HISTORIADORA CONTA A ORIGEM DA CARTA MAGNA E COMO OS ÍNDIOS E AS MULHERES FICARAM FORA DELA!
(O Estado de SP, 05) Em A Letra da Lei: Guerras, Constituições e a Formação do Mundo Moderno (Zahar, R$ 114,90), a historiadora inglesa Linda Colley percorre alguns séculos para tentar traçar a história das Cartas Magnas. Não se trata, obviamente, de uma história “global” desses documentos, nem poderia, diante da dificuldade para definir determinados textos, como os dos povos originários da América, entre outros. O Popol Vuh (século 16), ou o Livro do Conselho, dos maias, por exemplo, que abarca em seu conteúdo as leis, a religião e a história desse povo, está ausente das considerações da autora, que parte da tradição europeia e se fundamenta nela. Por isso, talvez, o Popol Vuh não seja mencionado por ela, que se refere, no entanto, à Constituição dos povos cherokees, como um dos primeiros documentos do gênero escritos por povos nativos norte-americanos.
Depois que suas terras foram tomadas pelos “homens brancos”, a população cherokee diminuiu drasticamente e os seus líderes decidiram “deixar claro que eram uma nação independente, e consequentemente exigiram uma Constituição escrita”. Isso só foi possível, segundo a historiadora, porque “uma parcela cada vez maior desses nativos era em parte alfabetizada. Além disso, e muito importante, tinham acesso à reprodução gráfica”. Um dos ativistas dessa etnia, Sequoyah (1770-1843), inventara um sistema de escrita que permitia transpor a língua cherokee para o papel, justamente para ser impressa.
Todo esse esforço, contudo, parece ter sido em vão, pois “o governo federal americano em Washington, junto com o Legislativo da Geórgia, formado só por brancos, rejeitaram a legalidade dessa Constituição e a validade às aspirações nacionais cherokees”. Isso demonstra que as Constituições são fortes e respeitadas apenas quando endossadas por aqueles que realmente detêm o poder. Ainda assim, os cherokees abriram caminho para que outros povos ameaçados por avanços imperiais do Ocidente também se esforçassem “para usar Constituições escritas e impressas como meio de afirmar suas identidades políticas separadas e autônomas, às vezes com mais êxito do que os cherokees”.
Embora nem todas as Constituições escritas e impressas tenham vingado, Colley enfatiza reiteradas vezes a importância da escrita, da impressão e, é claro, da ampla divulgação desses textos, que implica a sua tradução para outras línguas, como garantia da consolidação das Cartas Magnas.
Segundo a historiadora, a capital inglesa exerceu, nos anos 1800, um papel fundamental para difundir Constituições de outros países, justamente porque “podia despachar cartas constitucionais ou códigos de leis para qualquer país na Europa ou na América”, como bem apontou um jornalista em 1819. Isso porque, nessa época “e por bem mais de um século depois disso, Londres foi o maior porto do mundo, com a maior Marinha Mercante. Graças ao elástico império marítimo da Grã-Bretanha, Londres desfrutava também de acesso privilegiado a uma multiplicidade de portos em todos os continentes”. Além disso, a industrialização precoce da capital inglesa transformou a produtividade gráfica. No início de 1810, o princípio da máquina a vapor usada para impressão permitia “produzir mais de mil páginas impressas por hora” e, 30 anos depois, o número de páginas impressas por hora quadruplicou.Mas o papel da Inglaterra e de Londres não estava restrito apenas à divulgação de novas Constituições; muitos ingleses ajudaram na redação desses documentos a pedido de outros países. Vale lembrar que a capital inglesa recebia exilados de todo o mundo, muitos da América do Sul, que na terra de Shakespeare se punham a escrever leis que pudessem organizar suas, agora, ex-colônias.
À Inglaterra também era importante acompanhar esses textos e a “qualidade dos governos que ali se instalavam”, pois investidores do país emprestavam dinheiro a essas novas nações e precisavam saber qual destino seria dado a suas aplicações financeiras.
Ainda no contexto inglês, Colley destaca a figura de Jeremy Bentham, que, “como tantos outros homens politicamente obcecados dessa época, também se dedicava a estudar e redigir projetos constitucionais. Mas fazia isso numa escala impressionante e promíscua”, ou seja, auxiliava diferentes regimes políticos em diferentes países, muitos deles advogando interesses antagônicos. Bentham manteve comunicação com o Haiti, “a primeira república caribenha governada por negros”, e afirmou em uma carta na qual constava o plano de uma nova Constituição haitiana que, “seja qual for a diferença da cor”, era do interesse de todas as partes uma “identidade no tocante a leis e instituições”. O filósofo e jurista inglês também fez contato com o norte da África islâmica, e pensou na possibilidade de “adaptar novas ideias e aparelhos constitucionais para a entidade política islâmica”.
Vale destacar que, em 1789, Bentham redigiu uma proposta de Constituição para a França revolucionária na qual já defendia, para o espanto de seus colegas reformistas, “a extensão do direito ao voto para todos os cidadãos, ‘homens ou mulheres’”, desde que “de idade adulta, mente sã e soubessem ler”.
Nessa mesma época, em 1790, é interessante observar que as “lojas de maçons – organizações fraternas que se reuniam para falar, discutir e farrear – se espalharam depressa por toda a Europa e pelas Américas. Desde o início, lojas maçônicas redigiram e publicaram o que chamavam explicitamente de Constituições”. Eram textos que determinavam as leis de suas lojas, mas cuja redação, eles acreditavam, era uma “maneira de o homem familiarizar-se com a ideia e os usos de Constituições escritas em sentido mais amplo”. Não é à toa que muitos constitucionalistas tenham sido maçons. Uma diferença gritante entre os maçons e Jeremy Bentham é que, para os primeiros, as mulheres – “não apenas fisicamente fracas, mas frívolas e frágeis do ponto de vista moral” – não podiam ser parte ativa da sociedade e política. Os maçons se baseavam em um episódio do Gênesis que dizia que Satã conheceu Eva quando era uma “vadia” e fez dela uma de suas filhas. Parece que, no século 21, no Brasil, a maçonaria de repente ressurgiu no cenário político – resta saber se pretende manter as mesmas ideias preconceituosas do passado.
A Letra da Lei se fundamentou em livros e documentos históricos, mas toda a história, como se sabe, também tem algo de ficcional, ou seja, não deixa de ser em parte a criação de quem a narra – nesse caso, uma autora branca, nascida na Inglaterra e vivendo nos Estados Unidos. Nesse sentido, muitas descrições de personagens históricas feitas por Colley revelam um viés pessoal e extrapolam a exposição objetiva dos fatos tratados no livro. A historiadora parece dar especial atenção a alguns detalhes ínfimos, como os relacionados ao sobrepeso, que ela faz questão de destacar. Um dos advogados encarregados pela preparação do Código Civil de Napoleão, por exemplo, é descrito como “gorducho”, e o próprio Napoleão não escapa da balança de Colley, que, ao analisar um retrato do imperador francês, destaca a sua deterioração física, pois ele “parece enrugado, acima do peso e calvo”.
Catarina II, da Rússia, a primeira mulher a esboçar uma Constituição, o Nakaz, ou a Grande Instrução, acaba obscurecida por estar “acima do peso e com o queixo flácido”. Colley se permitiu devaneios ao redigir a história das Constituições, talvez porque saiba que nem mesmo as Cartas Magnas se fundamentam apenas em dados objetivos: “Redigir Constituições era também um esforço privado, um modo de criatividade literária e cultural semelhante a escrever um poema, uma peça, um artigo de jornal ou, na verdade, um romance”.
Ao final de A Letra da Lei, pode-se chegar a pelo menos uma conclusão: as Constituições são criações de uma casta, são lidas e entendidas por essa mesma casta e só sobrevivem se forem aceitas por outra casta superior a essa.