O LIVRO DE BOLTON E OS PROBLEMAS DO PRESIDENTE!
(Fareed Zakaria – O Estado de SP, 22) O livro de John Bolton nos diz muito pouco de novo a respeito da política externa de Donald Trump. Ele pinta o retrato de um presidente ignorante – não sabe que o Reino Unido é uma potência nuclear ou que a Finlândia não faz parte da Rússia. Trump tem poucas opiniões fixas na política externa. Às vezes, mostrou-se inclinado a invadir a Venezuela. Em outros momentos, perdeu o interesse. Mas o que Bolton revela, segundo trechos publicados até o momento, é que o verdadeiro problema de Trump não está na sua ignorância nem nas suas políticas, mas no seu caráter.
Em geral, o presidente adotou políticas convencionais do Partido Republicano. Reduziu impostos para os ricos, diminuiu regulamentações, nomeou juízes conservadores e injetou dinheiro no Pentágono. Ele diverge da fórmula de Ronald Reagan em duas áreas: imigração e comércio, temas diante dos quais ele mudou boa parte do partido, que agora aceita a ideia de tarifas, subsídios e mercantilismo, bem como as rigorosas restrições à imigração.
Não concordo com muitas dessas políticas. Mas o que mais me preocupou sempre foi o caráter de Trump. Trata-se de um homem voltado para seus próprios interesses, que ele coloca acima de qualquer outra preocupação com a decência, a moralidade ou mesmo a lei. Bolton não é o primeiro funcionário do alto escalão a abandonar o barco – Rex Tillerson, James Mattis e John Kelly já deixaram clara sua opinião a respeito de Trump –, mas ele é o primeiro a trazer detalhes – e eles são sórdidos.
Trump diz que Bolton está violando a lei ao revelar informações confidenciais e alega que toda conversa com ele, enquanto presidente, é “altamente confidencial”. Assim, a defesa de Trump parece confirmar a veracidade do relato de Bolton.
O livro diz que Trump prometeu afastar promotores federais que estavam investigando um banco turco porque o presidente Erdogan pediu sua intervenção. Trump insistiu para que o governo ucraniano lhe entregasse informações incriminatórias a respeito de Hillary Clinton e Joe Biden antes de liberar recursos de ajuda ao país aprovados pelo Congresso. Bolton destaca que, em pelos menos oito ocasiões, ele e os secretários de Estado e da Defesa tentaram pressionar Trump para que os recursos fossem liberados, mas o presidente rejeitou.
O caso da Ucrânia pode ser o mais passível de impeachment, mas o tratamento de Trump dispensado à China é o mais preocupante. A política americana em relação à China é o assunto mais importante de uma presidência atual. É ali que se prepara o palco para a paz ou a guerra, a defesa dos interesses americanos, e a segurança dos EUA e de seus aliados nas próximas décadas. E Trump tratou esse relacionamento como algo de que pudesse dispor, manipulando-o e alterando-o para atender a seus interesses pessoais (especificamente, para melhorar suas chances de reeleição).
Bolton descreve a disposição de Trump de reverter acusações e até ofensas criminais contra empresas chinesas como favores pessoais ao presidente Xi Jinping. Ele ofereceu a redução das tarifas sobre produtos chineses em troca de um acordo que o deixasse bem posicionado para a eleição de novembro, pressionando Xi a fazer a China comprar produtos agrícolas para que Trump tivesse bom resultado com o eleitorado do Meio-Oeste.
O presidente elogiou Xi pela construção de campos de concentração em Xinjiang – vimos Trump fazer algo semelhante em relação à covid-19, elogiando muito a atuação de Xi, provavelmente, na esperança de preservar seu acordo comercial. Bolton descreve Trump “negociando com Xi para garantir sua reeleição”.
O mais notável é que os chineses parecem ter entendido com quem estavam lidando e jogaram abertamente com os interesses de Trump. Xi disse que gostaria de ver Trump no cargo pelos próximos seis anos. Trump respondeu que “estão dizendo” – sua maneira favorita de expressar opiniões pessoais – que o limite de dois mandatos para a presidência deveria ser suspenso no caso dele.
A conclusão de Bolton em relação ao acordo com a China – e à política externa de Trump – é de tirar o fôlego. “Trump misturou interesses pessoais e nacionais não apenas em se tratando do comércio, mas também na segurança nacional. Tenho dificuldade em identificar uma decisão significativa de Trump durante o período em que estive na Casa Branca que não tenha sido motivada pelo cálculo da reeleição”, escreveu.
Para aqueles dispostos a defender Trump em razão do que ele fez – os juízes nomeados para a Suprema Corte ou os cortes de impostos –, o livro de Bolton deixa claro que o custo é alto. Trump está disposto a pagar qualquer preço, fazer qualquer acordo e violar qualquer lei para garantir a própria sobrevivência.