FIM DA TV COMO FENÔMENO DE MASSA!
(James Poniewozik – New York Times/O Estado de S. Paulo, 06) Pode ser a maior queda da TV de todos os tempos. E também a última. Por “maior” quero dizer em volume. Além das habituais estreias dos canais de TV (ainda operando no horário de volta às aulas, como meio século atrás) e a cabo e das novas temporadas da Netflix, dois novos serviços de streaming da Apple e da Disney chegam neste mês, carregados de novos programas.
E por “última” quero dizer última mesmo, o ato final da “queda da TV” enquanto marco e conceito. Quanto mais o streaming se tornar a principal maneira como as pessoas assistem a séries e programas, menos importantes serão os conceitos de tempo sob os quais a TV operava – temporadas, faixas de programação, horários. E isso mudará a própria cultura da mídia essencial dos Estados Unidos, mesmo que ainda não possamos saber exatamente como.
Muitas das maneiras às quais nos acostumamos a assistir TV são consequência da tecnologia e dos negócios. Setembro se tornou o Ano Novo da TV porque era a época dos lançamentos de novos modelos de carros. Os episódios de TV desenvolveram sua estrutura dividida em atos para abrir espaço para os comerciais. A grade horária semanal se estabeleceu porque era preciso transmitir programas para todos de uma vez só (uma prática que algum dia veremos como um ritual medieval, como assar seu pão no forno comunitário da aldeia).
Esse sistema de televisão foi mudando aos poucos – os canais a cabo começaram a estrear seus programas ao longo de todo o ano, por exemplo – mas, em geral, repetiu seu ciclo orbital, como planetas girando em torno do sol, desde meados do século 20. Agora, duas Estrelas da Morte gigantes, feitas de muito dinheiro, estão em rota de colisão com esse sistema solar. (Na verdade, como a Estrela da Morte agora é propriedade intelectual exclusiva da Disney, talvez seja melhor dizer que são dois asteroides, um deles com orelhinhas de rato).
As séries originais da Disney e da Apple são apenas uma pequena parte da tempestade cósmica que está prestes a cair. Há também os conteúdos de arquivo, especialmente no Disney Plus, que será o cofre do Tio Patinhas da empresa, com os catálogos da Marvel, Star Wars e muito mais. Outros serviços de streaming também vão chegar em 2020, como os da WarnerMedia e da NBC Universal, que dividiram Harry Potter, Garibaldo e Michael Scott como se estivessem escolhendo jogadores para seus times de futebol.
De certa forma, todos os acordos de distribuição e exibição podem ter mais importância do que as novas séries para o novo universo televisivo. É o que sugere o preço de Friends. Afinal, um dos maiores efeitos de distorção do espaço-tempo da ascensão do streaming é que o passado da TV está mais presente do que nunca (a menos que determinado programa não tenha contrato com algum serviço de streaming, nesse caso, é como se nunca tivesse existido).
O efeito do streaming na cultura do assistir a TV parece coisa de ficção científica: de repente, o público está em todos os pontos da história da TV e em nenhum momento específico. É tão fácil acessar toda a série Seinfeld quanto a nova temporada de BoJack Horseman. Uma série antiga pode se tornar tão significativa para o zeitgeist quanto uma nova: é só ver a proliferação de GIFs de The Office nas redes sociais.
Para um crítico de TV – isto é, para alguém que acredita que a televisão é o sistema nervoso pelo qual nossa cultura envia sinais para si mesma – tudo isso é empolgante e assustador. Por um lado, haverá mais de tudo: mais TV antiga, mais TV nova, mais oportunidades para a inovação e a diversidade, pelo menos em teoria.
Por outro lado, o dinheiro também tem aversão ao risco. As mesmas forças econômicas que transformaram a temporada de estreias nos cinemas em uma batalha de franquias podem levar os serviços de streaming a se empenharem em nos trazer novas versões daquelas coisas antigas de que já gostamos: Star Wars e Marvel na Disney Plus, extensões do universo da DC Comics no HBO Max, da Warner. Nenhum conteúdo morre de verdade na era do streaming, e isso pode nos trazer a maldição da vida eterna: algumas marcas imensas e imortais travando a cultura, em detrimento de novas vozes e ideias.
Monocultura. Em certo sentido, como alguns argumentaram, serviços de streaming como a Netflix representam o retorno da monocultura dos primeiros dias da TV: são muito acessíveis, têm grande variedade de programas e conseguem atrair uma audiência vasta (ainda que não verificável).
Mas também são a expressão máxima da cultura fragmentada. Além de os usuários não escolherem os mesmos programas e não os assistirem ao mesmo tempo, os algoritmos famintos por dados dos serviços de streaming oferecem a cada usuário diferentes opções de menu – e até imagens de tela diferentes para os mesmos programas. Milhões de nós assistimos à Netflix, sim, mas, de certa forma, todos assistimos a milhões de Netflixes diferentes e sob medida. O streaming deixou a TV, ao mesmo tempo, maior e menor do que nunca.
O novo e difuso debate sobre a TV pode ser pior ou melhor. Pode significar, por exemplo, mais oportunidades para que bons programas tenham boa repercussão, como as séries da Netflix Inacreditável e I Think You Should Leave tiveram nas redes sociais. Mas, de qualquer maneira, essas serão uma das nossas últimas experiências de cultura de massa – especialmente porque muitos desses programas agora vão morar atrás dos portões da assinatura mensal.
Até certo ponto, o impacto do streaming sobre a cultura da TV dependerá das decisões de cada consumidor na hora de assistir e gastar. Talvez o futuro nos divida em famílias da Disney, famílias da Amazon e famílias da Apple, como seitas religiosas que vivem em um mesmo país, mas mantendo seus próprios costumes .
Ou talvez a maioria de nós se inscreva em tudo e obtenha seus novos e inesgotáveis entretenimentos do século 21 de umas poucas megaempresas – mais ou menos como fizemos no século 20. Poderíamos até criar um nome sofisticado para elas, como “redes” ou “canais”. Esta é mais uma teoria do desconhecido universo quântico em que estamos prestes a entrar: pode ser que, mesmo expandindo, ele acabe por se contrair.