO CASTILLO, NOVO PRESIDENTE DO PERU!

(Sylvia Colombo – Folha de SP, 20) Pedro Castillo, 51, presidente eleito do Peru, era conhecido no país até a eleição por dois episódios. O primeiro foi a liderança de uma greve nacional de professores, em 2017, à frente do Conare (Comitê Nacional de Reorientação), principal sindicato de professores rurais do Peru.

O segundo foi a rápida escalada até a primeira posição no primeiro turno da eleição peruana, por meio de uma agenda esquerdista, simpática ao chavismo, e de propostas que visam a refundação do país, entre as quais a criação de uma nova Constituição e o desmonte de instituições, como a Defensoria do Povo, que ele considera um órgão corrupto. Pelo mesmo motivo, também defende uma reforma do Judiciário.

A vitória ocorre 19 anos após a estreia na política, em 2002, quando foi candidato a prefeito de Anguía, um pequeno povoado na região de Cajamarca. Perdeu –e, desde então, nunca mais havia se candidatado.

Castillo compartilha com Keiko Fujimori, a rival derrotada no pleito presidencial, uma visão conservadora. É contra o casamento gay, o aborto e o que chama de “ideologia de gênero”.

Afirma que o Estado tem de acompanhar os peruanos “na economia, nas ruas, em casa e na escola”, como disse no último debate presidencial.

Também está alinhado com a filha do ex-autocrata peruano Alberto Fujimori quanto à rejeição à entrada no país de mais refugiados venezuelanos, que, para ele, “roubam empregos dos peruanos”.

Se, por um lado, é conservador em relação a direitos civis, o eleito defende a refundação do Estado e do modelo econômico do país. Quer uma nova Constituição e afirma que fechará o Congresso caso haja oposição à proposta. Diz também que a economia deve ser construída de “baixo para cima” e menciona, entre as áreas que podem ser estatizadas, a mineração –grande fonte de produtos de exportação do Peru.

Para mudar a Carta, no entanto, é necessário o apoio de dois terços do Parlamento unicameral, algo praticamente impossível em um xadrez político tão fragmentado quanto o do país.

O partido de Castillo, o Perú Libre, terá 37 dos 130 assentos da Casa. A segunda maior força será justamente o Força Popular, de Keiko, com 24 cadeiras, seguido por Ação Popular (16) e Aliança para o Progresso (15), ambos de direita. Já os esquerdistas Somos Perú e o Podemos Perú terão cinco congressistas cada um.

Na campanha, Keiko tentou tachar Castillo como o “chavismo no Peru”, mas, apesar dos apoios de Nicolás Maduro –ditador da Venezuela e herdeiro de Chávez– e de Evo Morales –ex-presidente da Bolívia–, o eleito buscou evitar tanto as comparações quanto os acenos de ambos os esquerdistas.

Castillo e seu partido mantêm vínculos com o Movadef, braço político da guerrilha Sendero Luminoso, e muitos de seus membros militam ou militaram pela organização. Tanto o Sendero como o Movadef têm forte atuação no departamento de Cajamarca, onde o novo presidente nasceu.

Se um dos pontos fracos de Keiko são as acusações de corrupção, os de Castillo estão relacionados ao líder de sua legenda, Vladimir Cerrón, condenado por desvio de verbas e criticado pelo elo com o Sendero.

Castillo sempre negou vínculos com os senderistas e sustenta ter feito parte das “rondas campesinas”, grupos paramilitares que ajudaram o Exército peruano a derrotar o Sendero, num conflito que deixou mais de 70 mil mortos entre 1980 e 1993. Mesmo fora da lei, os “ronderos” foram tolerados por todos os governos até hoje porque atendem a necessidades de comunidades distantes do centro do Peru.

Em muitos locais do país, há a presença apenas das “rondas campesinas”, sem que a polícia ou assistentes sociais atuem nas áreas, numa demonstração de falência do Estado peruano. Em algumas regiões, são fortemente armados e confrontam as forças de segurança do Exército.

De discurso com grande apelo a regiões rurais, Castillo diz que os políticos da capital, Lima, não sabem como a vida se desenvolve no interior e recorre com frequência ao período em que, diz ele, recolhia lenha, cozinhava e não parava de trabalhar, salvo nos horários de ir ao colégio ou de dormir.

Essa retórica, porém, é combatida pelos próprios fujimoristas do interior, que ainda são muito numerosos.
Foi apenas com o passar do tempo que o fujimorismo virou um movimento relacionado às grandes cidades.

No interior e nas áreas onde o Sendero atuava, Alberto Fujimori era muito admirado, justamente porque, em sua gestão, os senderistas foram derrotados.

Na eleição de 1990, ele foi o único candidato a visitar os rincões do país aonde políticos de Lima não iam e, durante seu governo, houve subsídios à população do campo, algo que, hoje, Castillo –e não a filha do autocrata– promete fazer.

A vitória mudará a vida de Castillo, que nunca morou numa cidade grande e ainda vive num povoado, em Chugur, num sítio com uma casa simples de vários cômodos, em que a comida continua a ser feita no fogão a lenha.

20 de julho de 2021

MEUS COMPROMISSOS DE CAMPANHA APROVADOS NA LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS!

Aprovado PL da LDO-2022 com as seguintes emendas incluídas:

– Emenda Aditiva nº 10: Previsão de orçamento para retomada e/ou expansão do Programa Favela Bairro, com urbanização, requalificação e regularização fundiária de comunidades carentes cariocas”.

– Emenda Aditiva nº 14: Previsão de orçamento para a retomada do Programa de concessão de Carta de Crédito aos servidores municipais”.

– Emenda Aditiva nº 15: Previsão de orçamento para implementação de novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração dos Servidores Administrativos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro”.

– Emenda Aditiva nº 16: Previsão de orçamento para retomada do Programa Remédio em Casa, com distribuição e entrega em domicílio de medicamentos para diabéticos, hipertensos e afligidos por bronquite asmática crônica atendidos pela Rede Municipal de Saúde”.

19 de julho de 2021

RIO DE JANEIRO: GRAVE CRISE E SAÍDAS POSSÍVEIS!

(Mauro Osorio, diretor-presidente da Assessoria Fiscal da Alerj e professor da FND/UFRJ – O Dia, 12) O Estado do Rio de Janeiro (ERJ), desde os anos 1970, quando se consolida a transferência da Capital para Brasília, é a unidade da federação que mais perde participação no PIB nacional.

A partir de 2015, a situação se agrava. Entre dezembro de 2014 e 2020, o ERJ perdeu 700.723 empregos com carteira assinada, de acordo com dados do Ministério da Economia – uma perda superior à ocorrida no estado de São Paulo, apesar da economia paulista ter um estoque de empregos formais cerca de 4 vezes maior que o do ERJ.

Uma região que deve ser priorizada no ERJ é a periferia metropolitana. Entre os 10 municípios com mais de cem mil habitantes, das regiões Sul e Sudeste do Brasil, que apresentam menos empregos privados formais em relação ao total da população, 4 municípios são da periferia metropolitana do Rio.

Da mesma forma, os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) para a rede pública de ensino até a 5ª série mostram que, entre os municípios das periferias metropolitanas com mais de cem mil habitantes das regiões Sul e Sudeste, 9 dos 10 municípios com piores resultados estão na periferia metropolitana do Rio.

Tirar o território fluminense de seu longo círculo vicioso exige o desenho de políticas coordenadas que levem à integração do estado e à inversão da tendência histórica.

Na periferia metropolitana, faz-se necessário organizar um programa integrado de infraestrutura, contemplando investimentos em saneamento, oferta de energia elétrica e telecomunicações, transportes e logística de acesso para empresas. Isto impactará para a melhor qualidade de vida da população e para a atração de empresas, gerando emprego local e ampliação da base para arrecadação de impostos.

Cabe também desenhar uma política de desenvolvimento para as demais regiões do estado, em que a cidade do Rio assuma o papel de hub do território fluminense.

Do ponto de vista econômico, é essencial pensar de forma sistêmica: quais são os sistemas produtivos em que de fato o ERJ possui potencialidades? Um exemplo é o Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS).

O CEIS agrega ações de atendimento à saúde pública e privada e as indústrias e serviços voltados para o atendimento a esse Complexo. Atualmente, boa parte dos bens e serviços vinculados à área de saúde são importados, significando um gasto anual para o país de cerca de US$ 15 bi.

Depender de importações para atendimento da população é péssimo. Na pandemia a falta de insumos leva à morte de brasileiros.

Quando o Real desvaloriza, o custo de importações aumenta, fragilizando financeiramente o Sistema Único de Saúde (SUS). Ao invés de serem gerados emprego no Brasil, com a produção de bens e serviços voltados para a saúde, são gerados empregos no exterior. Substituir importações permite ampliar a base produtiva no país com elevação da receita pública através de impostos.

16 de julho de 2021

BIDEN SE VÊ FORÇADO A VOLTAR A ATENÇÃO PARA A AMÉRICA LATINA!

(The New York Times/O Estado de S. Paulo, 15) O presidente Joe Biden assumiu o cargo com avisos ousados para a Rússia e para a China em relação aos direitos humanos, enquanto pressionava as democracias em todo o mundo a se oporem publicamente à autocracia. Mas, nesta semana, ele está enfrentando uma série de desafios semelhantes na vizinhança dos EUA.

Na segunda-feira, um dia após os gigantescos protestos em Cuba, Biden acusou as autoridades no país de “enriquecerem a si mesmos” em vez de proteger as pessoas da pandemia de covid-19, da repressão e do sofrimento econômico.

Uma hora depois, o Departamento de Estado anunciou que estava revogando os vistos que permitiam que cem políticos, juízes e seus parentes da Nicarágua viajassem para os EUA, como uma punição pelo país comprometer a democracia ao reprimir os protestos pacíficos ou não respeitar os direitos humanos.

No início da tarde, Biden focou novamente no Haiti, encorajando as lideranças políticas locais a “se unirem pelo bem de seu país”, menos de uma semana após o presidente Jovenel Moise ser assassinado.

A turbulência apresenta uma crise em potencial mais perto de casa, com um possível êxodo de haitianos enquanto o governo Biden luta com uma onda de migrantes na fronteira sudoeste. Isso também está forçando a Casa Branca a se concentrar na região de forma mais ampla, depois de anos de indiferença – ou atenção limitada. A influência dos EUA começou a minguar na região na última década, à medida que o país se voltava para o combate ao terrorismo no Oriente Médio e conforme a Rússia e, sobretudo, a China passaram a financiar projetos e oferecer apoio político e outros incentivos.

Ryan C. Berg, membro sênior do programa das Américas no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, disse que, atualmente, a China é o principal parceiro comercial de pelo menos 8 países latinoamericanos e 19 países da região estavam participando do extenso projeto de infraestrutura e investimento de Pequim, conhecido como Nova Rota da Seda.

Os EUA “consideraram a América Latina como uma fonte garantida de estabilidade e força durante décadas”, disse Berg.

Há uma década, os EUA não viam nenhuma “questão urgente” se espalhando pela América Latina e pelo Caribe, de acordo com uma análise do Instituto Brookings.

Mas o governo Biden está extremamente ciente da natureza delicada da democracia na região. “Sejamos honestos: democracias são coisas frágeis”, disse Samantha Power, chefe da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, em um discurso no mês passado em San Salvador. Ataques a juízes, jornalistas e outras instituições nos EUA ressaltaram que atentados às liberdades e liberdades civis podem ocorrer em qualquer lugar, disse. “Por isso é importante se opor publicamente à corrupção e ao comportamento autocrático onde quer que ele ocorra”.

15 de julho de 2021

LUIZ GAMA É REDESCOBERTO PELAS NOVAS GERAÇÕES!

(Priscila Mengue – O Estado de S. Paulo, 11) “Jamais esta capital e quiçá muitas outras cidades do nosso País viram mais imponente e espontânea manifestação de dor e profunda saudade de uma população inteira para com um cidadão que tanto mais merecimento tivera” noticiava o Estadão (então Província de S. Paulo) sobre a morte de Luiz Gama, em 1882, descrito como um dos “nossos homens ilustres”, de “inquebrantável honestidade, lutas e sacrifícios”.

O advogado, escritor, jornalista, intelectual, figura política influente e abolicionista voltou a ganhar destaque nos últimos anos, por gerações que o conheciam apenas por nome (ou nem isso). Agora, 139 anos depois de sua morte, está em processo de resgate e revalorização por meio de pesquisas, livros, obras artísticas e homenagens.

Para pesquisadores, o abolicionista negro que libertou mais de 500 pessoas escravizadas está em momento de “reparação histórica”. Em seis anos, foi oficialmente reconhecido como advogado (pela OAB, em 2015), herói da Pátria (2018, no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, após publicação de lei federal), como jornalista (pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em 2018) e como intelectual, ao ser o primeiro brasileiro negro a receber o título de doutor honoris causa da USP – concedido na semana passada.

Gama terá a obra completa publicada em uma coleção pela primeira vez, até dezembro de 2022 e em 10 volumes, segundo a editora Hedra. Com organização do pesquisador Bruno R. de Lima, serão cerca de 750 textos, dos quais a editora diz que mais de 80% são inéditos, entre poesia, sátira, crônica, escritos de intervenção política, literatura jurídica e, principalmente, artigos abolicionistas. Além disso, é retratado em um filme com estreia marcada para agosto.

O mais recente tem ainda a simbologia de ser entregue pela universidade que hoje é integrada pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na qual o advogado nunca foi admitido como estudante, embora tenha frequentado de outras formas. É o que diz o professor de Jornalismo da USP Dennis de Oliveira, um dos idealizadores da proposta e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro na mesma instituição. “Ele era um intelectual que circulou por diversas áreas, um intelectual autodidata e que atuava publicamente em prol de mudanças”, comenta o docente, que está com o projeto de criar uma cátedra acadêmica com o nome de Gama. “A ideia é fazer com que suas obras sejam mais conhecidas.”

Para ele, dois motivos pelos quais o advogado passa por uma revalorização são o fortalecimento do movimento negro e o crescimento do número de alunos e pesquisadores negros no ensino superior. Parte desse resgate está ligado ao trabalho de Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp, pesquisadora da obra de Gama desde os anos 1990. “Ele nunca foi totalmente desconhecido. Falava-se do abolicionista Luiz Gama, mas conhecia-se pouco dos seus textos. Houve não só um silenciamento, mas um apagamento.”

O filme. Um garoto vendido ilegalmente pelo próprio pai, e que conseguiu retomar a própria liberdade anos depois. Um advogado autodidata que se tornou referência no País e utilizou das leis para garantir a libertação de escravizados. Um intelectual e formador de opinião que publicou nos principais jornais, enquanto também escrevia trovas e fazia charges. Um homem negro que se tornou uma das principais figuras públicas do século 19. Um breve resumo como este da vida de Gama mostra o porquê de o cineasta Jeferson De ter se questionado em 2014.