26 de maio de 2022

DE ANTONIO SCURATI, CHEGA O SEGUNDO VOLUME DE M!

(Luiz Zanin Oricchio – O Estado de S. Paulo, 22) Por que, em pleno século 21, escrever milhares de páginas sobre um ditador como Benito Mussolini (1883-1945)? O escritor Antonio Scurati responde que a figura de Mussolini, ao contrário da de Hitler, conta ainda com certa aura “benigna” – apesar de ter comandado um violento regime ditatorial e arrastado o país a uma guerra que o arrasou. Sua ideia, com um romance histórico de três volumes, é enxergar o fascismo por dentro. Ver o interior do monstro, sem atenuantes ou mistificações.

Outra motivação para escrever obra de tal envergadura seria a ascensão, pelo mundo, de líderes de extrema-direita como Matteo Salvini na Itália, Donald Trump nos Estados Unidos, Recep Erdogan na Turquia, Viktor Orban na Hungria e um longo etc. Antidemocráticos e liberticidas, seriam discípulos ou herdeiros de Mussolini? Questão a ser debatida, mas com certeza a chegada de personagens desse tipo ao poder representa o mais desafiador mistério político do nosso tempo. Convém dar uma olhada no passado para ver se esclarece o nosso presente.

Em M – O Filho do Século, Scurati narra, em 812 páginas, a primeira parte da vida de Benito Mussolini – da infância e juventude pobres à tomada do poder na chamada “Marcha sobre Roma” (foto nesta página), em 1922. Na segunda parte dessa projetada trilogia, M–O Homem da Providência (608 páginas), Scurati descreve a edificação do Estado fascista, a consolidação da ditadura na Itália com a consequente dissolução do regime democrático. A terceira, por certo, trará sua aliança com Hitler, a aventura na guerra, a queda em 1943 e a derrocada final, que, como todos sabem, termina em Milão, em 1945, fuzilado e pendurado pelos pés, o cadáver em exposição pública, junto com o da amante, Clara Petacci.

Da maneira como é escrita, a narrativa de Scurati nos enche de encanto – e também de horror. Encanto, porque, ao usar técnicas de ficção, como num romance, o transe da História salta aos olhos, vivo e pulsante. Horror, porque são muitas e visíveis as semelhanças entre aqueles tempos e o nosso. Em especial em países cuja base democrática vem sendo corroída por candidatos a tiranos.

Há invenção na forma, não no conteúdo. O texto de Scurati tem o frescor das boas narrativas, mas o rigor histórico se alia aos recursos ficcionais. Já no primeiro volume, esclarece: “Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte.” Romance “documental”, portanto.

Como forma, trata-se de obra multifocal e polifônica. Às vezes narra em terceira pessoa, mas usa muito o discurso indireto livre, o fluxo de pensamento de alguns personagens, bilhetes, conversas grampeadas, documentos oficiais, notícias de jornais, dossiês preparados pelos serviços de segurança. Todas as fontes convergem para o caudal da narrativa.

Esse material diverso, integrado ao romance, tem um efeito calculado, muito difícil de ser obtido em obras históricas, que é o de mergulhar o leitor do tempo presente no espírito do passado. E, também, funciona como uma câmera indiscreta, abrindo a cortina dos bastidores do poder.

DOENÇA. O segundo volume, M – O Homem da Providência, começa com o Duce doente, padecendo miseravelmente de uma prosaica, porém grave, úlcera no duodeno. Querem operá-lo. Ele não consente, prefere tratamentos mais conservadores e sai mais forte da doença.

Enquanto age para corroer freios e contrapesos das instituições, luta para conter seus pitbulls, que podem comprometer seu caminho rumo ao poder sem limites. Entre esses seres soturnos, destaca-se o sinistro Roberto Farinacci, adepto da violência pura. Ele convém ao regime durante certo tempo, depois começa a perturbá-lo. Como sempre acontece nesses casos, foi descartado assim que cumpriu sua missão e se tornou incômodo.

Mussolini sobrevive aos seus rebeldes, mas também a uma série de atentados. Quatro, no total: ataques a bala e a bomba, dos quais sai levemente ferido, e cada vez mais forte aos olhos do povo que o tem como predestinado e indestrutível.

Esse livro, que começa pela úlcera no aparelho digestivo, termina com a glória, um tanto vazia, da exposição montada para comemorar os dez anos da Marcha sobre Roma. A marcha é um episódio tão fundamental que, a partir dele, o Duce cria um novo calendário, o da Era Fascista, escrito em algarismos romanos, que teria a data de início de 28 de outubro de 1922, quando as milícias entraram em Roma, na ausência de Mussolini. Ele não estava lá.

Prudentemente, mantinha-se em Milão, de onde seria mais fácil fugir e pedir asilo na Suíça caso tudo desse errado.

Em sua trajetória, o Duce se depara com um problemão – o sequestro e assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti pelas milícias fascistas. Matteotti havia denunciado fraude nas eleições de 1924. Foi morto no mesmo ano. O crime poderia chegar até Mussolini e acabar com seu reinado. Ao contrário, são as medidas de exceção tomadas para garantir sua imunidade que aceleram o processo de construção do Estado autoritário. Há um ótimo filme a respeito desse episódio, O Delito Matteotti, de Florestano Vancini, com Franco Nero no papel do socialista.

Mussolini lavra novo triunfo ao conseguir um acordo com a Igreja Católica. Com o Tratado de Latrão, assinado em 1929, é concedido o território que forma hoje o Estado do Vaticano. Em troca, o regime ganha o apoio da Igreja, fundamental na Itália daquela época. Fecha assim a tríade que cimenta o poder fascista: religião, nacionalismo, defesa dos valores da família, dos costumes e da tradição. Deus, pátria, família.

Muito parecido com o que a gente vê e ouve por aí e por aqui, não? Mas é preciso cuidado. A história não se repete. Ou melhor, como já disse um filósofo, pode se repetir como farsa. O que não deixa de ser incômodo, e mesmo trágico.

Em todo caso, guardadas a distância histórica e as mudanças de hábitos e tecnologia, o receituário fascista, que se depreende da trajetória do Duce, parece ser aplicado ponto por ponto pelos governos hoje chamados de “iliberais”. A destruição das liberdades e garantias é o objetivo último e maior desses regimes. Muitas vezes, por paradoxo, a democracia é abolida em nome da “liberdade” dos indivíduos.

DITADURAS. Essa desconstrução pode se dar num golpe militar, tradicional e bruto, como os que assolaram no passado a América Latina em países como Guatemala (1954), Brasil (1964), Chile (1973), Uruguai (1973) e Argentina (1976). Ou por aproximações sucessivas, em que o regime iliberal rói por dentro a democracia, viciando e aparelhando instituições, minando a capacidade operacional dos contrapoderes, como o Judiciário independente, atacando a imprensa livre.

A tática é gradual e a estratégia é a construção do Estado total, com adesão completa, de todos e de cada um. “Se no velho Estado liberal, para ser um bom cidadão bastava respeitar as leis, agora, no Estado fascista, para não cair na ilegalidade, é necessário que todo cidadão se torne fascista”, escreve Scurati em M – O Homem da Providência.

Num primeiro momento, elimina-se a dissidência. No outro, exige-se adesão incondicional. “Era necessário reeducar um povo, corrigir uma nação.”

Esse projeto pedagógico despótico se constrói ao longo dos anos em que Mussolini obtém vitórias sucessivas – o acordo com o Vaticano, o esmagamento da rebelião colonial na Líbia, o enfrentamento da Máfia, o controle da imprensa, a sustentação do valor da lira diante da libra esterlina, moeda global da época. Ordem e segurança são valores supremos. Os trens andam no horário e os italianos podem dormir com portas e janelas abertas, pois os criminosos têm medo do punho duro da lei.

VIOLÊNCIA. Por trás dessa paz dos cemitérios escondem-se os crimes fascistas, revelados por Scurati. As prisões arbitrárias e assassinatos, o genocídio de populações líbias na guerra colonial, o culto da violência e a abolição da vida pública são tolerados num país em que a verdade emana do líder e apenas a submissão é aceita.

Por ser um jogo de tudo ou nada, a ambição insustentável do poder absoluto só poderia ter um fim. Mas, durante vários anos, Mussolini manteve apoio de parte considerável da população. Intelectuais importantes, como Marinetti e D’Annunzio, foram fascistas militantes.

Muitos países – dos Estados Unidos à Inglaterra – durante bom tempo viram em Mussolini uma barreira eficaz contra o perigo bolchevique. O papa Pio XI, após o Tratado de Latrão, chamou-o de “o homem da Providência” – título deste segundo volume. No meio do povo, murmuravam-se as barbaridades do regime. Mas eram coisas que só aconteciam com “os outros”, não com “as pessoas de bem”, os bons fascistas.

Essa ilusão se desmancha com o tempo, com as circunstâncias históricas, com a dura realidade imposta por um regime totalitário. Qual o custo – brutal – dessa aventura? É um pouco o que insinua a imagem final deste segundo livro. Mussolini, no auge do poder, e portanto totalmente só, desconfiado de todos, visita o lúgubre mausoléu dos mártires fascistas. Em sua imaginação, escuta o coro dos mortos, que chega não do passado, mas de um futuro iminente. O passado de crimes não passa e não pode ser enterrado, descartado ou negado. Ilumina o presente; vem do futuro, como presságio.

Como escreve Umberto Eco em seu Fascismo Eterno, ao comentar o discurso de Roosevelt sobre a luta contra a opressão: “Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca”. Que seja este o nosso mote: Não esqueçam.