A MENTIRA COMO FERRAMENTA POLÍTICA!
(Andrew Higgins – NYT/O Estado de S. Paulo, 12) Em um telegrama para Washington em 1944, George F. Kennan, conselheiro da embaixada dos EUA na Moscou de Stalin, alertou sobre o poder oculto mantido por mentiras, observando que o governo soviético “tinha comprovado algumas coisas estranhas e perturbadoras sobre a natureza humana”.
A mais importante entre elas, escreveu ele, é que, no caso de muitas pessoas, “é possível fazê-las sentir e acreditar em praticamente qualquer coisa”. Não importa o quão falso algo possa ser, ele escreveu, “para as pessoas que acreditam nisso, torna-se verdade. Ela conquista a validade e todos os poderes da verdade”.
A visão de Kennan, formada por sua experiência na União Soviética, agora tem uma ressonância assustadora para os EUA, onde dezenas de milhões acreditam em uma “verdade” inventada pelo presidente Donald Trump: Joe Biden perdeu a eleição de novembro e tornou-se presidente eleito apenas por meio de fraude.
Mentir como ferramenta política não é novidade. Nicolau Maquiavel, escrevendo no século 16, disse que as pessoas não gostam de ser enganadas, mas “aquele (líder) que engana sempre encontrará aqueles que se permitem ser enganados”. A disposição, e até mesmo o entusiasmo, de ser enganado tornouse nos últimos anos uma força motriz na política mundial, principalmente em países como Hungria, Polônia e Turquia, todos governados por líderes populistas adeptos a contar meias-verdades ou inventá-las completamente.
Janez Jansa, um populista de direita que em 2018 tornou-se primeiro-ministro da Eslovênia – o país natal de Melania Trump – foi rápido em abraçar a mentira de Trump de que ele venceu. Jansa o parabenizou após a eleição de novembro, dizendo “está muito claro que o povo americano elegeu” Trump e lamentando “fatos negados” pela grande imprensa.
Até o Reino Unido, que se considera um bastião da democracia, foi vítima de mentiras evidentes, mas amplamente aceitas, votando em 2016 para deixar a União Europeia após alegações do lado pró-brexit de que sair do bloco significaria ¤ 350 milhões a mais (R$ 2,3 bilhões) todas as semanas para o serviço de saúde do país. Aqueles que propuseram essa mentira, incluindo o político do Partido Conservador que se tornaria primeiro-ministro, Boris Johnson, mais tarde admitiram se tratar de um “erro”.
Mentiras maiores e mais corrosivas, aquelas que não apenas mexem com números, mas remodelam a realidade, encontraram apoio na Hungria. Lá, o líder populista Viktor Orbán classificou o investidor e filantropo George Soros, um judeu nascido na Hungria, como o mentor obscuro de um plano sinistro para minar a soberania do país, substituir os húngaros nativos por imigrantes e destruir os valores tradicionais.
Na Polônia, o profundamente conservador Partido Lei e Justiça de Jaroslaw Kaczynski, no poder desde 2015, promoveu a própria teoria da conspiração multifuncional que muda a realidade. O partido repete a alegação, já desmascarada, de que a morte em 2010 de dezenas de autoridades polonesas, incluindo o irmão de Kaczynski – presidente da Polônia na época – em um acidente de avião no oeste da Rússia foi o resultado de um complô orquestrado por Moscou e ajudado, ou ao menos encoberto, pelos rivais do partido em Varsóvia.
Trump. Nos EUA, ao promover uma mentira colossal, de que obteve uma “vitória eleitoral esmagadora inviolável”, e se apegando a ela apesar de dezenas de decisões judiciais estabelecendo o contrário, Trump ofendeu seus oponentes políticos e deixou até mesmo alguns de seus apoiadores de longa data balançando a cabeça em relação a sua mentira.
Ao abraçá-la, no entanto, o presidente escolheu um caminho que geralmente funciona – pelo menos em países sem sistemas jurídicos fortemente independentes e meios de comunicação, assim como outras organizações, que trabalham com verificação da realidade.
Depois de 20 anos no poder na Rússia, o presidente Vladimir Putin, por exemplo, mostrou que Kennan estava certo quando escreveu da capital russa em 1944: “Aqui os homens determinam o que é verdadeiro e o que é falso”. Muitas das mentiras de Putin são relativamente pequenas, como a alegação de que jornalistas que expuseram o papel do serviço de segurança da Rússia em envenenar o líder da oposição Alexei Navalni estavam trabalhando para a CIA. Outras não são, como sua insistência em 2014 de que os soldados russos não desempenharam nenhum papel na tomada da Crimeia da Ucrânia ou nos combates no leste da Ucrânia – mais tarde reconheceu que “é claro” que eles estavam envolvidos.
Se o universo de Trump entrará em colapso agora que alguns aliados saíram de cena e o Twitter acabou com seu megafone mais potente para transmitir mentiras, é uma questão em aberto. Mesmo depois do cerco ao Capitólio por arruaceiros pró-trump, 174 integrantes do Congresso votaram contra o resultado da eleição.
Na Rússia, Hungria e Turquia, a percepção de que o “outro sujeito” não deve ter permissão de oferecer uma versão diferente da realidade levou a uma pressão constante a jornais, emissoras de televisão e outros meios de comunicação fora de sintonia com a linha oficial. O presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, fechou mais de 100 veículos de imprensa e, por meio de intimidação da polícia tributária e outras agências estatais, forçou os principais jornais e emissoras a transferir o comando a partidários do governo.
A ascensão de Trump também ajudou a capacitar um primo da grande mentira – um boom na desinformação nas mídias sociais e na ficção da teoria da conspiração de extrema direita. Isso foi mais notavelmente personificado pela expansão global do Qanon, um fenômeno outrora obscuro que afirma que o mundo é dirigido por uma conspiração de poderosos políticos liberais que são pedófilos sádicos. Trump não repudiou os discípulos da ideia, muitos dos quais participaram do caos no Capitólio na quarta-feira.
Até certo ponto, cada nova geração fica chocada ao saber que os líderes mentem e as pessoas acreditam neles. “Mentir nunca foi tão difundido como hoje. Ou mais desavergonhado, sistemático e constante”, escreveu o filósofo francês Alexandre Koyré em seu tratado de 1943, Reflexões Sobre a Mentira.
O que mais afligia Koyré, no entanto, era que as mentiras nem precisam ser plausíveis para funcionar. “Pelo contrário”, escreveu ele, “quanto mais grosseira, maior, mais imperfeita a mentira, mais prontamente ela é acreditada e seguida”.