27 de janeiro de 2020

A TRISTE HISTÓRIA DA DONZELA GUERREIRA DO BRASIL!

(Elias Thomé Saliba – O Estado de S. Paulo, 26) “O leitor ou a leitora já viu a Jovita? É a curiosidade do dia, o ídolo da atualidade. O nome da moda, a pessoa do tom, a glória do Piauí, o orgulho do Ceará, a musa da guerra, disputada pelas vinte províncias do Império, a hóspede obrigada de todos os palácios, o delírio das plateias, a preocupação do Governo, a poesia do Exército encarnada sob a forma airosa de uma rapariga travessa, exaltada, graciosa, meiga, terrível, misteriosa.”

Este comentário anônimo publicado na Semana Illustrada de 17 de setembro de 1865 – o qual, apesar de difícil comprovação, bem poderia ser atribuído a Machado de Assis – realiza uma espécie de síntese da história real e dos muitos mitos envolvendo a figura de Jovita Alves Feitosa, a pouco conhecida heroína brasileira da Guerra do Paraguai, que nunca chegou a lutar na guerra. E não por falta de vontade, mas porque foi impedida. Quando, em 28 de dezembro de 1864, os exércitos paraguaios de Solano López invadiram a então província de Mato Grosso, deflagrando a guerra com o Brasil, foram muitas as violências que atingiram a população civil, incluindo principalmente as mulheres. Como o Império Brasileiro não dispunhas de forças militares suficientemente organizadas, iniciou-se, pela imprensa, uma intensa campanha pelo voluntariado, que acabou por criar um difuso ambiente de exaltação patriótica.

Nesse clima de entusiasmo patriótico, a jovem cearense de 17 anos, particularmente indignada com as violências contra as mulheres, cortou os cabelos, vestiu-se com roupas masculinas e apresentou-se ao voluntariado em Teresina. Mesmo tendo seu disfarce logo descoberto, foi aceita como voluntária pelo presidente da então Província, no posto de sargento e incorporada ao 2oº Corpo de Voluntários do Piauí. Como a notícia logo se espalhou, a viagem do grupo até o Rio de janeiro, passando por São Luís, Recife, Paraíba (atual João Pessoa) e Salvador, foi triunfal. Jovita foi recebida em palácios, presenteada com hospedagens especiais e homenageada em versos e crônicas nos jornais como a versão brasileira de Joana d’Arc.

Mas o clima de patriotismo durou pouco: por falta de previsão e respaldo legal, a Secretaria da Guerra do governo Imperial recusou sua incorporação; esta só seria possível, a exemplo de Ana Néri, para servir como enfermeira – e Jovita não aceitou. Já com 18 anos, voltou à Corte e um dos poucos registros de sua presença – no Correio Mercantil – indica que ela havia se tornado “uma das elegantes do mundo equívoco”. Não restou quase nenhum documento sobre Jovita – menos ainda dela própria: apenas um registro de alguém que escreveu sob o pseudônimo de Sisno de Faschera, relatando uma conversa com ela e descrevendo-a “como uma pessoa amarga, que lamentava não ter tido educação para fugir ao abismo em que caíra”, e queixava-se das invenções a seu respeito “tirando a origem em não sei que românticos amores”.

O últimos registros foram de vários jornais, em 10 de outubro de 1867, relatando o suicídio da jovem, cada um dando uma versão diferente para o evento. Jovita teria mantido uma relação amorosa com o engenheiro galês William Noot e, após a súbita partida deste, desiludida, acabara por tirar a própria vida. Depois disso, o absoluto silencio das fontes. A personagem só voltará a ser lembrada, mais de 50 anos depois, quando começam a aparecer narrativas e pequenos romances contando sua triste história. É o momento no qual o mito predomina sobe a história. A exceção foi a professora Walnice Nogueira Galvão, que chegou a incluir a história de Jovita, no seu estudo clássico, de 1997, A Donzela-Guerreira: Um Estudo de Gênero. Tempos depois, inicia-se um processo de inclusão da história de Jovita na perspectiva da militância feminista, o que certamente teve impacto e acabou redundando na justa homenagem, com a inclusão de seu nome, em 2018, no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.

José Murilo de Carvalho, historiador experimentado – neste livro que preenche uma lacuna na historiografia brasileira – revela através das fontes, as sucessivas apropriações da história de Jovita. Na primeira versão, a narrativa reforça a imagem da mulher guerreira, que com seu gesto incentivou o voluntariado, personificando-se como “a defensora da pátria em perigo”: uma narrativa que acabou servindo aos objetivos do Império para incrementar os efetivos militares. Na segunda versão, com fortes conotações políticas da época – e não destituída de forte ressentimento e misoginia, comuns na época –, predominou a imagem da prostituta, que quis ir à guerra simplesmente para acompanhar o amante e, no limite, confrontou os valores sociais. Por fim, a terceira versão, que deu origem a poemas e narrativas ficcionais: o relato sacrificial da heroína trágica renegada pela pátria, rejeitada pelo pai e abandonada pelo amante.

Esta foi a curta história de Jovita, de duração efêmera, sobre a qual sobraram poucas evidências, muitas vezes não confiáveis, e muitas narrativas fantasiosas e ficcionais. Seja como for, tudo isto conta, pois além de encontrar evidencias e fatos, ou seja, a verdade, o intérprete do passado tem a obrigação de descrever também as distorções, omissões, mentiras e ficções – ou, seja, também é missão do historiador expor o falso que se pretende verdadeiro. E esta última missão talvez tenha se tornado ainda mais importante na época em que vivemos.