26 de janeiro de 2022

OS CANHÕES DE JANEIRO! 

(O Estado de S. Paulo, 23) “O que está diante de nós, que poderia ocorrer dentro de semanas, é a primeira guerra industrializada e digitalizada de um grande Exército contra outro grande Exército neste continente em gerações”, alertou, na quarta-feira, James Heappey, vice-ministro de Defesa do Reino Unido, apontando para a concentração de mais de 100 mil soldados da Rússia na fronteira da Ucrânia. “Dezenas de milhares de pessoas poderiam morrer.”

O chefe de Defesa da Estônia ecoou o alerta. “Tudo está se movendo na direção de um conflito armado”, afirmou. Nas semanas recentes, a Rússia mobilizou reservistas e trouxe tropas e mísseis de regiões remotas, como a fronteira com a Coreia do Norte. Países ocidentais preparam-se para o pior.

Na segunda-feira, o Reino Unido começou a mandar de avião milhares de mísseis antitanque para a Ucrânia. Dias antes, a Suécia enviou veículos blindados para a Ilha de Gotland, enquanto três lanchas de desembarque russas cruzavam o Mar Báltico com destino desconhecido. No mesmo dia, a Ucrânia sofreu ciberataques que desfiguraram sites do governo e bloquearam a maioria dos computadores oficiais.

Enquanto isso, a Casa Branca afirmou que possui informações de inteligência dando conta de que a Rússia planejava encenar atos de sabotagem contra as forças que apoia no leste da Ucrânia para fabricar um pretexto para atacar o país.

Esse ataque poderia adquirir muitas formas. Uma possibilidade é a Rússia simplesmente fazer abertamente o que tem feito furtivamente há sete anos – enviar tropas às “repúblicas” de Donetsk e Luhansk, territórios separatistas da região do Donbas, no leste da Ucrânia – seja para expandir seu perímetro a oeste ou para reconhecer as regiões como Estados independentes, como fez quando acionou forças em Abkházia e Ossétia do Sul, duas regiões da Geórgia, em 2008.

CRIMEIA. Outro cenário é a possibilidade de a Rússia buscar estabelecer um acesso terrestre até a Crimeia, a península que anexou em 2014. Isso requereria tomar uma faixa de território de 300 quilômetros ao longo do Mar de Azov, incluindo o porto ucraniano de Mariupol, no Rio Dnieper.

Essas tomadas de território limitadas estão dentro das capacidades das forças concentradas na Rússia ocidental. Mas é menos claro se isso poderia servir aos objetivos de guerra do Kremlin. Se o objetivo da Rússia é deixar a Ucrânia de joelhos e impedir que o país entre para a Otan ou até mesmo coopere com a aliança, simplesmente consolidar o controle de Donbas ou de uma pequena faixa de território dificilmente resolveria a questão.

Fazer isso exigiria impor custos ao governo em Kiev – seja dizimando suas Forças Armadas, destruindo a infraestrutura crucial do país ou acabando com tudo de uma vez. Uma opção para a Rússia seria usar armas “de alcance ampliado”, sem forças terrestres, emulando a guerra da Otan contra a Sérvia, em 1999.

Ataques de lançadores de foguetes e mísseis poderiam causar destruição. Esse armamento poderia ser apoiado com novas armas, como ciberataques contra a infraestrutura ucraniana, como os que prejudicaram a rede de energia do país, em 2015 e 2016.

O problema é que campanhas punitivas como essas tendem a durar mais e serem mais difíceis do que aparentam inicialmente. Se a guerra vier, ataques à distância têm mais probabilidade de ser prelúdios e apoios para a guerra terrestre, em vez de substituí-la. “Não vejo muitos obstáculos no caminho deles até Kiev”, afirma David Shlapak, da Rand Corporation, um instituto de análise.

INSURGÊNCIA. O objetivo, provavelmente, seria danificar a Ucrânia, não ocupá-la. O país é tão grande e populoso quanto o Afeganistão e, desde 2014, mais de 300 mil ucranianos adquiriram alguma experiência militar – a maioria tem acesso a armas de fogo. Autoridades americanas disseram a aliados que tanto o Pentágono quanto a CIA dariam apoio a uma insurgência armada.

A Rússia pode considerar o que o Exército americano chama de “ataque trovão”, afirma Shlapak, um ataque veloz e profundo sobre um front estreito, com intenção de chocar e paralisar o inimigo, em vez de conquistar território. E o ataque não tem de vir apenas do leste.

Na segunda-feira, soldados russos, alguns vindos do extremo oriental do país, começaram a chegar a Belarus, para exercícios militares marcados para fevereiro. A Rússia também afirmou que enviará uma dúzia de aviões militares e dois sistemas de defesa antiaérea S-400. Um ataque vindo do norte, através da fronteira de Belarus com a Ucrânia, permitiria à Rússia se aproximar da capital ucraniana pelo oeste e cercá-la.

“Imagine o centro de Kiev ao alcance de foguetes”, disse Shlapak. “Os ucranianos gostariam de viver essa situação?” Mesmo se o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, estiver disposto a tolerar um cerco, a Rússia pode apostar que o governo dele simplesmente colapsará – e poderá usar espiões, forças especiais e desinformação para acelerar esse processo.

Mas guerras se desenrolam de maneiras imprevisíveis. A Rússia não empreende uma ofensiva em larga escala envolvendo infantaria, blindados e fogo aéreo desde as batalhas que culminaram a 2.ª Guerra. Países sob ataque podem tanto ficar firmes quanto se desintegrar. Ivan Timofeev, do Conselho Russo para Assuntos Internacionais, alerta para um “longo e moroso confronto”, que arriscaria “a desestabilização da própria Rússia”.

CUSTOS. Mesmo a vitória sairia caro. “Os ucranianos lutarão e infligirão grandes baixas aos russos”, afirma Peter Zwack, general da reserva que atuou como adido de defesa dos EUA em Moscou durante a primeira invasão russa à Ucrânia, em 2014. “Isso será difícil para a Rússia, que está basicamente sozinha.”

Juntamente com a ameaça das pesadas sanções sendo preparadas pelos EUA e por seus aliados europeus, e diante da aparente ausência de qualquer apoio doméstico para uma nova aventura, tudo isso pode estar dando a Putin, até mesmo agora, razões para pensar duas vezes.