14 de outubro de 2021

TRÊS DEMÔNIOS NO CAMINHO!

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 09) Todos temos o direito de especular sobre o futuro; e podemos fazê-lo como os adivinhos da antiguidade romana, que examinavam as entranhas de certas aves, ou como os economistas de hoje em dia, que recorrem a projeções estatísticas dificilmente compreensíveis por mortais comuns.

Nos dias que correm, dezenas de estudiosos nos têm alertado para a gravidade e a ubiquidade das ameaças que pairam sobre o convívio social, a democracia e a própria humanidade. Alguns discorrem sobre tragédias de alcance mundial, como as epidemiológicas e as climáticas, outros sobre reles práticas criminosas, como o hackerismo – que de uma hora para outra podem paralisar engrenagens essenciais da atividade econômica. Mas não percamos tempo tentando prever o final dos tempos, como fez Auguste Comte, imaginando um mundo inteiramente regido pela ciência, ou como Karl Marx, que julgou haver antevisto o fim das desigualdades sociais.

Atenhamo-nos ao Brasil e a um horizonte temporal de duas décadas – um pouco mais ou um pouco menos.

Estabelecida a regra de jogo, peço vênia para expor minha avaliação. O Brasil atual não está meramente estagnado, está retrocedendo, resvalando para uma crise séria, antevéspera de um possível abismo. O que temos à nossa frente não é apenas uma pedra no meio do caminho, como escreveu o poeta Drummond. São ao menos três pedras, grandes e aterradoras.

Três demônios. Ei-los: 1) a estúpida polarização política que se configurou a partir da eleição presidencial de 2018; 2) a corrupção sistêmica, que os sapientes constituintes de 1988 tornaram quase impossível de ser combatida; e 3) a lerdeza de nossas elites no tocante ao imperativo de efetivar reformas que todos sabemos serem essenciais para o desenvolvimento econômico e social.

A polarização e suas consequências são o óbvio ululante. No pleito presidencial de 2018, o antipetismo atingiu uma altura estratosférica, condensando a repulsa de milhões de cidadãos à corrupção sistêmica, cujas dimensões ficaram escancaradas nas inquirições sobre a Petrobras. Tal repulsa, como a Física ensina, haveria de produzir um movimento de sentido contrário, no caso aquele que catapultou à mesma altitude um capitão excluído das Forças Armadas por indisciplina e notabilizado durante 29 anos por sua irrelevância como deputado federal. Só os muito obtusos não percebem que a reedição desse enredo em 2022 poderá perpetuar ainda por muitos anos a situação catastrófica em que nos encontramos.

Claro, há dois fatores novos a considerar. De um lado, a inflação e a sucessão de descalabros do atual governo no combate à pandemia sugerem que Jair Bolsonaro dificilmente terá gás para a disputa de 2022. Do outro, há uma penca de hipóteses (o PMDB lançando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco; o governador João Doria tentando ressuscitar o PSDB; uma “terceira via”; etc.) que me abstenho de comentar porque, até o momento, não sei se vamos ouvir aprazíveis harmonias ou a insuportável cacofonia que nos atormenta ano após ano.

De concreto, o que há é mais uma tentativa de pintar Lula como o xodó dos empresários, quem sabe até como um estadista-pacificador: um Juscelino Kubitschek. O problema é que essa fantasia nem de longe corresponde ao que a situação brasileira está a exigir: um presidenciável cujo perfil público seja em si mesmo uma indicação de que estaremos retornando à normalidade. O Lula-estadista já começou mal, convocando a “militância” para rediscutir a questão do “controle democrático da mídia”, vale dizer, da censura. Resumindo: num cenário ideal, em vez da polarização Lula x Bolsonaro, veríamos os dois gozando de suas merecidas aposentadorias numa ilhota qualquer do Pacífico Sul.

O segundo demônio, igualmente visível, é o fato de que nossas instituições políticas hoje parecem mortos-vivos, assassinadas pela corrupção, esta, sim, “imorrível”, eis que realimentada continuamente pelo desatino de uma “cláusula pétrea” conhecida como “trânsito em julgado” (Constituição federal de 1988, inciso LVII). Mercê deste inciso, como ninguém ignora, divide a justiça brasileira em duas partes, a dos ricos e a dos pobres, e, de quebra, solapa a credibilidade das instituições e de toda a classe política, cujos integrantes podem facilmente contratar advogados que os livrem da condenação em quarta instância.

E, assim, a justiça dos ricos permanecerá lépida e fagueira, salvo na remota hipótese de um triunfal reaparecimento do chamado “poder constituinte originário”.

Sem presidenciáveis, instituições, partidos e parlamentares à altura da encomenda, é lógico que tão cedo não veremos as reformas de que o País necessita. Este singelo bico de pena basta para delinear o terceiro demônio pétreo. Mesmo nas trevas brasilienses, qualquer alma penada entende que o gigantismo e a voracidade tributária de sucessivos governos nada mais são que o fruto teratológico de décadas e décadas de patrimonialismo e corporativismo. Fadado ad aeternum a enxugar gelo, nosso Estado é a mais ridícula versão de Sísifo que jamais se concebeu.

13 de outubro de 2021

FELIPE GONZALEZ, EX-PRIMEIRO-MINISTRO ESPANHOL – EM SEMINÁRIO EM SP EM 2004!

(Resumo de Cesar Maia) O espaço público que compartilhamos é a política, mas a que se faz com P maiúsculo, ou seja, a arte de governar as diferentes ideias, as diversas identidades e os interesses opostos. E governar não só para que as diferenças convivam entre si pacificamente, mas sim para, dessa pluralidade de ideias, dessas diferentes identidades e dessa contraposição de interesses, tirar um projeto para o país.

Não creio em nenhum modelo econômico que diz que antes é preciso crescer para depois atender ao problema ético ou moral da equidade social. E não é apenas um problema de igualdade, mas de eficiência econômica. É impossível ter empresas fortes num país em que há miséria, que tem uma sociedade marginalizada. Não pode haver ao mesmo tempo pobreza e grandes empresas.

Há sempre um ponto de inflexão que permite diferenciar o que significa país emergente e país central. As vezes fala em país desenvolvido e subdesenvolvido, mas essa é uma linguagem ofensiva. Há 25 anos éramos um país qualificado como receptor de ajuda para o desenvolvimento. Agora é um país obrigado a prestar ajuda ao desenvolvimento de outros países. Portanto passamos a ser um país central. Nem um só país conseguiu passar de emergente para central sem uma área de consenso muito séria.

No autoritarismo se nacionalizava como instrumento de poder. A esquerda proclama a nacionalização como instrumento ideológico de igualdade de oportunidade, o que nunca foi. Isso nunca se demonstrou em nenhuma parte. Havia um matrimonio raro com essa ideia, que me leva a dizer com frequência que nos casamos com os instrumentos e esquecemos que as vezes os instrumentos nos alijam dos objetivos. Há de ser flexível com os instrumentos e tenazmente comprometido com os objetivos.

Eu disse que não acreditava que a Europa seja um motor alternativo do crescimento mundial. Hoje a Europa tem uma moeda única para um conjunto de países. Mas não tem uma política econômica suficientemente coordenada que acompanhe a política monetária. Portanto, não tem flexibilidade suficiente para fazer política econômica pragmática. Não tem margem de flexibilidade.

Gastos na Educação, é a única estratégia que nunca falha para o desenvolvimento de um país. A única que nunca falha. Essa é uma variável estratégica fantástica, um recurso natural como o petróleo, com a vantagem que a melhor variável estratégica é o capital humano.

O que faltava em nosso país, era um pouco mais de confiança em nós mesmos, que não tínhamos, e um pouco mais, ou muito mais na formação dos jovens de meu país. Portanto a Educação é a grande variável estratégica. Mas um projeto educativo tem que ser para 20 anos. Não pode ser um projeto que mude quando o governo é trocado. Portanto é preciso que haja um consenso básico do que se deve fazer com a educação.

Nosso país teve de suportar um processo de olhar para si mesmo, de autoconhecimento, de parar de pensar que seus inimigos estavam fora. Que ora era o Reino Unido, ora a França, ora os Estados Unidos.

Em política exterior o consenso é fundamental. Os países centrais, os países respeitados, são países que não variam substancialmente sua orientação de política exterior. Porque as variações dramáticas em política exterior têm um impacto diferente do que as mudanças na política interna, porque afetam os outros.

Mas nunca se pode confundir descentralização do poder com centrifugação do poder. Para poder descentralizar é preciso manter a coesão interna. Tivemos problemas de confusão entre descentralização e centrifugação do poder. A má divisão do poder, rompendo a coesão, debilita as partes e debilita o todo. E isso não aconteceu apenas aqui.  

O Estado também tem de redimensionar suas funções. Nunca defendi um Estado cheio de gordura. Nunca defendi o clientelismo que absorve porcentagens inaceitáveis do PIB. Mas nunca me inclinei por um Estado raquítico, anêmico, sem capacidade de resposta ante sua responsabilidade. O ideal seria ter um Estado como esses corpos fortes como os vistos em Ipanema, que não tem nem uma grama de gordura, mas também nunca se veem esqueléticos, porque esses não passeiam pelas praias. Esse é o Estado ideal.

11 de outubro de 2021

VERDES E LIBERAIS PAVIMENTAM O CAMINHO PARA UM GOVERNO LIDERADO POR SCHOLZ NA ALEMANHA!

(El País, 06) Dez dias depois das eleições alemãs, o social-democrata Olaf Scholz se dirige à chancelaria. Os Verdes e os Liberais do FDP, as duas formações com as quais ele precisa contar para formar um governo, anunciaram na manhã de quarta-feira sua intenção de iniciar negociações com o Partido Social-Democrata (SPD) imediatamente. Nada é definitivo. Mas a partir de quinta-feira começam as negociações que, se não descarrilarem, devem ser concluídas com a formação do primeiro tripartite no governo federal da história do país.

Os primeiros a dizer sim para iniciar as negociações com o SPD foram os Verdes. Os dois líderes do partido, Annalena Baerbock e Robert Habeck, indicaram, em uma coletiva de imprensa, que fariam uma proposta a esse respeito aos liberais. O presidente do FDP, Christian Lindner, esteve presente. Apesar de reconhecer que seu partido tem mais afinidades com os democratas-cristãos da CDU, ele pegou o desafio lançado pelos Verdes e anunciou que nesta quinta-feira terão início as conversações tripartidas: sociais-democratas, verdes e liberais. “Acabo de propor a Scholz, de acordo com os Verdes, que se reúna amanhã para uma discussão entre os três”, disse Lindner.

Nem um nem outro afastam a possibilidade de que as reaproximações terminem sem sucesso e acabem cedendo a chancelaria à União Democrática Cristã (CDU), mas tudo parece voltado para a chamada coalizão de semáforos (pelas cores de cada um partido: vermelho para os sociais-democratas, verde e amarelo para os liberais). “O FDP e os Verdes realizaram consultas intensas e discretas nos últimos dias. Apesar de todas as nossas divergências, nas conversas ficou claro que no centro pode ser formado um governo favorável ao progresso”, acrescentou Lindner, que esclareceu que o que começa quinta-feira não são negociações formais, mas apenas “uma exploração”.

Habeck assinalou que a proposta de conversações exploratórias com o SPD e o FDP não representa uma rejeição total da coalizão que reuniria os dois pequenos partidos sob a liderança dos democratas-cristãos de Armin Laschet. O dirigente dos Verdes explicou que as maiores coincidências de conteúdo, especialmente na política social, são entre o SPD e o FDP.

As eleições de 26 de setembro deixaram um cenário político confuso no país mais populoso da UE e com a economia mais poderosa. O SPD de Scholz venceu por uma vantagem mínima, com 25,7% dos votos, ante 24,1% da CDU e seus aliados bávaros na CSU. Dados os resultados iguais, qualquer um dos partidos tem que obter o apoio de outros para obter a maioria parlamentar. Os Verdes – dispostos a conspirar com uns e com outros, mas mais inclinados a Scholz – obtiveram 14,8%. Os liberais melhoraram ligeiramente seus resultados com 11,5%.

A opção mais provável desde o início foi a coalizão semáforo sob a liderança de Scholz, mas ninguém descarta a chamada coalizão Jamaica 100%: um governo liderado pela CDU com o apoio de Verdes e Liberais. Aritmeticamente, também seria possível reeditar a grande coalizão de democratas-cristãos e social-democratas que governou a Alemanha por 12 dos 16 anos de Angela Merkel à frente da chancelaria. Mas nenhum dos protagonistas quer relançar essa coalizão.

As negociações que estão para começar esbarram nos esforços que vêm sendo feitos na CDU para obter o sim de verdes e liberais para chegar à chancelaria. Baerbock deixou claro que o resultado das negociações agora deve ser traduzido em ação política. Habeck está confiante de que as conversas exploratórias não se arrastam muito. “Não se trata de elaborar um acordo de coalizão detalhado. A questão é estabelecer um consenso político ou não”, disse nesta quarta-feira.

08 de outubro de 2021

VOLVER LA VISTA ATRÁS’!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S. Paulo, 05) O romance do colombiano Juan Gabriel Vásquez, Volver la Vista Atrás, que acaba de receber um prêmio literário importante no México, terá muitos leitores. É um dos grandes romances já escritos em nossa língua e seu autor nos disse que, ao contrário de outros, tudo que se passa nele aconteceu na vida real, o que lhe deu muito trabalho na hora de escrevê-lo.

Acredito que nem mais nem menos que as histórias inventadas, pois utilizar histórias “reais”, como muitos romances fazem, não aumenta nem diminui o esforço de escrevê-los. O difícil é a forma de contá-las para que pareçam fictícias, algo que os leitores sempre esperam dos romances, e ele encontrou essa forma, relatando seus episódios em crônicas muito próximas, que dão a impressão de confissões e segredos confiados aos leitores, como se divulgassem a intimidade de uma experiência familiar reservada que, de repente, graças a essa magia que acontece nos bons romances, se espalhasse por todo o mundo.

O personagem de Fausto Cabrera, um espanhol filho da guerra civil, que fugiu para a Colômbia, onde se tornou documentarista, teve uma vida dura e difícil, como quase todos os exilados, e foi cineasta, como seu filho Sérgio, um dos personagens principais da história; a outra é sua irmã Marianela. A aventura vivida pelos dois é realmente excepcional. Seu pai foi cineasta, além de militante político, e seu filho Sérgio também, a quem a Cinemateca de Barcelona presta uma homenagem, exibindo vários de seus filmes, além de entrevistá-lo.

É aqui que surgem surpresas incríveis. Pois Sérgio não foi apenas um cineasta de destaque, autor e diretor, entre outros filmes, do muito estimado e discutido A Estratégia do Caracol. A vida dos dois irmãos teve uma reviravolta espetacular quando seu pai descobriu o maoismo, tornou-se um maoista colombiano de ponta e decidiu educar seus filhos, Sérgio e Marianela, na República Popular da China, fazendo dos dois jovens, praticamente duas crianças, dois guardas vermelhos, como os milhões de meninos e meninas que as convicções de Mao Tsé-tung transformaram, naqueles anos, em soldados que transformariam o gigante chinês no instrumento da revolução mundial, substituindo a URSS nesta tarefa.

As páginas que narram as aventuras dessas duas crianças na revolucionária República Popular da China, agitadas pelas ideias e sobressaltos de Mao, são comoventes; as enormes dificuldades que precisam superar para se adaptarem a um ambiente tão diferente daquele em que foram criadas, adotando uma língua muito distante da sua, assim como os costumes rígidos e a formação militar que os converte em pequenos soldados, são angustiantes e exaltantes, precisamente porque tudo está narrado sem dramas, nem misericórdia, de maneira imparcial e com absoluta sobriedade.

A história da família é assim, porque, como o pai, a mãe também milita nessa brigada, e a compreensão e o espírito que reinam entre esses quatro personagens é invejável, sem rebeliões ou protestos, em total obediência. É impossível não admirar as páginas que narram esses dias, meses e anos, em que os pais, de longe, na Colômbia, traduzem suas convicções maoistas em ações, e em que, na China, essas crianças se metamorfoseiam e renascem, instruídas pelas cartas de seus pais e pelos seus novos guias, que os reeducam e transformam, para que sejam, no retorno ao seu país, o exemplo a seguir por todos os jovens e crianças como eles.

São páginas muito bonitas, de uma luta que se adivinha, que está oculta para que seja mais vívida, uma luta íntima e secreta, inclusive entre os próprios irmãos, que raramente falam sobre o que vivem, e esse heroísmo secreto é, para mim, o melhor do livro, mesmo que depois, quando as crianças se tornam jovens, voltam para a Colômbia e se alistam, seguindo as instruções de seus pais, nas guerrilhas maoistas, os acontecimentos sejam mais espetaculares e dramáticos. Mas essas páginas, que narram a aventura secreta daquelas crianças, sua profunda transformação, sua mudança de corpo e alma, estão narradas admiravelmente, com uma frieza deliberada, para que tudo isso se destaque e se converta em um heroísmo secreto e cotidiano.

Até que chega a voz remota do pai – não sei se devo admirá-lo ou odiá-lo –, através de uma carta que leva semanas ou meses para alcançar seu destino, indicando que o período de formação terminou, que agora se trata de colocar em prática o que se aprendeu, voltando para a Colômbia e militando na guerrilha.

Aqui surgem os conflitos, pela primeira vez. As experiências dos dois irmãos prepararam-nos para o heroísmo, não para a rotina diária feita de esperas intermináveis, emboscadas e fraquezas, e até mesmo traições, como a dos comandantes que não apenas descumprem seus papéis, como possuem vícios, se acostumam com esses cargos de poder e tratam seus soldados com desprezo.

Os irmãos, que estão separados, sofrem o indizível com aquela experiência da luta que é uma grande espera, feita de rotinas asfixiantes e da silenciosa suspeita de terem se equivocado. Os tiros são muitos e até os dois jovens, que não renunciam, entretanto, ao compromisso revolucionário, fogem dali, com uma espécie de decepção discreta, recalcitrante, ainda que, para ele, os filmes sejam uma redenção e, para ela, a ação social seja uma forma de se redimir e seguir militando.

As conclusões nem estão claras nem Juan GabrielVásquez se atreve a mostrá-las. Mas elas estão aí, nos anos gastos naquela luta sem fim, em todos os mortos e feridos, na inesgotável guerra em que um país se desgasta, enquanto as vítimas crescem e se multiplicam, sempre em vão.

Cada leitor deve tirar suas próprias conclusões, naturalmente. Agora, aqueles dois jovens estão longe de ser quem foram, talvez não arrependidos, já que agora estão diferentes, mais lúcidos e mais independentes de tudo aquilo em que acreditaram e foram se tornando. O romance está aí com seu conjunto de experiências, e cada um deve tirar suas próprias conclusões: Até quando continuar matando? O sangue e os cadáveres resolvem os problemas? Há os que acreditam apaixonadamente que sim.

No entanto, não é tão fácil tirar essas conclusões, sobretudo para quem viveu a experiência e levou balas nas costas, como aconteceu com Marianela, que ainda apitam quando ela passa pelos sistemas de segurança dos aeroportos, ou como aconteceu com Sérgio, naquela vez em que duvidou. Essas conclusões não serão fáceis, é preciso refletir sobre elas para conseguir as respostas adequadas, que serão sempre contraditórias.

A obra de um romancista não precisa substituir a visão dos leitores, oferecendo soluções fáceis, libertando-os da tarefa de refletir e decidir por sua própria conta o que teriam feito diante daqueles dilemas com os quais Sérgio e Marianela se debateram. Ambos estão vivos, felizmente, e pelo menos um deles, em seu trabalho como cineasta, deve ter refletido muito profundamente.

Mas o destino de Marianela me deixa em suspenso e aterrorizado, por tudo ao que sobreviveu, educando-se para ser uma guarda vermelha fora do comum. Ela sente que conseguiu? Está contente consigo mesma? Frustrada, mas bem? É impossível saber lendo esse romance excepcional. Mas aí começa o trabalho secreto que suas páginas deixam em nossa memória. O que você teria feito? Arrependerse ou perseverar? E até que ponto? Até converter o mundo inteiro em um bólido flamejante do qual nada nem ninguém pudesse escapar?

Os bons romances não facilitam as respostas, resta aos leitores sensibilizados pela fantasia depositada nessas páginas saber como responder. Fazendo o que fez, o autor dessas páginas excepcionais pode ficar em paz.

07 de outubro de 2021

POLÍTICA AFUNDA NOS EUA!

(Fareed Zakaria – Washington Post/O Estado de S. Paulo, 04) A fraqueza dos EUA é sua política. Seus líderes não conseguem pagar as contas nacionais sem fazer um drama.

Os problemas de uma empresa da qual ninguém nunca tinha ouvido falar agora fazem as pessoas se preocuparem com mais uma crise econômica global. A Evergrande é a incorporadora chinesa com a duvidosa distinção de ser a empresa imobiliária mais endividada do mundo, com mais de US$ 300 bilhões em empréstimos pendentes.

Por enquanto, pelo menos, parece improvável que as dificuldades da empresa tumultuem a economia global. Mas sua crise destaca uma fragilidade crucial na economia chinesa. A dívida privada da China (dinheiro devido por famílias e empresas) está em mais de 260% do produto interno bruto do país, de longe a mais alta do mundo para qualquer nação em desenvolvimento.

A trajetória de crescimento da China está desacelerando. Ficou muito mais difícil sustentar seu modelo voltado para a exportação à medida que os salários aumentaram, tornando o país menos competitivo. Enquanto isso, os gastos internos não estão crescendo rápido o suficiente para substituir o boom das exportações. O ataque do governo ao setor de tecnologia provavelmente desacelerará o crescimento até então explosivo nesse setor.

E ofuscando tudo isso está a demografia. A China vem envelhecendo e seus cidadãos estão tendo menos filhos. A taxa de natalidade caiu impressionantes 20% no ano passado, apesar dos esforços do governo para reverter a política de “filho único” e encorajar as pessoas a terem mais filhos.

Olhando ao redor, vemos problemas na maioria das principais economias. A chanceler alemã, Angela Merkel, está prestes a deixar o cargo depois de 16 anos de liderança estável e sábia. Em uma época de dramas populistas, ódio, emoção e injúrias, ela tem sido um oásis de tranquilidade. Mas deixou muitos dos problemas econômicos da Alemanha se agravarem. O país vem passando fome de investimento público, o que ocasionou a deterioração de sua infraestrutura em quase todas as áreas.

O sistema de pensões da Alemanha não foi reformado e corre o risco de passar por uma crise grave. Suas políticas de energia são uma estranha colcha de retalhos de novas e velhas tecnologias. O país baniu a energia nuclear e, por isso, vem obtendo 44% de sua eletricidade de combustíveis fósseis – uma das taxas mais altas da União Europeia.

De forma mais ampla, a Alemanha continua sendo uma retardatária da era digital. Sua tão alardeada indústria data da Segunda Revolução Industrial: carros, produtos químicos e maquinário. No mundo digital, a Alemanha possui apenas uma grande empresa, a SAP, que já tem quase 50 anos. E, assim como a chinesa, a demografia alemã enfrenta uma perspectiva sombria. Em 2020, pela primeira vez em uma década, sua população encolheu de fato.
Regra.

Não se trata de exemplos isolados. Se você olhar para as outras grandes economias do mundo – Japão, Grãbretanha, Índia – vai ver fraquezas e fragilidades estruturais semelhantes. O Japão continua crescendo a um ritmo de lesma. Algumas décadas atrás, os indianos sempre falavam de ultrapassar a China. Hoje, a economia chinesa é cinco vezes maior que a indiana. A Grã-bretanha vai passar os próximos anos pagando o preço pelo Brexit, como demonstra sua atual crise de combustível.

Então, chegamos aos EUA. A inequívoca vencedora da última década foi aquela que Ruchir Sharma chamou de “a nação da retomada” em um artigo perspicaz na revista Foreign Affairs. Os EUA foram se recuperando da crise de 2008 e nunca mais olharam para trás – mesmo levando em conta a recessão provocada pela pandemia. Hoje, em meio a conversas sobre declínio, a maioria dos americanos ficaria chocada ao saber que seu país tem quase a mesma parcela do PIB global que tinha 40 anos atrás: 25%. Suas empresas dominam o mundo como nunca antes.

Sete das dez maiores empresas do planeta por capitalização de mercado são americanas. Os EUA continuam a liderar na maioria das indústrias do futuro, da biotecnologia à nanotecnologia passando pela inteligência artificial. O dólar é dominante como moeda de reserva global como nenhuma outra na história, sendo usado em quase 90% das transações internacionais. E o país ainda tem a demografia mais saudável de qualquer uma das cinco maiores economias do mundo, graças à imigração.

Em algum nível instintivo, os americanos parecem sentir tudo isso. O Gallup periodicamente pergunta às pessoas sobre suas vidas, para determinar que parcela da população está “prosperando”. Esse número chegou a 59% neste verão, o maior em 13 anos de pesquisa. Em janeiro de 2020, 90% dos americanos disseram que estavam satisfeitos com suas vidas, outro recorde desde que a pergunta foi feita pela primeira vez, em 1979 (depois o número caiu um pouco, presumivelmente por causa da pandemia).

Mas não é o que parece em Washington. A fraqueza dos EUA é sua política. Apesar de suas extraordinárias vantagens estruturais, seus líderes políticos não conseguem pagar as contas nacionais sem fazer um grande drama. Eles ainda estão se debatendo com gastos de infraestrutura que os três últimos presidentes disseram que eram urgentes e uma grande maioria da população apoia. Centenas de cargos-chave no governo estão vagos, com dezenas nas mãos de senadores, por motivos que não têm nada a ver com a administração pública.

E um dos dois grandes partidos – instigado por seu líder demagógico – está empenhado em romper o conjunto de instituições, leis e normas que garantem eleições livres e justas, preparando o país para uma grande crise política em 2024.

Na mesa do mundo, a América recebeu, de longe, a melhor das mãos. Mas, como qualquer jogador de pôquer está cansado de saber, se você jogar mal, ainda corre o risco de perder tudo.

06 de outubro

COM ELEIÇÃO E CONSTITUINTE, CHILE FLERTA COM A ESQUERDA RADICAL!

(Revista Crusoé, 03) O Chile terá eventos políticos importantes nos próximos meses. O país realizará eleições presidenciais em novembro, com um provável segundo turno em dezembro. Além disso, no primeiro semestre de 2022 haverá um referendo para que a população aprove ou não o texto de uma nova Constituição.

Nessas duas oportunidades, o Chile tende a se inclinar para a esquerda radical. O candidato que está à frente nas pesquisas é Gabriel Boric (foto), que venceu as primárias da esquerda. Boric aparece com 25% das intenções de voto, oito pontos percentuais à frente do segundo colocado, Sebastián Sichel, de centro-direita.

“Boric propõe mudanças profundas em vários sentidos, com uma ideia de refundar o Chile. Se ele for eleito, fará um governo muito mais radical do que foi o de Michelle Bachelet, do Partido Socialista“, diz o sociólogo Aldo Mascareño, pesquisador do Centro de Estudos Públicos, do Chile, em referência à ex-presidente que governou por dois mandatos (2006-2010 e 2014-2018).

Boric quer acabar com os planos de previdência privados e revisar os acordos de livre comércio. Fala ainda em fixar o preço dos remédios e em proibir o lucro nos centros de formação técnica e profissional.

Para reduzir a desigualdade, propõe criar um imposto permanente e progressivo para as pessoas com mais patrimônio, além de fixar uma taxa que seria cobrada uma única vez dos mais ricos.

Se eleito, Boric assumirá o posto em março do ano que vem, às portas da discussão sobre a nova Constituinte, que terá de estabelecer os parâmetros para a ação do Poder Executivo.

“O risco maior é o de que, caso Boric se torne o próximo presidente, a Convenção Constituinte, majoritariamente de esquerda, assuma que chegou a hora de propor mudanças nessa mesma linha, uma vez que o governo será de esquerda radical“, diz Mascareño.

Entre os temas que já foram propostos nas discussões da Convenção Constituinte está o fim da autonomia do Banco Central, que poderá ter uma ação mais politizada.

Nos debates para definir o regulamento da Constituinte, já apareceram ideias típicas da esquerda, como o estado plurinacional ou de poder originário. No quesito ética, os constituintes incluíram punições para o “negacionismo“, termo que inclui a negação do genocídio cultural contra indígenas e afrodescendentes e das violações de direitos humanos nos protestos de 2019.

O que pode frear essas mudanças é o voto obrigatório para aprovar a nova Constituição. Com mais pessoas votando, a população chilena deverá ser melhor representada nessa consulta popular e poderá buscar mais moderação. No plebiscito que aprovou a convocação de uma convenção para reescrever a Constituição, em 2020, o voto foi facultativo. O comparecimento foi de 49,2%.

05 de outubro de 2021

FUNÇÃO DO ESTADO: BEM-ESTAR OU ECONOMIA? ECONOMIA OU BEM-ESTAR?!

(Sonia Rabello, ex-procuradora geral do município do Rio de Janeiro, 24) Qual é a competência preponderante do Estado para agir, por leis e ações executivas, no âmbito da economia ou do bem-estar coletivo?

A União deve relaxar as regras de cuidado ambiental em favor da aceleração da Economia? O Município do Rio de Janeiro deve permitir a ocupação das calçadas públicas para favorecer o comércio de bares afetados economicamente pela Covid-19?

São duas perguntas que expõem o conflito permanente e a prática diária dos legisladores e do Executivo em saber se as ações deles, enquanto agentes do Estado, devem favorecer primeiramente a Economia ou o bem-estar dos cidadãos. Eis uma reflexão, com base apenas nas regras básicas da Constituição Federal:

1. É a Constituição Federal quem estabelece as áreas nas quais o Estado (leia-se Legislativo e Executivo, no caso) devem e podem agir. Compreende-se que, na teoria, se o Estado pode agir, ele tem também o dever de agir. Exemplificando: se o Estado tem competência para proteger o meio ambiente através de regras (leis) e ações (execução), ele não só pode, como deve fazê-lo. Outro exemplo: se o Estado pode estabelecer regras para o bom uso e funcionamento das cidades, através do urbanismo, ele não só pode, como deve fazê-lo. Resumindo; o poder concedido ao Estado em determinada área de competência impõe também um dever de ação com este objetivo.

2. No campo econômico, no entanto, seja em nível federal, estadual ou municipal, a Constituição Federal diz, expressamente, que a ordem econômica é fundada no princípio da livre iniciativa, do livre exercício, da livre concorrência e no princípio da não intervenção do Estado nas atividades econômicas, salvo nos casos previstos em lei para proteção de outros interesses públicos também resguardados e previstos na própria Constituição (arts.170 e segs da CF)*.

Os dois lados do princípio da liberdade econômica

O princípio da liberdade econômica tem a sua garantia de liberdade de ação e não intervenção para todos os efeitos: tanto para que as iniciativas dos cidadãos privados sejam de acordo com os seus desejos, respeitando, obviamente, as regras que garantem que as atividades econômicas privadas não afetem os bens e o interesse coletivo, como também sabendo que esta liberdade tem o outro lado da moeda, ou seja, os riscos inerentes ao negócio, seja por conta de imperícia daquele que o empreende, seja por motivos da “vida”, que em direito são chamados de casos fortuitos ou de força maior, que é o caso da Covid-19.

Assim, o princípio da liberdade econômica tem dois lados que cabe ao Estado resguardar: a liberdade de empreender e os riscos daquele que o faz não conseguir dar certo em seu empreendimento, seja por motivos próprios ou alheios à vontade de quem o faz.

O paradoxo

Se a ação do Estado é obrigatória na proteção de interesses coletivos da sociedade, como a prestação de serviços públicos de Saúde, Educação, Mobilidade, e todos os demais, como também é obrigatória na proteção e fiscalização de interesses coletivos como o Meio Ambiente, o Patrimônio Cultural, o bem-estar e o funcionamento das cidades para todos, a atuação do Estado na Economia é apenas subsidiária, já que esta, a Economia, não está no âmbito de sua função principal. A Economia, ou a ordem econômica, segundo a Constituição, é matéria da livre iniciativa privada!

O discurso de salvar a Economia se apresenta hoje, e desde sempre na história do Brasil, como sendo a grande missão do Estado, seja na dimensão do governo federal, nos grandes negócios e empresas, liberando a fiscalização ambiental para dar celeridade aos negócios, seja no pequeno universo de cada município, quando os vereadores, ao invés de cuidar do bem-estar dos cidadãos que transitam nas calçadas, incorporam a missão de “salvar” a economia dos bares, permitindo que eles ocupem parte do espaço público em frontal detrimento do bem-estar coletivo do sossego e da segurança de mobilidade dos pedestres.

Ou seja, em ambos os casos, os agentes públicos do Legislativo e do Executivo renunciam à competência e a obrigação principal – o interesse coletivo -, para se arvorarem em ações que julgam como melhores para os negócios privados, ainda que tenham que sacrificar interesses coletivos, constitucionalmente protegidos, e a sua obrigação principal de competência.

Então, que fique claro; a principal missão constitucional do Estado são os interesses coletivos.

Implementando-os e protegendo-os será possível garantir o bem-estar social e, por conseguinte, uma boa economia para todos.

04 de outubro de 2021

1870: ONTEM E HOJE!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 20/11/2010) Henry Kissinger, em “Diplomacia”, usa todo o capítulo quinto para comparar as características de Napoleão 3º e Bismarck. Ainda vale a abertura de Marx (1852) no capítulo 1 do “18 Brumário”: “Hegel observa que os personagens de grande importância na história ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Napoleão 3º governou a França por mais de 20 anos (1848-1870), e Bismarck a Prússia e em seguida a Alemanha, com a unificação, por quase 30 anos (1862-1890).

Marcaram estilos e políticas que, reproduzidas hoje, dão razão a Marx.

Kissinger afirma que Napoleão 3º não abria mão de nada para ser popular na França. Internamente, fez um governo bem-sucedido, com a reforma de Paris e a economia. Mas a sua política externa se desfez.

“Seu desejo de publicidade o levou a impulsionar uma série de objetivos contraditórios”.

Segue: “As ações empreendidas pelo capricho do momento e sem relação com uma estratégia geral não podem sustentar-se indefinidamente, (…) pois o êxito é tão esquivo que os governantes que o perseguem rara vez puderam avaliar seus próprios castigos”.

Napoleão 3º dirigiu sua política externa como os líderes de hoje, diz Kissinger, que medem seus êxitos pela reação dos noticiários de TV. “Ficou prisioneiro do puramente tático, enfocando objetivos de curto prazo e resultados imediatos”.

Kissinger diz que “Napoleão 3º foi precursor de um fenômeno moderno: a figura política que tenta desesperadamente descobrir o que deseja o público. Seu legado para a França foi uma paralisia estratégica”. E finaliza: A tragédia de Napoleão 3º foi que “sua ambição sobrepassou sua capacidade”.

O contraponto com Bismarck marca a dicotomia entre ambos. Bismarck, na sua Realpolitik, atualiza a “raison d’Etat” de Richelieu. Explica Kissinger que “a ordem estabelecida não é capaz de perceber sua própria vulnerabilidade quando a mudança tem um caráter conservador, pois as instituições não são capazes de defender-se de quem esperam que as defendam”.

Bismarck, diz Kissinger, “representou uma política divorciada de todo o sistema de valores”. Para ele, a utilidade vinha por cima da ideologia, e “a vantagem estratégica justificaria o abandono dos princípios”. Por isso, o “poder leva consigo sua própria legitimidade”. “Aumentar a influência do Estado era seu objetivo”. É dele a conhecida assertiva: “Política é a arte do possível e a ciência do relativo”.

A repetição descontextualizada dos fatos, na forma do texto de Marx, tem risco muito maior quando se dá sem sequer a consciência dos mesmos.

01 de outubro de 2021

ANITA NOVINSKY, A HISTORIADORA QUE REVELOU AS ORIGENS JUDAICAS DO BRASIL!

(Antonio Silvio Lefèvre – O Estado de S. Paulo, 21) Em 20 de julho deste ano, aos 98 anos, faleceu a historiadora Anita Waingort Novinsky, a judia de origem polonesa que foi a primeira a descobrir e a revelar a origem judaica de grande parte dos portugueses que vieram para o Brasil para escapar do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, instituição da Igreja Católica que perseguia, julgava e punia os judeus de Portugal. Muito especialmente aqueles que se converteram em “cristãos novos” para tentar escapar das suas garras.

Anita chegou ao Brasil com seus pais, aos dois anos de idade. Quando ainda estudante de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), foi aconselhada pelo professor Lourival Gomes Machado a pesquisar o papel da Inquisição na história do Brasil – assunto que os livros de História de então simplesmente omitiam ou pouco falavam.

Anita debruçou-se inicialmente sobre os livros dos historiadores que haviam estudado o tema, em especial A História dos Judeus em Portugal, de Meyer Kayserling (1829-1905), em que o autor já revelava o funcionamento do Tribunal da Inquisição, o drama vivido pelos convertidos e o silêncio do mundo ante os festivos autos-de-fé, aonde a população eufórica ia assistir às fogueiras em que os “bons cristãos” queimavam os judeus. E relatava o drama dos judeus que procuravam escapar, migrando para países onde pudessem ser eles mesmos, entre os quais o Brasil.

Porém Anita logo percebeu que quase nada se sabia sobre quem eram estes judeus, convertidos ou não, que haviam escolhido o Brasil como destino. Para saber mais, era necessário ter acesso aos arquivos da Inquisição, mantidos secretos por décadas na Torre do Tombo, em Lisboa.

Pois para lá foi Anita no início dos anos 1960 e, com muita perseverança e com a ajuda de Lourival Machado, então diretor cultural da Unesco em Paris, conseguiu ter acesso aos arquivos inéditos. Em 1965, quando eu estudava Sociologia em Paris, mantive intenso contato com Anita, que se revezava entre Lisboa, onde pesquisava, e Paris, onde se aperfeiçoava em seus estudos com os mestres franceses.

Fui, então, testemunha de seus primeiros relatos sobre as atrocidades da Inquisição, que Anita revelava, com nomes e sobrenomes dos judeus perseguidos, alguns dos quais haviam se refugiado no Brasil e conseguido “driblar” e, em alguns casos, se vingar dos seus algozes.

Essas descobertas foram sendo o tema dos muitos livros de Anita Novinsky, desde Cristãos Novos na Bahia até os mais recentes, como Viver nos tempos da Inquisição e Os judeus que construíram o Brasil. Em seus livros, artigos e entrevistas, Anita revelou as origens judaicas de personagens dos quais nem o mais experiente inquisidor suspeitaria, como a do Padre José de Anchieta, fundador de São Paulo, cuja mãe era judia, “cristã nova”, ou seja, convertida à força ao catolicismo, e cujo tataravô fora queimado pela Inquisição.

Outra revelação de Anita, a de maior impacto histórico, foi a da origem judaica de Raposo Tavares. Anita relatou que Raposo fora criado pela madrasta, Maria da Costa, que foi presa pela Inquisição e confessou, sob tortura, o seu judaísmo secreto. Pois foi este judeu secreto, o bandeirante Raposo Tavares, que em 1647 partiu para a gigantesca expedição que permitiu conhecer, pela primeira vez, a extensão da América do Sul e ampliou várias vezes o território brasileiro. Júlio de Mesquita Filho o caracterizou como “o herói de uma das mais famosas façanhas de que guarda memória a história da humanidade”.

Anita Novinsky contou em detalhes a história dos bandeirantes, que eram quase todos de origem judaica e, por esse motivo, combateram as Missões dos jesuítas, que obedeciam às ordens da Inquisição de Lisboa, algoz dos “cristãos novos” no Brasil. Em todos os seus artigos e entrevistas, Anita sempre defendeu ardorosamente os bandeirantes, que, mais do que perseguidores de índios e de padres – como virou moda acusá-los –, eram eles os perseguidos pela Inquisição, por causa do “pecado” do seu judaísmo secreto.

Muitas famílias brasileiras descobriram suas origens judaicas por intermédio das revelações de Anita. Tanto em razão das “fichas” dos seus antepassados quanto, segundo Anita, pela simples observação dos prenomes adotados nas gerações mais recentes. A família de Julio de Mesquita Filho, do Estadão, foi uma das primeiras a ser reconhecida por Anita como de origem judaica. “Basta ver os nomes das irmãs Mesquita, Esther e Lia, típicos nomes judaicos, para ver com o que se identifica a família”, dizia Anita. E o mesmo raciocínio ela fez ao assegurar que toda a família de Monteiro Lobato é de cristãos-novos, portanto judeus convertidos.

Pelas muitas descobertas de Anita Novinsky sobre o importante papel dos judeus na História do Brasil, antes dela praticamente desconhecido ou propositalmente ignorado, podemos afirmar que esta intelectual judia, nascida na Polônia, foi uma redescobridora do país para onde veio ainda criança, o Brasil.

20 de setembro de 2021

VETO A HAITIANOS NOS EUA DESGASTA BIDEN!

(Amber Phillips, analista de política do Washington Post – O Estado de S. Paulo, 24) As travessias ilegais estão aumentando e os haitianos representam uma parte cada vez maior delas. O Haiti é um país com problemas políticos, econômicos e humanitários, incluindo um presidente assassinado e um forte terremoto recente. Mas muitos desses haitianos no Texas são refugiados de um outro tremor, o de 2010. Na época, eles se refugiaram na América do Sul, mas, por uma série de razões, agora estão fugindo para os EUA.

O motivo pode ser econômico. “Um trabalhador que vem do Chile pode ter uma renda 3,5 vezes maior nos EUA”, disse Alex Nowrasteh, analista do Cato Institute. O agravamento da pandemia em países como o Brasil também desempenha um papel importante. “Quando você olha o que está impulsionando a migração, é uma combinação de deterioração econômica, social e, às vezes, de segurança nos países em que eles vivem”, disse Jessica Bolter, do Migration Policy Institute. “Além da percepção de que, sob o governo de Joe Biden, é mais fácil entrar nos EUA.”

Biden fez várias mudanças na política de imigração de Donald Trump – principalmente reduzindo as deportações. Mas ele continuou a usar ferramenta controversa para expulsar os estrangeiros: um código de saúde, conhecido como “Título 42”, que cita a pandemia como razão para limpar a fronteira o mais rápido possível. Então, os migrantes estão sendo mandados para casa sem a chance de solicitar asilo.

Biden reconhece que as coisas no Haiti estão muito ruins. No semestre passado, o governo concedeu proteção temporária a milhares de haitianos que já estavam ilegalmente nos EUA, citando “condições extraordinárias e temporárias”, como uma crise política, violência e abusos dos direitos humanos. Talvez isso tenha alimentado a falsa percepção de que os imigrantes poderiam entrar nos EUA agora, disse Theresa Brown, do Policy Center. Agora, muitos desses haitianos presos na fronteira estão sendo deportados – muitos dos quais não moram lá há anos. Alguns disseram que foram algemados nos voos para casa.

Mais atenção do público na fronteira é a última coisa de que Biden precisava. É seu ponto fraco desde que assumiu o cargo, e ele tem se preocupado em ser visto como muito leniente em temas migratórios. Mas, enquanto o presidente segue a mesma política de Trump, os migrantes continuam chegando. A crise no Texas ganhou espaço porque os haitianos são diferentes dos migrantes da América Central, mais comuns na fronteira, e por causa da foto de agentes perseguindo os refugiados a cavalo.

Defensores dos direitos humanos e das liberdades civis aumentaram o tom contra Biden. Agora, muitos democratas entraram na fila para criticar o governo. O líder democrata do Senado, Chuck Schumer, pediu a Biden o fim das deportações. “Não podemos continuar essas políticas odiosas e xenófobas de Trump”, afirmou. A NAACP, uma das mais fortes organizações de defesa da igualdade racial, também disparou contra a Casa Branca. “A crise humanitária que está acontecendo sob esse governo espelha de forma repugnante alguns dos momentos mais sombrios da história dos EUA. Se fechássemos os olhos e isso estivesse ocorrendo sob o governo de Trump, o que faríamos? O tratamento desumano dispensado aos refugiados haitianos é repugnante”, disse o presidente da NAACP, Derrick Johnson.

29 de setembro de 2021

MISSÃO ABREVIADA!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 18/12/10) O que aproxima o padre Ibiapina (1806-1883), o padre Cícero (1844-1934) e Antonio Conselheiro (1830-1897) é o mesmo livro de cabeceira: “Missão Abreviada” (720 págs.), do padre Manuel José Gonçalves Couto. Editado em 1859, foi o livro de maior tiragem em Portugal no século 19 (150 mil exemplares).

Padre Ibiapina nasceu em Sobral (CE). Foi magistrado e deputado. Voltou ao seminário e, aos 47, iniciou a vida missionária pelo Nordeste, fazendo igrejas, cemitérios, açudes. Chamado de “mestre”, criou a ordem dos beatos e beatas que o acompanhavam.

Aonde ia, o “mestre” aconselhava e ajudava. Seu mito gerou reação do bispado. Padre Cícero nasceu em Crato (CE) e seguiu a mesma cartilha, com base em Juazeiro do Norte. Os milagres da beata Maria de Araújo (recebia a óstia e esta sangrava) multiplicaram o número de romeiros e de beatos que os seguia.

Distribuía conselhos, bênçãos e esmolas. Apesar da perseguição pelo bispado, as romarias não pararam de crescer. Chegou a Juazeiro do Norte quando tinha 40 casas. Hoje é a terceira cidade do Ceará -300 mil habitantes. Tornou-se mito. “Roma” proibiu-o de exercer os sacramentos.

Apoiou a derrubada do governo do Ceará com um exército de beatos, cabras e jagunços. Foi prefeito por quase 20 anos e deputado federal (nunca foi ao Rio exercer o mandato).

Antonio Conselheiro nasceu em Quixeramobim (CE). Em Sobral, foi um rábula dos pobres. Cruzou o Nordeste por 30 anos, como o Mestre Ibiapina, construindo capelas e cemitérios. Beatos e beatas o acompanhavam. Aonde ia, aconselhava e ajudava. Estabeleceu-se em Canudos, na área que chamou de Belo Monte. Interpretou o Novo Testamento num manuscrito de 245 páginas, com letra desenhada (disponível em CD).

Monarquista, adotou um sistema coletivista. Tinha 30 mil habitantes quando o Exército o massacrou em 1897.

Os três falaram aos excluídos. Foram a esperança dos miseráveis, com conselhos, esmolas e o reino dos céus.

A repressão católica abriu espaço aos evangélicos com um mesmo estilo. Os dois principais líderes das Ligas Camponesas eram evangélicos (ver “Cabra Marcado para Morrer”). Método com o qual os mais pobres do Nordeste se identificam até hoje.

Enquanto Lula era um líder operário urbano, disputou voto entre eles em igualdade com os demais candidatos.

Em 2005, Lula muda. Incorpora o retirante e passa a falar aos excluídos, com conselhos, ajuda e esperança, na terra e no céu. Em 2006 e 2010, nas regiões que foram palco da peregrinação dos três, a “Missão Abreviada” produziu vitórias eleitorais na casa dos 80% no segundo turno.

28 de setembro de 2021

ENTREVISTA DE CESAR MAIA PARA O GLOBO, 25/09 – PARTE II!

• O que tem achado da estratégia de Ciro Gomes de bater tanto em Lula quanto em Bolsonaro?

É uma escolha apressada imaginando que o desgaste de Lula em função do Lava-jato abriria um vetor para ele. Acho uma estratégia equivocada.

• Foi essa, aliás, a estratégia do MBL nas manifestações do dia 12 de setembro, que levou um público muito baixo para as ruas. Está errado ser contra Lula e Bolsonaro ao mesmo tempo?

Certamente errado. Mas se deve ir bem além do anti-Bolsonaro. A crise brasileira múltipla exige a escolha de uns três ou quatro temas propositivos. Emprego entre eles. O desemprego entre os jovens está em 30%.

• Não acha que a economia melhora um pouco ano que vem e ajuda a melhorar a popularidade de Bolsonaro?

É claro que não. Dois exemplos: o minério de ferro caiu 47% de julho para cá e o agronegócio ficará sem parceiro “primário”. E mesmo que façam um novo bolsa-família turbinado, programas de transferência de renda precisam estar lastreados em confiança e esperança. As respostas relativas a estes dois vetores nas pesquisas recentes de DataFolha e Ipec mostram que estamos longe disso.

• O senhor descarta o impeachment?

Sim, pela estrutura de comando e minoria na Câmara. A proximidade das eleições não ajudará a formar maioria de dois terços. Ele ainda se mantém com mais de 20% de avaliação de ótimo e bom devido a força do seu cargo. Mas, quando vier a aproximação da perda da Presidência, esse quadro muda.

• Não teme que cenas como a tentativa de invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, se repitam em 2022 no Brasil?

A situação política é muito diferente. Donald Trump contava com pouco menos da metade dos eleitores. Bolsonaro hoje conta com um quinto da população.

• Como analisa a disputa pelo governo de São Paulo?

Só quando Rodrigo Garcia for percebido como governador é que se conhecerá o quadro eleitoral efetivo.

• Acredita em uma candidatura Geraldo Alckmin forte?

Em geral o governador de São Paulo conta com forte apoio no Interior. Alckmin fora do governo terá uma tarefa árdua para compensar a região metropolitana.

• Guilherme Boulos ou Fernando Haddad, quem é o nome mais competitivo para a esquerda?

Tende a ser o Haddad colado no Lula e amaciando o discurso para a classe média e o empresariado.

• Como analisa a disputa para o governo do Rio?

Uma eleição no Rio sempre tem um quadro múltiplo. Acho muito pouco ainda apenas os três nomes colocados até agora (Cláudio Castro, Marcelo Freixo e Rodrigo Neves). Imagino que Freixo vá até o fim e fará uma campanha olhando a candidatura a prefeito dois anos depois. Castro fez uma montagem multipartidária. Há um risco grande dessas alianças se desintegrarem se as pesquisas apontarem para um quadro adverso.

• Acredita em fatos novos como a candidatura do vice-presidente Hamilton Mourão ou do prefeito Eduardo Paes?

Mais provável que Mourão termine como candidato a deputado federal evitando riscos maiores. E Se Paes estivesse pensando nisso teria escolhido um vice próximo e com lastro. Em 2024 fará isso e irá para governador depois.

• O senhor pode se aventurar a ser candidato a algo em 2022?

Estou feliz como vereador com três mandatos.

27 de setembro de 2021

ENTREVISTA DE CESAR MAIA PARA O GLOBO, 25/09 – PARTE I!

Com as malas prontas para sair do DEM, o ex-prefeito do Rio de Janeiro e vereador Cesar Maia avalia que a fusão com o PSL é praticamente certa, e que o novo partido deverá marcar posição à direita do espectro ideológico. A guinada, comandada por ACM Neto, presidente nacional da sigla, foi marcada pelo racha devido a divergências na escolha do sucessor de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados, que acabou expulso do partido em junho. Diante do cenário que se desenha para a eleição presidencial de 2022, Maia ainda especula desistência de Bolsonaro e enfraquecimento de Lula.

• De zero a dez, qual a chance da fusão entre DEM e PSL realmente se concretizar nos próximos meses?

Sete. Temos que aguardar os desdobramentos, especialmente nos estados. As informações que tenho recebido é que a escolha dos presidentes dos diretórios estaduais será confusa. Veja o caso do Rio. Um acordo de ACM Neto com o pastor Silas Malafaia levou o deputado Sóstenes Cavalcante à presidência do DEM no Rio. Mas, se houver mesmo a fusão, o presidente será o Waguinho, prefeito de Belfort Roxo pelo PSL. Em São Paulo, difícil saber como vai se resolver. Esse processo de fusão vai demorar no mínimo 90 dias.

• A união dos dois partidos é boa para a centro-direita brasileira?

Pelo que tenho acompanhado, a fusão formará um partido de direita e não de centro-direita. O DEM estava indo por um caminho de centro e optou por migrar para a direita. É uma decisão com foco apenas nas eleições de alguns governadores e deputados.

• O senhor acha que ACM Neto foi desleal com seu filho Rodrigo Maia em fevereiro na questão da liberação da bancada do DEM para apoiar Arthur Lira na disputa pela presidência da Câmara com Baleia Rossi?

Não tenho como avaliar. Mas os fatos posteriores mostram que havia uma pressão para empurrar o DEM para direita. Rodrigo já ocupava explicitamente o campo do centro.

• O senhor sairá do DEM assim como Rodrigo?

Sair do partido sem fusão exigiria uma solução jurídica com advogados de um lado e outro. Com fusão não haverá complexidade. Bastará uma escolha.

• A relação ruim de Gilberto Kassab com Rodrigo Maia não torna difícil a ida de vocês dois para o PSD, movimento feito pelo prefeito e aliado Eduardo Paes?

São dois profissionais e sabem bem que não estarem longe é bom para os dois.

• Como o senhor acha que Bolsonaro chegará para a eleição de 2022?

Na balança de probabilidades, o mais provável é desistir da candidatura sem decepcionar seu time por ficar fora do segundo turno. E desenhará uma desculpa para seus aficionados: tipo, “assim não dá para governar”. Ele já vem repetindo esse discurso. Sem Bolsonaro, Lula perderá o sparring preferencial e começará a perder musculatura. O quanto perderá depende da qualidade política das alternativas e dos discursos propositivos oferecidos. Não seria surpresa se a eleição de 2022 ocorresse em torno de outros dois nomes excluindo Lula e Bolsonaro. Em junho de 1994, Lula estava eleito. O Plano Real em julho desmanchou seu favoritismo. Fernando Collor só surgiu na pesquisa para valer também em junho. Ambos os casos no ano da eleição. Falta muito ainda.

• Como avalia os outros nomes cogitados para a Presidência até o momento?

Na disputa do PSDB entre João Doria e Eduardo Leite, não vejo como São Paulo deixará de disputar a cabeça. Basta ver toda a história da República. Há também que se aguardar a decisão de Rodrigo Pacheco e esperar ele esquentar nas pesquisas. A opção por Minas Gerais é inteligente. Abre um caminho. Trata-se do segundo colégio eleitoral do país.

• Pacheco deixará o DEM?

Acredito que sim. Segundo se diz, a conversa com o PSD avançou muito. E, como senador, ele pode mudar de partido quando quiser.

• E o seu correligionário Luiz Henrique Mandetta, alguma chance de ser candidato ou vice em outra chapa?

Se vier a fusão da forma anunciada, não vejo espaço para ele. Esse novo partido será criado para eleger deputados apenas.

Devastadoramente capaz

Publicado em 06.05.2007 em Folha de São Paulo

Biografia “Lacerda na Guanabara”, de Maurício Dominguez Perez, mostra a trajetória do político nos anos 1960.

CESAR MAIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

“Blowback” é uma expressão usada por alguns politólogos para definir uma ação política que aponta numa direção e produz um resultado inesperado e contrário ao objetivo inicial.

Em grande medida, foi o que ocorreu com Carlos Lacerda a partir de sua candidatura a governador da Guanabara, em 1960. Jogava tudo, mesmo antes, na desestabilização dos governos do PSD e do PTB. E olhava para a sua meta: a eleição presidencial de 1965.

Assumiu o governo da Guanabara promovendo reformas inaugurais na administração pública brasileira, na área fiscal e na área administrativa. Com o auxílio de Aliomar Baleeiro [1905-78], deputado constituinte na Guanabara, jurista especializado em finanças públicas, estruturou um sistema orçamentário, tanto nas relações entre o Executivo e o Legislativo como na implantação, pela primeira vez no Brasil, do orçamento-programa.
Essas inovações construíram a base do que se chama hoje de responsabilidade e transparência fiscais, que pautaram as reformas durante o regime militar até a Constituição de 1988, à qual foram incorporadas.

Lacerda implantou o acesso geral ao serviço público por concurso. Construiu um amplo arco de fundações, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, na busca da descentralização, agilidade e eficiência na administração pública, que terminaram sendo a referência do governo Geisel e de outros até recentemente.
Introduziu um plano de metas nos moldes de Juscelino Kubitschek, enfatizando a infra-estrutura urbana, econômica e social.

Abriu a discussão sobre a questão das favelas e, quando governo, mudou de posição, saindo de temas como urbanização e acesso a serviços sociais em direção à remoção. São esses dados e fatos que Maurício Dominguez Perez nos traz na melhor biografia sobre Carlos Lacerda (“Lacerda na Guanabara”).

Para admiradores e críticos

Melhor por não ser fundamentalista -nem de um lado nem de outro- em relação a um político que tinha uma fronteira nítida entre os que o amavam e os que o odiavam. Melhor porque permite aos admiradores de Lacerda sublinhar suas opiniões. Melhor porque também permite aos críticos dele sublinhar suas opiniões, apesar da diagonal favorável do livro.
Melhor porque o governo Lacerda não caiu do céu, mas surgiu da dinâmica anterior das prefeituras do então Distrito Federal.

Se o quadro político anterior mostrava uma prefeitura manipulada pelos interesses da menor política de clientela, devido à volatilidade dos períodos de governo dos prefeitos escolhidos pelos presidentes, não se pode omitir que a condição de capital e a presença de talentos em todas as áreas, fora e dentro da prefeitura, encheu as gavetas de projetos dos mais diversos campos, muitos deles de excepcional qualidade.

Entravam, mas não saíam das gavetas pela inoperância da máquina municipal a partir da República de 1946. Um governo estadual eleito para a Guanabara dispunha de um mandato de cinco anos e, com isso, previsibilidade e possibilidade de uma programação de governo em médio prazo.

Para Lacerda, a equação era simples: apenas uma questão de construir uma máquina eficiente, tirar os projetos da gaveta e selecionar os mais adequados à sua visão de governo. As restrições eram a falta de recursos para isso e o tumultuado ambiente político daquele período.

Lacerda conviveu com quatro presidentes: Jânio Quadros, os primeiros-ministros [Tancredo Neves, Francisco de Paula Brochado da Rocha e Hermes Lima], João Goulart e Castello Branco. Seus conflitos maiores concentraram-se entre o início de 1963, quando o plebiscito restabeleceu o presidencialismo, e março de 1964, quando veio o golpe militar.
Com Jânio, o desgaste das relações ocorre em um período curto. Talvez porque Lacerda, em seu íntimo, não se imaginava como candidato dele em 1965 ou porque realmente temesse que um golpe de Jânio eliminasse aquela eleição.

O risco político que cercou o Brasil a partir da renúncia de Jânio, visto pelas lentes norte-americanas, aproximou Lacerda de John Kennedy e o transformou em seu interlocutor. A partir daí vêm os recursos da AID, da Aliança para o Progresso, do Bird, do BID e do Fundo do Trigo.
Perez demonstra que, embora importantes, eles não explicam a amplitude das realizações do governo Lacerda.

Uma restrição a mais é a força centrípeta do temperamento de Lacerda, que terminou por agregar obstáculos aos que já existiam, em ambiente político polarizado entre trabalhistas-comunistas e udenistas-lacerdistas.

A batalha da comunicação

Um comunicador como Lacerda, fundador ainda nos anos 1940 do discurso coloquial, sem fortes entonações, em que a série de sinonímias substituía com muito maior força o tom da voz, terminou perdendo a batalha da comunicação e terminou carregando, ao longo do tempo, a imagem de repressor dos pobres -mendigos e favelados- que lhe lançava a oposição.

24 de setembro de 2021

QUAL É O PRÓXIMO ALVO DA CHINA?!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 20) Não é nenhuma novidade que as empresas estrangeiras sofrem extorsões do Partido Comunista da China. Nos tempos da revolução chinesa, as tropas vitoriosas do presidente Mao não confiscavam diretamente os bens de estrangeiros, como seus antecessores bolcheviques tinham feito na Rússia.

Em vez disso, eles os desgastavam com impostos mais altos e multas tão grandes que as empresas acabavam entregando seus bens por nada. Em um caso famoso, revelado por Aron Shai, pesquisador israelense, em 1954, um britânico, dono de uma indústria, declarou estar entregando tudo o que tinha aos comunistas, desde “grandes quarteirões de armazéns até lápis e papel”. E, mesmo assim, ele reclamou que o camarada Ho, colega de profissão em outra indústria, continuou a pechinchar “como um comerciante antes da Guerra Civil Chinesa”.

Apesar de as multinacionais terem voltado para a China, a picuinha do governo continua englobando de tudo, desde transferência de tecnologia até a liberdade para investir. Houve grandes melhorias, mas a mesquinhez é um lembrete constante de que as empresas não devem ficar “muito confiantes”. As empresas ocidentais operam na China com tolerância, e um dia o país talvez tente substituí-las.

Como resultado, alguns talvez tenham sentido schadenfreude (expressão alemã que se refere à alegria pela desgraça alheia) com o fato de as empresas chinesas, e não as ocidentais, estarem sendo as principais vítimas do recente esforço do presidente Xi Jinping em projetar socialmente um novo tipo de economia. Apenas na semana passada, o governo tomou medidas para reduzir o tamanho entre os gigantes da tecnologia Alibaba e Tencent e, de acordo com o Financial Times, ordenou a divisão da Alipay, plataforma de pagamento móvel da empresa irmã do Alibaba, a Ant. Alguns chegaram a fazer comparações lisonjeiras entre os esforços de Xi para enfraquecer as “oligarquias” chinesas de tecnologia e o modo como os governos nos EUA e na Europa pressionam os gigantes da tecnologia ocidentais.

A mão pesada é assustadora em um grau incomum. Assim como a imprevisibilidade. Kenneth Jarrett, consultor experiente sobre a China que trabalha em Xangai para a empresa de consultoria Albright Stonebridge Group, diz que a pergunta na boca de todos é “quem será o próximo?”. As repressões ocorrem em um cenário de tensões crescentes entre a China e o Ocidente, o que deixa as multinacionais presas em uma espécie de limbo semilegal. Para muitos, o fascínio da China continua irresistível. Mas os perigos estão se igualando à promessa.

Além de bancos e gestores de ativos, alguns cujos investimentos na China foram severamente prejudicados nos últimos meses, vários tipos de empresas multinacionais estão em risco.

Um grupo inclui aqueles que ganham a maior parte de seu dinheiro na China, servindo a uma elite que gosta de ostentar luxos como suas bolsas de US$ 3.000 e carros esportivos. Outro, empresas que irritam seus clientes pelo que pode ser interpretado como arrogância ocidental; a Tesla, a montadora de veículos elétricos, é um exemplo. Já um terceiro grupo inclui fabricantes europeus e americanos de equipamentos industriais e dispositivos médicos avançados que a China acredita que ela mesma deveria produzir.

As ameaças vêm na forma de anúncios de políticas que parecem suaves. Uma delas, a “prosperidade comum”, é uma expressão abrangente que vai desde uma redução na desigualdade social até mais mimos para trabalhadores e clientes e cuidar de jovens estressados. Seu impacto mais óbvio é nas empresas chinesas de tecnologia, ensino e jogos, que perderam centenas de bilhões de dólares em valor de mercado. As multinacionais também sofreram com os efeitos colaterais. Em agosto, o valor de mercado de marcas de luxo europeias, como a Kering, fornecedora de bolsas Gucci, e a LVMH, holding francesa de artigos de luxo, despencou em US$ 75 bilhões depois que os investidores levaram a sério a agenda de prosperidade comum de Xi.

Ele não pretende forçar os consumidores chineses a voltar a usar as túnicas da época de Mao. Mas sua guerra contra a extravagância, principalmente entre os ricos, que chegam a gastar US$ 100 mil por ano em marcas estrangeiras, ameaça o fim mais lucrativo do mercado. Também põe em perigo marcas luxuosas que ganham na China mais do que em outros mercados, como, por exemplo, Milão. Flavio Cereda do Jefferies, um banco de investimentos, espera que o governo continue apoiando um crescente mercado de luxo da classe média, já que as compras ambiciosas refletem o sucesso econômico. Se a China estivesse prestes a bagunçar tudo isso, o impacto poderia ser gigante. Os consumidores do país são responsáveis por 45% dos gastos com luxos no mundo, segundo Cereda. “Sem a China, não há festa.”

“Dupla circulação” é outra expressão em voga com conotações preocupantes. É uma tentativa de promover a autossuficiência em recursos naturais e tecnologia, em parte como resposta aos temores de que a dependência de fornecedores ocidentais poderia tornar a China vulnerável a pressões geopolíticas e comerciais. Isso também representa ameaça às multinacionais ocidentais na China, com a redução das importações de tecnologia e ao criar uma mentalidade de “comprar produtos chineses”. Friedolin Strack, da Federação das Indústrias Alemãs (BDI), mencionou que estatais na China receberam diretrizes de compras que obrigam o fornecimento doméstico de dispositivos como máquinas de raio-x e equipamentos de radar.

Beco sem saída. Parece que tudo está se tornando um impasse. Por um lado, EUA, Europa e aliados estão em uma disputa geopolítica com a China, que acusam de violações aos direitos humanos em lugares como Xinjiang, lar da oprimida minoria uigur. O Ocidente quer restringir quais tecnologias suas empresas vendem na China e quais materiais, como algodão, compram do país. Por outro lado, a China afirma ter direito de retaliar contra as empresas que acha que estão se metendo em discussões geopolíticas.

Jörg Wuttke, presidente da Câmara de Comércio da União Europeia na China, diz que o tamanho do mercado faz valer a pena o desconforto. “O maior risco é não estar na China”, insiste. No entanto, qualquer pessoa com perspectiva de longo prazo talvez veja a autoridade pessoal indiscutível de Xi, sua aposta em reconfigurar a economia chinesa e o sombrio cenário geopolítico como razões suficientes para ponderar uma saída. Isso talvez nunca chegue a acontecer. Mas, como nos dias pós-revolução, às vezes tudo que é preciso são muitas extorsões para convencer até o mais resistente dos industriais a jogar a toalha.

23 de setembro de 2021

RECONCILIAÇÃO É DIFÍCIL PORQUE CONFRONTO FOI LONGE!

(María Matilde Ollier, doutora em ciência política pela University of Notre Dame e diretora do doutorado em Ciência Política da Escola de Política e Governo da Universidade Nacional de San Martín – O Estado de S. Paulo, 17) Para entender a crise, ainda em desenvolvimento, que ocorre na Argentina, é preciso voltar a seus antecedentes distantes e imediatos.

Os primeiros referem-se a uma anomalia política instalada desde a origem do atual governo pelo qual a vice-presidente, Cristina Kirchner, elege seu companheiro de chapa, Alberto Fernández, como presidente. Desta forma, ela estava em condições de retornar ao poder, algo que seus 30% de fluxo eleitoral e seu perfil radicalizado não possibilitavam. Fernández, um moderado, deu-lhe os 20% restantes.

A aposta ficou completa com a participação de outro peronista, Sergio Massa, que havia rompido com Cristina, derrotando-a, em 2013, na poderosa Província de Buenos Aires.

O experimento, um “panperonismo” feito de seus diferentes fragmentos, não só carecia de um único líder, mas também tinha uma liderança de duas faces: Cristina Fernández Kirchner (CFK) detinha o poder real (ela comanda Buenos Aires, preside o Senado com o próprio quórum e seu filho é o chefe do bloco peronista na Câmara dos Deputados) e o poder formal do presidente, sem qualquer pretensão de construir o próprio espaço.

O duplo comando teve repercussões na gestão do governo, quando a vice-presidente passou a intervir, impondo sua radicalização. E, aos poucos, foi se resolvendo a seu favor, não só porque todos os ministérios contavam com figuras de seu rebanho, mas também porque CFK expressou publicamente a Fernández a existência de “funcionários que não trabalham”, ocasionando a saída da ministra da Justiça (uma área sensível para CFK, que responde a vários processos judiciais).

Na mesma época, o ministro da Economia não pôde demitir um subsecretário respaldado pela vice, entre tantos outros episódios. As tensões entre cristinistas e albertistas tornaram-se um problema político e de gestão, somando-se aos inúmeros erros presidenciais na luta contra a covid e nas áreas educacional, econômica e social.

Nesse quadro, o gatilho imediato emerge. Antes das eleições, CFK alertou o presidente da necessidade de fazer mudanças no gabinete para melhorar a atuação do governo e, aliás, avançar sua participação: o chefe da Casa Civil e o ministro do Turismo deveriam ser chefes da lista de candidatos na Província de Buenos Aires e na própria capital.

O presidente recusou, colocando dois outros candidatos seus nesses lugares. A fórmula “panperonista”, útil para vencer as eleições presidenciais de 2019, provou ser um fracasso no governo, conforme revelado pela derrota esmagadora – em 17 das 24 Províncias – nas eleições primárias de domingo.

Na tentativa de reverter os resultados das eleições de novembro, a vice-presidente voltou a propor mudanças urgentes, mirado o chefe de gabinete. No entanto, o presidente considerou que elas deveriam ser feitas após as eleições.

Além das duas versões que circulam sobre se, na noite de segunda-feira, os dois chefes de governo organizariam mudanças em novembro ou não, uma série de funcionários importantes, incluindo ministros, como o do Interior, apresentou sua renúncia, alguns informalmente, pegando de surpresa Fernández, que descobriu através da mídia. Desencadeia-se uma crise no governo, latente desde a sua origem, que não é apenas produto da derrota, mas também do desígnio governamental que o levou à Casa Rosada.

Em vez de buscar soluções, a resposta do peronismo é um confronto entre suas duas figuras-chave. Com o passar das horas, o presidente recebeu o apoio de vários governadores peronistas, da Confederação-Geral do Trabalho e de alguns movimentos sociais.

Como Fernández não aceitou imediatamente as demissões (formais ou informais são um detalhe), a queda de braço continua, embora a ruptura da coalizão não pareça ser o caminho escolhido por ele. Diante do fracasso eleitoral, essa crise, em meio a uma eleição que ainda não terminou, enfraquece em vez de fortalecer o governo.

A conciliação exige que cada um abra mão de algo. Nesse caso, o desafio que virá passa fundamentalmente pela recomposição do vínculo entre o presidente e sua vice – algo bastante difícil em razão de quão longe foi o confronto.

22 de setembro de 2021

COMISSÃO DA VERDADE!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo 14/04/11) O Informe da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru cobre 20 anos, de 1980 a 2000. Em agosto de 2003, foi entregue ao presidente Alejandro Toledo. O relatório foi transformado no documentário “Para que Não se Repita”, dividido em 12 blocos, com seis horas de duração.

O escopo do informe e o período que cobre foram amplos: “Esclarecer as violações contra os direitos humanos cometidas pelo Estado e por grupos terroristas entre maio de 1980 e novembro de 2000”. Cada “comissão” criada na América Latina tem um escopo e um período de análise diferentes.

O relatório mostra a complexidade de uma comissão desse tipo. Foram 69 mil vítimas no período: 90% de mortos e 10% de desaparecidos.

O informe destaca o Sendero Luminoso/Partido Comunista Peruano, apresentando-o como um grupo terrorista. Também trata das causas históricas da violência no Peru, a discriminação de índios e negros e as diferenças sociais.

Após sublinhar as características democráticas dos ex-presidentes Fernando Belaúnde e Alan García, relata ações repressivas do Exército e da polícia tidas como terroristas.

Em Ayacucho, base do Sendero onde lecionava seu líder, Abimael Guzmán ou “presidente Gonzalo” (preso desde 1992), concentrou-se a violência, passando depois a Lima.

O governo de Alberto Fujimori, que liquidou o Sendero, tem seus méritos minimizados e, nesse caso, associa-se a ele a repressão e o terrorismo da polícia e do Exército.

Destaca-se ainda o papel das milícias locais (rondas), armadas pelo próprio Exército e atuando em cada região com independência. Mesmo informando casos de terror praticados pelos “ronderos”, o relatório tenta realçá-los como autodefesas das comunidades, e que teriam tido papel básico.

Para concluir, o informe condena a passividade da Justiça e do Ministério Público, que deveriam ter tido papéis ativos, mas seriam responsáveis, por omissão, por crimes contra os direitos humanos.

O documento “esquece” o MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru), ostensivamente financiado pelo tráfico de drogas e responsável pelo sequestro múltiplo na Embaixada do Japão, desintegrado pela inteligência policial em operação cinematográfica e ao vivo, no período Fujimori.

De tudo o que mostra o relatório/documentário, o mais importante é o risco do trabalho de comissão similar passar a cumprir um papel político, ter uma abrangência sem limites e igualar ou encobrir excessos de forças heterogêneas.

Uma comissão de tal tipo pode terminar servindo para atirar em qualquer direção e, assim, incorporar riscos de excitar e deformar a memória.

Por isso, nunca poderá ser governamental nem ter cor ideológica. Deve ter foco específico e detalhado em um período.

21 de setembro de 2021

OS EUA E A POLÍTICA EXTERNA!

(Fareed Zakaria – O Estado de S. Paulo, 20) Se Biden seguir curso atual, historiadores poderão considerá-lo o presidente que normalizou a política externa de Trump.

Amanhã, o presidente Joe Biden fará seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU. Esse discurso chega em um momento crucial de sua presidência e terá um impacto particular na maneira como seu governo será visto no exterior. Depois de quase oito meses analisando políticas, retóricas e crises, muitos observadores estrangeiros ficaram surpresos – até chocados – ao descobrir que, área após área, a política externa de Biden é uma fiel continuação da de Donald Trump e um repúdio à de Barack Obama.

Parte dessa consternação é consequência da maneira abrupta e unilateral com que Biden retirou as tropas americanas do Afeganistão. Um diplomata alemão me disse que, no seu modo de ver, o governo Trump consultava mais Berlim do que este. Outras consequências vêm de ações específicas, como o negócio do submarino, que enfureceu os franceses.

Mas as crescentes preocupações vão muito além de qualquer episódio. Um alto diplomata europeu observou que, nas negociações com Washington sobre qualquer coisa, desde vacinas até restrições de viagens, as políticas de Biden são “‘América em primeiro lugar’ na lógica, qualquer que seja a retórica”. Um político canadense disse que, se forem seguidos à risca, os planos “Buy America” de Biden são, de fato, mais protecionistas do que os de Trump. Apesar de ter criticado as tarifas de Trump repetidas vezes, Biden manteve quase todas elas. (Na verdade, muitas foram ampliadas, uma vez que a maioria das isenções acabaram expirando).

Os principais aliados asiáticos continuam pressionando Biden a retornar à Parceria Transpacífico – muito elogiada por ele quando o governo Obama a negociou. Em vez disso, a ideia foi arquivada.

Outro exemplo notável da política externa surpreendentemente trumpista de Biden é o acordo com o Irã, uma das conquistas marcantes do governo Obama. Ao longo da campanha eleitoral, Biden argumentou que a retirada de Trump desse acordo fora um erro fundamental e que, como presidente, ele se reintegraria ao acordo, desde que o Irã também cumprisse o prometido. Seu conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, descrevera a reimposição de sanções secundárias de Trump contra Teerã como “unilateralismo predatório”.

Mas, desde que assumiu o cargo, Biden não conseguiu retornar ao acordo e até aumentou algumas sanções. Depois de passar muito tempo argumentado contra a tentativa de renegociar o acordo, as autoridades de Biden agora querem “estendê-lo e fortalecê-lo”. Até agora, essa estratégia Trump-biden não funcionou. O estoque de urânio enriquecido do Irã passou de menos de 300 quilos em 2018 para mais de 3 mil em maio.

Vejamos também a política em relação a Cuba. O governo Obama foi ousado o suficiente para enfrentar um dos mais flagrantes fracassos da política externa americana. Depois de isolar e impor sanções a Cuba desde 1960 para forçar uma mudança de regime no país, os Estados Unidos, ao invés disso, fortaleceram o governo comunista. Fidel Castro despertou fervor nacionalista ao colocar no embargo a culpa por todos os problemas cubanos e, longe de ser derrubado, acabou permanecendo no poder por mais tempo do que qualquer líder não monarquista no planeta.

Como no caso do Irã, o custo dessas políticas foi pago pelas pessoas comuns. Um dos aspectos mais cruéis da política de sanções dos Estados Unidos é que ela é prontamente implantada porque satisfaz grupos de interesses especiais em Washington e é indolor para os americanos, mas inflige danos horríveis aos mais pobres e impotentes que não têm como protestar nem reagir.

Obama começou a relaxar essas políticas em relação a Cuba. Trump inverteu o curso. Biden vem mantendo a política de Trump e, na verdade, endureceu as sanções. Numa votação recente da Assembleia Geral da ONU que condenava os 60 anos de embargo americano, o resultado da votação foi 184 a 2.

Biden e sua equipe muitas vezes criticaram Trump por seu ataque às regras do sistema internacional. Mas como reconstruir tal sistema e, ao mesmo tempo, abraçar o protecionismo descarado, as sanções unilaterais, as poucas consultas e as políticas “América em primeiro lugar” sobre vacinas e até mesmo restrições de viagem?

Na semana passada, quando eu estava voltando da Europa, a funcionária da companhia aérea britânica que fazia o check-in me disse nervosamente: “Espero que o senhor tenha passaporte americano”. Eu respondi que sim, mas perguntei por que ela parecia tão aliviada. Ela respondeu: “Oh, os americanos estão fazendo os europeus enfrentarem um pesadelo para entrar no país. E parece muito injusto, porque temos taxas de vacinação muito mais altas e níveis muito mais baixos de covid do que vocês”. Ela concluiu exasperada:

“Parece que hoje em dia vocês, americanos, só querem um esquema que os favoreça, não importa o que os outros pensem”.

Não precisava ser assim. O egoísmo de Trump deveria ser uma aberração. Biden pode usar o púlpito da ONU para retornar às suas profundas raízes de internacionalista que entende que os países não se aliam aos Estados Unidos simplesmente por medo, suborno ou preocupações de segurança.

Eles o fazem porque seus melhores presidentes articularam e perseguiram políticas que, embora sempre estivessem atentas aos interesses americanos, também tentavam construir uma ordem internacional aberta e baseada em regras que ajudasse outros países a prosperar. Se Biden continuar seu curso atual, porém, os historiadores um dia poderão considerá-lo o presidente que normalizou a política externa de Donald Trump.

17 de setembro de 2021

A CORTE DOS ANJOS!

(Artigo de Cesar Maia em Folha de São Paulo, 22/01/2011) “Governar é fazer crer”, dizia Maquiavel. As lideranças míticas, sejam políticas, sociais ou religiosas, se afirmam por dois caminhos distintos.

De um lado, os líderes cuja autoridade se afirma como guias de seus povos. São os detentores da legitimidade pelas ideias que conduzirão seus povos ao paraíso. Perón e Vargas são exemplos.

Outras lideranças legitimam a sua autoridade pela ausência. Representam divindades. O que os legitima está ausente deles, está em outro plano. padre Cícero, no Ceará, e Santa Dica, em Goiás, são exemplos. Maria de Araújo, beata de padre Cícero, em transe, ao meio de milagres, conversava com os anjos.

Santa Dica, em transe, ia até a “corte dos anjos” e voltava com as orientações a serem seguidas. Padre Cícero elegia e elegeu-se. Santa Dica elegeu seu companheiro. O monopólio da legitimação pela ausência trouxe e traz conflitos interreligiosos.

A autoridade legitimada pela ausência não é restrita à esfera religiosa. Líderes políticos, em diversas épocas, ao se incluir no universo dos deuses, assim se legitimavam.

Ramsés 2º, Júlio Cesar e Hirohito são exemplos. Em outros, a própria nação é uma divindade. Agitam com símbolos milenares, cenografia e coreografia relativas. Representam essa divindade-nação ausente. Hitler (a raça germânica superior) é um caso.

Outras vezes, essa divindade é um autor cujas ideias são estruturadas como dogmas. A legitimação pela ausência se refere a eles e a suas ideias. O líder é quem representa essas ideias da forma mais autêntica. Marx foi usado assim. Depois vieram as suplementações de legitimação derivada: leninismo, stalinismo…

Outro tipo de legitimação da autoridade se dá pela contra-ausência. Ou seja uma ausência que coloca em risco o país e exige a delegação de todos ao líder. O “perigo vermelho” foi usado assim, legitimando líderes e ditadores. “O imperialismo ianque”, idem.

Mas há um tipo de liderança mítica que se parece com a do tipo guia dos povos. Apenas se parece. Na verdade, legitima-se também pela ausência. O povo, em abstrato, passa a ser uma divindade. Um povo amalgamado que incorpora todos os valores de fé, justiça e de esperança. E de dentro desse amálgama surge o líder, que é ele, o próprio povo, encarnado em sua pessoa, como redentor. As lideranças míticas são desintegráveis pelo fracasso, pela desmistificação (falsos profetas), pela força ou por outros tipos de líderes míticos. Num regime democrático, a força se exclui. Quando a alternância acontece em uma conjuntura de sucesso, a desmistificação não é tarefa simples. Nessas condições, um líder racional alternativo precisaria de alguma dose de legitimação de sua autoridade pela ausência.

16 de setembro de 2021

EUA REMOVEM ESTÁTUA DE GENERAL CONFEDERADO EM MEIO A DEBATES SOBRE RACISMO!

(Reuters/AFP/Estado de SP, 08) Em meio às discussões sobre monumentos que homenageiam figuras controversas da história, uma estátua do general Robert E. Lee , que defendeu os confederados na Guerra Civil dos EUA (1861-1865), foi removida nesta quarta-feira, 8, de Richmond, na Virgínia, após uma batalha legal que durou um ano.

Trata-se de uma das maiores estátuas ainda de pé em homenagem aos confederados, com 6,4 metros de altura e sobre um pedestal de 12,2 metros de granito. A figura, de bronze, foi instalada na cidade, antiga capital da Confederação durante a Guerra Civil, em 1890, e retrata Lee em cima de seu cavalo.

Os confederados, grupo derrotado no conflito americano, defendiam a manutenção da escravidão no país, e, por isso, monumentos e bandeiras ligadas ao grupo são alvos de protesto contra o racismo. Nos últimos seis anos, foram removidos mais de 300 símbolos confederados e de supremacistas brancos, enquanto cerca de 2.000 ainda estão de pé, segundo o centro de pesquisa Southern Poverty Law.

Uma estátua de Lee foi removida de Charlottesville, também na Virgínia, em julho deste ano. No Brasil, um importante representante dessa discussão é o monumento ao Borba Gato, na zona sul de São Paulo, que foi incendiado também em julho. A estátua, polêmica desde a inauguração, é contestada por seu valor estético e histórico, já que homenageia um bandeirante apontado como escravagista e assassino de indígenas e negros —embora nem todos concordem com essa visão.

Na noite da terça-feira 7, as ruas ao redor da estátua de Lee foram fechadas, enquanto o governo preparava uma área para o público assistir à remoção do monumento. A obra será guardada em um local seguro, de acordo com autoridades locais, até que haja uma decisão sobre seu futuro. A base de granito, porém, permanecerá no local, mas a placa que identificava o homenageado será retirada.

Na última quinta-feira, 2, a Suprema Corte da Virgínia decidiu por unanimidade em dois casos que o governador poderia remover a estátua. A retirada, porém, foi contestada por parte dos moradores e por um descendente da família que transferiu a posse da estátua para o estado.

Há mais de um ano, em junho de 2020, o governador do Estado, o democrata Ralph Northam, anunciou planos para remover a estátua, dez dias depois de um policial branco de Minneapolis matar o ex-segurança negro George Floyd, o que gerou uma onda de protestos em todo o país.

Assim, estátuas como a do navegador Cristóvão Colombo também foram atacadas. Uma foi incendiada e jogada em um lago em Richmond. Outra, em Boston, foi decapitada. Uma terceira, em Baltimore, foi derrubada no mesmo dia em que o ex-presidente Donald Trump acusou manifestantes de tentarem apagar a história do país. Também nos EUA, a prefeitura de Chicago removeu temporariamente mais duas estátuas do navegador italiano, depois que um grupo de ativistas tentou derrubá-las.

Atos semelhantes se seguiram na Europa. Em Bristol, no Reino Unido, o alvo foi uma estátua de Edward Colston, traficante de escravos e membro do Parlamento britânico que viveu no século 17.

A escultura de uma ativista negra feita por um artista britânico chegou a ser colocada no mesmo pedestal onde ficava Colston, mas foi removida pelas autoridades municipais por ter sido instalada sem permissão.

Em Londres, a estátua de Robert Milligan, que chegou a ter 526 negros escravizados em suas fazendas de plantação de açúcar na Jamaica, foi removida pelo Museu das Docas. Na Bélgica, ganhou força uma campanha já antiga para tirar de cena monumentos do rei Leopoldo 2º, e um busto do monarca que colonizou o Congo (atual República Democrática do Congo) foi para o depósito na Universidade de Mons.