“A DESCONTEXTUALIZAÇÃO DE TEXTOS E IMAGENS PARA USO POLÍTICO NÃO É UM PRIVILÉGIO DE CONSERVADORES”!
(Entrevista de Ivana Bentes, pesquisadora e ex-diretora da Escola de Comunicação da UFRJ -2006-2013- Folha de S. Paulo, 04/01)
1. FSP: Diversos protestos pediram cancelamento de obras artísticas nos últimos anos, em especial no último semestre. Os argumentos se basearam em fragmentos, como fotos e vídeos. Quais os riscos nesse processo?
Ivana Bentes: As ações [de conservadores] não foram espontâneas. Esse tipo de obra, com nudez, sobre sexualidade, tem acontecido ao longo de anos sem maiores reações. Os ataques seriais às artes foram ações induzidas por grupos conservadores, o MBL, a bancada evangélica, que querem se posicionar no jogo eleitoral. São incitadores da indignação alheia, explorando a boa fé de quem acha que está protegendo criancinhas. Para eles é fundamental criminalizar artistas e instituições e carimbá-los associando a palavra “arte” aos rótulos “pedofilia” e “pornografia”.
2. FSP: Como fazem isso?
IB: Descontextualizando as obras, as propostas e ficando com as imagens na sua literalidade, apresentadas em fragmentos. Esse procedimento é ainda mais perverso, pois o artista que fez a performance “La Bête” vira “o peladão do MAM”, e o fato de uma criança interagir com a performance vira “pedofilia”, o que incita aos piores instintos: o linchamento. Estamos em plena memética da distorção e das fake news. Outro procedimento é o enxameamento. A convocatória para todos irem às páginas do MAM, do artista e xingar, ameaçar, linchar.
3. FSP: Há outros contextos em que isso acontece, como quando ativistas negros pedem o cancelamento de uma peça tomando por base fotos ou sinopse?
IB: A descontextualização de obras, textos, imagens, pode ser utilizada por qualquer campo ou grupo social, não é privilégio dos conservadores. Mas não vi nenhum tipo de campanha de ódio feita por outros ativistas. O discurso de ódio e demonização massivos que começou no campo da política e foi feito pela televisão se estendeu pelas redes e vimos inclusive grupos minoritários em processos autofágicos, de minorias, grupos de esquerda, atacando uns aos outros.
4. FSP: No caso da TV, refere-se a algo específico? Globo News, frequentemente acusada de estar à direita, debateu os casos de protestos e cancelamentos no programa “Entre Aspas” dando voz ao artista Nuno Ramos e ao filósofo Eduardo Wolf sobre o tema. E tratou esse contexto como tentativa de censura.
IB: Estava me referindo aos processo políticos pré e pós impeachment, Lava Jato etc. O que me parece é que os justiçamentos em tempo real feitos pela TV e noticiário criaram um padrão de linchamento que se expandiu para outros campos, como o das artes. Os grupos de extrema direita e conservadores aprenderam a pedagogia do linchamento político. O ataque às artes é subproduto dos processos de linchamento políticos. Uma pedagogia do linchamento.
5. FSP: O afastamento William Waack da Globo após o vazamento de um vídeo em que classifica um buzina insistente como “coisa de preto” teria relação com esse fenômeno? Existe alguma possibilidade de o racismo expresso naquele fragmento ter contexto que o absolva?
IB: Nós vivemos em um mundo em que não é possível ter dupla moral: uma privada e outra pública. Existe uma exigência cada vez maior para que a vida privada esteja em sintonia com o que se faz e o que se defende em público.O caso de assédio de José Mayer e o caso de racismo de Waack se tornaram indefensáveis porque vivemos em uma sociedade que produziu um novo patamar para o que é “tolerável”, principalmente depois da Primavera das Mulheres e da constatação tardia de que, sim, somos um país racista. Uma evidência que ficou latente ou mal disfarçada pelo mito da feliz miscigenação das raças. Essa radicalização é necessária. Sem isso não há mudanças. Os dois comportamentos (Mayer e Waack) não provocariam nota pública da maior emissora de TV nem demissão se fosse há dez anos. Mas o Brasil mudou, e esse processo é doloroso para os que tinham privilégios!
6. FSP: O caso do Mayer não se encaixaria aqui, pois se tornou público com um depoimento. O vídeo do Waack pode ser considerado um fragmento, tal qual a foto de “La Bête”?
IB: São casos distintos. O fragmento do Waack é uma frase racista dita por alguém branco, bem-sucedido e com notoriedade suficiente para que a sua publicização não possa passar impune. Não é descontextualização, qualquer pessoa pública no Brasil que expressar racismo perde a credibilidade para parte da sociedade. Mudou a régua. Não dá para dizer que a histeria diante de “La Bête” e o ataque conservador a Judith Butler são o mesmo tipo de discurso que levou à demissão de Waack. Não temos um artista pedófilo, não houve pedofilia nem ato de violação de direitos em um caso (nem de fato nem de direito, segundo o Ministério Público), mas temos um apresentador que cometeu racismo. Ou a gente entende que são processos assimétricos, ou ficaremos achando que o país estaria mais tranquilo se não se destampasse o debate LGBT, feminista, das cotas.
7. FSP: A sra. apontou identidades convergentes em filmes que retrataram o sertão e as favelas, e em um artigo empregou termos como “cosmética da fome” sobre a forma como a pobreza era tratada. Como vê retratos recentes sobre a relação casa grande e senzala, em que se encaixam títulos como “Que Horas Ela Volta”, “Casa Grande” e “Vazante”?
IB: Não é possível dissociar estética de ética, esvaziar um filme de seu caráter político, mesmo que ele não se paute nas reivindicações de movimentos e se proponha ser um filme para se ver comendo pipoca. A polêmica em torno de “Cidade de Deus” explodiu em 2002: um filme com linguagem potente, mas que transformava pobres em assassinos por natureza e podia ser visto como sintoma da reiteração de um prognóstico social sinistro: o espetáculo consumível de pobres se matando entre si. “Vazante”, de Daniela Thomas, é esteticamente suntuoso, em tudo denota arte, as contraluzes, a reconstituição histórica primorosa, com questões sensíveis mas cuja estética naturaliza um sofrimento atroz e oferece o horror da escravidão ornado como em uma “natureza morta”. Se para uns é arte, para outros é a carne mais barata do mercado. Posso gostar de “Vazante” (como de “Cidade de Deus”), mas não desqualificar a dor dos outros. Se tem alguém que tem que entender a radicalidade de meu irmão e irmã cujos antepassados foram escravizados e que são mortos a bala pela cor da pele, somos nós. “Que Horas Ela Volta?” vai na direção oposta, percebe a outra partilha do sensível. Expressa o desconforto na sua forma potente. O desconforto dos brancos, dos patrões, das madames.