28 de junho de 2021

A DEFESA DA FEDERAÇÃO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 26) Por maioria de votos, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que é inconstitucional a preferência da União em relação a Estados e municípios nas execuções fiscais. A decisão é significativa defesa do princípio federativo, com o reconhecimento de que, diferentemente do que ocorria em regimes constitucionais anteriores, a Constituição de 1988 proibiu expressamente a discriminação entre entes federados.

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, diz o texto constitucional.

Proposta pelo governo do Distrito Federal em 2015, a Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental (ADPF) 357 questionou a regra do Código Tributário Nacional (CTN) que prevê a preferência da União em relação a Estados, municípios e Distrito Federal na cobrança judicial de créditos da dívida ativa. Segundo a procuradoria-geral do Distrito Federal, além de contrariar a Constituição de 1988, essa preferência dada ao governo central prejudica a recuperação das dívidas e as contas dos governos locais.

“A Carta Política de 1988 promoveu uma verdadeira reconstrução do federalismo brasileiro, que se manteve apagado ao decorrer do regime ditatorial, não mais suportando distorções como a ordem de preferência estabelecida nos dispositivos impugnados”, afirmou o governo do Distrito Federal na ação.

Vale destacar que, durante o regime militar, com a vigência de outra ordem constitucional, o Supremo editou uma súmula validando precisamente o dispositivo legal discutido na ADPF 357. “O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9.º, I, da Constituição Federal”, dizia a Súmula 563 do STF, que agora foi cancelada.

Em seu voto, a relatora da ação, ministra Cármen Lúcia, fez um histórico do princípio do federalismo na jurisprudência do Supremo, mostrando que a aceitação da preferência da União na execução fiscal estava baseada num regime jurídico que já não estava vigente. “O tema é sensível e merece ser reapreciado à luz das normas constitucionais inauguradas pela Constituição de 1988”, disse a relatora.

Ao lembrar que o texto constitucional de 1988 exige tratamento isonômico entre os entes federativos, a ministra Cármen Lúcia destacou que a repartição de competências é o “coração da Federação”. Ou seja, não existe uma hierarquia entre os entes federativos, como às vezes equivocadamente se pensa. A União “é autônoma e igualase aos demais entes federados, sem hierarquia, com competências próprias”, disse a ministra Cármen Lúcia.

Não há precedência da União. Dentro das respectivas competências, cada ente federativo é autônomo. Tal característica da Federação confere funcionalidade à atuação do Estado, permitindo que o poder público atue em cada realidade local respeitando suas especificidades e atendendo às suas concretas necessidades.

No ano passado, o Supremo reconheceu que União, Estados e municípios desfrutavam de uma competência compartilhada na área da saúde pública. Com isso, o governo federal não poderia impor regras gerais – como queria o presidente Jair Bolsonaro, em sua batalha contra as medidas de isolamento social – aos entes federativos. A defesa da competência de governadores e prefeitos foi medida de especial relevância no enfrentamento da pandemia.

A decisão de agora do Supremo a respeito da não discriminação dos entes federativos nas execuções fiscais está em harmonia com a posição adotada sobre a saúde pública. Para que Estados e municípios desfrutem de verdadeira autonomia dentro de suas competências, eles devem dispor de meios efetivos para cobrança de suas dívidas fiscais.

Tanto para o equilíbrio institucional como para a eficiência do poder público em suas várias esferas, é essencial que o Supremo assegure a plena efetividade do princípio federativo. Autônomos, Estados e municípios não são e não podem ser tratados como entes dependentes da União.