12 de janeiro de 2022

DIA DO FICO, QUE FAZ 200 ANOS, NÃO FOI 1º PASSO DA INDEPENDÊNCIA, DIZEM HISTORIADORAS! 

(Sylvia Colombo – Folha de São Paulo, 09) Decorada na escola, repetida em filmes históricos, evocada como um provável princípio de um patriotismo brasileiro, a frase talvez nunca tenha sido de fato dita por dom Pedro, naquela época ainda príncipe regente do Brasil — pelo menos não da forma como ficou conhecida.

O Dia do Fico, cujos 200 anos celebram-se neste domingo (9), vem sendo desconstruído pela historiografia contemporânea.

“Há uma lenda dourada sobre o Dia do Fico, que vê a Independência como destino do Brasil, mas a verdade é que a Independência não estava escrita nas estrelas. Naquela época, outras opções estavam em debate e havia distintas pressões agindo. A ideia de que esse episódio ligou o despertador da Independência não é real”, diz à Folha a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz.

Nem a frase é exatamente essa nem o Dia do Fico pode ser considerado o primeiro passo do que seria a Independência do Brasil, proclamada em 7 de setembro de 1822.

Onde estão, então, os problemas dessa versão?

O Dia do Fico, como se conhece o episódio de modo geral, foi a expressão de revolta de dom Pedro que, ao ser convocado a retornar a Portugal pelas Cortes de Lisboa, rebelou-se e, de uma das janelas do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, teria dito: “Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico”.

Só que este não é o registro original e sim o que foi alterado para entrar para a história. Segundo o primeiro edital publicado sobre a sessão, a frase dita pelo regente teria sido outra, bem menos enfática ou heroica.

Ele disse: “Convencido de que a presença da minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorei a minha saída até que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido”.

Para Schwarcz, a frase é uma construção, que fez parte da utilização da pessoa de dom Pedro pela elite imperial como uma figura simbólica. “A elite controlou o fantoche, e esse retoque da frase é apenas um dos aspectos dessa narrativa que esteve por trás da saída imperial para a crise daquele momento”, afirma.

A análise da frase inicial, segundo a historiadora Lúcia Bastos Pereira das Neves, “permite perceber que dom Pedro não estava pensando ainda em uma separação do Brasil com relação a Portugal”.

Ela alerta para o fato de que “não se pode ver a história com os olhos de quem já sabe o que aconteceu depois. Quando disse a frase do Dia do Fico, dom Pedro não tinha convicção sobre o que ocorreria — vinha titubeando, estava pressionado, estava em dúvida sobre suas opções”.

Voltando um pouco no tempo: a família real portuguesa estava no Brasil desde 1808. No ano anterior, temendo o avanço de Napoleão sobre Portugal, o então príncipe regente dom João embarcou com toda a família ao Brasil, com o apoio político e logístico da Inglaterra. Durante os 13 anos em que permaneceu aqui, dom João estabeleceu a corte no Rio de Janeiro, promovendo várias melhorias na cidade e na economia da colônia.

Em 1815, o Brasil teria seu status elevado, passando a fazer parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Na prática, a ex-colônia modernizou-se. Houve a abertura dos portos para nações amigas, que diversificou e aumentou o comércio, e novos edifícios públicos foram construídos.

Também foi possível, por iniciativa de dom João, passar a imprimir jornais no Brasil, algo que era proibido durante a época colonial. Surgiu a Imprensa Régia, que publicava a Gazeta do Rio de Janeiro, e foram criadas instituições como a Real Academia Militar, o Jardim Botânico, o Banco do Brasil, o Teatro São João (hoje Teatro João Caetano) e outras.

A família real também mandou vir a Biblioteca Real de Portugal, com um acervo estimado em 60 mil volumes, que daria início ao que hoje é a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Todos esses avanços foram ameaçados depois, quando ocorreu a Revolução Liberal do Porto, em 1820, em Portugal. Tratou-se de um movimento liberal, nacionalista e constitucional, que buscava reestruturar o império, tendo novamente Portugal como centro político e administrativo.

Para isso, era essencial que dom João 6º retornasse à metrópole e mais, jurasse a Constituição. O plano era desmantelar a ideia de monarquia como as do Antigo Regime. A monarquia “modernizada” teria o rei quase como uma figura simbólica e cerimonial, enquanto o poder político de fato seria exercido pelas Cortes.

Dom João partiu para Portugal para enfrentar a crise e deixou Pedro, então com 22 anos, à frente do país. Antes de viajar, ele teria dito: “Pedro, se o Brasil se separar de Portugal, prefiro que seja para você, que vai me respeitar, e não para alguns desses aventureiros”. Embora não haja comprovação histórica de que a frase tenha sido dita, é outro desses episódios que entraram para a narrativa oficial da Independência.

As Cortes, no entanto, queriam também que dom Pedro voltasse e emitiram um decreto com esse intuito. Segundo o plano, as províncias do Brasil passariam a responder diretamente a Lisboa até que uma junta escolhida por Portugal fosse designada para governar o país.

Para a historiadora Isabel Lustosa, o momento do Fico está totalmente vinculado às ações das Cortes de Lisboa. “Os liberais brasileiros, inicialmente, ficaram satisfeitos com a revolução constitucionalista que aconteceu na cidade do Porto, em razão das liberdades que seriam concedidas, especialmente a liberdade de imprensa. Porém, logo começaram a perceber que as medidas das Cortes apontavam para um retrocesso político e econômico do Reino do Brasil.”

Isso porque, apesar de serem pessoas com ideias liberais, logo perceberam que seus interesses econômicos e sociais estavam sob risco, caso o Brasil, como queriam as Cortes, fosse novamente reduzido em sua autonomia, até eventualmente ser transformado de novo em uma colônia.

“Esses homens enxergaram no processo o prejuízo que recairia sobre seus interesses e se uniram, no final de 1821, em defesa dos mesmos”, afirma Lustosa.

Uma das saídas que foi ganhando força entre a elite brasileira era pressionar o regente dom Pedro a permanecer aqui, evitando a minimização do status do Brasil, ao mesmo tempo que se aniquilaria a possibilidade de uma revolução independentista como as que vinham ocorrendo em outros países da região, com guerras sangrentas e processos de fragmentação territorial no que antes eram os vice-reinados espanhóis.

“A permanência de dom Pedro era importante do ponto de vista institucional, pois ele representava a monarquia e o regime da moda, digamos assim, que era o da monarquia constitucional. O medo da fragmentação do Brasil por falta de um centro de poder que o unisse era grande”, diz a historiadora.

Lustosa concorda com Schwarcz sobre o equívoco de pensar que o Dia do Fico tenha sido um primeiro passo para uma inevitável Independência. “Não havia ainda, no final de 1821, quando elementos das elites do Centro-Sul do Brasil se uniram no Rio de Janeiro pelo Fico, um movimento pela independência do Brasil. O que havia era uma reação a uma circunstância: a forma como o governo estava centralizado nas chamadas Cortes de Lisboa”, diz Lustosa.

Dom Pedro, sozinho no Brasil, também hesitou muito em decidir que passos tomar. Por vezes, mostrava-se em desacordo com o plano de ter sido deixado para trás para governar o país. Manifestou, em cartas ao pai, o desejo de voltar para a Europa. Por outro lado, sentiu a enorme pressão de políticos, comerciantes e da elite brasileira para que ficasse, mantendo algo de ordem e de unidade no país.

“O medo da Revolução Haitiana também era muito real entre as elites latino-americanas. No Brasil, a ideia de manter a ordem a qualquer custo era muito presente entre as pessoas que tinham dinheiro e poder. Portanto, a ideia de não submissão às ordens das Cortes respondia mais a esse sentimento de garantia da manutenção de interesses”, diz Lúcia Bastos Pereira das Neves.

“A opção imediata não era a Independência, mas a manutenção dos privilégios dessa classe e da ordem no país, com a presença de um monarca. É preciso fazer um esforço para entender como as pessoas daquela época pensavam”.

Mesmo entre as províncias, havia divisão sobre as atitudes a tomar. Pernambuco e Bahia, por exemplo, estavam mais próximas da ideia de apoiar as Cortes. No Rio e em São Paulo, as elites se dividiam entre os conservadores vinculados a José Bonifácio e os mais radicais, liderados por Joaquim Gonçalves Ledo.

Dom Pedro era muito influenciado pela posição da mulher, Leopoldina, e não foi diferente nesse episódio. “Dona Leopoldina, como as princesas de seu tempo, destinadas pelo casamento a garantir acordos de cooperação internacional, era uma legítima representante dos interesses da Áustria, onde nascera. Era legitimista, absolutista e catolicíssima, mas muito inteligente e arguta”, afirma Isabel Lustosa.

“Ela compreendeu que a autonomia do Brasil, mesmo que ainda sem a independência declarada, era fundamental para o sucesso daqueles interesses.”

O momento que culminou na proclamação do Fico ocorreu em 9 de janeiro, quando o príncipe regente recebeu uma carta assinada por 8.000 pessoas que pediam sua permanência no país. Depois de ler a missiva, dom Pedro proferiu a frase e acabou permanecendo no Brasil.

“As pessoas gostam da história arrumadinha, com a cronologia clara, só que ela não é assim. O episódio do Fico tem importância, mas já é hora de vermos a Independência em um conjunto maior de eventos, que não ocorreram apenas na Corte do Rio de Janeiro”, diz Lilia Schwarcz.

A antropóloga e historiadora sustenta que “havia outros protagonistas, homens e mulheres, em outras regiões do Brasil. Talvez a efeméride dos 200 anos seja uma boa oportunidade de fugirmos da agenda clássica e jogarmos luz nesses outros eventos”