24 de março de 2022

A TEORIA IMPERIAL DA GUERRA DE PUTIN!

(O Estado de S. Paulo, 23) Objetivo da Rússia, com sua guerra brutal, é reconstruir seu império – e o limite não ficará restrito à Ucrânia.

O sangrento ataque de Vladimir Putin à Ucrânia, que amanhã completa um mês, ainda parece inexplicável. Foguetes caindo sobre edifícios residenciais e famílias em fuga tornaram-se a face da Rússia para o mundo. O que poderia ter induzido o governo russo a dar um passo tão fatídico, qualificando-se para se transformar em um Estado pária?

Esforços para compreender a invasão tendem a recair sobre duas escolas de pensamento. A primeira tem como foco o próprio Putin – seu estado mental, seu entendimento da história ou seu passado na KGB. A segunda evoca desenvolvimentos externos à Rússia, principalmente a expansão da Otan para o leste após o colapso da União Soviética, em 1991, como fontes subjacentes do conflito.

Mas, para entender a guerra na Ucrânia, devemos ir além de projetos políticos de líderes Ocidentais e da psique de Putin. O ardor e o conteúdo das declarações de Putin não são novidades para ele, nem singulares. Desde os anos 90, planos para reunir a Ucrânia e outros Estados pós-soviéticos numa potência transcontinental têm sido tramados na Rússia. Uma teoria revitalizada sobre um império eurasiático guia todas as manobras de Putin.

O fim da URSS deixou as elites russas desorientadas, despindo-as do status especial que mantinham num imenso império comunista. O que fazer? Para alguns, a resposta foi ganhar dinheiro, do modo capitalista. Nos anos selvagens que se seguiram a 1991, muitos russos foram capazes de reunir enormes fortunas em conluio com o indulgente regime. Mas, para outros, que haviam estabelecido objetivos sob as condições soviéticas, riqueza e uma economia de consumo vibrante não eram suficientes. Egos pós-imperiais sentiram a perda de status e significância da Rússia.

Com a perda de impulso do comunismo, intelectuais buscaram um princípio distinto sobre o qual o Estado russo poderia ser organizado. Suas explorações tomaram forma de partidos políticos – incluindo raivosos movimentos nacionalistas e antissemitas – e surtiram um efeito mais duradouro no reavivamento da religião enquanto fundação da vida coletiva.

EURÁSIA. Mas, enquanto o Estado atropelava a política democrática, na década de 90, novas interpretações sobre a essência da Rússia se estabeleceram, dando consolo e esperança para pessoas que aspiravam recuperar o prestígio do país no mundo.

Um dos conceitos mais cativantes foi o eurasianismo. Emergindo do colapso do Império Russo, em 1917, essa ideologia postula a Rússia como uma entidade política eurasiática formada por uma profunda história de intercâmbios culturais entre povos turcomanos, eslavos, mongóis e originados em outras partes da Ásia.

Em 1920, o linguista Nikolai Trubetzkoi – um dos vários intelectuais emigrados da Rússia que desenvolveram o conceito – publicou a obra Europa e humanidade, uma crítica incisiva ao colonialismo ocidental e ao eurocentrismo. Ele conclamava os intelectuais russos a libertarem a si mesmos de sua fixação na Europa e ter como base o “legado de Gengis Khan” para a criação de um imenso Estado russo eurasiático continental.

O eurasianismo de Trubetzkoi

Os ucranianos deveriam se unir aos russos em torno da fé cristã-ortodoxa que compartilham

foi a receita para uma recuperação imperial sem o comunismo – que, em sua visão, era importado do Ocidente. Em vez disso, Trubetzkoi enfatizava a capacidade de uma ortodoxia cristã russa revigorada enquanto provedora de coesão por toda a Eurásia, com um respeito solícito aos adeptos das outras fés praticadas nessa enorme região.

Suprimido por décadas na URSS, o eurasianismo sobreviveu nas sombras e irrompeu publicamente durante o período da “perestroika”, no fim dos anos 80. Lev Gumiliov, um geógrafo excêntrico que passou 13 anos em prisões e campos de trabalho forçado, emergiu como um aclamado guru do reavivamento eurasiático na década de 80.

Gumiliov enfatizava a diversidade étnica enquanto farol da história global. De acordo com seu conceito de “etnogênese”, um determinado grupo étnico teria a capacidade, sob a influência de um líder carismático, de evoluir para uma “superetnose” – um poder que abrange uma ampla área geográfica que poderia se chocar com outras unidades étnicas em expansão.

INFLUÊNCIA. As teorias de Gumiliov ressoaram entre muitas pessoas que estavam tentando encontrar seu rumo em meio aos caos dos anos 90. Mas o eurasianismo foi injetado diretamente na corrente sanguínea do poder russo na forma de uma variante desenvolvida pelo pretenso filósofo Aleksander Dugin.

Após intervenções malsucedidas em partidos políticos pós-soviéticos, Dugin desenvolveu sua influência onde era relevante – entre militares e formuladores de políticas. Com a publicação, em 1997, de sua cartilha de 600 páginas, garbosamente intitulada Os fundamentos da geopolítica: o futuro geopolítico da Rússia, o eurasianismo avançou para o centro da imaginação política de estrategistas.

Segundo o ajuste do eurasianismo às condições atuais feito por Dugin, a Rússia tem um novo oponente – não apenas a Europa, mas todo o mundo “atlântico” liderado pelos EUA. E o eurasianismo de Dugin não é anti-imperialista, mas o oposto disso: a Rússia sempre foi um império, o povo russo sempre foi um “povo imperial” e, após a Rússia se vender nos anos 90 ao “eterno inimigo”, ficando incapacitada, a nação seria capaz de ressuscitar, numa nova fase de combate global, e se tornar um “império mundial”. No fronte civilizacional, Dugin ressaltou a ancestral conexão entre a Igreja Ortodoxa e o Império Russo. O combate cristãoortodoxo contra o cristianismo ocidental e a decadência do Ocidente poderiam ser explorados na futura guerra geopolítica.

UCRÂNIA.

Geopolítica eurasiática, ortodoxia cristã russa e valores tradicionais, estes objetivos forjaram a autoimagem da Rússia sob Putin. Temas como glória imperial e vitimização ocidental foram propagados por todo o país. Em 2017, eles retumbaram domesticamente com a monumental exposição Rússia, minha história. As telas da mostra exibiam a filosofia eurasiática de Gumiliov, o martírio sacrificial da família Romanov e os males que o Ocidente havia infligido à Rússia.

E como a Ucrânia figura nesse reavivamento imperial? Como obstáculo, desde o início. Trubetzkoi argumentou em seu artigo Sobre o problema ucraniano, de 1927, que a cultura da Ucrânia era uma “individualização da cultura plenamente russa” e ucranianos e belarussos deveriam se unir aos russos em torno do princípio da fé cristãortodoxa que compartilham.

Dugin simplificou as coisas: a soberania ucraniana representa um “enorme perigo para toda a Eurásia”. Total controle militar e político sobre toda a costa norte do Mar Negro é um “imperativo absoluto” para a geopolítica russa. A Ucrânia tem de se tornar um “setor puramente administrativo do Estado russo centralizado”.

Putin levou a sério a mensagem. Em 2013, ele declarou que a Eurásia é uma importante zona geopolítica, onde o “código genético” da Rússia e de seus vários povos seria defendido contra “o liberalismo extremista de estilo ocidental”. Em julho de 2021, ele afirmou que “russos e ucranianos são um só povo” e descreveu a Ucrânia como uma “colônia sob um regime fantoche”, em que a Igreja Ortodoxa está sob assalto e onde a Otan prepara um ataque contra a Rússia.

Essas atitudes – queixas sobre a agressão do Ocidente, exaltações de valores tradicionais em detrimento de direitos individuais, asserções sobre o dever da Rússia de unir a Eurásia e subordinar a Ucrânia – foram produzidas no caldeirão dos ressentimentos pósimperiais. Neste momento, elas infundem a visão de mundo de Putin e inspiram sua guerra brutal. O objetivo é o império. E seu limite não ficará restrito à Ucrânia.