OS EUA E A POLÍTICA EXTERNA!
(Fareed Zakaria – O Estado de S. Paulo, 20) Se Biden seguir curso atual, historiadores poderão considerá-lo o presidente que normalizou a política externa de Trump.
Amanhã, o presidente Joe Biden fará seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU. Esse discurso chega em um momento crucial de sua presidência e terá um impacto particular na maneira como seu governo será visto no exterior. Depois de quase oito meses analisando políticas, retóricas e crises, muitos observadores estrangeiros ficaram surpresos – até chocados – ao descobrir que, área após área, a política externa de Biden é uma fiel continuação da de Donald Trump e um repúdio à de Barack Obama.
Parte dessa consternação é consequência da maneira abrupta e unilateral com que Biden retirou as tropas americanas do Afeganistão. Um diplomata alemão me disse que, no seu modo de ver, o governo Trump consultava mais Berlim do que este. Outras consequências vêm de ações específicas, como o negócio do submarino, que enfureceu os franceses.
Mas as crescentes preocupações vão muito além de qualquer episódio. Um alto diplomata europeu observou que, nas negociações com Washington sobre qualquer coisa, desde vacinas até restrições de viagens, as políticas de Biden são “‘América em primeiro lugar’ na lógica, qualquer que seja a retórica”. Um político canadense disse que, se forem seguidos à risca, os planos “Buy America” de Biden são, de fato, mais protecionistas do que os de Trump. Apesar de ter criticado as tarifas de Trump repetidas vezes, Biden manteve quase todas elas. (Na verdade, muitas foram ampliadas, uma vez que a maioria das isenções acabaram expirando).
Os principais aliados asiáticos continuam pressionando Biden a retornar à Parceria Transpacífico – muito elogiada por ele quando o governo Obama a negociou. Em vez disso, a ideia foi arquivada.
Outro exemplo notável da política externa surpreendentemente trumpista de Biden é o acordo com o Irã, uma das conquistas marcantes do governo Obama. Ao longo da campanha eleitoral, Biden argumentou que a retirada de Trump desse acordo fora um erro fundamental e que, como presidente, ele se reintegraria ao acordo, desde que o Irã também cumprisse o prometido. Seu conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, descrevera a reimposição de sanções secundárias de Trump contra Teerã como “unilateralismo predatório”.
Mas, desde que assumiu o cargo, Biden não conseguiu retornar ao acordo e até aumentou algumas sanções. Depois de passar muito tempo argumentado contra a tentativa de renegociar o acordo, as autoridades de Biden agora querem “estendê-lo e fortalecê-lo”. Até agora, essa estratégia Trump-biden não funcionou. O estoque de urânio enriquecido do Irã passou de menos de 300 quilos em 2018 para mais de 3 mil em maio.
Vejamos também a política em relação a Cuba. O governo Obama foi ousado o suficiente para enfrentar um dos mais flagrantes fracassos da política externa americana. Depois de isolar e impor sanções a Cuba desde 1960 para forçar uma mudança de regime no país, os Estados Unidos, ao invés disso, fortaleceram o governo comunista. Fidel Castro despertou fervor nacionalista ao colocar no embargo a culpa por todos os problemas cubanos e, longe de ser derrubado, acabou permanecendo no poder por mais tempo do que qualquer líder não monarquista no planeta.
Como no caso do Irã, o custo dessas políticas foi pago pelas pessoas comuns. Um dos aspectos mais cruéis da política de sanções dos Estados Unidos é que ela é prontamente implantada porque satisfaz grupos de interesses especiais em Washington e é indolor para os americanos, mas inflige danos horríveis aos mais pobres e impotentes que não têm como protestar nem reagir.
Obama começou a relaxar essas políticas em relação a Cuba. Trump inverteu o curso. Biden vem mantendo a política de Trump e, na verdade, endureceu as sanções. Numa votação recente da Assembleia Geral da ONU que condenava os 60 anos de embargo americano, o resultado da votação foi 184 a 2.
Biden e sua equipe muitas vezes criticaram Trump por seu ataque às regras do sistema internacional. Mas como reconstruir tal sistema e, ao mesmo tempo, abraçar o protecionismo descarado, as sanções unilaterais, as poucas consultas e as políticas “América em primeiro lugar” sobre vacinas e até mesmo restrições de viagem?
Na semana passada, quando eu estava voltando da Europa, a funcionária da companhia aérea britânica que fazia o check-in me disse nervosamente: “Espero que o senhor tenha passaporte americano”. Eu respondi que sim, mas perguntei por que ela parecia tão aliviada. Ela respondeu: “Oh, os americanos estão fazendo os europeus enfrentarem um pesadelo para entrar no país. E parece muito injusto, porque temos taxas de vacinação muito mais altas e níveis muito mais baixos de covid do que vocês”. Ela concluiu exasperada:
“Parece que hoje em dia vocês, americanos, só querem um esquema que os favoreça, não importa o que os outros pensem”.
Não precisava ser assim. O egoísmo de Trump deveria ser uma aberração. Biden pode usar o púlpito da ONU para retornar às suas profundas raízes de internacionalista que entende que os países não se aliam aos Estados Unidos simplesmente por medo, suborno ou preocupações de segurança.
Eles o fazem porque seus melhores presidentes articularam e perseguiram políticas que, embora sempre estivessem atentas aos interesses americanos, também tentavam construir uma ordem internacional aberta e baseada em regras que ajudasse outros países a prosperar. Se Biden continuar seu curso atual, porém, os historiadores um dia poderão considerá-lo o presidente que normalizou a política externa de Donald Trump.