FRANCIS FUKUYAMA: ‘O DESPREZO PELAS ELITES É PERIGOSO, TODA SOCIEDADE PRECISA DELAS’!
(BBC News Mundo, 18) Mas os tempos mudaram. Hoje, Fukuyama vê com preocupação o avanço da ultra direita, do nacionalismo e dos populismos, e aborda essas questões em seu mais recente livro: Identidades: A Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento.
Ele se tornou uma espécie de celebridade acadêmica quando anunciou, há 30 anos, “o fim da história”, como a ideia de que o mundo havia encontrado sua forma mais razoável de organização social: a democracia liberal acompanhada do livre mercado. Esta entrevista concedida à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) no Chile, o acadêmico explica como líderes autoritários ou que se descrevem como apolíticos se conectaram melhor com as classes trabalhadoras do que os movimentos de esquerda, e por que certos grupos tradicionalmente dominantes, como os brancos nos Estados Unidos, hoje reivindicam uma condição de “vítimas”.
BBC News – Em O Fim da História (ensaio publicado em 1989 e que virou livro em 1992), o sr. dizia que a democracia liberal, acompanhada pelo livre mercado, era a única opção política razoável e foi considerado um forte defensor deles. Como sua perspectiva política mudou nos últimos anos?
Francis Fukuyama – Bom, eu ainda sou um defensor da democracia liberal e gosto dos mercados livres, mas acho que, em muitos sentidos, eu me movi para a esquerda por alguns bons motivos. Acredito que nos anos 2000 as duas grandes catástrofes que aconteceram foram, primeiro, a invasão americana no Iraque e, depois, a crise financeira, e ambas foram o subproduto de ideias conservadoras que foram levadas ao extremo e levaram a resultados muito ruins. Isso exigia que eu repensasse…
Eu também acredito que a globalização em geral tem sido muito bem sucedida em muitos aspectos, em termos de redução da pobreza em muitas partes do mundo, mas que também produziu um nível mais alto de desigualdade em muitos países, incluindo os Estados Unidos. Isso requer um remédio. E creio que isso é provavelmente oferecido melhor pela esquerda do que pela direita.
É por isso que eu acredito que, depois da crise financeira de 2008, quando o apoio aos populismos de esquerda deveria ter aumentado, o que foi obtido, pelo contrário, foram populismos de direita cuja narrativa explicava melhor a situação econômica das pessoas da classe média, dizendo, por exemplo, que a elite, permitindo altos níveis de imigração, conspirava para tomar seus empregos.
BBC News – O sr. vincula este fenômeno ao sentido de identidade: afirma que as pessoas querem e precisam ser vistas, primeiro, como iguais, mas que a mesma necessidade pode se tornar um desejo de serem percebidas como superiores. Como se dá esse processo?
Fukuyama – Eu acredito que é uma espécie de tendência natural. Todos queremos ser reconhecidos como iguais e ficamos muito indignados se somos considerados inferiores aos outros. Mas isso logo se traduz em uma demanda para ser reconhecida como especial ou até melhor. Creio que foi isso o que aconteceu, por exemplo, com muitas pessoas brancas nos Estados Unidos que ouviram histórias de vitimização de afro-americanos, de mulheres, de gays e lésbicas.
E a certa altura eles dizem: “e em relação à gente? Todas essas pessoas estão recebendo algum privilégio. As elites as estão colocando diante de nós. Mas nós também não estamos indo tão bem. Nós também somos vítimas”. Mas eles são membros da comunidade racial dominante e, portanto, sua reivindicação de serem apresentados como vítimas é muito menos poderosa moralmente do que a dos grupos minoritários.
A raça ou a etnia da imigração não é a coisa mais importante: é a sua integração…
Eu acho importante que os governos controlem os níveis de imigração, porque, ainda que seja benéfica, se ela (imigração) acontece rápido demais as pessoas ficam desorientadas, e isso gera uma reação política. Isso aconteceu no Reino Unido com o Brexit (saída do país da União Europeia): foram tantas pessoas se mudando para o Reino Unido em um período de tempo tão curto, que muita gente nascida lá sentiu que estava perdendo o controle de seu próprio país.
BBC News – O sr. também tem alertado que vê atualmente uma diminuição no apego à democracia, algo que pode ser percebido na eleição de líderes que não hesitam em se apresentar como autoritários, ou totalmente apolíticos. Que riscos o sr. vê ali?
Fukuyama – É muito perigoso. Você não tem um sistema democrático se as pessoas não acreditam nele. Acho que o que aconteceu é que há uma grande decepção com a qualidade do governo em muitas democracias, particularmente em relação à questão da corrupção, porque às vezes a democracia é a cura para a corrupção, mas às vezes é também a fonte da corrupção.
Os líderes democratas precisam ser eleitos e, às vezes, a maneira mais fácil de ser eleito é subornar os eleitores dando coisas a eles, ou dando cargos ou nomeações aos seus aliados políticos e, portanto, muitas democracias não são capazes de prestar um serviço público de maneira efetiva.
Foi assim que as coisas começaram no Brasil: foi um protesto pelos ônibus e pelo preço das passagens, e pela corrupção nos serviços de São Paulo.
A partir daí surgiu um movimento político para acabar com a corrupção que mais tarde se viu envolto em uma luta entre a esquerda e a direita. Foi isso que levou Jair Bolsonaro ao poder: a percepção de que toda a elite política no Brasil era altamente corrupta.
BBC News – Hoje existe uma tendência a desprezar as elites, seja porque elas se beneficiaram da globalização, enquanto outras pessoas não tinham as ferramentas para fazê-lo, ou porque tendem a colocar as elites políticas como corruptas. Como essa situação se equilibra?
Fukuyama – É perigoso, porque qualquer sociedade precisa de elites, ou de pessoas com a educação e as habilidades para fazer com que a sociedade funcione. E muitas vezes esse desprezo não combina com uma democracia. Em primeiro lugar, as próprias elites às vezes cometem erros. Às vezes elas estão isoladas da opinião pública. Às vezes elas não entendem as consequências das opções que recomendam.
Essa foi uma das coisas que aconteceram com o livre comércio. Porque quase todos os economistas disseram que o livre comércio era bom. Mas, de fato, em alguns países ele estava prejudicando os trabalhadores. Então foram anunciadas compensações. Mas a compensação nunca chegou.
E um dos seus efeitos foi essa grande reação contra a globalização e contra as elites que a impulsionaram. A elite precisa estar conectada com o povo.
A outra coisa que acontece é que as pessoas hoje estão mais bem educadas e, devido ao boom da Internet, têm acesso direto à informação, de modos que antes não existiam. No início todos comemoramos, porque isso significava que a informação era mais acessível, mas isso também significava que a desinformação era mais acessível.
Antes você tinha editores, verificadores de dados e jornalistas capacitados profissionalmente para analisar as histórias antes de publicá-las. Agora, qualquer um pode postar o que quiser na internet sem verificar.
E isso tem se transformado em uma espécie de arma de guerra política que também retroalimenta a percepção de que você não pode acreditar em nada, que nada é realmente certo. E isso está enfraquecendo a base de conhecimento compartilhado necessária para se ter um sistema político democrático.
BBC News – Por que o sr. acha que sua ideia do “fim da história” impactou tanta gente?
Fukuyama – Grande parte da reação ao “fim da história” se baseou em uma interpretação errada do sentido da frase: não queria dizer que as coisas deixariam de acontecer de repente. Na realidade eu falava sobre se existia uma alternativa real à democracia liberal como forma superior de organização social…
Acho que o artigo correspondeu a uma grande mudança que estava acontecendo na política mundial, porque foi publicado poucos meses antes da queda do Muro de Berlim e deste grande avanço da democracia na Europa Oriental e nos antigos governos comunistas, que logo se expandiu pela América Latina, pela África e pela Ásia.
BBC News – Aqueles eram tempos de esperança em muitos lugares. Como o sr. descreveria esta época?
Fukuyama – Eu acho que é importante não ser excessivamente pessimista sobre o que está acontecendo agora. A democracia tem sofrido um revés.
Várias democracias têm avançado na direção errada, mas ainda essa ainda é a forma dominante de organização no mundo, e até países autoritários como a Rússia de (Vladimir) Putin ainda sentem que têm que passar pelo ritual das eleições porque não têm uma forma alternativa de legitimidade para oferecer em substituição à democracia como forma de governo.
Então, nesse sentido, acredito que a democracia ainda é uma ideia muito poderosa e continua a ser a principal ideia para nos organizarmos politicamente hoje no mundo.