26 de março de 2019

TUÍTES, BÍBLIAS E BALAS PARA REVOLUCIONAR MENTES!

(Angela Alonso, professora de Sociologia da USP – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 24) “Em nome da Santíssima Trindade” —assim se abre a primeira Constituição brasileira, de 1824. Seu miolo continha uma religião de Estado. Visava menos a exclusão inquisitorial que operar como meio de controle social.

A Igreja Católica tocava os serviços estatais de registrar quem nascia, casava, morria. Votava-se em paróquias e se moldavam corações e mentes cristãos em capelas e escolas. Os religiosos, mais que Deus, estavam em toda parte, a política incluída.

Ainda no Segundo Reinado, o tema foi à berlinda. Secularizar o Estado virou bordão em discursos parlamentares, artigos de imprensa e projetos de lei de modernizadores.

Um argumento caracterizava o Estado teocrático como típico de tempos de obscurantismo, a Idade Média, e advertia que a sociedade moderna se alicerçava na ciência, em vez de na fé revelada. O ministro da Educação conhece o debate: no mestrado estudou alguns de seus participantes positivistas.

Outra linha era a liberal clássica, da liberdade de consciência. A tolerância à religião dos outros seria a única maneira de se proteger da imposição da crença alheia. Liberal —e agora autodeclarado evolucionista— o ministro da Economia deveria concordar com o postulado.

O Império caiu, os dois raciocínios seguem de pé.

A República inscreveu em sua Constituição inaugural a laicidade do Estado, deixando a religião como decisão de foro íntimo. A vigente, de 1988, registrou em seu preâmbulo a expressão “sob a proteção de Deus”, mas sem impor a ninguém o exercício de uma fé particular, menos ainda o proselitismo religioso por meio de política pública.

A anunciada número dois da pasta da Educação disso diverge do texto constitucional. Em entrevista à TV Band, em 2014, Iolene Maria de Lima explicou sua pedagogia: “uma educação baseada na palavra de Deus, […] onde a geografia, a história, a matemática vai [sic] ser vista na ótica de Deus […]. O aluno vai aprender que o autor da história é Deus, o realizador da geografia é Deus. Deus fez as planícies […], Deus fez o clima, […] o maior matemático foi Deus”. Seu objetivo era ver “toda a disciplina do currículo escolar organizada da ótica das escrituras”.

Lima dirigia então o colégio Inspire, em São José dos Campos. Sendo escola privada, é escolha particular ali depositar reais e cérebros de filhos.

Na escola pública, a opção não é facultativa. A escolarização estatal beneficia sobretudo aqueles a quem faltarão recursos para fugir da doutrinação religiosa compulsória.

E, mais grave, se a escola pública seguir tais princípios ferirá de morte a laicidade do Estado.

Mesmo que Lima não tenha sido confirmada como secretária-executiva do Ministério da Educação, a simples cogitação de perfil como o seu para cargo de tamanha relevância mostra que o governo não traz sua religiosidade peculiar apenas no slogan.

Há aí um projeto de escolarizar as próximas gerações de acordo com certo credo. Uma pedagogia autoritária, capaz de penetrar órgãos governamentais e orientar nomeações, licitações e compras de material didático.

É paradoxal que os que acusam adversários da lavagem cerebral do “marxismo cultural” se empenhem em inculcar seus próprios valores nos menos habilitados para questioná-los —as crianças, que ainda estão formando convicções.

Proselitismo agressivo, que trafega para além das cartilhas. Prolonga-se em braços armados contra infiéis inimigos da pátria, como o atesta a proximidade governamental com as milícias, o empenho em armar a população e a condescendência a extermínios sumários.

Soa cacofônico falar em Deus e pregar a violência, mas a história está cheia de guerras religiosas. Nelas, ganham-se almas e vendem-se armas, o que pode rimar tanto com desígnios divinos quanto com negócios terrenos.

A questão é até quando o estrato tão alto quanto diminuto que gere os mercados vai pagar essa elevada taxa de administração para obter seu ansiado “ambiente de negócios”.

Se os bolsonaristas de coração não caírem em seis meses, como previu seu astrólogo, podem avançar no que, em Washington, Paulo Guedes chamou de revolução. Talvez o ministro tenha sido apenas irônico, crendo-se no controle do exército dos eleitos, ou tarde em admitir que, na política, como na interpretação dos textos sagrados, seus aliados são literais.

Nada garante que não visem mesmo criar sua “nova era” teológica e belicosa, missionários empenhados em revolucionar as mentes com tuítes, bíblias e balas.