31 de agosto de 2021

ALBERTO DA COSTA E SILVA TORNA EXCELENTE PESQUISA SOBRE ÁFRICA EM CONVERSA!

(Angela Alonso – Folha de SP, 28) A África está na moda. Por fim, o Brasil —ou sua parte que crê em urna eletrônica— percebeu o quanto se enraíza na outra costa do Atlântico, não acima, como sua elite sempre fantasiou, mas abaixo do equador.

A escravidão virou assunto de best-sellers e programas de TV, suscita tertúlias literárias e debates políticos. Habitantes de Twitter e TikTok descobriram —antes tarde do que nunca— a circunferência do legado africano e o tamanho da barbaridade escravista.

É muito bem-vindo este recente despertar coletivo do sono da “democracia racial”. Mas, para quem frequenta o mundo da pesquisa, o assunto é velho de guerra.

Autoridade inconteste no campo é Alberto da Costa e Silva, que completou 90 anos em maio e se dedica há seis décadas ao ofício meticuloso de garimpar arquivos e pesar evidências, antes de publicar interpretações.

Reconhecida em escala internacional com o Prêmio Camões, sua obra combina a excelência da pesquisa à cadência da conversa, a contar no miúdo o que todos os brasileiros deveriam saber, mas quase ninguém sabe.

Conversa comprida, travada em vários livros, sobretudo no monumental “A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão, de 1500 a 1700”, senhor de dois prêmios, o Jabuti e o da Fundação Biblioteca Nacional.

O assunto retorna agora em “A África e os Africanos na História e nos Mitos”. Aí se mesclam ensaísmo, comentário de livro alheio, relato autobiográfico e até transcrição de documento a duras penas resgatado.

No agregado, ensina que a relação do Brasil com a “África” é uma generalização. Pelo Rio de Janeiro passaram ambudos, congos, sossos, iacas, vilis, huambos, lubas, galangues, bailundos, luenas, macuas, tongos. Nem todos escravos.

São muitas Áfricas. A do reino de Daomé, de sistema político intricado, não é a mesma do reino de Guiné, com suas ervas e joias; tampouco a do reino de Onim, cujo rei Ajan negociava com o Brasil e encomendou ao próprio Pedro 1º uma carruagem, quatro chapéus e uma “bomba de fogo”.

O maior dos negócios entre aqui e lá era o tráfico negreiro, daí porque o livro fala de abolicionistas, sem esquecer dos escravistas. A escravidão brasileira surge na sua inteireza, como fenômeno atlântico, e contrastada às da Grécia Antiga e de partes da África.

A escrita fluida desenha uma África múltipla, em geografia e demografia, em mitos e temperos. Ao Brasil vieram africanos de vária extração, incluídos letrados e mestres de ofícios. Nos registros de entrevistas de José Bonifácio com alguns deles se entrevê a arquitetura das cidades de origem, a rede de comunicação entre os reinos e a variedade linguística —o próprio Bonifácio compilou vocábulos da língua hauçã.

De seu lado, a heterogeneidade étnica é escavada via comentário dos anúncios de compra, venda e fuga de escravos compilados por Gilberto Freyre, enmescla culinária entre o azeite de oliva e o de dendê chega na remissão às novelas de Jorge Amado.

Já as fotografias de Pierre Verger facultam descrição vívida dos retornados à África Ocidental. Do conjunto emerge, com viço e carne, uma constelação de relações multivalentes, contraditórias, que impõem ao leitor ora sua beleza, ora sua violência.

A escrita tem a nota pessoal de quem viveu em países africanos. A experiência frisa semelhanças, entre coqueiros e casas de Nordeste e Lagos, e marca contrastes, entre os “ternos cinzentos” da diplomacia brasileira e a exuberância de “leses, sedas, veludos e damascos” das autoridades africanas.

São relatos de ida e volta. A África se entranhou no Brasil. Mas o Brasil também foi à África, exportando de versos de Castro Alves ao bicho-de-pé.

O circuito do escravismo, o livro mostra, não se fechou com o fim da escravidão. Duas malungas que o autor conheceu, levadas crianças daqui para a Nigéria, em 1900, ilustram os que tentaram achar a pátria na África, por não a terem encontrado no Brasil.

Os descendentes de africanos ainda hoje são, como as malungas, duplamente expatriados, arrancados à força da África e sem cidadania plena no Brasil. Na perfeita síntese do autor, “como se estivessem para sempre fadados a estar no exílio em casa”.