17 de dezembro de 2021

ANTIPOLÍTICA NO CHILE!

(João Vitor Cardoso, pesquisador do Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social e doutorando pela Universidad de Chile – Folha de S. Paulo, 04) Devido ao marco eleitoral definido pela ditadura (o dito ‘sistema binominal’), no Chile se estabeleceram duas grandes coalizões políticas: por um lado, a ‘Concertación’, abrangendo os partidos de esquerda; e, por outro, a ‘Alianza por Chile’, com a direita. Apesar de outras coligações também se estruturem ao longo do tempo, como a ‘Frente Amplio’, do candidato presidencial esquerdista Gabriel Boric, este sistema gerou no país duas identidades políticas tradicionais.

Em 2015, houve uma reforma que pôs fim a tal sistema e, entre outras medidas, obrigou os partidos a apresentar 40% de candidaturas femininas. Antes, em 2012, o voto passou a ser facultativo e, desde então, a tendência de participação eleitoral apresentou baixa considerável. Em suma, nas últimas décadas, os presidentes foram sendo eleitos graças ao voto de aproximadamente um terço do eleitorado. A mobilização deste terço em cada banda ideológica vai provocando o espelhamento da representação política em duas minorias – enquanto, ao mesmo tempo, o grupo de pessoas que não se identifica com o sistema eleitoral cresceu nos últimos anos.

Esse processo acompanha a redução da identificação partidária que vem ocorrendo na América Latina. O Chile, depois da Guatemala, é o país da região onde as pessoas menos se identificam com um partido político. Para além da polarização direita-esquerda, como o cientista político Carlos Meléndez observa, a orientação negativa em relação aos partidos políticos é um previsor importante da intenção de votos.

Essa ‘anti-identificação’ com os partidos revelou-se no primeiro turno das eleições presidenciais com o sucesso do candidato outsider Franco Parisi, que abraçou uma identidade ‘antissistêmica’ e ficou em terceiro lugar. Neste gradual abandono da identificação partidária, as pessoas ‘apartidárias’, que aparentemente recusavam qualquer politização, agora parecem tender ao populismo.

Vale lembra que, em outubro de 2019, os levantes populares, conhecidos como ‘Estallido Social’, ecoaram a crise do modelo de ‘soluções privadas para problemas públicos’ estabelecido pela Constituição de 1980, como sintetiza o constitucionalista Javier Couso. Com efeito, observa-se uma tensão entre eficácia econômica e legitimidade política na medida em que esta última está ancorada na promessa de expansão do consumo e ascensão social das classes médias.

Assim, em um contexto de estancamento econômico, aumento nas tarifas de serviços básicos, alta concentração de renda, avanço da criminalidade, intenso movimento imigratório e profunda deslegitimação do sistema político, o modelo socioeconômico constitucionalizado pela ditadura colapsa.

Enquanto a desorganização da economia gera convulsão social, esta desorganiza o sistema político. Um ano depois, em outubro de 2020, 78% dos chilenos votaram a favor de abrir um processo constituinte, em plebiscito que teve a maior participação eleitoral da história do país desde a instituição do voto facultativo.

Os candidatos presidenciais que chegaram ao segundo turno colocam-se em polos opostos diante desse fenômeno: o ultradireitista José Antonio Kast chamou a população a votar pelo ‘recuso uma nova Constituição’ e reduziu a convulsão social a uma questão de segurança pública; já Boric estava na mesa de negociações do acordo multipartidário que abriu caminho para a institucionalização do processo constituinte.

Caso este resista às eleições, o Chile terá a primeira Constituição paritária do mundo, graças a um mecanismo de correção de resultados destinado a assegurar que nenhum sexo esteja super-representado no organismo que está redigindo a nova Carta do país. Aos representantes dos povos originários também foram garantidos 17 assentos, distribuídos de acordo com a prevalência de cada grupo étnico.

Na eleição do próximo dia 19 de dezembro, o exemplar processo constituinte, com regras eleitorais inovadoras, pode estar em jogo. Por um lado, as consequências da crise social abriram caminho para uma atuação crescente de grupos, setores e classes emergentes, culminando na Constituinte; por outro, observa-se uma pane na classe média, que acaba se deixando levar por populismos que prometem segurança e estabilidade na base da força.