27 de dezembro de 2019

COLOMBIANA CAROLINA SANÍN ESCREVE SOBRE PROTESTOS CONTRA IVÁN DUQUE!

(Folha de S. Paulo, 26) No primeiro dia da greve, 21 de novembro, a multidão que saiu às ruas parecia estar proclamando e encenando uma saturação. Não se sentia que a nação estivesse com raiva; era como se ela transformasse em prenhez de si mesmo sua sensação de estar farta do governo e como se soubesse que estava prestes a dar à luz uma versão deslumbrante de sua própria cidadania. Em cada movimento que fazíamos palpitava a consciência de uma reivindicação básica: a do reconhecimento de nossa existência física, do volume de nossa corporalidade. Fluíamos devagar e alegres pela rua principal de Bogotá, por onde nos outros dias avança aos trancos e barrancos um meio de transporte público ineficiente e poluidor que tornou indigna a vida na capital. Íamos ocupar a praça Bolívar, sede do governo. Por conta do aguaceiro que caía, não conseguíamos enxergar a cara uns dos outros e as discussões não se ouviam, e esse embaçamento repentino nos indiferenciava, nos unia mais e nos animava.

Fora declarada a suspensão das atividades de trabalho, e os corpos reunidos na rua, caminhando e cantando, proclamavam a libertação do ser humano da servidão. O primeiro objetivo da greve era justamente protestar contra uma série de medidas econômicas propostas pelo partido do governo que prejudicavam a segurança dos trabalhadores e aposentados. Naquele dia a recusa em trabalhar não foi unicamente a pressão convencional da greve, mas se imbuiu de sua dimensão promissora de liberdade. Recordávamos —mesmo que não nos recordássemos— que a libertação mais famosa da história, o êxodo dos hebreus do Egito, começou com uma reivindicação trabalhista: a reivindicação de um dia livre para que um povo pudesse reunir-se no deserto e orar —ou seja, cantar.

A primeira marcha não foi sentida como uma jornada a ser cumprida, mas como um convite contínuo. Soubemos que continuaríamos no dia seguinte, e continuamos, e no dia seguinte àquele e no dia que veio depois desse. Não contávamos os dias, que não eram datas sucessivas, mas sim aspectos ou partes de um só dia. Assumindo a alteração na passagem do tempo proposta pela pausa na produção, havíamos reinventado um dia diferente, uma nova duração da jornada não de trabalho.

A partir da primeira noite nos reunimos em grupos pequenos e enormes em círculos e em motoneras para bater panelas nos parques, nas ruas e nas praças. Em uma cidade segregada pela estratificação econômica e pelas dificuldades de transporte, encontrar-nos nos espaços públicos e pedir notícias de outros como nós que faziam o mesmo em outros espaços públicos ampliava nossa imagem da cidade, ao mesmo tempo em que a integrava. Pela primeira vez pudemos nos representar como um organismo do lugar onde vivíamos. As ruas noturnas de Bogotá, normalmente vazias e inseguras, se encheram de gente. Povoamos o deserto. Cuidávamos uns dos outros. Ficamos fora de casa juntos e também ficamos juntos mais tarde, quando a partir de nossos espaços privados falamos para as ruas: depois do toque de recolher decretado no segundo dia —e desrespeitado com graça em vários lugares—, batemos nossas panelas diante das janelas, ensinando e copiando ritmos de um apartamento a outro, seguindo uns aos outros sem nos vermos.

Durante a greve protestamos contra o governo atual: contra sua política ambiental, contra o acesso limitado à educação e saúde públicas, contra o descumprimento dos acordos de paz, contra as propostas de reforma trabalhista e fiscal, contra o assassinato de centenas de líderes territoriais, contra a repressão aos protestos sociais, contra a atividade mineradora poluente e a fumigação contaminante de cultivos ilícitos. Em um círculo mais amplo, protestávamos contra uma classe política ignorante, demagoga e corrupta e contra uma liderança que mostrara ser inimiga dos interesses dos governados, dos animais não humanos e da terra. Em um círculo mais amplo, protestávamos contra a noção de autoridade do sistema patriarcal. E, em um círculo ainda maior, invocávamos e imaginávamos outro tempo: um tempo democrático.
Coletivamente, enquanto vivemos no cíclico tempo físico —o tempo dos dias e dos anos, das voltas que a Terra dá em torno de seu próprio eixo e do Sol—, vivíamos também no tempo do Estado e da família, que é sucessivo e sucessório: um período de governo segue a outro, uma geração é seguida por outra, o pai é seguido pelo filho. Esse tempo depende da filiação e da herança, e constrói as linhagens e as dinastias, mas também os partidos políticos. Embora vivamos em uma república, nossa temporalidade é a das monarquias: a sobrevivência de um homem depende de sua morte e de sua continuidade em seu filho, que o replica. Nosso tempo histórico passa de morte em morte: é um tempo tanático.

Nos espaços históricos que ocupamos durante a greve e que convertemos em espaços festivos, atualizamos um tempo distinto, erótico. O contato horizontal com o outro vivente, que estava ombro a ombro comigo, me fez saber, durante esse dia de dias, que minha sobrevivência não está na pessoa que nascerá depois de mim, nem no leitor que me leia quando eu tiver morrido (ou agora, pois os autores estamos todos mortos em todos os livros que escrevemos), nem naquela pessoa futura que minha vida possa talvez influenciar, mas sim em meu contemporâneo: aquele que respira ao meu lado e cuja voz escuto. Pudemos imaginar outro tempo, um tempo que não transcorria por meio da substituição, mas que se eternizava no encontro; que não passava pela morte e a sobrevivência, mas que se transmitia, ia e voltava por meio da contiguidade, da coincidência, do contágio.

Foi uma novidade nos encontrarmos em espaços e momentos que não eram nem de trabalho nem de lazer. Do que eram? Eram espaços políticos do desejo e espaços erotizados da política. Nossa atitude era a devoção de Antígona, ao mesmo tempo apaixonada por seu irmão e dedicada à justiça, mais que à vontade do governante. Durante nosso protesto, no tempo diurno da história irrompeu outro tempo: noturno, confuso, sexual, onírico, hipnótico, hínico. Fomos como os personagens de “Sonho de Uma Noite de Verão”, que graças ao feitiço de uma flor se apaixonam pela pessoa mais próxima, pela primeira pessoa que veem ao despertar, pelo outro que é qualquer um. Os ritmos de nossas panelas ensaiavam variações das batidas do coração, de um coração comum e composto, e eram subversões da batida do relógio. Tal era a revolução que fazíamos: em rondas descrevíamos revoluções como os planetas, procurando uma temporalidade física, uma música verdadeira.

Nossas manifestações da vida palpitante durante a greve foram também, de maneira em nada contraditória, ritos fúnebres. Dias antes do 21 de novembro o Exército nacional matara crianças ao bombardear um acampamento guerrilheiro, fato que fez crescer a participação nas marchas. No meio da greve a polícia antiprotesto assassinou Dilan Cruz, manifestante pacífico de 18 anos. Velávamos a ele e a tantos jovens assassinados pela autoridade, ao mesmo tempo em que, como no conto “Os Funerais da Mamãe Grande”, de Gabriel García Márquez, festejávamos o final iminente da injustiça autárquica.