03 de agosto de 2018

“DO QUE FOGEM OS CENTRO-AMERICANOS?”

(Adriana Carranca – Globo, 22) 1. A violência que irrompeu na Nicarágua, deixando ao menos 280 mortos, nos serve de lembrança sobre o barril de pólvora prestes a explodir que é a América Central, uma das regiões mais negligenciadas do mundo. Ao norte da Nicarágua estão Honduras, El Salvador e Guatemala. A mais recente onda de violência nos três países — o Triângulo Norte, como é chamado este território — provocou o maior êxodo desde as guerras civis do século XX.

2. São estes migrantes que estão batendo à porta dos Estados Unidos em maior escala em busca de asilo e proteção, uma vez que migrar para o Sul através da Nicarágua ou refugiar-se no México não lhes ofereceria alívio. Entre as 50 cidades mais violentas do mundo, 43 estão na América Latina e no Caribe.

3. A taxa de homicídios no mundo aumentou pela primeira vez em uma década, de acordo com estudo do Small Arms Survey, publicado em dezembro com base em dados de 2016. A taxa foi puxada pelo aumento do número de mortes em Venezuela e Jamaica. À frente do ranking dos países com maiores taxas de homicídio no mundo, estava a Síria, seguida por El Salvador, Venezuela e Honduras. Dos 23 países com taxas de homicídio maiores do que 20 por 100.000 habitantes, 14 não estavam envolvidos em guerras — entre eles, Brasil, Jamaica e República Dominicana.

4. Segundo outro estudo, divulgado em janeiro pela fundação InSight Crime, dedicada ao estudo do crime organizado na América Latina e no Caribe, os dez países com maiores taxas de homicídio na região são, nesta ordem: Venezuela, El Salvador, Jamaica, Honduras, Brasil, Guatemala, Colômbia, México, Porto Rico e República Dominicana. Ou seja, de norte a sul, não há para onde fugir. A emigração dos países da América Latina e Caribe para os Estados Unidos não é nova, mas era historicamente motivada por condições econômicas. Homens, majoritariamente, deixavam suas casas em busca do “sonho americano,” que para a maioria limitou-se a enviar alguns dólares para as famílias que deixaram para trás.

5. Em El Salvador, Guatemala e Nicarágua, os motivos eram outros desde o primeiro grande êxodo da região, nos anos 1970 e 1980, quando mais de dois milhões de pessoas fugiram dos conflitos internos nos três países. Jovens de famílias dilaceradas que conseguiram escapar da violência e chegar aos EUA eram, como hoje, considerados ilegais e, como tal, acabaram jogados à clandestinidade nos bairros mais pobres e violentos de cidades como Los Angeles.

6. À margem da sociedade e sem proteção do governo, muitos desses jovens foram buscar proteção em gangues de ruas e dentro das prisões. E assim se formaram gangues como a Mara Salvatrucha, a temida MS-13, formada por imigrantes que haviam fugido de conflitos internos em El Salvador, Guatemala e Nicarágua (para onde milhões de dólares tinham sido canalizados na Guerra Fria em apoio a governos, militares e grupos armados anticomunistas), e a Gangue da Rua 18, também chamada de Barrio 18 e formada originalmente por imigrantes mexicanos e, mais tarde, por dissidentes da MS-13.

7. Quando o presidente Bill Clinton aprovou, em 1996, a Reforma da Imigração e Lei de Responsabilidade do Imigrante, o governo americano deportou dezenas de milhares de volta à América Central. Entre eles, integrantes da MS-13, da Barrio 18 e de outras gangues. Ao desembarcar, os integrantes dessas gangues encontraram governos instáveis e corruptos, e populações negligenciadas pelo Estado vivendo em extrema pobreza — ambiente favorável à expansão da criminalidade. Hoje, essas gangues controlam territórios da região, onde o governo não está presente ou não é confiável, e aterrorizam a população desprotegida com assassinatos, estupros, sequestros, recrutamento forçado e rede para o crime organizado.

8. Está aí a origem do novo êxodo, que provocou a maior crise migratória em décadas. A deportação de imigrantes não documentados sem histórico de envolvimento com o crime, como faz o atual governo de Donald Trump, só jogará mais civis inocentes nas mãos de criminosos, dando mais força às gangues e criando um círculo vicioso que levará a mais violência e expulsará mais gente de suas casas. Sem ter para aonde ir, mais e mais imigrantes tentarão rotas de fuga mais obscuras e perigosas nas mãos de outra rede de criminosos, os coiotes, cujo poder aumenta na mesma medida em que as fronteiras são fechadas. É um ciclo sem fim.