A MARCHA À RÉ LATINO-AMERICANA!
(Editorial – O Estado de S. Paulo, 31) A vida piorou, as desigualdades voltaram a aumentar e tudo o que se ganhou nas duas últimas décadas está em risco. A América Latina pode ter iniciado uma rota que, se percorrida até o fim, a levará de volta ao século 20 em termos de bem-estar social. O ônus que a pandemia impôs à população mundial parece maior para quem vive na região. É muito pesado o custo humano da pandemia mostrado no estudo Como vai a vida na América Latina?, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Em alguns países, ações ou inação de governos agravaram a situação que se deteriorava por causa da covid-19, e mesmo antes de sua chegada. No caso do Brasil, incompetência, irresponsabilidade, insensibilidade e, sobretudo, indiferença em relação aos mais carentes caracterizaram a ação do governo Bolsonaro, de longe o melhor exemplo de eficiência para piorar o que já vai mal.
Pode-se estar assistindo a uma dramática mudança na região. Nas duas primeiras décadas deste século, houve avanços notáveis no bem-estar das pessoas que vivem na América Latina. Em média, lembra a OCDE, o gasto com consumo nos lares aumentou cerca de um terço entre 2000 e 2019. A esperança de vida aumentou, da mesma forma que subiram os índices de escolaridade e o número das habitações com acesso à água potável.
O número de pessoas em situação de pobreza absoluta (renda insuficiente para satisfazer suas necessidades de alimentação e moradia) era de 1 para 3 em 2006 (cerca de 33% do total) e melhorou substancialmente, chegando a 1 para 5 em 2019 (20%). A proporção da população com ensino médio completo passou de 34% para 46%.
A América Latina deixara de ser o mau exemplo sempre citado nas organizações econômicas e financeiras internacionais. Desde meados da década passada, porém, o avanço dos indicadores de qualidade de vida e de bem-estar perdia velocidade ou estacava. O fim do auge da alta dos preços das commodities é apontado como o responsável pela mudança de tendência.
A pandemia acentuou esse processo. A queda dos índices de satisfação com a qualidade de vida foi mais acentuada na América Latina do que nos países da OCDE. E a redução foi mais notada entre as pessoas vulneráveis: mulheres, jovens, população rural e pessoas com menor nível de instrução.
Os números que mostram a piora do quadro social são expressivos. Por causa da crise, mais 22 milhões de pessoas passaram a fazer parte das que estão abaixo da linha de pobreza na região; no total, em 2020, eram 209 milhões de latino-americanos nessa condição.
Medidas necessárias para combater a pandemia, como o isolamento social, foram especialmente duras para os trabalhadores informais e de renda mais baixa. Os informais formam um grande grupo. Estima-se que 38% dos trabalhadores da região não disponham de nenhum tipo de proteção social.
O fechamento das escolas exigiu soluções como ensino a distância, mas 46% das crianças de 5 a 12 anos vivem em lares sem conectividade e menos de 14% dos estudantes pobres do ensino fundamental dispõem de computador ligado à internet. A pandemia aumentou exponencialmente a demanda por serviços de saúde física e mental, mas cerca de 25% da população latino-americana não tinha acesso a serviços essenciais de saúde quando a covid-19 foi detectada na região.
Esse cenário e as tendências de piora que ele pode estar indicando exigem não apenas a retomada do crescimento econômico, que assegure mais receitas para o setor público e mais renda para as empresas e as famílias. Exigirão dos governos programas sociais voltados para a busca e melhora do bem-estar de suas populações. Indicadores como renda e consumo, trabalho e qualidade do emprego, habitação e saúde, conhecimentos e capacidade profissional, segurança e conciliação entre vida pessoal e profissional, entre outros, precisam ser levados em conta na montagem, execução e aferição de programas com esses objetivos.
No caso brasileiro, infelizmente, nada se pode esperar nessa direção de um governo que parece dedicar profundo desprezo pelos dramas vividos pela população