Publicado em 10/10/2009 em Folha de São Paulo
EM 2009 e 2010, comemoram-se os 200 anos da independência das colônias hispânicas. Os atos foram iniciados em julho, na Bolívia, fazendo memória da revolta de La Paz, liderada por Pedro Murillo. E prosseguem em 2010: no México, com o Grito de Dolores, na Argentina, com a Revolução de Maio…
Os processos de independência na América hispânica se deram em duas etapas. Na primeira, com a invasão do exército de Napoleão na península Ibérica, em 1808. Em Portugal, mal durou oito meses e o exército inglês assumiu o controle do país. Dom João permaneceu no Brasil até 1821. Na Espanha, foi até 1812, período no qual o rei Fernando 7º e seu pai, Carlos 4º, permaneceram presos por Napoleão, renunciando à coroa a favor de José Bonaparte.
Com o retorno de Fernando 7º, em 1814, derrubando a constituição liberal das cortes de Cádiz e reinstalando o absolutismo, as Juntas Governativas instaladas nas colônias foram sendo derrubadas e reconstituíram-se os vice-reinados. A exceção foi o Paraguai, totalmente independente desde 1811.
O segundo ciclo de independências, no qual o Brasil se inseriu, se deu a partir das revoluções liberais na Espanha e em Portugal. Na Espanha, a relação com as colônias foi flexibilizada, o que acelerou ações que culminaram em independências definitivas. Em Portugal, com o retorno de d. João 6º e a perda de poder central de seu filho, a independência foi precipitada entre 1822 e 1823 (no Nordeste-Norte).
Essas duas etapas explicam bem as razões da instabilidade política generalizada na América hispânica. Tendo a Independência dos EUA como referência de república, a sua declaração, em 1776, foi, na verdade, um documento de consenso, em que se repetem 19 vezes as expressões “leis” e “Legislativo” e nenhuma vez “presidente”, “chefe” ou “Poder Executivo”. Só sete anos depois veio a independência de fato, e apenas em 1787 a Constituição foi aprovada.
O processo americano estabeleceu amplo consenso entre as partes, e a partir deste é que se construiu a ossatura da Presidência. O poder do rei tinha uma forte base de legitimação, por sua origem divina e associação com a igreja. A transição para a República deveria ter uma densa legitimação para substituir a Coroa. Mas, ao contrário dos EUA, o único consenso se deu em relação à expulsão dos colonizadores. Depois, a luta pelo poder foi aberta durante 150 anos, com um vendaval de constituições, golpes de Estado e guerras civis.
Ao comemorar esses 200 anos, num ciclo de reinvenção do “presidente vitalício” proposto por Bolívar em 1825, não há tema mais relevante do que as bases efetivas da democracia no acesso, exercício e alternância do poder e de suas regras.