Publicado em 05/09/2009 em Folha de São Paulo
UMA REGRA que cabe bem na cultura política brasileira: governar é fazer leis. O furor legiferante produz quatro efeitos: a sensação de solução dos problemas; as relações de clientela com parlamentares; parques de diversões para os escritórios de advocacia; riscos de uso de resíduos legais, em outro tempo.
Em relação a esse último efeito, há um caso clássico na política latino-americana: a “Teoria dos Resquícios Legais”, do jurista chileno Eduardo Novoa, ao analisar a aplicabilidade das propostas eleitorais de estatização de Allende. Novoa foi o constitucionalista de Allende.
Eram tantas as leis aprovadas por anos, e tantos os dispositivos de leis que foram esquecidos quando das revogações, que Novoa fez uma busca nesse emaranhado legal residual. Viu que dispositivos de leis diversas, em momentos distintos, poderiam ser agrupados de forma a dar-lhes consistência. E então aplicados administrativamente como regulação especial e com toda a garantia de constitucionalidade.
Ele partiu dos dispositivos esquecidos pelos governos seguintes, dos decretos-leis que o coronel Marmaduke Grove, em sua revolução socialista de 1932, aplicou nos dias que governou. O primeiro efeito é exemplificado pelo entusiasmo na Constituinte de 88, onde cada dispositivo aprovado era aclamado com a certeza de um problema resolvido. A cada crise -na segurança, na saúde, na economia…- criam-se leis como solução, ou como esperteza, para ganhar tempo e criar expectativa.
O segundo efeito é o envolvimento dos governos na aprovação de novas leis. Esse festival vira um jogo de barganhas para formar maiorias. Essa é a razão maior dos “mensalões”, descobertos ou não.
A multiplicação de medidas provisórias é seu núcleo. O terceiro efeito é a teia de aranha de leis, que abre espaços para a diversão e os ganhos dos escritórios de advocacia. Na maior parte, as fontes pagadoras são os governos. E, com eles, o engarrafamento de ações no Judiciário, acúmulos no STF e o encilhamento de precatórios.
A quantidade de leis aprovadas pelo Congresso (e isso vale para os Estados e municípios), sem ocorrer sistematizações periódicas, com limpeza de resíduos inócuos, contraditórios ou superados, produz no Brasil uma rede de possibilidades exóticas para os governos, para as pessoas e para os advogados e dificulta a dinâmica judiciária.
Uma revisão dessa cultura legiferante traria naturalmente muito mais governabilidade: sem custo. A atual crise econômica vem sendo superada sem a necessidade de lei nova. Mas durou pouco. Para que lei do pré-sal? As que existem servem. “É da minha natureza”, diria o escorpião na velha história.
CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna. Folha de SP