21 de novembro de 2018

ALTERNATIVAS PARA O “MAIS MÉDICOS”!

(João Manoel Pedroso, Diretor Geral do INC – Instituto Nacional de Cardiologia)

O programa Mais Médicos foi instituído para resolver um problema crescente e crônico de distribuição da força de trabalho médico, principalmente fora dos grandes centros urbanos. Este problema não é uma “Jabuticaba” própria do país, vez que países continentais como o Canadá também têm sérias dificuldades em alocar profissionais da área de Saúde também distantes e com menor densidade populacional.

Uma solução mais eficaz para o problema subentende compreender a dinâmica do mercado de trabalho dos profissionais de saúde.

Embora o Brasil disponha do Sistema Único de Saúde – SUS, que atende a cerca de 75% da população, sabe-se que a fração de cerca de 9% do PIB investida em saúde está repartida numa razão de cerca de meio a meio entre o serviço público (SUS) e o privado, o que significa que metade dos recursos alocados em saúde está na área privada, não-SUS (planos e seguros saúde), e este montante financeiro está, em geral, concentrado nas regiões com maior renda per capita (regiões metropolitanas e cidades de médio porte).

Essa desigualdade sob o viés do investimento privado não pode ser alterada sob bases artificiais e requer compensação com os serviços públicos.

Por outro lado, a necessidade de profissionais de saúde para a atender ao SUS é enorme e, portanto, torna-se quase impossível, dado o PIB brasileiro e respectivo percentual alocado em Saúde pelo sistema público (Federal, Estadual e Municipal) que sejam definidos, em tão ampla escala, salários compatíveis com a carreira médica embora seja viável a execução de programa federal específico, conhecido como Mais Médicos, considerado estratégico, apesar de necessitar de redefinição, qualificação e melhoria.

No serviço público, com raras exceções, a base remuneratória para médicos que cumprem carga horária entre 20 e 24h semanais, está em torno de 3 a 6 mil reais/mês, enquanto no setor privado pode atingir, em média, o dobro deste valor.

Como então os médicos sobrevivem? Em sua grande maioria, trabalham 60 a 80h por semana com 2 ou 3 empregos e mais alguma complementação salarial como autônomos (ou seja, quem mora em centros urbanos consegue, com certa facilidade, alcançar renda mensal entre 15 e 25 mil reais/mês).

Esse modo de trabalho massacrante tem ampliado problemas para esses profissionais, que sofrem crescentemente com depressão, doenças crônicas, dependência química e síndrome de Burnout (vale ler sobre esta síndrome que foi mais recentemente descrita). Além da questão salarial, a atividade médica também cumpre ciclos curtos devido aos ajustes relacionados aos avanços tecnológicos e por mudanças periódicas nas diretrizes médicas o que implica na necessidade de treinamento continuado e educação permanente. Nesse contexto, o distanciamento dos centros urbanos é quase uma garantia de rápida desatualização, reduzindo-se a perspectiva futura de valorização e empregabilidade.

Nas décadas de 80 e 90, os médicos já viviam problemas dessa ordem e muitos vislumbraram como boa oportunidade a mudança para cidades menores (sobretudo de médio porte) onde poderiam ter uma vida menos estressante, constituir família e propriedade e conseguir cumprir, de forma digna, a missão de suas carreiras, cujo juramento, Hipócrates sacramentou.

Novo estímulo, agora ao contra fluxo ocorreu nos anos que seguiram a essa época: excetuando-se aqueles colegas que migraram para regiões que caminhavam para a prosperidade (associada, por exemplo, ao agronegócio), a maioria das prefeituras não conseguiu sustentar o pagamento de salários vantajosos, muitas vezes até por prometer salários acima do teto legal. O movimento para a interiorização (revelada como sem garantia futura) gerou graves problemas para muitos profissionais que, ao tomarem tal decisão se desligaram de seus empregos públicos e privados para, transcorridos alguns meses, perceberem que a decisão estava equivocada.

A falência do modelo de renovação profissional em cidades de menor porte gerou uma convicção, na classe médica, de que não haveria segurança para novos médicos que ousassem tentar a renovação, por movimento similar, no interior dos estados, ou apenas fora dos grandes e médios centros (cidades de porte maior, regiões metropolitanas e cidades de médio porte).

Outro ponto bem reconhecido é que a grande maioria das queixas sobre o sistema de saúde provém principalmente de contingente de pessoas que não consegue acesso ao sistema. Muitas pesquisas de satisfação do usuário demonstram que aqueles que logram atendimento ou internação sentem-se satisfeitos com o cuidado. Ou seja, a falta de acesso é um fator determinante para a má-avaliação.

O programa Mais Médicos ampliou o acesso ao SUS a contingente de cidadãos então “excluídos” do sistema e, portanto, ressaltou a relevância da simples oferta e presença do cuidado, ainda sob qualquer tipo de crítica ou discussão relativa à qualidade do atendimento, que parece menos importante quando comparada à ameaça de perda do acesso ao profissional de saúde.

Antes de se ensaiar uma solução, parece relevante mencionar que o pagamento de bolsas no valor de 10 mil reais não deva ser atrativa para muitos médicos brasileiros que logram ganhos salariais correspondentes em funções análogas, nas cidades, por meio de complementação salarial com plantões e atividades privadas paralelas, como citado acima.

É natural que uma parcela do contingente dos médicos brasileiros  atualmente inscritos no Mais Médicos esteja relacionada aos profissionais que já viviam nestas regiões e que optaram por cambiar seus vínculos mais desvantajosos, eventualmente nos próprios municípios atendidos pelo programa, assim trocando seus vínculos precários com estas pequenas prefeituras para garantir melhor retribuição, por meio de contrato com o aval do Governo Federal (situação também muito cômoda para as prefeituras que deixaram de gastar com profissionais que já atuavam em seus municípios). Melhor dizendo, o desafio não parece mais a manutenção de quem já estava lá e trocou seu vínculo de trabalho, e sim o estímulo para trazer e interiorizar os médicos que estão em cidades maiores em que há mais e atrativas oportunidades de trabalho.

Qual a vertente de solução em curto e médio prazo que se pensa ser efetiva?

Planejar duas modalidades de contratação, buscando agregar contingente mais expressivo de pessoal sob vinculação mais flexível, porém contando, simultaneamente com equipe permanente (mais reduzida), que se mantenha sob “carreira de Estado”, modalidade tão aguardada e que deveria ser instituída. Essas modalidades são intercambiáveis e mantêm características, regimentos e critérios de seleção específicos.

1. Primeira Modalidade – Vinculação de profissionais autônomos (sem cometimentos funcionais, mas também sem encargos trabalhistas), mediante inscrição voluntária de interessados com vistas à adesão a essa forma de contribuição profissional e  chamamento, de forma descentralizada, nos Municípios, e nas Metrópoles, sendo essa descentralização estendida como conceito também nas áreas regionalizadas (por distritos, regiões administrativas ou áreas de planejamento regionalizadas).

Para viabilizar a ampla contratação de pessoal, haveria um Chamamento Público nacional específico, com normas próprias, para operacionalização de forma descentralizada, mediante divulgação de listagem de Unidades Assistenciais de trabalho a serem voluntariamente escolhidas pelos próprios profissionais, que elegeriam aquelas em que gostariam de colaborar.

Desta forma simplificada, já no ato de inscrição, os profissionais escolheriam 5 (cinco) Unidades em que poderiam colaborar, em ordem decrescente, para serem vinculados mediante seleção simples pela equipe responsável pela seleção para cada Unidade (por meio de Curriculum e Entrevista). Essa base de dados da inscrição seria diretamente utilizada para a seleção e reposição de profissionais (tal como já ocorre com as Organizações Sociais – OS…).

A forma contratual -por adesão- seria simplificada e comum a todos os Estados, com variações salariais regionais e locais. A base salarial em Municipalidades menores e com oferta de profissionais poderia seguir os limites de mercado local, no topo da variação salarial praticada, não se propondo inflacionamento regional artificial. Forma contratual flexível para permitir a eventual realocação, por meio de disponibilidade do profissional que não se adaptou ao trabalho local, mas que poderia ser selecionado para outra localidade ou área.

A atratividade para o interior se faria justamente por essa base salarial maior, porém no limite superior do mercado local, de tal forma a não gerar disparidades. Por tratar de cerca de 15 mil trabalhadores para todo o pais, garantir um nível salarial maior e diferenciado geraria um movimento interessante para o novo governo e, ao mesmo tempo, sem grande impacto orçamentário (com variações entre 7 e 14 mil reais/mês, de acordo com o mercado local, entendendo-se que limites superiores a 10 mil se aplicariam apenas nas metrópoles).

Atualização permanente seria garantida por plataformas de ensino à distância, como disponíveis na ENSP/FIOCRUZ, propondo-se algumas conferências inaugurais regionais, além de oferta de outros Cursos adicionais remotos. Uma premiação regular, a cada ano de trabalho, segundo o desempenho profissional, por regiões seria estimulante para as equipes. O prêmio poderia ser a participação em Congresso Clínico nacional. Novas formas de relacionamento com as equipes, supervisionamento/Matriciamento e construção de equipes locorregionais não apenas contribuem para a qualificação, mas também para fixar os profissionais, assim amparados em seus nichos locais de trabalho.

2. Segunda Modalidade – Equipes “permanentes” vinculadas mediante Carreira “de Estado”:

Esses profissionais disporiam de proteção e encargos trabalhistas, contudo também estariam associados a “cometimentos” e compromissos com o Estado, cumprindo programa de Integridade, obrigações de atualização permanente, tais quais Cursos a serem efetuados para progressão funcional, e estariam associados a eventuais missões (como os militares).

O Plano de Cargos, Carreira e Salários definiria bem essa Contribuição especial, assemelhando-se, quanto ao aspecto das missões, aos contratos com militares. Haveria, assim, a possibilidade de se recrutar, para missões específicas e por tempo limitado, pessoal de “Estado”, em situações de “crise”, epidemias, catástrofes, para a organização das condições de atendimento local, até a assunção das equipes regionalizadas, sob organização e capacitação pelas equipes centrais.

A participação de equipes experientes, e bem formadas, nos “gabinetes de crise” acelera e induz ao mais adequado manejo de “crises”. Essas equipes “centrais”, permanentes, poderiam “circular” periodicamente pelo país, “induzindo”, regionalmente, a soluções, garantindo maior uniformidade a padrões aceitáveis de Atenção em Saúde, contribuindo para reduzir as desigualdades, e aprimorando o Sistema Nacional de Saúde.

O “framework” federal, que sustenta a estruturação do Sistema de Saúde, bem exigente quanto à capacitação e seleção de seus integrantes, trata da estrutura flexível que atenda às necessidades de formulação e definições principais para todo o Sistema Nacional de Saúde híbrido, desde o planejamento do Sistema Nacional Público, e da formulação de Políticas e Práticas que alcancem as diretrizes maiores também para o Sistema Privado, até o atendimento a necessidades pontuais ou emergenciais em cada canto do país, por meio da constituição conjunta de gabinetes integrados interesferas de “crise”, para apoio a soluções adequadas locais, com consultoria de equipe especializada.

As duas modalidades estariam desenvolvidas de tal forma que não haveria um modelo propriamente estanque, rígido e duplo, porém intercambiável, por meio do qual também estariam previstas transferências profissionais de um modelo para outro, mediante dispositivos de transferência, cujos filtros seletivos fossem mais rigorosos do lado do “framework” federal. Também a “Carreira de Estado” está, desta forma sujeita ao cumprimento de requisitos.

A partir de rigorosa a seleção, os profissionais médicos a ingressarem na “Carreira de Estado”, como para a Magistratura se assumem compromissados com o cenário nacional e prontos a atuarem no cenário nacional sempre que necessário, cumprindo e qualificando-se perante programas paralelos de atualização e pontuação.

Similarmente, há que se expor a programação de “bases realistas” para o modelo de interiorização, à semelhança da proposta delimitação do  tempo de trabalho em terapia intensiva e emergências, como “via de saída” ou transferência após período significativo de contribuição, na contratação de profissionais em localidades remotas: a previsão contratual de permanência seria de 5 (anos) prorrogáveis, porém seria facultado ao profissional a mobilidade no âmbito da contratação, após esse período, mediante realocação em localidade mais próxima de centros urbanos.

Ainda para garantir a fixação dos profissionais que aderissem ao programa de autonomia ou interiorização programada (que só funcionaria como interiorização se o profissional migrasse de fato, mas poderia “fixar” nessa modalidade de atenção também os profissionais locais), o Ministério da Saúde planejaria programa de equipamento mínimo para os locais de atendimento, situação a ser melhor desenvolvida adiante; bem como a possibilidade de supervisionamento remoto (Telessaúde ou similar); além de estudar grades salariais adequadas por área.

Nesse contexto, o Ministério da Saúde estaria construindo bases para prover de forma mais adequada a Atenção em Saúde, no cenário nacional, simultaneamente contribuindo para reduzir as desigualdades, e aprimorando o Sistema Nacional de Saúde.