18 de novembro de 2021

OS CORTESÃOS!

(Cesar Maia – Folha de SP, 12/02/2011) A disputa de cargos, em todos os níveis, e de benesses governamentais, entre os partidos que apoiam o governo federal, remete ao sistema de cortes das monarquias nos séculos 16 e 17. As cortes palacianas viviam no entorno dos reis, disputando cargos, concessões e favores.

Os homens fortes das cortes eram aqueles que, por proximidade com reis e rainhas, conseguiam para seus apaniguados decisões que lhes davam poder e riqueza. As cortes dos vice-reis na América hispânica aprofundaram o sistema. As “encomiendas”, por exemplo, eram concessões de caráter feudal com cessão de terras e seus índios, para o uso econômico e deleite dos “encomenderos”. Outro exemplo era o “corregimiento”, uma região onde o “corregidor” tinha todos os poderes e onde esse poder até se comprava.

Os vice-reis da Espanha no Peru e no México (Nova Espanha), nos séculos 16 e 17, com status de “alter ego” do rei, punham e dispunham sobre tais concessões. Em torno deles, construíram-se amplas cortes que se dividiam em funções administrativas e de proximidade com o vice-rei.

Era tão bom, que fazer parte do séquito de um vice-rei nomeado na Espanha tinha preço. A orientação básica da coroa era prestigiar os chamados “beneméritos”, ou seja, os que chegaram na frente para conquistar e colonizar.

Mas o que ocorria eram nomeações e concessões ao grupo íntimo do vice-rei ou aos indicados por ele. Os abusos chegaram a tal ponto que, em 1619, o rei Felipe 3º regulamentou a ocupação de cargos, proibindo empregar e fazer concessões a parentes até o quarto grau.

Em 1660, Felipe 4º repetiu a mesma resolução, pois as cortes no Peru e na Nova Espanha não haviam dado a menor bola para a determinação.

A solução no século 18 foi tirar poder dos vice-reis e transformá-los em burocratas do Estado espanhol.

O que vemos por aqui é uma adaptação disso. Um partido tem direito de nomear em órgãos que passam a ser suas “encomiendas”. O quoteo de ministérios, órgãos e empresas estatais são como “corregimientos”. O líder de bancada de prestigio é aquele que, por proximidade com o poder ou por intimidação, abre amplos espaços para os seus protegidos. Mesmo que indiretamente, isso tudo tem um preço.

Não tão abertamente como as vagas no séquito dos vice-reis, mas de forma mais intensa e rentável. Como nas cortes, vai se criando um hábito.

E só se lembra do método quando os desvios são publicados. Os servidores profissionais independentes vão ficando de lado, como ocorreu aos “beneméritos”. E -da mesma forma que os Felipes 3º e 4º- não será por falta de leis, decretos e resoluções. Enquanto isso o Estado vai ficando caro, improdutivo, ineficiente, e algumas vezes, corrupto.

17 de novembro de 2021

‘TRUMP FRANCÊS’ DESTRONA LE PEN E RADICALIZA AINDA MAIS A DIREITA NA FRANÇA!

(O Estado de S. Paulo, 14) Ele aponta arma a jornalistas, critica a influência da imprensa e do Judiciário na política e adora uma provocação sobre questões de identidade. O perfil poderia ser o de pelo menos meia dúzia de políticos da atualidade. Mas é no país da liberdade, da igualdade e da fraternidade que a ressonância desse discurso está virando uma campanha presidencial de cabeça para baixo.

Trata-se do jornalista francês de extrema direita Éric Zemmour, que, ainda sem lançar oficialmente sua candidatura, passou ao segundo lugar nas pesquisas para enfrentar o presidente Emmanuel Macron nas eleições de abril.

Com a extrema direita francesa dominada há décadas pelos Le Pen – primeiro o pai, Jean-Marie, depois a filha, Marine, que busca a presidência pela terceira vez –, Zemmour surge como uma cara nova. Seu discurso, segundo analistas franceses ouvidos pelo Estadão, ao mesmo tempo que ataca a imigração e o Islã, coração de sua agenda, responde a um desejo dessa ala política de reescrever a história da França.

Se por um lado Zemmour, de 63 anos, é um estreante na política, sua fama fora dela é antiga. Nascido em um subúrbio de Paris de uma família de judeus berberes que deixou a Argélia nos anos da guerra (1954-1962), formou-se pela Universidade Sciences Po após ser reprovado duas vezes na prestigiosa École Nationale d’Administration – escola de governo por onde passou a maioria dos presidentes franceses, incluindo Macron. Trabalhando como jornalista, atuou até recentemente como colunista do Le Figaro e outros jornais conservadores, assim como comentarista de TV.

Construiu seu nome com ataques à imigração e ao Islã, provocações às mulheres e desprezo pelo politicamente correto, como explica o cientista político Jean-Yves Camus, diretor do Observatório das Radicalidades Políticas da Fundação Jean Jaurès. Autodenominado “Trump da França”, Zemmour parece ser muito mais radical do que Marine Le Pen, que passou os últimos anos tentando tornar o discurso de seu Reagrupamento Nacional (RN) mais palatável – mesmo assim, o partido amargou uma derrota nas regionais de junho.

Segundo Camus, muitos dos que votaram em Le Pen no passado estão agora convencidos de que ela não se tornará presidente. Para o cientista político, é cedo para dizer se haverá uma aliança entre os dois. Mas a transferência de votos no segundo turno não é automática na opinião do sociólogo e cientista político Alain Policar, do Centro de Pesquisas Políticas da Sciences Po. Para Policar, as duas bases eleitorais têm importantes diferenças, com Le Pen apelando aos mais populares e jovens e Zemmour, aos mais velhos.

“Os eleitores franceses de extrema direita que escolheram (François) Fillon em 2017 também acham que o partido conservador tradicional, Os Republicanos, é muito brando com a imigração, a lei e a ordem e o Islã. Portanto, consideram votar em Zemmour”, diz Camus.

Como Trump, Zemmour joga com o fato de não ser um político profissional e a capacidade de polemizar. Um vídeo recente dele apontando um fuzil para jornalistas em uma feira de armamentos teve milhões de visualizações. Projetando-se como o grande defensor da civilização cristã da França – ainda que ele mesmo seja judeu – coleciona best-sellers sobre o declínio do país, que ele atribui à imigração dos africanos muçulmanos que estariam empenhados em uma colonização reversa da França.

Ele também tem chocado a comunidade ao dar declarações tentando justificar o regime francês que colaborou com os nazistas na 2.ª Guerra. “(Regime) Vichy protegeu os judeus franceses”, declarou Zemmour em setembro na TV, sugerindo que o governo do então marechal Philippe Pétain, que enviou mais de 72,5 mil judeus para a morte nos campos nazistas, não foi tão ruim.

16 de novembro de 2021

COVID: COMO A ALEMANHA PERDEU CONTROLE SOBRE PANDEMIA DE CORONAVÍRUS!

(BBC, 12) Pela primeira vez desde o início da pandemia de Covid-19, a Alemanha registrou, recentemente, mais de 50 mil casos diários da doença.

De acordo com o Instituto Robert Koch, a agência pública de controle e prevenção de doenças, 50.196 infecções foram confirmadas na quarta-feira (10/11), tornando a Alemanha o país europeu com o maior número de contágios diários.

Com quase 250 infecções por 100 mil habitantes, a situação do país é muito pior do que na França (94) ou na Itália (73), segundo dados do Statista citados pela agência de notícias AFP.

A força com que esta quarta onda de Covid-19 atinge a Alemanha tem disparado o alerta não só dos agentes de saúde, mas também políticos e econômicos. Scholz, o atual vice-chanceler e provável sucessor de Angela Merkel, afirmou na quinta-feira que o país precisa aplicar maiores restrições para conter o aumento dos casos e, assim, poder “passar por este inverno [boreal]”.

“Mesmo que a situação seja diferente [do inverno passado] porque muitas pessoas foram vacinadas, ainda não é boa, especialmente porque até agora bastante gente não optou por ser vacinada”, acrescentou.

A vacinação insuficiente contra Covid-19 é vista como a principal causa do aumento de casos da doença. Desde meados de outubro, as infecções e mortes pelo novo coronavírus vêm aumentando na Alemanha, algo que os especialistas atribuem à taxa de vacinação relativamente baixa, já que apenas 67% da população tomou as duas doses, segundo a publicação Our World in Data da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Com este percentual, o país está atrás de nações como Portugal (88%), Espanha (80%), Irlanda (75%), Bélgica (74%) e Itália (72%), entre outros.

No total, cerca de 16 milhões de alemães acima de 12 anos não estão totalmente vacinados. E isso não se deve à falta de insumos.

O governo alemão reconheceu que é improvável que muitas dessas pessoas sejam persuadidas a tomar a vacina, apesar do fato de esta quarta onda está sendo considerada, como em muitas outras partes do mundo, uma pandemia de não vacinados.

Na quarta-feira, o Estado da Saxônia registrou o maior índice de infecções do país: cerca de 459 casos por 100 mil habitantes, enquanto a taxa nacional é inferior a 250.

A Saxônia também tem a menor taxa de vacinação: apenas 57% de sua população foi imunizada.

Os efeitos da decisão de vacinar ou não se refletem nos centros de saúde.

Na unidade de terapia intensiva para Covid-19 do Hospital Universitário de Leipzig, por exemplo, havia 18 pessoas internadas, das quais apenas quatro haviam sido vacinadas, segundo a correspondente da BBC na Alemanha Jenny Hill.

“É muito difícil motivar a equipe a tratar os pacientes agora nesta quarta onda. Uma grande parte da população ainda subestima o problema”, diz o professor Sebastian Stehr, chefe da ala de Covid-19 do hospital.

As consequências em termos de vidas humanas podem ser muito altas. De acordo com Christian Drosten, um dos virologistas mais renomados da Alemanha, cerca de 100 mil pessoas podem morrer no país se não forem tomadas medidas para impedir esta quarta onda agressiva.

“Temos que agir agora”, enfatizou Drosten, que descreveu a situação como uma verdadeira emergência.

Para tentar deter as infecções, já estão sendo esboçadas uma série de restrições.

O Partido Social-Democrata, o Partido Verde e o liberal FDP — que estão em negociação para formar uma nova coalizão de governo — apresentaram uma série de propostas no Parlamento para fazer frente à pandemia.

Entre elas, está permitir o acesso a determinados locais apenas para aqueles que foram vacinados ou que já se recuperaram da doença, endurecer as exigências de teste de Covid-19 em ambientes de trabalho e reintroduzir os testes rápidos de antígeno, que foram aplicados no verão passado.

Estas propostas serão analisadas pela Câmara dos Deputados nesta semana e, se aprovadas, podem entrar em vigor até o fim do mês.

No Estado da Saxônia, eles já começaram a aplicar algumas medidas adicionais, como a proibição da entrada de pessoas não vacinadas em bares, restaurantes, eventos públicos e instalações esportivas e recreativas.

A medida irritou os grupos antivacina que realizaram um protesto no último fim de semana em Leipzig, no qual participaram milhares de pessoas.

“Isso é discriminação e queremos expressar com veemência que não aceitamos isso em nossa sociedade”, enfatizou Leif Hansen, representante de um dos grupos antivacina de Leipzig.

“Dizem que a vacina não faz mal e que deveria dar aos meus filhos. Jamais! Tenho a sensação de que isso nunca deveria entrar no meu corpo e lutarei o máximo que puder para evitar”, disse Hansen à BBC.

Além destas restrições, muitos temem que um novo lockdown seja imposto.

Entre eles, está Nadine Herzog, coproprietária de um bar em Leipzig que a duras penas sobreviveu ao lockdown anterior.

“Meu negócio está morrendo. Meus sonhos se tornaram realidade e agora sofremos porque as pessoas não fazem as coisas lógicas para evitar que outras pessoas adoeçam e morram, estou muito chateada”, afirmou ela à BBC.

Mas muitos já estão deduzindo as consequências que as restrições contra a Covid-19 somadas aos problemas globais na cadeia de abastecimento vão ter sobre a economia alemã.

O Conselho Alemão de Especialistas Econômicos, um grupo consultivo do governo, reduziu nesta semana suas projeções de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para este ano de 3,1% para 2,7%.

“Gargalos na cadeia de suprimentos estão retardando a produção industrial, e a Alemanha é particularmente afetada por isso, mais do que outros países em que a indústria é responsável por uma parcela menor do PIB”, explicou Volker Wieland, professor de política monetária da Universidade Goethe de Frankfurt, de acordo com o jornal Financial Times.

Com estes números do PIB, a Alemanha teria uma das taxas de crescimento mais baixas de toda a zona do euro neste ano.

Enquanto isso, foram observadas nesta semana longas filas em alguns centros de vacinação de Leipzig, o que talvez seja uma evidência de que algumas pessoas estão mudando de ideia sobre a vacina.

No entanto, na unidade de terapia intensiva do Hospital Universitário de Leipzig, teme-se que o estrago já tenha sido feito. Cirurgias foram canceladas e procedimentos eletivos adiados para reservar leitos para pacientes com Covid-19.

Os médicos disseram à BBC que quase metade das pessoas que dão entrada ali acabam morrendo.

“Para a Alemanha, que inventou uma das primeiras vacinas contra Covid-19 do mundo, isso é uma grande vergonha”, diz Jenny Hill, correspondente da BBC no país.

12 de novembro de 2021

COMO O TEMPO REAL VAI MUDAR AS POLÍTICAS ECONÔMICAS!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 02) Alguém realmente entende o que está acontecendo na economia mundial? A pandemia fez com que muitos analistas parecessem perdidos. Poucos previram o barril de petróleo a US$ 80, que dirá as frotas de navios contêineres esperando do lado de fora dos portos chineses e da Califórnia.

Assim que a covid-19 ganhou força em 2020, os analistas superestimaram quão alta a taxa de desemprego estaria até o final do ano. Atualmente, os preços estão subindo mais rápido do que o esperado e ninguém tem certeza se a inflação e os salários aumentarão.

Apesar de todas as suas equações e teorias, os economistas muitas vezes estão tateando no escuro, com pouquíssimas informações para escolher as políticas que maximizariam os empregos e o crescimento.

Entretanto, como relatamos recentemente, a era da perplexidade está começando a dar lugar a um melhor entendimento. O mundo está na iminência de uma revolução em tempo real na economia, conforme a qualidade e a rapidez das informações são transformadas. Grandes empresas, da Amazon à Netflix, já usam dados instantâneos para monitorar as entregas de produtos e quantas pessoas estão vidradas em “Round 6”.

A pandemia levou governos e bancos centrais a fazer experiências, desde monitorar reservas em restaurantes até rastrear pagamentos com cartão.

PRECISÃO. Os resultados ainda são rudimentares, mas à medida que os dispositivos digitais, sensores e pagamentos instantâneos se tornam onipresentes, a capacidade de observar a economia com precisão e rapidez aumentará. Isso mantém em aberto a promessa de uma melhor tomada de decisão do setor público – assim como a tentação de os governos se intrometerem.

O desejo por melhores dados econômicos não é novidade. As estimativas do Produto Interno Bruto dos Estados Unidos datam de 1934 e, inicialmente, surgiam com um atraso de 13 meses.

Nos anos 50, um jovem Alan Greenspan monitorava o tráfego de vagões de carga para calcular as primeiras estimativas da produção de aço. Desde que o Walmart foi pioneiro na gestão da cadeia de suprimentos nos anos 80, os chefes do setor privado têm visto os dados em tempo real como uma fonte de vantagem competitiva. Mas o setor público tem sido devagar em modificar seu funcionamento.

Os números oficiais monitorados pelos economistas – pense no PIB ou na taxa de empregos – chegam com atrasos de semanas ou meses e são frequentemente revistos de forma considerável. A produtividade demora anos para ser calculada com precisão. Isso é apenas um pequeno exagero para dizer que os bancos centrais estão operando às cegas.

POLÍTICAS EQUIVOCADAS. Dados ruins e atrasados podem levar a políticas equivocadas que custam milhões de empregos e trilhões de dólares em produção perdida. A crise financeira teria sido muito menos prejudicial se o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) tivesse cortado as taxas de juros para quase zero em dezembro de 2007, quando os Estados Unidos entraram em recessão, e não em dezembro de 2008, quando os economistas finalmente perceberam isso pelos números.

Dados irregulares sobre uma vasta economia informal e bancos decadentes tornaram mais difícil para os formuladores de políticas da Índia encerrar a década perdida de baixo crescimento do país. O Banco Central Europeu elevou erroneamente as taxas de juros em 2011 em meio a uma explosão temporária da inflação, levando a zona do euro de volta à recessão. O Bank of England talvez esteja prestes a cometer um erro semelhante.

A pandemia, contudo, se tornou um catalisador para mudanças. Sem tempo para esperar por pesquisas oficiais para revelar os efeitos do vírus ou dos lockdowns, governos e bancos centrais têm experimentado, rastreando celulares, pagamentos por aproximação e o uso em tempo real de motores de aeronaves.

Em vez de se limitarem aos estudos por anos escrevendo a próxima “Teoria Geral”, os economistas famosos de hoje, como Raj Chetty, da Universidade Harvard, administram laboratórios com ótimas equipes que analisam números. Empresas como o Jpmorgan Chase disponibilizaram dados valiosos sobre saldos bancários e contas de cartão de crédito, ajudando a revelar se as pessoas estão gastando ou guardando dinheiro.

Essas tendências se intensificarão conforme a tecnologia se espalha pela economia. Uma parcela maior das despesas está mudando para o online e as transações estão sendo processadas mais rápido. Os pagamentos instantâneos cresceram 41% em 2020, de acordo com a Mckinsey, empresa de consultoria empresarial (a Índia registrou 25,6 bilhões desse tipo de transação).

Mais máquinas e objetos estão sendo equipados com sensores, incluindo contêineres individuais, o que pode ajudar quando houver transtornos nas cadeias de suprimentos. As “govcoins”, ou moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDC, na sigla em inglês), que a China já está testando e mais de 50 países estão considerando usar, talvez em breve ofereçam uma mina de ouro de informações em tempo real a respeito de como a economia funciona.

DECISÃO FACILITADA. Os dados em tempo real reduziriam o risco de políticas equivocadas – seria mais fácil julgar, digamos, se uma queda na atividade estaria se transformando em uma recessão. E os mecanismos que os governos podem utilizar também melhorarão. Os banqueiros centrais calculam que leva 18 meses ou mais para que uma mudança nas taxas de juros tenha efeito completo. Mas Hong Kong está testando ajudas financeiras em carteiras digitais que expiram se não forem gastas de modo rápido.

As CBDCS talvez permitam que as taxas de juros caiam profundamente. Bons dados durante as crises podem permitir que a ajuda seja direcionada com precisão; imagine empréstimos apenas para empresas com balanços robustos, mas com um problema de liquidez temporário. Em vez de imprudentes pagamentos de auxílios universais realizados por meio de burocracias da seguridade social, os necessitados poderiam se beneficiar com pagamentos instantâneos se perdessem o emprego, pagos em carteiras digitais sem qualquer papelada.

A revolução em tempo real promete tornar as decisões econômicas mais precisas, transparentes e baseadas em regras. Mas também apresenta perigos. Novos indicadores podem ser mal interpretados: uma recessão global está começando ou é apenas a Uber perdendo participação no mercado? Eles não são tão representativos ou isentos de parcialidades quanto as pesquisas meticulosas conduzidas por agências estatísticas.

As grandes empresas podem acumular dados, o que lhes dá uma vantagem indevida. Empresas privadas como o Facebook, que lançou uma carteira digital, talvez um dia tenham maior clareza a respeito dos gastos dos consumidores que o Fed.

O maior perigo é o excesso de confiança. Com um panóptico da economia, será tentador para os políticos e autoridades acreditar que podem ver um futuro distante ou moldar a sociedade de acordo com suas preferências e favorecer grupos específicos. Este é o sonho do Partido Comunista da China, que visa a se envolver em um tipo de economia planificada digital.

Na verdade, nenhuma quantidade de dados pode prever o futuro com segurança. As economias dinâmicas e incrivelmente difíceis de se entender não dependem do Big Brother, mas do comportamento espontâneo de milhões de empresas independentes e consumidores. A economia instantânea não é sobre clarividência ou onisciência. Pelo contrário, sua promessa é trivial, mas transformadora: tomar decisões melhores, mais racionais e no momento certo.

11 de novembro de 2021

PARLAMENTARISMO NUMA HORAS DESSAS?!

(Maria Celina D’araujo, professora da PUC-RIO – O Estado de S. Paulo, 03) Este artigo é sobre um importante livro de Bolívar Lamounier e toma como título uma ideia de Luis Fernando Veríssimo. Quando Veríssimo acha que tudo está de pernas para o ar, acrescenta uns versinhos em sua coluna com o título Poesia numa horas dessas?

Lamounier é um cientista político, de recorte parlamentarista, com grande e longa contribuição ao debate sobre ideias e formas na política brasileira. Desde os anos 1970, sua obsessão benigna tem sido o aprimoramento do sistema político, do ponto de vista institucional – eleições e governo. Coerentemente, em sua trajetória, tem insistido na importância de construir instituições, numa perspectiva que remete a Stuart Mill: boas instituições fazem a boa democracia.

Seu livro Da independência a Lula e Bolsonaro, dois séculos de política brasileira (Editora FGV), que abordo aqui, é prova cabal disso. Trata-se de reedição de versão anterior (2005), que acompanhava a trajetória política do Brasil até o governo Lula da Silva.

Desta feita, há um acréscimo analítico sobre o governo Bolsonaro apontando para o descalabro a que o País chegou: presidente autoritário, inescrupuloso e beócio, sistema partidário pífio, fisiológico e volátil, sistema eleitoral negligente, ausência de projeto de desenvolvimento político e econômico, País à deriva, população empobrecida descrente das capacidades do governo e ricos cada vez mais ricos. País que se acomodou na tese da renda média – na verdade, a melhor armadilha para o retrocesso.

Debater reformas e instituições remete, no Brasil, a envolver-se com projetos ideológicos e preferências político-eleitorais distintas. Parlamentarismo foi, durante a Constituinte de 1987/1988, identificado como tema tucano contra a preferência presidencialista disseminada em várias correntes, especialmente no PT, e que já havia predominado no plebiscito de 1963.

Mesmo derrotado no plebiscito de 1993, este é, para Lamounier, tema inegociável. Nosso presidencialismo é, para ele, tiro no pé, modelo político marcado pela irresponsabilidade da maioria parlamentar de plantão, que faz do Brasil terreno de ineficiência e mediocridade.

O conceito “presidencialismo de coalizão” foi um tábua de salvação, teórica e intelectualmente bem construída pelo cientista político Sérgio Abranches, durante os debates da Constituinte, que tornou palatável um arranjo de governo que a princípio tinha tudo para dar errado. Isso porque o Brasil seria um país presidencialista com um presidente minoritário no Congresso, em decorrência do nosso sistema eleitoral, mas que conseguiria governar-se com base em coalizões partidárias parlamentares, tal como havia ocorrido com a República de 1946.

Com o decorrer dos anos, as coalizões foram crescendo em razão da maior fragmentação partidária e se tornaram fator de chantagem mútua entre Legislativo e Executivo. A coalizão sem escrúpulos tornou-se rotina. O presidente mantém a iniciativa parlamentar e a coalizão fisiológica faz o preço da barganha para aprovar a pauta do presidente quando lhe interessa.

Para Lamounier, um modelo presidencialista que tinha tudo para dar errado confirmou a profecia.

A par disso, a polarização política na sociedade, nomeadamente a partir dos governos do PT, fortaleceu o ímpeto personalista da política brasileira a que Lamounier chama de plebiscitarismo: a crença em grandes líderes, modelo instituído por Vargas, que hoje delimita o horizonte em torno de dois possíveis candidatos salvadores da Pátria, numa disputa de mútua demolição.

E, para Bolívar, aceitar a terceira via seria coonestar com o status quo institucional. Temos atualmente, segundo o autor, acordos políticos baseados em conveniências não republicanas, radicalização política e ideológica e, nos extremos, monumentos à mediocridade. Este descalabro não é superado por ordem espontânea, mas sim por uma determinação firme de reordenamento institucional.

Vários cientistas políticos, analistas, empresários, intelectuais e representantes sindicais estão cada dia mais preocupados com como sair deste impasse. Nesse sentido, a palavra reformas vem sempre à tona, e tanto aparece que acaba desmoralizada. Mas, para Lamounier, é disso que se trata. O autor tem lado e coerência nesta discussão, e seu livro mostra bem isso.

Aposta todas as fichas na necessidade de uma reforma política ampla, que inclua, entre outras coisas, a mudança do sistema de governo, de presidencialismo para parlamentarismo, com voto distrital misto. Uma proposta pautada pelos tucanos na Constituinte e que, segundo ele, deve ser reeditada sob o risco de o País não conseguir sair de uma modelagem institucional que o condena a uma mediocridade econômica exemplar.

O salto para a frente dependeria de obras de engenharia política que alterassem as atuais estruturas anacrônicas que têm o atraso como projeto.

Deixo claro que este é um livro de combate, cada capítulo pode ser lido como uma unidade, sempre com ênfase nos sistemas de representação política em suas conexões com cada período histórico do País, seu sucesso e recorrentes retrocessos.

10 de novembro de 2021

POR QUE DEFENDO A DECISÃO DA MINISTRA ROSA WEBER?!

(Rodrigo Maia, Deputado Federal pelo Rio de Janeiro – O Globo, 09) A decisão da Min. Rosa Weber, que determinou a suspensão do “orçamento secreto” e a adoção de medidas de transparência, tem gerado controvérsia. Lideranças parlamentares ligadas ao governo falam em crise com o STF. A decisão, contudo, limita-se a dar fiel cumprimento a uma regra aprovada pelo próprio Congresso em reformas recentes. Não pode ser interpretada como uma interferência na autonomia do Legislativo.

A LDO de 2014 já consagrava o caráter impositivo das emendas individuais. A Emenda n. 86/2015 constitucionalizou o “princípio da execução equitativa”, reafirmado na Emenda n. 100/2019. Segundo esse princípio, o governo deve observar critérios objetivos e imparciais na execução do orçamento, e as emendas apresentadas devem ser tratadas de forma igualitária e impessoal. Portanto, o próprio Congresso aprovou (nesta Legislatura) norma que proíbe o uso das emendas como uma ferramenta de gestão de coalizão parlamentar.

Podemos discutir, no mérito, se é bom ou ruim que em um sistema presidencialista com tantos partidos o governo possa lançar mão das emendas como forma de construir sua base. Mas esse debate já ocorreu, e uma decisão clara foi tomada. Não podemos fechar os olhos: o modelo instaurado pelo “orçamento secreto” não se coaduna com a Constituição, com “critérios objetivos e imparciais”, com “tratamento igualitário” de parlamentares.

Não se trata aqui de uma crítica indiscriminada às emendas individuais ou à busca dos parlamentares por mais recursos para os estados e regiões que representam, uma luta legítima. O modelo urdido pelas lideranças governistas, contudo, pretende lançar esse jogo fora dos limites constitucionais. Se o Congresso entende que precisa ter mais peso no orçamento, deve defender abertamente isso, aumentando o volume de recursos que serão alocados diretamente por decisão legislativa. As emendas, porém, devem ser empregadas de forma objetiva, impessoal e equitativa, a menos que a Constituição seja modificada. Por que a regra que valeu para o governo do PT não pode valer para o governo Bolsonaro, que se elegeu com uma crítica contumaz ao “toma-lá-dá-cá”?

A questão da transparência é outro grande problema. Ocultar os “congressistas requerentes da despesa” produz um quadro que é pior do aquele que se tinha antes de 2014. Naqueles tempos, era possível identificar e tematizar o tratamento diferenciado conferido aos parlamentares. Sabia-se quem estava recebendo, quanto, quando e para que. Agora, nem isso. O STF não pode controlar o mérito das emendas parlamentares e das alocações orçamentárias, mas pode (e deve) fiscalizar o procedimento orçamentário. O Congresso deve satisfação para a sociedade, mas, sem transparência, não há controle político pelas urnas.

O “orçamento secreto” gera, ainda, dois efeitos colaterais. Primeiro, diante elevada rigidez orçamentária, com despesas discricionárias abaixo de 7% do total, o abuso das emendas de relator desorganiza os programas estruturais de políticas públicas ao disputar recursos com eles. Num momento em que essas políticas são centrais para a rede de proteção social e para a retomada da economia, temos que privilegiar iniciativas que pensam de forma sistêmica o País. Segundo, com a proximidade das eleições, o acesso aos recursos do “orçamento secreto” gera uma vantagem competitiva para os beneficiados. Em nosso modelo eleitoral, políticos da mesma sigla acabam competindo entre si. Por isso, a cooptação de apoio no varejo, com base nas emendas de relator e à margem da ação de lideranças partidárias, estimula o racha em partidos outrora disciplinados.

Se o STF referendar a cautelar, assegurará a observância de regra duas vezes aprovada pelo Congresso, destinada a fomentar uma política parlamentar transparente e impessoal. Ela pode ser alterada no futuro, mas enquanto estiver no texto da Constituição, ninguém pode acusar o Tribunal de invadir o espaço do Legislativo.

09 de novembro de 2021

SE OS DEMOCRATAS PODEM PERDER NA VIRGÍNIA, ELES PODEM PERDER EM QUASE QUALQUER LUGAR!

(The Atlantic, 03) Havia confiança de que os democratas poderiam obter a primeira vitória do ciclo de meio de mandato e preparar o terreno para as eleições do próximo ano.

Os eleitores da Virgínia tiveram outras ideias, entregando ao republicano, executivo de private equity, Glenn Youngkin o governo um ano depois de ajudarem a entregar a presidência a Joe Biden. O triunfo do Partido Republicano repetiu a história, estendendo o hábito de décadas da Virgínia de votar contra o partido do presidente em seu primeiro ano de mandato. Youngkin derrotou o ex-governador Terry McAuliffe, que buscava retomar ao cargo que ocupou por um único mandato, de 2013 a 2017.

A derrota foi uma reviravolta para os democratas, que vinham crescendo na Virgínia por mais de uma década. Na virada do século, o “Velho Domínio” era uma fortaleza republicana. Mas depois da vitória de Barack Obama em 2008, os democratas conquistaram o estado em quatro eleições presidenciais consecutivas, conquistaram as duas cadeiras no Senado e, eventualmente, ocuparam todos os cargos estaduais. A resistência progressiva à presidência de Donald Trump ajudou os democratas a ganhar as duas câmaras do legislativo estadual em eleições sucessivas em 2017 e 2019.

Neste ano, com Joe Biden na Casa Branca, os republicanos superaram os democratas em entusiasmo e restauraram o padrão histórico em que as eleições intercalares na Virgínia servem como um alerta para o partido do presidente.

O comparecimento aumentou em todo o estado em comparação com a última eleição para governador em 2017, uma demonstração que inicialmente empolgou os democratas no início do dia. Os resultados reais serviram de lembrete de que o maior comparecimento nas eleições intercalares não beneficia mais apenas os democratas. O partido dominava constituintes que tendem a votar com menos frequência, incluindo jovens adultos, eleitores negros e hispânicos e eleitores brancos sem diploma universitário. Mas a mudança dos eleitores brancos com menores níveis de instrução para os republicanos, especialmente em condados rurais, derrubou as velhas suposições dos democratas sobre o comparecimento às urnas. Trump foi capaz de mobilizar e empolgar os ex-eleitores democratas durante suas campanhas, mas se um republicano que não concorresse explicitamente sob sua bandeira poderia fazê-los sair para votar era uma questão em aberto. Nesta noite, a resposta parecia ser um retumbante sim.

Para os democratas fora da Virgínia, os resultados também fornecem uma confirmação sombria do que as pesquisas mostram há meses: Biden não é mais um presidente popular, e os eleitores independentes em particular, por enquanto, desertaram de seu partido. Os democratas também enfrentaram uma disputa mais difícil do que esperada em Nova Jersey, onde o governador Phil Murphy tentava conter o republicano Jack Ciattarelli em sua candidatura a um segundo mandato. O fato de os resultados de Virgínia e Nova Jersey seguirem uma tendência histórica oferece pouco consolo, porque a história também sugere que a pequena maioria dos democratas no Congresso está condenada nas votações do próximo ano.

A vitória de Youngkin é ainda mais significativa dada a facilidade com que Biden venceu a Virgínia há apenas um ano, quando sua margem sobre Trump chegou a 10 pontos. Os principais condados viram enormes oscilações para a direita, colocando os republicanos em posição de varrer as três cadeiras em todo o estado e eliminar a maioria democrata na Câmara dos Delegados. O resultado pode fazer os democratas se perguntarem se eles subestimaram a potência do foco do Partido Republicano no fechamento de escolas devido ao coronavírus e como as escolas públicas ensinam as crianças sobre racismo e história americana.

McAuliffe vinha implorando aos democratas no Congresso que aprovassem pelo menos parte da agenda econômica de Biden antes da eleição para demonstrar que o partido poderia cumprir suas promessas. Mas os progressistas e moderados ainda estavam em guerra em Washington enquanto os eleitores iam às urnas, desafiando a proposta final do presidente dias antes da eleição. É difícil saber se essa falha fez alguma diferença.

A campanha de Youngkin pode servir como um modelo de como os republicanos que atuam em áreas com tendência democrata podem navegar na política de Trump. Youngkin, de alguma forma, conseguiu, se dividindo em relação à figura política mais polarizadora da época: ele não repudiou nem abraçou totalmente o ex-presidente. A tentativa de McAuliffe de centrar seu apelo final no espectro de Trump não conseguiu igualar um efeito semelhante na Califórnia, onde o governador Gavin Newsom derrotou um esforço de recall em setembro, após nacionalizar a corrida. Youngkin provou ser um contraponto muito mais difícil, no entanto, do que o apresentador de rádio conservador Larry Elder ou os outros candidatos na Califórnia.

A pior notícia para os democratas é que a coalizão de eleitores que ajudou Biden a vencer em 2020 pode estar se desintegrando. Os democratas fizeram um enorme progresso nos subúrbios da América nos últimos cinco anos, roubando homens e mulheres brancos com ensino superior do Partido Republicano. Mas os resultados desta noite sugerem que esse progresso foi apenas temporário – talvez os democratas apenas tenham alugado os subúrbios do Partido Republicano, em vez de comprá-los definitivamente.

Youngkin era um bom candidato. Ele convenceu os virginianos de que votar nele não seria tão ruim quanto apoiar Trump, diz Nick Gothard, diretor executivo do Comitê Democrático do condado de Loudoun. Os republicanos na Virgínia sentiram “uma sensação de esperança pela primeira vez”, acrescentou ele, e a eleição desta noite mostra que “eles não ficarão em silêncio”.

Ou talvez o ingrediente que faltava aos democratas na Virgínia este ano fosse simplesmente Trump. Quando The Atlantic entrevistou McAuliffe em 2019, ele não se fez de rogado em creditar ao então presidente uma grande parte do sucesso dos democratas em eleger Northam para substituí-lo como governador em 2017 e dar ao partido suas maiorias legislativas estaduais. “Não tenho como dizer quanto Trump significa para nós”, disse McAuliffe na época. “Eu gostaria de dizer que foram todas as grandes coisas que nós fizemos, mas foi Trump, Trump, Trump.” Esse pensamento claramente influenciou a estratégia de McAuliffe nas últimas semanas da corrida, já que ele e Biden praticamente desafiaram Trump a ir à Virgínia em nome de Youngkin. Mas Trump ficou longe. Ele não estava no poder, nem na cédula eleitoral, e a fórmula que os democratas usaram para ganhar o poder na Virgínia – e, no ano passado, em Washington – não os ajudou a mantê-lo.

08 de novembro

TEMPO TRABALHA A FAVOR DA TERCEIRA VIA!

(William Waack – O Estado de S. Paulo, 04) Entre os profissionais que operam na política cresce a convicção de que a candidatura de terceira via é “inevitável” e tem grandes chances contra Bolsonaro e Lula. Conversas mantidas com vários desses operadores – nenhum deles candidato e afiliados a cinco partidos diferentes – indicam uma noção de “timing” quase idêntica.

A saber: as eleições ainda não estão no centro das preocupações da grande massa do eleitorado, algo que, supõem eles, só acontecerá a partir de agosto do ano que vem. Admitem que o quadro “psicológico” dos eleitores hoje é de desânimo e resignação, mas a forte polarização entre os extremos do espectro político não faz parte do grande quadro.

É muito parecida também a linha do tempo traçada por esses mesmos operadores. Acreditam que cerca de oito a dez candidatos disputando uma vaga no centro pontuarão abaixo de dez pontos nas pesquisas até aproximadamente maio do ano que vem, quando três a quatro candidaturas surgirão com mais força. Esse número se afunila em julho, época das convenções partidárias, e um desses nomes já teria então pontuação entre 14 e 16% das intenções de voto estimuladas.

Para esses profissionais da política, uma pontuação nessa magnitude seria suficiente para tirar Bolsonaro do segundo turno, no qual todos consideram que Lula, a julgar pelo retrato do momento, tem presença garantida. E que seria muito mais fácil montar uma “aliança nacional” contra Lula do que contra Bolsonaro. Justificam esse prognóstico assumindo que a “demanda” do eleitorado seria claramente por uma candidatura de “centro-direita” (consultado, ao menos um governador de “esquerda” concorda).

Todos admitem que vai ser difícil “roubar” votos dos santuários bolsonaristas, e que Moro seria o único pré-candidato hoje que reuniria essa condição. Olham com atenção a senadora Simone Tebet, embora prefiram considerá-la uma vice ideal.

Acreditam que o tucanato terá uma disputa perigosa entre Leite e Doria, com potencial de enfraquecer o partido, e que Rodrigo Pacheco precisa subir vários patamares no desempenho televisivo. Avaliam como muito difícil que Ciro Gomes consiga transpor o cercadinho de esquerda na percepção do eleitor.

No grande cenário traçado pelos diversos operadores políticos existe mais um ponto em comum: consideram que o tempo está trabalhando a favor da candidatura de terceira via. Vem daí o uso da palavra “inevitável”. Detectam uma corrente profunda no eleitorado incapaz de associar a palavra “esperança” a Bolsonaro ou Lula. E é esse grande movimento que derrotará os dois. 

05 de novembro de 2021

COMO O TEMPO REAL VAI MUDAR AS POLÍTICAS ECONÔMICAS!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 02) Alguém realmente entende o que está acontecendo na economia mundial? A pandemia fez com que muitos analistas parecessem perdidos. Poucos previram o barril de petróleo a US$ 80, que dirá as frotas de navios contêineres esperando do lado de fora dos portos chineses e da Califórnia.

Assim que a covid-19 ganhou força em 2020, os analistas superestimaram quão alta a taxa de desemprego estaria até o final do ano. Atualmente, os preços estão subindo mais rápido do que o esperado e ninguém tem certeza se a inflação e os salários aumentarão.

Apesar de todas as suas equações e teorias, os economistas muitas vezes estão tateando no escuro, com pouquíssimas informações para escolher as políticas que maximizariam os empregos e o crescimento.

Entretanto, como relatamos recentemente, a era da perplexidade está começando a dar lugar a um melhor entendimento. O mundo está na iminência de uma revolução em tempo real na economia, conforme a qualidade e a rapidez das informações são transformadas. Grandes empresas, da Amazon à Netflix, já usam dados instantâneos para monitorar as entregas de produtos e quantas pessoas estão vidradas em “Round 6”.

A pandemia levou governos e bancos centrais a fazer experiências, desde monitorar reservas em restaurantes até rastrear pagamentos com cartão.

PRECISÃO. Os resultados ainda são rudimentares, mas à medida que os dispositivos digitais, sensores e pagamentos instantâneos se tornam onipresentes, a capacidade de observar a economia com precisão e rapidez aumentará. Isso mantém em aberto a promessa de uma melhor tomada de decisão do setor público – assim como a tentação de os governos se intrometerem.

O desejo por melhores dados econômicos não é novidade. As estimativas do Produto Interno Bruto dos Estados Unidos datam de 1934 e, inicialmente, surgiam com um atraso de 13 meses.

Nos anos 50, um jovem Alan Greenspan monitorava o tráfego de vagões de carga para calcular as primeiras estimativas da produção de aço. Desde que o Walmart foi pioneiro na gestão da cadeia de suprimentos nos anos 80, os chefes do setor privado têm visto os dados em tempo real como uma fonte de vantagem competitiva. Mas o setor público tem sido devagar em modificar seu funcionamento.

Os números oficiais monitorados pelos economistas – pense no PIB ou na taxa de empregos – chegam com atrasos de semanas ou meses e são frequentemente revistos de forma considerável. A produtividade demora anos para ser calculada com precisão. Isso é apenas um pequeno exagero para dizer que os bancos centrais estão operando às cegas.

POLÍTICAS EQUIVOCADAS. Dados ruins e atrasados podem levar a políticas equivocadas que custam milhões de empregos e trilhões de dólares em produção perdida. A crise financeira teria sido muito menos prejudicial se o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) tivesse cortado as taxas de juros para quase zero em dezembro de 2007, quando os Estados Unidos entraram em recessão, e não em dezembro de 2008, quando os economistas finalmente perceberam isso pelos números.

Dados irregulares sobre uma vasta economia informal e bancos decadentes tornaram mais difícil para os formuladores de políticas da Índia encerrar a década perdida de baixo crescimento do país. O Banco Central Europeu elevou erroneamente as taxas de juros em 2011 em meio a uma explosão temporária da inflação, levando a zona do euro de volta à recessão. O Bank of England talvez esteja prestes a cometer um erro semelhante.

A pandemia, contudo, se tornou um catalisador para mudanças. Sem tempo para esperar por pesquisas oficiais para revelar os efeitos do vírus ou dos lockdowns, governos e bancos centrais têm experimentado, rastreando celulares, pagamentos por aproximação e o uso em tempo real de motores de aeronaves.

Em vez de se limitarem aos estudos por anos escrevendo a próxima “Teoria Geral”, os economistas famosos de hoje, como Raj Chetty, da Universidade Harvard, administram laboratórios com ótimas equipes que analisam números. Empresas como o Jpmorgan Chase disponibilizaram dados valiosos sobre saldos bancários e contas de cartão de crédito, ajudando a revelar se as pessoas estão gastando ou guardando dinheiro.

Essas tendências se intensificarão conforme a tecnologia se espalha pela economia. Uma parcela maior das despesas está mudando para o online e as transações estão sendo processadas mais rápido. Os pagamentos instantâneos cresceram 41% em 2020, de acordo com a Mckinsey, empresa de consultoria empresarial (a Índia registrou 25,6 bilhões desse tipo de transação).

Mais máquinas e objetos estão sendo equipados com sensores, incluindo contêineres individuais, o que pode ajudar quando houver transtornos nas cadeias de suprimentos. As “govcoins”, ou moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDC, na sigla em inglês), que a China já está testando e mais de 50 países estão considerando usar, talvez em breve ofereçam uma mina de ouro de informações em tempo real a respeito de como a economia funciona.

DECISÃO FACILITADA. Os dados em tempo real reduziriam o risco de políticas equivocadas – seria mais fácil julgar, digamos, se uma queda na atividade estaria se transformando em uma recessão. E os mecanismos que os governos podem utilizar também melhorarão. Os banqueiros centrais calculam que leva 18 meses ou mais para que uma mudança nas taxas de juros tenha efeito completo. Mas Hong Kong está testando ajudas financeiras em carteiras digitais que expiram se não
forem gastas de modo rápido.

As CBDCS talvez permitam que as taxas de juros caiam profundamente. Bons dados durante as crises podem permitir que a ajuda seja direcionada com precisão; imagine empréstimos apenas para empresas com balanços robustos, mas com um problema de liquidez temporário. Em vez de imprudentes pagamentos de auxílios universais realizados por meio de burocracias da seguridade social, os necessitados poderiam se beneficiar com pagamentos instantâneos se perdessem o emprego, pagos em carteiras digitais sem qualquer papelada.

A revolução em tempo real promete tornar as decisões econômicas mais precisas, transparentes e baseadas em regras. Mas também apresenta perigos. Novos indicadores podem ser mal interpretados: uma recessão global está começando ou é apenas a Uber perdendo participação no mercado? Eles não são tão representativos ou isentos de parcialidades quanto as pesquisas meticulosas conduzidas por agências estatísticas.

As grandes empresas podem acumular dados, o que lhes dá uma vantagem indevida. Empresas privadas como o Facebook, que lançou uma carteira digital, talvez um dia tenham maior clareza a respeito dos gastos dos consumidores que o Fed.

O maior perigo é o excesso de confiança. Com um panóptico da economia, será tentador para os políticos e autoridades acreditar que podem ver um futuro distante ou moldar a sociedade de acordo com suas preferências e favorecer grupos específicos. Este é o sonho do Partido Comunista da China, que visa a se envolver em um tipo de economia planificada digital.

Na verdade, nenhuma quantidade de dados pode prever o futuro com segurança. As economias dinâmicas e incrivelmente difíceis de se entender não dependem do Big Brother, mas do comportamento espontâneo de milhões de empresas independentes e consumidores. A economia instantânea não é sobre clarividência ou onisciência. Pelo contrário, sua promessa é trivial, mas transformadora: tomar decisões melhores, mais racionais e no momento certo.

04 de novembro de 2021

A MARCHA À RÉ LATINO-AMERICANA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 31) A vida piorou, as desigualdades voltaram a aumentar e tudo o que se ganhou nas duas últimas décadas está em risco. A América Latina pode ter iniciado uma rota que, se percorrida até o fim, a levará de volta ao século 20 em termos de bem-estar social. O ônus que a pandemia impôs à população mundial parece maior para quem vive na região. É muito pesado o custo humano da pandemia mostrado no estudo Como vai a vida na América Latina?, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Em alguns países, ações ou inação de governos agravaram a situação que se deteriorava por causa da covid-19, e mesmo antes de sua chegada. No caso do Brasil, incompetência, irresponsabilidade, insensibilidade e, sobretudo, indiferença em relação aos mais carentes caracterizaram a ação do governo Bolsonaro, de longe o melhor exemplo de eficiência para piorar o que já vai mal.

Pode-se estar assistindo a uma dramática mudança na região. Nas duas primeiras décadas deste século, houve avanços notáveis no bem-estar das pessoas que vivem na América Latina. Em média, lembra a OCDE, o gasto com consumo nos lares aumentou cerca de um terço entre 2000 e 2019. A esperança de vida aumentou, da mesma forma que subiram os índices de escolaridade e o número das habitações com acesso à água potável.

O número de pessoas em situação de pobreza absoluta (renda insuficiente para satisfazer suas necessidades de alimentação e moradia) era de 1 para 3 em 2006 (cerca de 33% do total) e melhorou substancialmente, chegando a 1 para 5 em 2019 (20%). A proporção da população com ensino médio completo passou de 34% para 46%.

A América Latina deixara de ser o mau exemplo sempre citado nas organizações econômicas e financeiras internacionais. Desde meados da década passada, porém, o avanço dos indicadores de qualidade de vida e de bem-estar perdia velocidade ou estacava. O fim do auge da alta dos preços das commodities é apontado como o responsável pela mudança de tendência.

A pandemia acentuou esse processo. A queda dos índices de satisfação com a qualidade de vida foi mais acentuada na América Latina do que nos países da OCDE. E a redução foi mais notada entre as pessoas vulneráveis: mulheres, jovens, população rural e pessoas com menor nível de instrução.

Os números que mostram a piora do quadro social são expressivos. Por causa da crise, mais 22 milhões de pessoas passaram a fazer parte das que estão abaixo da linha de pobreza na região; no total, em 2020, eram 209 milhões de latino-americanos nessa condição.

Medidas necessárias para combater a pandemia, como o isolamento social, foram especialmente duras para os trabalhadores informais e de renda mais baixa. Os informais formam um grande grupo. Estima-se que 38% dos trabalhadores da região não disponham de nenhum tipo de proteção social.

O fechamento das escolas exigiu soluções como ensino a distância, mas 46% das crianças de 5 a 12 anos vivem em lares sem conectividade e menos de 14% dos estudantes pobres do ensino fundamental dispõem de computador ligado à internet. A pandemia aumentou exponencialmente a demanda por serviços de saúde física e mental, mas cerca de 25% da população latino-americana não tinha acesso a serviços essenciais de saúde quando a covid-19 foi detectada na região.

Esse cenário e as tendências de piora que ele pode estar indicando exigem não apenas a retomada do crescimento econômico, que assegure mais receitas para o setor público e mais renda para as empresas e as famílias. Exigirão dos governos programas sociais voltados para a busca e melhora do bem-estar de suas populações. Indicadores como renda e consumo, trabalho e qualidade do emprego, habitação e saúde, conhecimentos e capacidade profissional, segurança e conciliação entre vida pessoal e profissional, entre outros, precisam ser levados em conta na montagem, execução e aferição de programas com esses objetivos.

No caso brasileiro, infelizmente, nada se pode esperar nessa direção de um governo que parece dedicar profundo desprezo pelos dramas vividos pela população

03 de novembro de 2021

X DO POPULISMO!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 13/11/2010) Há um paralelismo entre a política e a economia argentina e brasileira em relação às suas especificidades e ao tempo em que ocorrem. Foi assim com Getulio e Perón, com Frondizi e JK, com os militares, com Collor e Menem, Alfonsín e FHC, com os planos Austral e Cruzado, Primavera e Verão e agora com Kirchner e Lula. As análises de ambas as dinâmicas políticas ajudam a entendê-las. E a preveni-las, se for o caso.

Em sua coluna (“La Nación”), na semana passada, o politólogo Natalio Botana analisa os desafios que virão com a morte de Kirchner. Para unificar o peronismo, só com um líder forte. Afinal são quatro peronismos, como sugere.

A semelhança com o PT tem raízes e história. A base do peronismo é uma liderança popular, onicompreensiva. Seus ciclos sempre dependeram dessas presenças, com Evita e Perón, Menem e depois Kirchner. Na ausência de líder forte, o peronismo perdeu o poder.

Na Argentina, diz, esse tipo de liderança nunca se desenvolveu fora do peronismo. Aliás, como aqui, entendendo o trabalhismo de ontem e de hoje como linhas contínuas.

Diz Botana que, “para isso, as fronteiras do peronismo devem ser laxas, segundo as circunstâncias”. Com cada novo líder, a trama se atualiza e vêm novos registros de concentração do poder. Perón, Menem e Kirchner representaram interesses distintos, mas sempre com a mesma apetência hegemônica.

“Quando o êxito está ao alcance da mão, o peronismo é vertical. O paradoxo é que essa concentração se dá com uma base plural: é uno na chefia e plural quanto à sua conformação sociológica”.

São quatro suas tendências internas: a política, a sindical, a revolucionária surgida nos anos 70 e os movimentos sociais mobilizadores ativados nas crises. Kirchner disciplinou sua base parlamentar e os governadores através do caixa, diz Botana. Sublinha que ele foi negociador com o sindicalismo, que tem, aliás, base financeira própria, como aqui.

Com os movimentos sociais, negocia, coopta, mobiliza e desmobiliza, neste caso via políticas sociais. Finalmente, o “setentismo” (ex-revolucionários), “com o qual agregou uma política de reparação histórica. Esses se sentiam como vanguarda que abria uma nova história alimentada com memórias excludentes”.

E conclui Botana: “Dessa forma, sem uma liderança carismática, essas quatro linhas (política, sindical, setentista e movimentos sociais) terão que se cruzar, porque são difíceis de conciliarem-se e exigem a liderança forte como signo de identidade. Mas o pós-líder forte arrasta a complicação dos desengajamentos que ele mesmo produz”.

Não será diferente aqui. Líder fora do poder não é forte. Só se fosse de oposição.

01 de novembro de 2021

O QUE ACONTECERÁ COM O ‘CLÃ DO GOLFO’?!

(O Estado de S. Paulo, 25) A prisão de “Otoniel”, o traficante de drogas mais procurado da Colômbia, abre várias incógnitas sobre o futuro do grupo criminoso que liderava, o Clã do Golfo, e sobre a situação da segurança nas regiões onde atua. Apesar de reconhecer o sucesso do feito, a “prisão não muda a guerra contra o narcotráfico, não move uma agulha”, diz o analista Sergio Guzmán, diretor da Colombia Risk, consultoria de risco político.

Capturar traficantes não resolve a questão, porque uma luta efetiva contra o tráfico deve estar muito focada no controle da demanda por drogas no mundo, segundo discurso destacado pelo secretário de Estado americano, Antony Blinken, em visita à Colômbia.

Otoniel era até ontem o líder do Clã do Golfo ou Autodefensas Gaitanistas de Colombia (AGC), grupo dedicado ao narcotráfico e herdeiro dos paramilitares Autodefensas Unidas de Colômbia (AUC), que atualmente conta com cerca de 2.000 soldados e presença em mais de 200 municípios.

Com a sua queda, “desaparece a hegemonia de uma família, os Úsuga, fundadores e chefes do Clã”, explicou à Efe o diretor da Fundação para a Paz e Reconciliação (Pares), León Valencia. Mas não necessariamente significa o fim desse grupo criminoso, o maior do país.

O AGC têm uma influência no noroeste do país, especialmente no norte de Antioquia e em Chocó, no Pacífico. Mas suas redes se estendem até o sudoeste, sempre ligadas a corredores de tráfico de drogas e outros negócios ilegais.

Pode haver dois cenários principais, um onde o grupo ficaria dividido e disperso e outro onde alguns de seus subordinados, certamente Jobani de Jesús Ávila, conhecido como “Chiquito Malo”, “tome o controle e mantenha a unidade do clã”, explica Valencia.

O analista acredita mais na primeira opção. O diretor do Colombia Risk prevê que três coisas possam acontecer: uma luta interna para saber quem assume a liderança do grupo e “talvez uma divisão desse cartel”. Outra hipótese é o aumento da violência e o assassinato de policiais, como toda vez que um líder do AGC é capturado ou morto. Finalmente, há o caminho que abre as porteiras aos cartéis mexicanos na Colômbia.

Otoniel era um “parceiro” dos mexicanos, mas sua saída pode ser uma oportunidade para os cartéis aprofundarem seu controle vertical sobre o mercado de drogas no país.

29 de outubro de 2021

A EXPANSÃO DO IMPÉRIO DO PÓ!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 19) “O‘Narcosul’, o cartel do PCC, é a organização criminosa que mais cresce hoje no mundo”, constatou o procurador Márcio Sérgio Christino. É mais um recorde infame para um país cronicamente devastado pela violência e a corrupção.

Como mostrou reportagem do Estado, a Bolívia – em razão de sua localização e das dificuldades de colaboração internacional com a polícia local, em grande parte corrompida pelos criminosos – é o santuário desse “Narcosul” (corruptela de Mercosul), que lá mantém empresas de fachada e frotas de aeronaves e caminhões.

Em uma década, o Brasil, historicamente o maior mercado consumidor na América do Sul, se transformou em um dos principais fornecedores para o mundo. Segundo a ONU, o País responde por 7% das apreensões globais, atrás apenas da Colômbia (34%) e dos EUA (18%).

Entre 1995 e 2004 eram apreendidas em média 6 toneladas de cocaína por ano no Brasil. Em pouco tempo as suas principais quadrilhas – o PCC, o Comando Vermelho e a Família do Norte – passaram a orquestrar o transporte transatlântico de cocaína, distribuída pelas máfias do Marrocos, Leste Europeu e Itália. Nos últimos seis anos a média anual de apreensões no Brasil foi de mais de 50 toneladas.

Somando-se à coca da Colômbia, a produção peruana e boliviana explodiu. Trafegando a cocaína pela rota amazônica até os portos de Suape e Natal, ou pelo Sudeste até Santos, o Brasil está se tornando para a Europa o que o México é para os EUA. Hoje o Brasil oscila entre a primeira e a segunda principal origem nos entrepostos europeus.

Entre 2015 e 2019 a cocaína apreendida na África (de onde vai para a Europa e outras regiões) saltou de 1,2 tonelada para 12,9 toneladas. A principal origem é o Brasil, respondendo por quase 50% do total. O País também é a principal origem para a Ásia e a quarta para a Oceania.

A expansão do narcotráfico brasileiro tem graves efeitos colaterais, como as chacinas em presídios resultantes das disputas das facções, ou os cada vez mais frequentes mega-assaltos (o “novo cangaço”), com toda probabilidade financiados pelo PCC. As facções estão ampliando suas estruturas de lavagem de dinheiro (facilitadas pelo mercado de criptomoedas), cooptando negócios e se infiltrando na máquina pública.

O mais surreal é que essas organizações foram gestadas justamente nos locais projetados para erradicálas: as penitenciárias. Os governos estaduais têm investido contra as finanças das facções e isolado seus líderes em presídios de segurança máxima. Mas claramente sua nacionalização e sua internacionalização estão superando a repressão. O Sistema

Único de Segurança Pública, criado há três anos para promover uma repactuação federativa, foi totalmente negligenciado pelo governo.

Já nem é mais o caso de cobrar providências para evitar que a situação saia do controle, pois aparentemente já saiu; agora, urge uma enérgica e inteligente ação concertada, dentro e fora do País, para impedir que o “Narcosul” se estabeleça definitivamente como um Estado transnacional, a ditar os termos da paz no continente. 

28 de outubro de 2021

A ESPERANÇA DA DIREITA DA ESPANHA!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 24) Quando os donos de bares e cafés de Madri quiseram homenagear a líder regional, Isabel Díaz Ayuso, depois de passados os piores meses da pandemia, muitos ofereceram pratos “a lo Ayuso, con dos huevos”, ou com um par de ovos, uma referência à coragem atribuída a ela.

Isabel está na crista de uma onda. Em 2019 foi eleita presidente da região de Madri (incluindo a cidade e os municípios vizinhos, com uma população total de 6,6 milhões de pessoas), representando o Partido Popular, de centro-direita.

Um ano depois ela enfrentou uma brutal primeira onda do coronavírus, e foi muito criticada pelo impacto da doença em Madri. Independentemente disso, no decorrer do ano seguinte, ela lutou para manter abertos os estabelecimentos da cidade, ganhando a gratidão de madrilenhos como os donos desses bares. Hoje, o rosto dela é visto em cartazes nas lojas (“Somos todos Ayuso”), e até em pares de meias que a retratam como santa católica.

Mais importante, em uma eleição inesperada em maio (depois de romper com o parceiro de coalizão), ela obteve uma segunda vitória. Os socialistas, que comandam o governo nacional, ficaram em terceiro. Pablo Iglesias, líder do Podemos, partido de esquerda radical que governa o país em parceria com os socialistas, optou pelo risco de abandonar o gabinete para disputar a eleição de Madri. Quinto colocado, o resultado o fez abandonar a política.

A vitória de Isabel veio com um slogan simples a ponto de beirar o tosco: “Liberdade ou comunismo”. Mas a liberdade é um tema em que ela insiste repetidamente. “Madri é liberdade, ou então não seria Madri”, diz ela à reportagem, retomando este ponto independentemente da pergunta feita. Madri prospera quando as pessoas são deixadas em paz para cuidar de seus negócios, fazer o que quiserem com sua propriedade e viver como quiserem. Indagada a respeito do que o governo pode fazer além de sair do caminho, sua resposta foi dar à população mais liberdade de escolha, por exemplo, com relação ao horário de trabalho.

Isso se reflete na política econômica dela. Seu principal assessor econômico, Javier Fernández-Lasquetty, atribui a cortes nos impostos da ordem de 53 bilhões de euros (R$ 348 bilhões) desde 2004 o crédito por ajudar a impulsionar o crescimento de Madri, antes lento, para acima da média nacional. Madri tem agora a maior economia regional da Espanha, à frente da Catalunha. No início de setembro, ela aboliu o último imposto independente da região, tornando-a a única área no arranjo fiscal habitual da Espanha a abrir mão de cobrar tais taxas. Ela elogia a rivalidade econômica entre as regiões espanholas: “Quando é que a concorrência foi algo ruim?”

Isso atraiu críticas. O socialista Ximo Puig, presidente de Valência, queixou-se recentemente que a posição de Madri como capital trazia à cidade empregos que pouco teriam a ver com as iniciativas do governo local, permitindo a prática de um “dumping fiscal”. Isabel retruca que “este é o discurso dos políticos que cruzam os braços e nada fazem”. Observadores neutros destacam que Madri é a capital desde o século 16, enquanto sua ascensão econômica é muito mais recente.

O partido parecia não saber ao certo como lidar com sua estrela em ascensão. Quando ela disse que se candidataria à presidência do PP em Madri, a liderança pareceu surpresa, dizendo que o partido deveria ser liderado por alguém que não tivesse um governo para administrar. Isabel respondeu: “Sou mulher, consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo” (em todas as outras regiões governadas pelo PP, os cargos são desempenhados pela mesma pessoa). A imprensa a colocou contra Pablo Casado, líder nacional do PP, em uma briga trivial que durou semanas.

Os ataques de Casado ao primeiro-ministro, Pedro Sánchez, estão se tornando previsíveis. O partido dele lidera em muitas pesquisas de opinião, mas o próprio Casado tem resultado ruim. Em comparação, Isabel é espontânea e autêntica, o que significa que ganha as manchetes, nem que seja cometendo ocasionais gafes.

Indagada a respeito da proposta de Sánchez para proibir a prostituição, sua crítica ao governo incluiu a frase “Tudo que eles querem é destruir empregos”. Mas seu momento sob os holofotes levou a especulações quanto ao seu futuro nacional.

Durante algum tempo, ela pouco fez para abafá-las. Abriu um escritório em Madri cuja missão era explorar a difusão global do espanhol para estimular os negócios, algo mais apropriado para o governo nacional. Suas constantes incursões em âmbitos que escapam à alçada de uma liderança regional, e uma viagem a Washington e Nova York para se reunir com políticos e representantes de centros de estudos estratégicos no auge da briga interna do PP, estimularam aos comentários a respeito de suas ambições.

Mas, na recente conferência do partido realizada em Valência, ela fez questão de agradecer a Casado por ajudá-la na carreira, dizendo: “Meu lugar é Madri”. Isso não deve por fim à especulação. Diferentemente de alguns dos barões do partido, ela vem da classe média e chegou muito longe.

Os críticos que apontam para o fato de ela não ser uma intelectual reconhecem mesmo assim sua astúcia. Outros dizem que não foi brilhantismo, e sim sorte o fato de ela partilhar do desejo dos madrilenhos de recusar as ordens de distanciamento em casa na pandemia. De apenas 43 anos, sem filhos, sem filiação religiosa, solteira (o que mostra “a falta de interessados no mercado”, brincou ela) e mostrando até uma tatuagem no antebraço, ela está longe de ser uma liderança óbvia para o tradicional partido conservador da Espanha.

Mas ela se declara orgulhosamente uma liberal, e não uma conservadora, dizendo que o PP tem espaço para ambos. Madri é o lugar dela por hora, mas os espanhóis estão acompanhando para ver se o seu estilo pode fazê-la crescer ainda mais.

27 de outubro de 2021

CENTRO TEM DE MIRAR BOLSONARO POR VAGA NO 2º TURNO, DIZ RODRIGO MAIA!

(Folha de SP, 22) Ex-presidente da Câmara dos Deputados e atualmente secretário do governo João Doria (PSDB), Rodrigo Maia, 51, diz que o alvo prioritário da terceira via por uma vaga no segundo turno tem de ser o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mais do que Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“O adversário é o Bolsonaro, que entrou no nosso eleitor”, diz Maia, que se licenciou do mandato parlamentar e atualmente é responsável pela pasta de Projetos e Ações Estratégicas em São Paulo.

Segundo ele, a “orgia fiscal” do atual governo, representada pela tentativa de furar o teto de gastos, vai causar inflação e aumento de juros, anulando qualquer efeito político da elevação do Bolsa Família.
“Quem está na Crefisa [empresa de crédito pessoal] e no agiota não é o rico. Quem está no mercado paralelo de crédito é o pobre. Ele que vai acabar sentindo o aumento da inflação e dos juros”, afirma.

Para o secretário, isso vai derrubar a popularidade de Bolsonaro, abrindo caminho para uma candidatura de centro-direita, que ele crê será a de Doria.

No governo paulista, Maia participa da elaboração de projetos como a privatização da Sabesp e o novo trem de passageiros ligando a capital a Campinas.

Expulso do DEM, ele ainda define para qual partido irá, mas já decidiu que disputará novo mandato de deputado federal pelo Rio.

Para Maia, o eleitor fluminense não vai estranhar sua temporada paulista. “Vim para São Paulo fazer política nacional. É óbvio que o carioca, que sempre teve uma visão importante de Brasil, vai compreender.”

• Como o sr. vê o novo Bolsa Família, e a possibilidade de que fure o teto de gastos?

RODRIGO MAIA – O teto já acabou. Isso é a pá de cal. O que não estão entendendo é que o limite de gasto tem relação direta com a vontade da sociedade de não pagar mais impostos. Se você continuar a aumentar despesa acima da inflação, vai ter que arrecadar dinheiro.

• E o efeito na popularidade do Bolsonaro, qual vai ser?

RM – A aliança do [Paulo] Guedes com o Arthur Lira [presidente da Câmara] está copiando a mesma equação da Dilma [Rousseff] em 2014. É uma orgia fiscal. Quando fizemos o auxílio emergencial em 2020, com valor muito alto, e com o governo ampliando para mais gente do que em tese seria necessário, tínhamos inflação de 1%, 2%, 3%. Estamos agora com 10%.

Se você amplia o cenário de desorganização fiscal, está dizendo que vamos perder o controle da inflação. Quem vai pagar essa conta é o próprio beneficiário do Bolsa Família. O câmbio desvaloriza mais, o botijão de gás fica mais caro, o diesel, o alimento. Está dando com uma mão e tirando com a outra.

• Como o sr. vê o futuro da agenda de reformas no Congresso?

RM – Ele [Bolsonaro] fez a emenda de relator de R$ 15 bi. Aprovou a PEC [emenda] Emergencial sem nenhum corte de despesas. Aprovou a MP da Eletrobras com o maior jabuti da história, R$ 83 bilhões que a sociedade terá de pagar para a construção de termelétricas.

O projeto do Imposto de Renda é um desastre. Que projeto o governo aprovou até agora que foi positivo para a sociedade? O presidente da Câmara não entende a importância do teto de gastos e da Lei de Responsabilidade Fiscal. A sociedade não quer pagar mais impostos.

• O sr. não vê a possibilidade de aprovação de nenhuma nova reforma nesse governo?

RM – Os textos que estou vendo ir para a Câmara na área econômica estão gerando mais insegurança, e do ponto de vista institucional estão desorganizando a sociedade. Aquela PEC que foi votada logo depois da prisão do [deputado] Daniel Silveira não foi aprovada, mas era para enfraquecer o Supremo. O novo Código Eleitoral era para enfraquecer o TSE. Há uma nítida linha de ação de orgia fiscal de um lado e enfraquecimento de instituições de outro.

• A proposta da mudança na composição do CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] o sr. coloca na mesma linha?

RM – Não conheço o texto. Tirar a autonomia do Ministério Público pode ser grave. Mas da forma como trabalham hoje, são os únicos servidores públicos do Brasil que ninguém controla. Não sou contra que se crie uma regra em que o Ministério Público seja efetivamente fiscalizado. O Ministério Público surfa de forma paralela ao resto dos servidores. Se essa PEC é o melhor caminho não sei, porque não conheço a redação.

• As últimas manifestações de rua contra Bolsonaro foram pequenas, e a eleição está a menos de um ano. É o caso de desistir do impeachment e focar em tirar o presidente pelo voto?

RM – Quando eu era presidente da Câmara, não havia voto para o impeachment. Acho que hoje também não temos. Os deputados estão olhando suas eleições, então as emendas passam a ter um peso cada vez maior.

O governo não consegue viabilizar a execução de todos os recursos, gera insatisfação. Mas não acho que haja clima majoritário, de 342 votos, para se avançar no impeachment. Não acho que o presidente Arthur vá encaminhar um tema desses, pelas condições em que foi eleito, com apoio do presidente.

• A oposição deveria continuar fazendo manifestações, ou melhor virar essa página?

RM – É importante que os partidos continuem mobilizados. Mas mais grave é a posição dos que se dizem da terceira via, porque estão 100% na base do governo. O Bruno Araújo [presidente do PSDB] diz que os deputados são oposição, mas continuam votando com o Bolsonaro. O discurso de que a pauta econômica é a nossa pauta não é mais verdadeiro. A pauta econômica deixou de ser aquilo que a gente historicamente vem defendendo desde o governo Fernando Henrique.

• A fragmentação do campo entre Lula e Bolsonaro é a morte da terceira via?

RM – Não, estou convencido que haverá um nome, que eu acho que é o Doria. A terceira via tem uma chance, que é viabilizar um nome no Sudeste. O Sul e o Centro-Oeste estão contaminados pelo bolsonarismo, e o Nordeste pelo lulismo.

O Sudeste é a região em que você tem menos contaminação pela polarização. A polarização comanda a agenda nacional ainda, e o Doria não é visto como candidato a presidente, apesar de a avaliação dele estar melhorando muito de janeiro para cá. Janeiro era sofrível, hoje é intermediária.

• Se o candidato for Eduardo Leite é mais difícil?

RM – Muito mais difícil. São dois grandes governadores. Claro que o tempo de vida, experiência, para um cargo como presidente conta muito. Não que um jovem não posso ser presidente, até porque ele [Leite] tem experiência. Mas ele vai sair de um estado bolsonarista, e quem não é bolsonarista lá é petista.

O Doria está num estado que nunca foi bolsonarista, aqui Bolsonaro foi uma opção [em 2018]. Nas pesquisas, hoje São Paulo é um estado aberto. Claro que tendo um governo bem avaliado em São Paulo, e o governo Doria vem melhorando, a probabilidade de se viabilizar no Sudeste é muito maior do que a do Eduardo Leite.

• Quem na sua avaliação é mais fácil de desalojar do segundo turno, Lula ou Bolsonaro?

RM – Só tem um para sair do segundo turno, que é o Bolsonaro. O candidato que está no nosso campo da centro-direita bate no Lula para mostrar que é diferente, mas o adversário é o Bolsonaro, que entrou no nosso eleitor.

• Lula vai tentar fazer incursões nesse eleitorado de centro-direita, não?

RM – Claro. A eleição está montada hoje para o Lula ganhar. Se você desorganizar o processo, acontece o que eu imagino, que é essa orgia fiscal inviabilizar o Bolsonaro. Quem está na Crefisa e no agiota não é o rico. Quem está no mercado paralelo de crédito é o pobre. Ele que vai acabar sentindo o aumento da inflação e dos juros.

• No governo Lula, o sr. presidia o DEM, era um dos principais líderes da oposição. O sr. acha que ele vai se apresentar com qual figurino na campanha?

RM – A gente vai ter que esperar, porque na hora que o [ex-ministro da Fazenda] Nelson Barbosa fala em tese pelo PT, você está olhando uma política mais parecida com a Dilma, mais intervencionista no Estado, na economia. O Lula dá sinais de que vai montar uma aliança parecida com 2002.

No primeiro governo foi muito difícil combater, porque ele montou com o [Antonio] Palocci uma equipe econômica muito mais convergente com o que a gente pensava do que o Paulo Guedes. Marcos Lisboa, Bernard Appy, Joaquim Levy [integrantes da equipe econômica de Lula] têm muito mais convergência com a gente. Ali tem uma cabeça do papel do Estado em relação à parte social, que no caso dos radicais liberais não tem. O Guedes não tem pensamento, a gente foi enganado. Ele não é liberal, não é nada, é um animador de auditório.

• Se o Lula vier com essa roupagem centrista, amigo do mercado, não fica mais complicado para o Doria se diferenciar?

RM – Claro que quanto mais forte a terceira via vier, mais o Lula vai ter que caminhar para o centro. Se o Bolsonaro seguir sendo o adversário dele, Lula vai poder jogar parado, não precisa se comprometer com ninguém.

Se o Bolsonaro começa a se enfraquecer, como eu acho que vai acontecer, e caminhar para menos de 20% das intenções de voto, naturalmente alguém vai ocupar o espaço, porque existe o antipetismo ainda.

• E qual espaço o Ciro Gomes pode ter?

RM – O Ciro é um candidato forte. Eu tentei levar o DEM a apoiá-lo. Quando empresários me perguntavam se eu estava maluco, eu dizia que precisávamos construir uma agenda com o Ciro na economia, porque no social não ia ter muita diferença.

O crescimento do Lula gera um desafio para o Ciro. O problema dele é por onde entra nesse jogo. Está numa estratégia de enfrentamento ao Lula. Como ele fica com o voto da esquerda? Não acho que ele vá ter muito espaço nos eleitores que deixaram Bolsonaro. Se tivesse, já tinha entrado em 2018. Vai ter que entrar num espaço mais à esquerda, e num campo nosso que respeita ele, como é o meu caso. Acho que a grande aliança para o Brasil seria do PSDB com o PDT.

• Mas realisticamente é muito difícil. 

RM – Muito. Esse Brasil dividido vai precisar de um pacto nacional em 2023, porque quem ganhar a eleição vai receber o país numa situação desastrosa, uma catástrofe de indicadores econômicos, sociais, que vão estar piores do que estão hoje. A pobreza vai estar pior, o desemprego, a taxa de juros vai estar mais alta, contaminando milhões de brasileiros endividados.

• Qual seu projeto para 2022?

RM – Deputado federal pelo Rio de Janeiro. Sobre o partido ainda vou aguardar para decidir.

• O seu eleitor vai entender essa sua fase paulistanizada?

RM – Não vejo nenhum problema em ser convidado para ser secretário num tema que sempre gostei, que é a parte de concessões, privatizações, na principal economia do Brasil. Para o Rio de Janeiro, é uma demonstração de que sou um quadro importante da política nacional. É óbvio que o carioca, que sempre teve uma visão importante de Brasil, vai compreender.

26 de outubro de 2021

UMA MULHER PRESIDENTE!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 25/12/2010) Em 2010, cumpriram-se os 250 anos do nascimento da primeira mulher presidente no Brasil, Bárbara de Alencar.

Ela nasceu em Exu (PE), em 1760. Mudou-se para o Crato (CE) depois do casamento, em 1782, com José Gonçalves dos Santos, comerciante de tecidos naquela vila, com quem teve quatro filhos.

Foi a primeira mulher a se envolver, para valer, em política no Brasil -durante a revolução pernambucana de 1817, com vistas à independência e à República. O Ceará e outras províncias limítrofes aderiram -no Ceará, especialmente na região do Cariri.

Bárbara de Alencar liderou esse movimento no Crato, ampliando a revolução em Pernambuco. Ela declara a independência e proclama a República do Crato, assumindo a presidência. Com a derrota em Pernambuco, a rebeldia nas demais províncias foi sendo desmontada pelas forças do Conde dos Arcos, governador da Bahia, a mando de dom João 6º.

Bárbara foi presa em Fortaleza. Por quatro anos, foi mantida presa em Fortaleza, Recife e Salvador. Ganha a liberdade no ato de anistia geral de novembro de 1821. Teve quatro filhos, três homens.

Em 1824, outra revolução em Pernambuco: a Confederação do Equador, liderada por Frei Caneca. No âmbito desse movimento, no Ceará, Crato, Icó e Quixeramobim aderiram.

Seus três filhos homens se envolveram. Em 26 de agosto de 1824, foi declarada a República do Ceará e designado presidente Tristão de Alencar, um dos filhos de Bárbara.

A repressão das forças imperiais culminou com a morte de dois de seus filhos: Tristão e Carlos. José Martiniano de Alencar sobreviveu e, mais tarde, terminou se credenciando como deputado às cortes constitucionais de Lisboa.

Foi governador do Ceará e senador. Seu filho José de Alencar foi escritor, poeta e fundador do indianismo com seu “O Guarani”.

A força da memória de Bárbara de Alencar ressurgiu em 1869, na escolha de senador em uma lista tríplice. Os conselheiros de dom Pedro 2º sugeriram o veto a José de Alencar, apesar de ele ter sido ministro da Justiça pouco tempo antes. O temor era que as ideias republicanas que começavam a ser reativadas pudessem coincidir com o DNA de José de Alencar.

Neste ano de 2010, em que o Brasil registra e comemora a assunção de uma mulher ao cargo de presidente da República, faltaram as comemorações em memória de Bárbara de Alencar, primeira mulher política brasileira, primeira presidente de República, do Crato, e mãe de outro presidente de República, do Ceará.

E, quem sabe, ancestral de outro cearense Alencar presidente: Humberto. A conferir.

20 de outubro de 2021

VOTAR ‘BEM’ E VOTAR ‘MAL’!

(Mario Vargas Llosa – El País/O Estado de S. Paulo, 17) Os votos foram inventados nas eleições livres, para defender a democracia; os ditadores não precisam de eleições, já que as fabricam conforme seu gosto. De uma declaração sobre o “bem” votar, um comentarista da televisão deduziu que eu me referia à eleição que perdi em 1990: os que votaram “bem” votaram em mim e os que votaram “mal”, não.

Não havia pensado nisso, mas, por essas e outras críticas – muitas, na verdade –, deduzi que me havia equivocado. Tinha de explicar isso melhor, não para evitar as críticas, mas dar-lhes fundamento, se tivessem.

A coisa me parece muito simples: votar “bem” é votar pela democracia; votar “mal” é votar contra ela. Isso é sempre tão claro e evidente? Não, com certeza. Às vezes, sabê-lo não é tão fácil a princípio; somente com o passar do tempo fica claro quando se votou bem ou mal. Por exemplo, os ingleses – um povo que raras vezes se equivoca neste assunto – agora estão descobrindo que votar a favor do Brexit, contra a União Europeia, foi um erro e a democracia mais antiga do mundo poderá pagar caro por isso.

Eu pensava, quando falei isso, sobretudo no caso da Venezuela. Ainda estava vivo o comandante Chávez. Eu ia com frequência a Caracas, onde tinha muitos amigos. Fiquei assustado que houvesse tantos – entre eles, vários empresários – que, entusiasmados, se preparavam para votar nele. Este os subornava com suas promessas de não alterar em nada o sistema que imperava no país e, além disso, melhorar as relações do Estado com os empresários.

Estes pareciam acreditar nele. “Havia muita corrupção com Carlos Andrés Pérez”, ouvi dizerem. “Mas com o comandante Chávez haverá dez vezes mais corrupção, a imprensa será censurada e ninguém poderá dizer isso. Ademais, só haverá eleições manipuladas”. “Já se verá.” E se viu, pois foi esta a última vez que os venezuelanos tiveram eleições livres.

Votar “mal” é fechar as portas para a democracia, como foi feito no Peru nas últimas eleições, isso se for verdade que elas foram limpas, o que muitos colocamos em dúvida. Enquanto isso, o dólar sobe e quem pode saca suas economias ou investimentos e os leva para o estrangeiro; os cofres públicos se veem cada dia mais órfãos de recursos. Talvez não se chegue ao que pretendeu o partido Perú Libre (que apresentou Castillo como candidato à presidência, pois seu líder, Vladimir Cerrón, foi condenado pelo Judiciário por acusações de roubar o Estado), que o Peru integre o grupo que reúne Venezuela, Cuba e Nicarágua. Mas, em todo caso, a situação do país é crítica e poderia ocorrer um golpe de Estado em que a ditadura militar ficasse no poder 10 ou 20 anos, como ocorreu outras vezes.

Isso não é votar “mal”, contra a liberdade e o progresso? Não seria melhor que os alemães não tivessem se entregado de corpo e alma a Hitler nas eleições de 1932, com os milhões de mortos da 2.ª Guerra que derivaram da convicção que tinha o líder nazista de derrotar a URSS, dominar a Europa e firmar um tratado de paz com a Inglaterra? Votavam bem os italianos que o faziam por Mussolini, e os espanhóis por Franco na Espanha?

O resultado de eleições pode ser trágico para um país se os cidadãos que votam não preveem as consequências que o resultado eleitoral poderia ter. Isso não desqualifica as eleições nem o voto popular, que costumam ser, sobretudo nos países ocidentais, responsáveis e democráticos, mas isso não funciona assim no mundo subdesenvolvido, onde a cada dia vemos casos como o da Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, metem na cadeia todos os candidatos que poderiam fazer frente às suas intenções de se reeleger. Que valor podem ter semelhantes eleições em que a vitória dos atuais governantes está garantida de antemão e com porcentagens precisas?

Em Cuba, na China, na URSS e nos antigos países satélites celebravam-se eleições pontuais, em que ninguém acreditava, pois só serviam para os governantes se inteirarem secretamente do estado das coisas em seu país. Eleições só têm sentido nas democracias, enquanto o grande leque de partidos de centro e de direita – que vão desde os socialistas até os conservadores, passando pelos democratas cristãos e os verdes – expressam suas proximidades e diferenças, para estabelecer alianças mais ou menos sólidas que lhes permitam formar um governo.

Essas eleições são úteis, com certeza, e ninguém gostaria de suprimi-las. Mas eleições em países em que acaba de ocorrer um golpe de Estado, como agora na Guiné, onde a arrasadora maioria que está por trás dos golpistas se apressa para celebrá-lo manifestando sua adesão, têm um sentido democrático? Tenho dúvidas a respeito e me parece, após o sucedido no Peru nas últimas eleições, que semelhante entusiasmo deveria ser considerado com apreensão. Ficaria feliz se a ONU, a OEA e seus organismos representativos fossem obrigados a inspecionar aquelas eleições antes de legitimá-las. Creio que o ocorrido no Peru e em outros países da América Latina levanta dúvidas demais sobre a validade daquelas missões de vigilância eleitoral, que, com frequência, só servem para conceder um ar de suposta validade a eleições de natureza suspeita.

Nada disso significa que eleições sejam inúteis. Aqui sim, faz sentido falar em votar “bem” ou “mal”, me parece: não tem a ver com os candidatos, mas com os eleitores, pois são estes últimos os que legitimam eleições ou as convertem em um circo, se votam, como fizeram os eleitores do PRI no México por cerca de 80 anos, em uma farsa que servia aos governantes beneficiados com os resultados para aceder ao poder e aproveitar-se dele.

A única maneira de assumir uma responsabilidade eleitoral digna desse termo é criando uma sociedade democrática. A solução parece coisa de louco e pode ser que seja. Como pode existir uma sociedade democrática se as eleições não são verdadeiramente representativas e não nos dizem nada sobre a seriedade e a consciência dos eleitores?

O voto útil pressupõe sociedades bem constituídas e convencidas de que a democracia, com seus riscos e perigos, é o melhor de todos os pactos possíveis, da qual resultarão o progresso e a justiça para a imensa maioria da população. E nem sequer nessas circunstâncias o voto é sempre válido e legítimo. Em outras sociedades, onde essa opção não está definida, ou está somente em parte, o voto pode ser extremamente precário, uma maneira de questionar ou até mesmo atentar contra as bases da sociedade, pela qual se pretende mudar radicalmente de sistema.

Isto é o que costuma acontecer quando se vota “mal”, para destruir as bases democráticas sobre as quais a própria sociedade se sustenta, transtornando-a e subvertendo-a, a fim de que ela mude ou se altere essencialmente. Votar “mal” ou votar “bem” não é algo casual; é uma maneira de decidir se optou-se por uma forma de sociedade – a democrática – ou se isso não está claro; ou melhor, como ocorre na América Latina ou na África – mas não na Ásia, por exemplo, onde tudo parecia indefinido até pouco tempo atrás.

O voto bem intencionado ou mal intencionado não é anterior à eleição; é, antes disso, uma confirmação dos passos prévios da assunção da validez segura ou escassa da razão eleitoral. Os países que não estão convencidos da razão de sua sociedade ser “democrática” costumam votar “mal”. Só os que estão convencidos da democracia e são favoráveis a ela votam “bem”. Mas isso não vale para todos os casos, e dúvidas a respeito disso sempre emergirão. Elas só serão resolvidas quando for tarde demais e já não haja mais nada a se fazer.

19 de outubro de 2021

CANDIDATOS RADICAIS NA AMÉRICA LATINA CRESCEM NA PANDEMIA!

(AP e Reuters/O Estado de S. Paulo, 17) A pandemia vem passando uma rasteira nos governos latino-americanos, sem distinção ideológica. No México e na Argentina, partidos de esquerda perderam espaço nas últimas eleições legislativas. No Chile e na Colômbia, os conservadores estão a ponto de serem escorraçados nas urnas. Da desordem trazida pela covid, porém, surgem alguns vencedores: os candidatos radicais, que vêm conseguindo canalizar a insatisfação popular.

Com 600 milhões de habitantes, a América Latina desafia generalizações, mas segue alguns padrões. Os países da região têm o crescimento econômico mais lento do mundo, são os mais violentos e mais desiguais. Agora, enfrentam o fenômeno comum da radicalização política.

No Chile, o favorito na eleição presidencial de novembro é Gabriel Boric, jovem de 35 anos, torcedor fanático da Universidad Católica. Esquerdista moderado, apesar da aliança com o Partido Comunista, sua vitória seria um movimento natural do pêndulo da política chilena, se afastando do conservadorismo do presidente, Sebastián Piñera, de volta ao campo da centro-esquerda – como antes o poder escorregou das mãos da socialista Michelle Bachelet na direção oposta.

A novidade, porém, é o crescimento da extrema direita. José Antonio Kast, de 55 anos, conhecido por defender a ditadura de Augusto Pinochet, aparece em segundo lugar – à frente do candidato de Piñera, Sebastián Sichel, que corre risco de nem sequer chegar ao segundo turno. “Dizem que sou radical. Mas radical em quê?”, disse Kast, que não esconde sua admiração por Donald Trump e costuma elogiar Jair Bolsonaro.

Na Colômbia, o cenário também favorece um voto radical. O país é um ponto fora da curva na América Latina: nunca teve um governo de esquerda. Mas, na eleição presidencial de março de 2022, todas as apostas são em Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro do Movimento 19 de Abril (M-19), que perdeu a última eleição para Iván Duque, em 2018.

A birra dos colombianos com a esquerda vinha de anos da desastrosa campanha militar das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), da proximidade com os EUA – durante a Guerra Fria e na luta contra o narcotráfico – e do antagonismo com a vizinha Venezuela. Todos esses obstáculos se foram. As Farc se desmobilizaram, a União Soviética caiu junto com o império dos cartéis de Cali e Medellín e a crise destruiu toda influência que tinha o chavismo na Colômbia.

Em meio à pandemia e ao fluxo de 2 milhões de refugiados venezuelanos, Duque trocou os pés pelas mãos. Ele passou seu primeiro ano de mandato tentando desfazer o acordo de paz com as Farc, o segundo enviando tropas para reprimir protestos, o terceiro em lockdown e finalmente virou uma carta fora do baralho depois de propor um aumento de impostos, que provocou nova revolta popular e a renúncia de seu ministro das Finanças, Alberto Barrera.

“Petro é favorito”, disse Raúl Gallegos, consultor da Control Risks, em Bogotá. “Ele traz uma coalizão que mistura o antiestablishment, os pobres e a classe média progressista que se preocupa com questões ambientais e com os direitos das minorias.”

A pandemia também chamuscou governos de esquerda na América Latina. As eleições legislativas de junho enfraqueceram o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, e seu partido, o Morena, que perdeu a maioria absoluta que tinha no Congresso. Na Argentina, o presidente Alberto Fernández também saiu derrotado das primárias de setembro, votação que consagrou o ultradireitista Javier Milei, que obteve mais de 13% dos votos pela primeira vez.

A pandemia atingiu a América Latina com mais força do que qualquer outra parte do mundo. Mais de 25 milhões foram infectados e quase 1 milhão morreram. No entanto, analistas dizem que a covid não está na origem do problema, ela apenas exacerbou a insatisfação em uma região que já estava de cabeça para baixo nos últimos meses de 2019 – como nos protestos no Chile, que impulsionaram o plebiscito que aprovou a convocação de uma Assembleia Constituinte, no ano passado.

“A covid enfraqueceu as já frágeis estruturas institucionais democráticas da região. Ela multiplicou as fontes já abundantes de desilusão com os governos latino-americanos, incluindo as queixas com relação à incapacidade dos sistemas públicos de saúde”, escreveu Evan Ellis, em artigo para o Center for Strategic and International Studies. Para ele, a vitória de Pedro Castillo, candidato de extrema esquerda nas eleições presidenciais do Peru, foi impulsionada pela radicalização da política, impulsionada pela pandemia na América Latina.

Cynthia Arnson, analista do Wilson Center, não acredita que a pandemia tenha favorecido um ou outro campo ideológico. “Por conta do impacto econômico e de saúde devastador da pandemia – e da corrupção que a acompanha –, o sentimento geral é de se livrar dos políticos tradicionais. Ela criou um ambiente volátil”, disse. “A expectativa é que mais outsiders ganhem eleições.”

18 de outubro de 2021

DEVASTADORAMENTE CAPAZ!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 06/05/2007) “Blowback” é uma expressão usada por alguns politólogos para definir uma ação política que aponta numa direção e produz um resultado inesperado e contrário ao objetivo inicial.

Em grande medida, foi o que ocorreu com Carlos Lacerda a partir de sua candidatura a governador da Guanabara, em 1960. Jogava tudo, mesmo antes, na desestabilização dos governos do PSD e do PTB. E olhava para a sua meta: a eleição presidencial de 1965.

Assumiu o governo da Guanabara promovendo reformas inaugurais na administração pública brasileira, na área fiscal e na área administrativa. Com o auxílio de Aliomar Baleeiro [1905-78], deputado constituinte na Guanabara, jurista especializado em finanças públicas, estruturou um sistema orçamentário, tanto nas relações entre o Executivo e o Legislativo como na implantação, pela primeira vez no Brasil, do orçamento-programa.

Essas inovações construíram a base do que se chama hoje de responsabilidade e transparência fiscais, que pautaram as reformas durante o regime militar até a Constituição de 1988, à qual foram incorporadas.

Lacerda implantou o acesso geral ao serviço público por concurso. Construiu um amplo arco de fundações, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, na busca da descentralização, agilidade e eficiência na administração pública, que terminaram sendo a referência do governo Geisel e de outros até recentemente.

Introduziu um plano de metas nos moldes de Juscelino Kubitschek, enfatizando a infraestrutura urbana, econômica e social.

Abriu a discussão sobre a questão das favelas e, quando governo, mudou de posição, saindo de temas como urbanização e acesso a serviços sociais em direção à remoção. São esses dados e fatos que Maurício Dominguez Perez nos traz na melhor biografia sobre Carlos Lacerda (“Lacerda na Guanabara”).

Melhor por não ser fundamentalista -nem de um lado nem de outro- em relação a um político que tinha uma fronteira nítida entre os que o amavam e os que o odiavam. Melhor porque permite aos admiradores de Lacerda sublinhar suas opiniões. Melhor porque também permite aos críticos dele sublinhar suas opiniões, apesar da diagonal favorável do livro.

Melhor porque o governo Lacerda não caiu do céu, mas surgiu da dinâmica anterior das prefeituras do então Distrito Federal.

Se o quadro político anterior mostrava uma prefeitura manipulada pelos interesses da menor política de clientela, devido à volatilidade dos períodos de governo dos prefeitos escolhidos pelos presidentes, não se pode omitir que a condição de capital e a presença de talentos em todas as áreas, fora e dentro da prefeitura, encheu as gavetas de projetos dos mais diversos campos, muitos deles de excepcional qualidade.

Entravam, mas não saíam das gavetas pela inoperância da máquina municipal a partir da República de 1946. Um governo estadual eleito para a Guanabara dispunha de um mandato de cinco anos e, com isso, previsibilidade e possibilidade de uma programação de governo em médio prazo.

Para Lacerda, a equação era simples: apenas uma questão de construir uma máquina eficiente, tirar os projetos da gaveta e selecionar os mais adequados à sua visão de governo. As restrições eram a falta de recursos para isso e o tumultuado ambiente político daquele período.

Lacerda conviveu com quatro presidentes: Jânio Quadros, os primeiros-ministros [Tancredo Neves, Francisco de Paula Brochado da Rocha e Hermes Lima], João Goulart e Castello Branco. Seus conflitos maiores concentraram-se entre o início de 1963, quando o plebiscito restabeleceu o presidencialismo, e março de 1964, quando veio o golpe militar.

Com Jânio, o desgaste das relações ocorre em um período curto. Talvez porque Lacerda, em seu íntimo, não se imaginava como candidato dele em 1965 ou porque realmente temesse que um golpe de Jânio eliminasse aquela eleição.

O risco político que cercou o Brasil a partir da renúncia de Jânio, visto pelas lentes norte-americanas, aproximou Lacerda de John Kennedy e o transformou em seu interlocutor. A partir daí vêm os recursos da AID, da Aliança para o Progresso, do Bird, do BID e do Fundo do Trigo.

Perez demonstra que, embora importantes, eles não explicam a amplitude das realizações do governo Lacerda.

Uma restrição a mais é a força centrípeta do temperamento de Lacerda, que terminou por agregar obstáculos aos que já existiam, em ambiente político polarizado entre trabalhistas-comunistas e udenistas-lacerdistas.

Um comunicador como Lacerda, fundador ainda nos anos 1940 do discurso coloquial, sem fortes entonações, em que a série de sinonímias substituía com muito maior força o tom da voz, terminou perdendo a batalha da comunicação e terminou carregando, ao longo do tempo, a imagem de repressor dos pobres -mendigos e favelados- que lhe lançava a oposição.

15 de outubro de 2021

A ERA DA ECONOMIA DA ESCASSEZ!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 10) Durante uma década, após a crise financeira, o problema da economia mundial foi a redução de gastos. Famílias preocupadas pagaram suas dívidas, governos impuseram austeridade e empresas restringiram os investimentos, enquanto contratavam funcionários de um aparente infinito conjunto de trabalhadores. Agora, os gastos voltaram com força, conforme os governos estimulavam a economia.

O aumento repentino na demanda é tão intenso que os estoques têm dificuldade em dar conta. Os motoristas de caminhão ganham bônus ao assinar contratos, uma frota de navios porta-contêineres ancorada ao longo da Califórnia espera os portos serem liberados, e os preços da energia sobem vertiginosamente. À medida que a inflação assombra os investidores, a abundância da década de 2010 dá lugar à economia da escassez.

A causa imediata é a covid19. Cerca de US$ 10,4 trilhões em estímulo global à economia desencadearam uma forte recuperação, porém desigual, na qual os consumidores estão gastando mais do que o normal com bens, aquecendo cadeias de suprimentos globais famintas. A demanda por produtos eletrônicos disparou durante a pandemia, mas a escassez dos microchips necessários para a fabricação deles atingiu a produção industrial em algumas economias exportadoras, como Taiwan.

A propagação da variante Delta fechou fábricas de roupas em partes da Ásia.

No mundo rico, a mudança de emprego está baixa, as ajudas financeiras rechearam as contas bancárias, e poucos trabalhadores têm vontade de deixar empregos menos populares, como vender sanduíches nas cidades, para outros com demanda, em armazéns, por exemplo. Do Brooklyn a Brisbane, os empregadores estão em uma disputa louca por mãos extras.

A economia da escassez também é resultado de duas forças mais profundas. Primeiro, a descarbonização. A mudança do carvão para a energia renovável deixou a Europa vulnerável ao pânico do fornecimento de gás natural que, em um momento desta semana, fez os preços à vista subirem em mais de 60%.

Um aumento no preço do carbono no esquema de comércio de emissões da União Europeia dificultou a mudança para outras formas mais poluentes de energia. Regiões da China enfrentaram cortes no fornecimento de energia enquanto algumas das províncias do país lutavam para cumprir rígidas metas ambientais. Os preços altos do transporte de mercadorias e de componentes de tecnologia estão elevando as despesas de capital para expandir a capacidade. Enquanto o mundo tenta se desabituar da energia “suja”, o incentivo para investimentos de longa duração na indústria de combustíveis fósseis é fraco.

A segunda força é o protecionismo. A política comercial não é mais elaborada com a eficiência econômica em mente.

Esta semana, o governo de Joe Biden confirmou que manteria as tarifas de Donald Trump sobre a China, em média em 19%, prometendo apenas que as empresas poderiam solicitar isenções (boa sorte na batalha com a burocracia federal). Em todo o mundo, o nacionalismo econômico está contribuindo para a economia da escassez. A falta de motoristas de caminhão na Grã-Bretanha foi exacerbada pelo Brexit. Após anos de tensões comerciais, o fluxo de investimentos entre países por empresas caiu para mais da metade em relação ao PIB mundial desde 2015.

Tudo isso pode parecer uma reminiscência dos anos 1970, quando muitos lugares enfrentavam filas nos postos de gasolina, aumentos de preços de dois dígitos e crescimento lento. Há cinquenta anos, os políticos cometeram um grave erro com a política econômica, lutando contra a inflação com medidas fúteis, como controle de preços e a campanha Whip Inflation Now (algo como “Derrote a Inflação Já”) de Gerald Ford, que incentivava as pessoas a plantar seus próprios vegetais. Hoje, o Federal Reserve (Fed) está debatendo como prever a inflação, mas é consenso que os bancos centrais têm o poder e o dever de mantê-la sob controle.

Por enquanto, uma inflação fora de controle parece improvável. Os preços da energia devem diminuir depois do inverno no hemisfério norte. No próximo ano, o avanço com vacinas e novos tratamento para a covid-19 devem reduzir os transtornos. Os estímulos fiscais serão encerrados em 2020:

Biden está tendo dificuldades em passar sua proposta de orçamento gigante pelo Congresso, e a Grã-Bretanha planeja aumentar impostos. O risco de quebra no setor de habitação da China significa que a demanda poderia até cair, trazendo de volta as condições fracas da década de 2010. E um aumento nos investimentos em algumas indústrias acabará se traduzindo em mais capacidade e maior produtividade.

As forças mais profundas por trás da economia da escassez não vão desaparecer, e os políticos podem facilmente acabar adotando medidas arbitrárias. Um dia, tecnologias como o hidrogênio devem ajudar a tornar a energia verde mais confiável. À medida que os custos com combustível e eletricidade aumentam, poderia haver uma reação negativa. Se os governos não garantem alternativas verdes adequadas aos combustíveis fósseis, eles podem ter de suprir a escassez flexibilizando voltando a usar fontes mais poluentes. Os governos, portanto, terão de planejar como lidar com os custos mais altos de energia e o crescimento mais lento que resultarão da eliminação de emissões. Fingir que a descarbonização resultará em um milagroso boom econômico certamente levará à decepção.

A economia da escassez também pode reforçar o apelo do protecionismo e da intervenção estatal. Os transtornos muitas vezes levam as pessoas a questionar dogmas da economia. O trauma da década de 1970 causou uma rejeição bem-vinda do “grande governo” intervencionista e keynesianismo rudimentar. O risco agora é que certas tensões na economia provoquem a rejeição da descarbonização e da globalização, com consequências devastadoras a longo prazo. Essa é a real ameaça apresentada pela economia da escassez.