MILÍCIAS: UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA – PARTE I!
(Luiz Eduardo Soares, Antropólogo e cientista político – Insight Inteligência)
Depoimento a Francisco Ourique e Marcio Scalercio
Temos diante de nós mais do que um tema, um desafio que nos angustia, nos mobiliza. É fundamental compreendermos o que significam as milícias, para que seja possível de alguma maneira definir políticas públicas, iniciativas e terapias para essa patologia tão dramática e com efeitos de fato degradantes para a sociedade, para a democracia.
É sabido que essas categorias variam historicamente e têm outras raízes, outras significações. Seguindo a trilha da história, recuo até os anos 60 ou talvez até meados dos anos 50 e, evidentemente, partindo de alguns pressupostos indispensáveis, levando em conta de que país estamos falando.
Nosso país é profundamente desigual e marcado pelo racismo estrutural. Um país cuja história tem sido muito dura e violenta. Portanto, os episódios, esses eventos, as circunstâncias e dinâmicas são profundamente violentos e, nesse sentido, compatíveis com as características da nossa sociedade. Sendo assim, dificilmente seriam possíveis em outros contextos.
Em meados dos anos 50 o chefe da polícia do Rio de Janeiro – esse episódio é narrado pelo professor Michel Misse – constituiu um grupo de policiais cuja função era executar supostos criminosos, os suspeitos para sermos mais precisos, e fazê-lo clandestinamente. Acentue-se a importância desse advérbio, clandestinamente, que evidentemente tem implicações. Nos anos 60, a partir de uma série de circunstâncias, que são inclusive bastante conhecidas, porque sempre aludidas pelos relatos, inclusive os relatos relativos à segurança pública ou à insegurança do Rio de Janeiro no início dos anos 60, formaram-se as “escuderias”, particularmente a “Scuderie Detetive Le Cocq”. Tratava-se de uma associação, um grupo de policiais inicialmente reunidos em torno de uma missão: vingar um colega, o detetive Mariel Mariscot, que havia sido morto por um criminoso.
A “Scuderie Detetive Le Cocq” se autocompreendia e se autodefinia como um grupo de justiceiros. Entretanto, cumprida essa missão mórbida, sinistra, o grupo não se desconstituiria, seguiria adiante atribuindo-se sempre novas missões, e todas elas orientadas por esse tipo de valor que lhes cabia, o de executar supostos criminosos. Ao longo dos anos 60, com desdobramentos diversos que não vêm ao caso, esse grupo original acabou se desdobrando tentacularmente, gestando um conjunto de coletivos ou de grupamentos policiais que então adquiriram um outro nome (esquadrões da morte), e que ainda eram orientados e atuavam sobretudo na Baixada Fluminense.
O professor José Claudio de Sousa estudou com profundidade única esse fenômeno, principalmente na Baixada, onde se realizava o mesmo tipo de tarefa, a execução de supostos criminosos. Esse tipo de prática depois alcançou outras vítimas. Se, inicialmente, a ideia era de que os suspeitos fossem executados, na sequência, esses grupos se converteram em pistoleiros a soldo, atendendo a demandas ad hoc no varejo do cotidiano e das políticas locais. Muitas vezes por motivos comerciais e econômicos; em outras, por motivos puramente pessoais ou políticos, executavam como profissionais do crime, profissionais do que se dizia, à época, da pistolagem. Atuaram não somente no Rio de Janeiro, pois isso foi um fenômeno conhecido Brasil afora. O Espírito Santo foi muito marcado por essa história também, assim como Minas Gerais, Norte e Nordeste. Há também episódios em São Paulo e no Sul.
Portanto, estamos diante não apenas daqueles grupos que foram gerados a partir da incubadora criminal que havia sido aquela Scuderie, inspirada já nas iniciativas dos anos 50, mas também tivemos a adoção da mesma prática e da mesma metodologia por grupos distintos de policiais Brasil afora. Os grupos aqui se converteram inclusive em protagonistas de manchetes na mídia.
Policiais fora de função, o regime militar e os bicheiros
Vários policiais foram, a partir de um certo momento, aliciados pela repressão da ditadura inaugurada em 1964 e, uma vez recrutados e treinados, serviram às práticas de tortura e de assassinato de opositores políticos do regime militar. Eles, entretanto, nunca deixaram efetivamente de estar organicamente vinculados às suas instituições policiais de origem. Com o declínio da ditadura e início do processo de transição, dedicaram-se integralmente às instituições das quais jamais deixaram de fazer parte.
Muitos deles foram perscrutando o mercado, encontraram nichos favoráveis e foram “adotados” pelos bicheiros, que eram os “capos”, os chefes no crime organizado na Baixada Fluminense e na capital do Rio de Janeiro, atuando também para além dessas fronteiras. Eles serviram aos bicheiros não apenas como seguranças. Em algumas vezes, disputaram com os chefes e acabaram ocupando um lugar entre os barões do bicho. O caso mais conhecido é o do Capitão Guimarães (Aílton Guimarães Jorge).
São figuras híbridas, fruto dessa história heterogênea, irregular, descontínua, em que se passava sucessivamente da instituição policial para a atuação na repressão política, dali para o crime organizado diretamente e para um empreendimento econômico criminoso, finalmente. Alguns retornaram e foram absorvidos mais de uma vez por suas corporações. Essa história é muito importante porque ela é reveladora em alguns aspectos. Vamos suspendê-la, por ora, para nos concentrarmos na transição política.
As mazelas da transição política – mudar para que tudo fique como antes
A referência é um processo que se conclui, que culmina, em 1988, com a promulgação da nossa primeira Constituição efetivamente democrática. Evidente que isso não significa que ela tenha sido aplicada plenamente ou que tenha correspondido à realização substantiva da democracia tal como configurada formalmente nos seus termos normativos. No entanto, do ponto de vista formal, era efetivamente um documento importante e único em nossa história. Correspondia a uma conquista extremamente significativa. Entretanto, nós sabemos que as transições no Brasil, mesmo aquelas que envolvem algum nível de ruptura, se deram por negociações entre as elites, que acabaram sempre se recompondo. O Brasil é marcado pela modernização conservadora, pela via prussiana, se envolvendo com o capitalismo, pelas revoluções passivas, enfim pelo capitalismo intrinsecamente autoritário, que exclui a participação das massas, das classes subalternas e que acaba se reproduzindo, a despeito de suas mutações, por seu dinamismo, sempre a partir de rearranjos e novas coalizões que vão se formando entre representantes, líderes e as elites políticas, econômicas e sociais.
Isso não foi diferente em 1988, e a nossa transição foi negociada. Nós saltamos do momento da verdade – para usar aquela distinção sugerida pelo Nelson Mandela e pelo caso da África do Sul, entre o momento de verdade e o momento de reconciliação –, e passamos diretamente para a reconciliação varrendo as cinzas do passado, as feridas, os cadáveres, as brutalidades, a barbárie toda, para debaixo do tapete e passamos imediatamente para o novo regime que se inaugurava com a promulgação da Constituição de 1988.
A negociação dessa passagem envolvia evidentemente os representantes do regime anterior, da ditadura militar, que ainda dispunham de alguma influência, e as demais forças políticas estabelecidas, sendo que o ambiente proporcionava aos representantes do antigo regime um poder de decisão razoável. Eles se interpuseram em alguns casos, e firmaram um pé em torno de algumas exigências; uma delas, entre outras, muito relevante para nós, aqui para nossa reflexão. Eles impuseram uma reserva na área da segurança pública. O campo institucional da segurança pública, quiçá em alguma medida, a justiça criminal, mais particularmente da segurança pública. E as estruturas organizacionais forjadas pela ditadura nos foram, portanto, legadas.
Na democracia herdamos as instituições sem qualquer reorganização, sem qualquer reestruturação. É claro que nos novos tempos, novos ares, novas referências legais, muitos procedimentos foram alterados. Mas percebam que, quando uma estrutura organizacional é preservada, é conservada, ela traz consigo seres humanos, indivíduos, homens e mulheres de carne e osso, com seus valores, suas crenças e suas disposições afetivas. Protocolos de ação, protocolos práticos, que estavam presentes na socialização, são absorvidos, incorporados, e mantidos de tal maneira que nós podemos dizer que essa reserva da área de segurança pública que, portanto, não foi atingida, não foi tocada, não foi atravessada pelo tsunami transformador da democracia, essa reserva acabou suscitando a inauguração, a instauração, de uma dupla temporalidade, se me permitem a imagem.
De um lado nós tivemos o tempo fluente, vivo, da democracia: avanços, mobilizações, ampliação da experiência da cidadania, redução da pobreza bastante significativa ao longo das décadas subsequentes, maior participação; enfim, um conjunto muito significativo de avanço de conquistas, com limites, com contradições, evidentemente. Por outro lado, a consagração dessa outra temporalidade, uma temporalidade cristalizada, congelada, que remete aos tempos imemoriais, à nossa história mais funda, que é a história da escravidão, da brutalidade, do racismo estrutural, das desigualdades.
Essa história que marcou todo o percurso das instituições policiais ao longo do tempo esteve presente na reorganização ali forjada das instituições policiais. E essa história concentrada, temperada pela ditadura, nos foi legada. Portanto, é esse passado congelado, refratário às mudanças, ao dinamismo da democracia, é esse passado que convive, com todo o seu peso, sua espessura e sua resistência com a vibração democrática da sociedade brasileira, sem idealizações, guardadas aqui todas as limitações já referidas.
Vejam que desenho paradoxal, uma dicotomia, uma dualidade, uma contradição. As corporações policiais não podem ser objeto de nenhuma descrição genérica, superficial, que sintetize toda uma complexidade em duas ou três palavras e qualificativos, mas não é equivocado dizer que depois da observação dessas últimas três décadas, no período democrático, está bastante patente que os segmentos mais numerosos desses quase 800 mil homens e mulheres que compõem as nossas instituições policiais, a maioria de fato continua ligada a uma cultura corporativa, cujos valores foram aqueles apurados, maturados, que levedaram nos tempos do nosso passado mais remoto e que foram, digamos, atualizados durante a ditadura.
Ainda são aqueles que justificam execuções extrajudiciais, que confundem justiça com vingança e que são absolutamente refratários ao poder civil, à legitimidade republicana e à autoridade política. Imaginem então, homens e mulheres em armas, essa que é uma função crucial para qualquer estado democrático de direito. O estado democrático de direito não pode prescindir da força. O Estado é detentor monopolista do uso dos meios de coerção, do uso legítimo de coerção, e os aparatos policiais são aparatos fundamentais portanto, e lhes compete no limite o exercício comedido, moderado da força, seguindo evidentemente parâmetros legais, constitucionais, observando tratados internacionais de direitos humanos etc.
Essa é uma função preciosa, fundamental, em que se joga o jogo da vida e da morte. Portanto, nós estamos falando de instituições extremamente importantes, pois elas foram relegadas ao segundo plano, e toda nossa história republicana democrática recente se dá às expensas delas, como se elas permanecessem à sombra, à margem da vitalidade transformadora reformista. E o Brasil como nação conseguiu, então, conviver com o genocídio de jovens negros e de jovens pobres nos territórios mais vulneráveis, com a brutalidade policial letal sem paralelo entre os países que oferecem dados mínimos a esse respeito, com um nível de violência endereçada sempre, claro, predominantemente aos negros, aos mais pobres e residentes dessas áreas mais vulneráveis, sistematicamente, independentemente de governos, inclusive de suas orientações políticas ideológicas.
Essa temporalidade cristalizada, congelada, refratária aos princípios democráticos, esse enclave institucional que as polícias representam, mostrava inúmeras vezes que era refratária à democracia, repelindo a autoridade política republicana civil. Como se fazia isso? Impedindo que os governadores de fato comandassem essas polícias. É um fato que é preciso reconhecer: os governadores não comandam, salvo excepcionalmente, mas de fato não comandam as suas polícias.
Os Ministérios Públicos, que são responsáveis constitucionalmente pelo controle externo das atividades policiais, a despeito de seus esforços admiráveis, infelizmente ainda são diminutos, insuficientes, minoritários. E a Justiça abençoa a cumplicidade, a que na prática nós verificamos em uma outra parte do Ministério Público, com a reprodução desse tempo congelado que é o passado redivivo que nos acompanha como uma sombra, como uma espécie de fantasma de um outro país a nos assombrar, um outro país que é o reverso, o avesso, que é o oposto daquilo que a nossa Constituição define como sendo o nosso regime constitucional legal.
Isso se dá em função da natureza da nossa transição e das dificuldades extraordinárias que o poder civil teve ao longo de todos esses anos para lidar com essa questão, de elaborá-la, de compreendê-la, de compreender sua gravidade extraordinária.
Temos agora um fenômeno diante de nós que nos impõe a reflexão e a ação. Não é mais possível o silêncio negligente, a omissão cúmplice; não é mais possível pretender ignorar o que representam as polícias como instrumentos repressivos, com bases e com vieses que são inadmissíveis, cuja exibição ostensiva, cuja explicitação em alguns países, mesmo caracterizados pela violência crucial, como os Estados Unidos, provocam revoltas, insurreições que inundam a nação. Aqui nós temos episódios que são lá excepcionais, diariamente rotinizados, naturalizados. Isso não se daria, caso segmentos numerosos da sociedade não fossem coniventes, ou de alguma maneira compartilhassem também esses valores, e isso é extremamente interessante, é fascinante do ponto de vista sociológico, antropológico e histórico, mas é dramático para nós como brasileiras e brasileiros.
O Brasil convive com essa duplicidade, o enclave dessa força que resiste à democracia e convive com ela, com a anuência de instituições republicanas aceitando o inaceitável e aplausos da sociedade por conta do fato de que a cultura dessas corporações, que é uma cultura que tem traços fascistas, é uma cultura racista, misógina, homofóbica, brutal, que justifica o linchamento etc. Os seres humanos não são apenas isso ou aquilo, frequentemente são isso e aquilo e sociedades mais ainda. Pode haver – no caso brasileiro é evidente – empatia, compaixão, disposição afetiva e solidária e ao mesmo tempo a brutalidade mais atroz, a crueldade reiterada, e nós convivemos com isso, sendo simultaneamente o nosso passado e a antecipação de um futuro idealizado que nunca se realiza.